Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0897/13
Data do Acordão:11/13/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:IRREGULARIDADE
PETIÇÃO
ADMISSIBILIDADE
RECURSO
ACTO
FIXAÇÃO
RENDIMENTO COLECTÁVEL
IMPUGNABILIDADE
PRINCÍPIO DA IMPUGNAÇÃO UNITÁRIA
Sumário:I - O despacho de convite ao suprimento de irregularidades da petição inicial não é recorrível, como resulta claramente do disposto no art. 508º nº 6 do CPC (a que corresponde o art. 590º nº 7 do actual CPC), aplicável ao processo judicial tributário por força do disposto no art. 2º, alínea e), do CPPT.
II - Por força do princípio da impugnação unitária, plasmado no art. 54º do CPPT, só é possível, em princípio, impugnar o acto final do procedimento tributário, dado que só esse acto atinge ou lesa, de forma imediata, a esfera jurídica do contribuinte.
III - Esta solução legal em nada contende com os princípios constitucionais ínsitos no art. 18º conjugado com os arts. 20º, 266º e 268º da Lei Fundamental, maxime no que se refere ao direito à tutela jurisdicional efectiva, já que o art. 54º do CPPT prevê expressamente a impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, serem invocados todos os vícios de que padeçam os actos interlocutórios.
IV - O acto de fixação do rendimento colectável não representa a prática de um acto imediatamente lesivo, por não ser susceptível de provocar efeitos jurídicos negativos imediatos na esfera jurídica do contribuinte.
Nº Convencional:JSTA000P16573
Nº do Documento:SA2201311130897
Data de Entrada:05/20/2013
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO E OUTRA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A…………………, com os demais sinais dos autos, recorre da sentença do TAF de Loulé que absolveu a FAZENDA PÚBLICA da instância na impugnação judicial que aquela deduziu contra o acto do Director de Finanças de Faro, de 14/07/2010, proferido no âmbito de pedido de revisão do rendimento colectável fixado em sede de IRS e de IVA para o ano de 2008, formulado ao abrigo do art. 91º da LGT, e que manteve o rendimento apurado pela administração tributária através de métodos indirectos, fixando, por consequência, esse rendimento em € 157.500,00 para efeitos de IRS e em € 47.250,00 para efeitos de IVA.
1.1. Terminou a alegação de recurso com as seguintes conclusões:
1. A aqui recorrente interpôs impugnação judicial, após ser notificada da decisão, com fundamento no nº 6 do artigo 92º da LGT, relativa ao pedido de revisão de IRS e IVA do exercício de 2008.

2. A decisão do pedido de revisão desconsiderou as provas apresentadas e perícias realizadas e concordou apenas com a posição assumida pelo perito da Administração Tributária, mantendo a fixação do rendimento de IRS e IVA do ano de 2008, nos valores de 157.000,00 e 47.250,00, respectivamente fixados por métodos indirectos.

3. A ora recorrente impugnou judicialmente, com fundamento no erro nos pressupostos de determinação indirecta da matéria colectável, bem como invocou factos que acarretam vícios, designadamente o vício de inexistência de facto tributário ou o vício de errada qualificação do acto jurídico que conduziu a Administração a concluir pela existência de rendimentos tributáveis.

4. Aplica-se ao caso o disposto no nº 5 do artigo 86º da LGT.

5. Uma vez que o alegado na impugnação afecta o acto tributário no seu todo, a impugnante/recorrente pediu a anulação da decisão proferida em 14 de Julho de 2010, referente ao pedido de revisão (artigo 91º da LGT).

6. Nos termos do artigos 86º nº 5 da LGT, a recorrente apresentou previamente o pedido de revisão da matéria colectável, cumpriu, então, o preliminar indispensável da impugnação judicial com fundamento na errónea quantificação da matéria colectável e na não verificação dos pressupostos de determinação indirecta da matéria colectável.

7. O procedimento de revisão restringiu-se à questão técnica, e não chegou a discutir a questão do rigor dos pressupostos de facto em que a administração tributária fez assentar o critério de que se serviu para, com recurso a métodos indirectos, quantificar a matéria colectável.

8. A posição assumida pelo perito da Administração Tributária teve por base a factologia, motivação e fundamentação constantes do relatório de inspecção, eivado de vícios.

9. A Recorrente entende ser inadmissível manter-se incólumes e intangíveis as possibilidades impugnatórias do sujeito passivo em tudo o que não disser respeito à matéria que legalmente pode ser tratada em sede de procedimento de revisão, nomeadamente a matéria fáctica que se provada conduz ao vício da inexistência de facto tributário, bem como ao vício da errada qualificação do acto jurídico.

10. Em momento algum a recorrente teve suas provas valoradas.

11. Salvo entendimento diverso, na impugnação judicial em que a matéria tributável tenha sido determinada com base em avaliação indirecta, pode ser invocada qualquer ilegalidade desta, salvo quando a liquidação tiver por base o acordo no processo de revisão da matéria tributável (artigo 86º, nº4 da LGT), o que não é o caso.

12. Salienta-se, não houve acordo entre os peritos no processo de revisão.

13. A recorrente, uma vez que discorda em absoluto da decisão do pedido de revisão, por não corresponder à verdade, impugnou judicialmente alegando a inexistência de facto tributário, bem como a errada qualificação do acto jurídico que conduziu a administração a concluir pela existência de rendimentos tributários.

14. Portanto, os actos impugnados não se limitam a fixar os valores com base nos quais irão ser liquidados os tributos.

15. Enfatiza-se, os actos impugnados não versam apenas sobre os actos tributários com base em erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indirecta da matéria tributável, a matéria de facto trazida aos autos pela recorrente invoca outros vícios, designadamente o vício de inexistência de facto tributário e o vício de errada qualificação do acto jurídico que conduziu a Administração a concluir pela existência de rendimentos tributáveis, e estes são actos lesivos, portanto impugnáveis.

16. A esfera jurídica da recorrente apenas foi atingida pois nos procedimentos tributários que conduziram ao acto de liquidação do tributo ocorreram vícios que levaram a Administração a concluir pela existência de rendimentos tributáveis.

17. Inaplicável ao caso o princípio da impugnação unitária (artigo 54º do CPPT)

18. A recorrente não auferiu quaisquer rendimentos no ano de 2008, dessa forma verifica-se o vício de inexistência de facto tributário, uma vez que inexiste matéria tributável susceptível de avaliação directa ou indirecta.

19. Empréstimo este que estava, à data da inspecção, documentado e comprovado pela existência de uma declaração assinada pelos referidos senhores.

20. Ocorreu, portanto, erro na qualificação jurídica da operação realizada na ação inspectiva, uma vez que o empréstimo concedido à recorrente foi qualificado pela Administração Tributária como rendimento não declarado pela mesma, erro que inquina todo o seu raciocínio sobre a determinação do lucro tributável por métodos indirectos.

21. Essa qualificação do acto jurídico não é irrelevante.

22. A recorrente não teve valoradas as pertinentes provas no âmbito da ação inspectiva, bem como no âmbito do procedimento de revisão e durante a impugnação judicial.

23. A decisão a quo negou à recorrente o seu direito a fazer prova da matéria de facto, nomeadamente provar a inexistência de matéria tributável, bem como que a Administração Fiscal incorreu numa errada qualificação do facto tributário, conducente à liquidação de imposto sobre um rendimento que a impugnante não auferiu.

24. Enfatiza-se, a existência de uma avaliação indirecta não preclude, obviamente, a sindicância da legalidade da avaliação, in casu, quando forem invocados factos que se provados caracterizam os referidos vícios. Tais vícios conduziram a Administração a concluir pela existência de rendimentos tributáveis.

25. Pelo que, o Tribunal recorrido erra ao não tomar conhecimento dos factos.

26. Ao julgar pela inimpugnabilidade do acto tributário, e consequentemente, absolver a Fazenda Pública da instância, o Tribunal a quo denegou à recorrente o seu direito à tutela jurisdicional efectiva.

27. Ao sufragar-se a posição do Tribunal recorrido estar-se-á a aplicar uma norma inconstitucional (o artigo 86º, nsº 3 e 4, da LGT, interpretado no sentido de não poder ser invocada na impugnação judicial qualquer ilegalidade), por violação dos preceitos constitucionais tipificados no artigo 18º, conjugado com o disposto no artigo 20º, 266º e 268º da Constituição da República Portuguesa – CRP, por tal constituir uma restrição não expressamente prevista na lei e manifestamente desproporcionada do direito fundamental de acesso à justiça administrativa.

28. O entendimento sufragado na decisão recorrida traduz-se, na prática, numa diminuição das garantias de igualdade e defesa do contribuinte perante a administração fiscal.

29. Ademais, as questão de direito e de facto que recaem o acórdão utilizado para fundamentar a decisão recorrida, qual seja, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Abril de 2006 - processo nº 1286/05, não são substancialmente semelhantes aos factos e questões de direito invocadas na impugnação em questão.

30. Entende a ora recorrente que a sentença sub judice enferma do vício de ilegalidade, por errónea aplicação do direito ao caso em apreço, designadamente, por interpretar e aplicar erroneamente o artigo 54º em conjunto com os números 3 e 4 do artigo 86º.

31. Outrossim, violou o artigo 123º do CPPT, uma vez que errou ao sintetizar a pretensão da impugnante e seus respectivos fundamentos, bem como não fixou as questões que ao tribunal cumpriria solucionar, prejudicando toda a fundamentação da decisão recorrida, tornando-a nula.

Nesse sentido, deve ser-lhe reconhecido o direito de impugnar o acto com invocação de quaisquer ilegalidades de que o mesmo padeça. Devendo em todo o caso, a decisão recorrida ser revogada, porque ilegal, possibilitando à recorrente produzir prova da matéria de facto.

Juntamente com esse recurso, subiu aquele que o Ministério Público interpôs do despacho judicial proferido a fls. 81/82, que, na fase liminar do processo, determinou a notificação da impugnante para indicar, no prazo de 10 dias, a qual dos impostos pretendia ver dirigida a presente impugnação judicial, tendo em conta que a respectiva petição inicial continha uma cumulação ilegal de cumulação de impugnações nos termos do disposto no art. 104º do CPPT, por não ser permitido reagir cumulativamente, no âmbito do mesmo processo de impugnação, contra actos de liquidação de IRS e de IVA.

Recurso que foi admitido a subir com o primeiro que, depois dele, houvesse de subir imediatamente.
As alegações deste recurso mostram-se rematadas com o seguinte quadro conclusivo:

1. O IRS e o IVA são tributos que têm a mesma natureza - a de impostos - pelo que se verifica a identidade da natureza dos tributos exigida pelo art. 104º do CPPT.

2. Tal norma não exige a identidade dos tributos, mas unicamente a identidade da sua natureza, pretendendo apenas excluir a cumulação de impugnações de impostos e taxas, que são tributos de natureza não idêntica.

3. Seria contrário à unidade do sistema jurídico impedir a cumulação de impugnações, quando, em situação semelhante, art. 91º nº 5 da LGT permite a cumulação no mesmo procedimento de revisão, de todos os impostos e períodos de tributação que foram abrangidos numa mesma acção de inspecção como sucede no caso dos autos, em que a A. impugna a decisão proferida no procedimento de revisão, nos termos do art. 92º nº 6 da LGT, que originou liquidação de IRC e IVA, como consta na p.i.

4. A norma do art. 104º do CPPT, interpretada no sentido de impedir a cumulação de impugnações de impostos diferentes, é orgânica e materialmente inconstitucional, por restringir as garantias dos contribuintes e violar o direito à tutela jurisdicional efectiva, não respeitando assim o disposto nos arts. 20º nº 1 e 5 e 103º nº2 e 165º nº 1 al. i) do CRP.

5. A douta decisão recorrida, ao decidir nos termos em que o fez, violou o disposto nos arts. 104º do CPPT, art. 3º e 9º da LGT, art. 9º do CC e art. 20º, 103º nº 2 e 165º nº 1 al. i) da CRP.


1.2. Não foram apresentadas contra-alegações relativamente a estes dois os recursos.

1.3. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto do STA emitiu douto parecer no sentido de que devia ser negado provimento ao recurso interposto da sentença, enunciando, para o efeito, a seguinte motivação:

«2. Emitindo parecer, é certo que o acto impugnado foi a decisão proferida em pedido de revisão de decisão de fixação de matéria tributável por métodos indirectos.

Contudo, ainda aqui é de aplicar o disposto no art. 86º n.º 3 da LGT, a menos que se tenha ocorrido agravamento da colecta, nos termos do nº 9 do art. 91º da LGT, o que no caso não ocorreu.

Por outro lado, não é de reconhecer a inconstitucionalidade que se invoca, pese embora o art. 268º nº 4 da C.R.P. reconhecer aos interessados o direito ao recurso contencioso contra qualquer espécie de ilegalidade desde que o mesmo lese direitos ou interesses juridicamente tutelados.

Existem razões de eficácia e celeridade que justificam que apenas do acto de liquidação seja possível apresentar impugnação, a qual, nos termos previstos nos arts. 117º nº 1 e 134º nº 1 do C.P.P.T., pode versar quer erro na quantificação quer os pressupostos de aplicação de métodos indirectos, pelo que não será de reconhecer a inconstitucionalidade que se invoca - cfr., nomeadamente, nesse sentido acórdãos do S.T.A. de 1-2-1995 e de 19-10-95, proferidos nos processos nºs 18535 3 194745; no entanto, em sentido contrário já decidiu o T. Constitucional nos acórdãos n.ºs 1144/96 e 266/2000, conforme referem Leite de Campos; Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa referem em L.G.T. Anotada e Comentada, 4ª ed. 2012, p. 825, defendendo também haver razões a justificar que a impugnabilidade directa apenas seja possível posteriormente.

Finalmente, a sentença recorrida não violou o art. 123º do C.P.P.T., pois deu cumprimento ao previsto no art. 123º nº 1 do C.P.P.T. e fundamentou a decisão proferida quanto a questão que impedia que se conhecesse do pedido.»


1.4. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre apreciar e decidir ambos os recursos, sendo essencial que se comece pela apreciação do recurso do despacho interlocutório.

2. Quanto ao recurso do despacho interlocutório
Como se viu, o despacho impugnado é aquele que se encontra exarado a fls. 81/82, proferido em fase liminar do processo, através do qual o Mmº Juiz determinou a notificação da impugnante para indicar, no prazo de 10 dias, a qual dos impostos pretendia ver dirigida a impugnação judicial, tendo em conta que a petição inicial continha uma cumulação ilegal de cumulação de impugnações face ao disposto no art. 104º do CPPT, por não ser permitido reagir cumulativamente, no âmbito da mesmo processo, contra actos de liquidação de IRS e de IVA.
Apesar de a impugnante ter acatado o convite, vindo aos autos «requerer que na presente impugnação seja apreciada a liquidação relativa ao ano de 2008. Pela impossibilidade de cumulação de pedidos, mais informa que dará entrada de nova impugnação judicial referente à liquidação de IVA do ano de 2008», o Ministério Público interpôs recurso desse despacho, o qual, contendo um apelo à impugnante para corrigir a petição na fase liminar do processo, não pode deixar de qualificar-se como um despacho de convite ao suprimento de irregularidades desse articulado.
Ora, o despacho de convite para aperfeiçoamento ou suprimento de irregularidades de articulados não é recorrível, por não se tratar de uma decisão definitiva quanto à relação processual ou quanto ao destino da acção. No caso, só decisão definitiva - que indeferisse a impugnação por julgar verificada a excepção dilatória da cumulação ilegal de impugnações ou a posterior absolvição da instância por força dessa excepção, é que estaria sujeita a recurso, como se depreende claramente do disposto no art. 508º, nº 6, do Código de Processo Civil, aplicável ao processo judicial tributário por força do disposto no art. 2º, alínea e), do CPPT.

Com efeito, esse preceito do Código de Processo Civil (a que corresponde o actual art. 590º, nº 7, do CPC aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, com idêntica formulação) afirma expressamente a irrecorribilidade do despacho de convite ao suprimento de irregularidades dos articulados, preceito que surgiu precisamente para pôr termo à controvérsia da admissibilidade do recurso desse tipo de despachos, que era largamente debatida na doutrina e na jurisprudência a propósito do art. 477º do CPC (entretanto revogado pelo DL n.º 329-A/95, e substituído pela norma contida no art. 508º).

Na vigência do art. 477º do CPC, debruçando-se sobre a questão da recorribilidade do despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição, escrevia Jacinto Rodrigues Bastos (Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 35.) “Cremos que o despacho de convite é irrecorrível. Não se trata ainda de uma decisão definitiva quanto à relação processual; o juiz, notando determinada irregularidade na petição, que poderá conduzir à sua recusa, dá ao autor a possibilidade de evitar esta, corrigindo a deficiência; mas o juízo que emite não é ainda decisório e nada impede que o autor, sem fazer a correcção, consiga, dentro do prazo estipulado, convencer o juiz de que a irregularidade é aparente, ou de que a falta não existe. Do despacho de recusa é que cabe recurso, nos termos gerais.” No mesmo sentido, Castro Mendes (Direito Processual Civil, 1980, págs. 44 e segs.): “Há decisões que se destinam necessariamente a ser substituídas por outras ou nelas integradas, ou pelo menos podem sê-lo se as partes o solicitarem. A lei então somente permite o recurso da decisão substituta ou absorvente; as primeiras são irrecorríveis como não definitivas.”

Tendo a questão sido resolvida através do nº 6 do art. 508º quanto aos articulados e, identicamente, pelo actual art. 590º, nº 7, do CPC aprovado pela Lei nº 41/2013, não restam dúvidas de que não cabe recurso do despacho que convida a suprir irregularidades ou insuficiências dos articulados, seja ele proferido logo após os articulados ou proferido no âmbito da audiência preliminar.

Pelo exposto, e tendo em conta que o tribunal ad quem não se encontra vinculado pela decisão de admissão do recurso proferida pelo tribunal a quo, atento o preceituado no art. 685º-C, nº 5, do CPC (com idêntica norma no art. 641º, nº 5, do actual CPC), aplicável ex vi da alínea e) do art. 2º do CPPT, não se tomará conhecimento deste recurso, por inadmissibilidade do mesmo.

3. Do recurso da sentença
O recurso vem interposto da sentença que absolveu a FAZENDA PÚBLICA da instância (por verificação de excepção dilatória de inimpugnabilidade do acto) na impugnação judicial que A…………………… deduziu contra o acto do Director de Finanças de Faro, de 14/07/2010, proferido no âmbito de pedido de revisão do rendimento colectável fixado em sede de IRS e de IVA para o ano de 2008, e que tendo mantido o rendimento apurado pela administração tributária através da aplicação de métodos indirectos, ficou esse rendimento em € 157.500,00 para efeitos de IRS e em € 47.250,00 para efeitos de IVA.

As questões que se colocam são as de saber se a sentença recorrida errou ao julgar que esse acto é insusceptível de impugnação judicial autónoma e se errou, igualmente, ao fixar o objecto do litígio, violando, por isso, o disposto no art. 123º do CPPT.

Segundo o entendimento vertido na sentença, «(…) no contencioso tributário cabe, por regra, impugnação contenciosa “do acto final do procedimento, que afecta imediatamente a esfera patrimonial do contribuinte, fixando a posição final da administração tributária perante este, definindo os seus direitos ou deveres”. (…)

Sendo que o artigo 86º da LCT dispõe expressamente que – nº 3 - “A avaliação indirecta não é susceptível de impugnação contenciosa directa, salvo quando não dê origem a qualquer liquidação”, devendo a ilegalidade da avaliação ser invocada – nº 4 - na impugnação do acto de liquidação em que a matéria tributável tenha sido determinada com base nessa avaliação.
Assim, o acto impugnado, por se limitar a fixar os valores com base nos quais irão ser liquidados os tributos, é um acto interlocutório que não é directamente impugnável - neste sentido, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Abril de 2006 - processo nº 1286/05.

E a inimpugnabilidade do acto é uma excepção dilatória que leva à absolvição da instância da Fazenda - artigo 493º, nº 2, do CPC.».

É contra essa decisão que a recorrente se insurge, invocando, em suma, que o objecto da impugnação não se limita à fixação da matéria colectável por métodos indirectos, incidindo também nas questões que suscitou de inexistência de facto tributário e errada qualificação jurídica do acto subjacente, sustentando que, desconsiderando estes factos na fixação da matéria colectável, a Administração Tributária praticou actos lesivos, que são autonomamente impugnáveis por aplicação do que dispõe o art. 86º, nº 4, da LGT, não se enquadrando, por isso, na disciplina contida no art. 54º do CPPT, pelo que o tribunal denegou o seu direito à tutela jurisdicional efectiva, tendo violado os princípios ínsitos na Lei Fundamental – art. 18º conjugado com os arts. 20º, 266º e 268º -, e incorrido em erro de julgamento no que toca à interpretação e aplicação dos arts. 54º do CPPT e 86º, nºs. 3 e 4, da LGT, bem como violado o art. 123º do CPPT por ter errado «ao sintetizar a pretensão da impugnante e seus respectivos fundamentos, bem como não fixou as questões que ao tribunal cumpriria solucionar, prejudicando toda a fundamentação da decisão recorrida», o que conduz, na sua perspectiva, à nulidade da sentença.

Vejamos.

Estabelece o art. 54º do CPPT que «1- Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.».
Tal preceito consagra o denominado princípio da impugnação unitária, segundo o qual só é possível, em princípio, impugnar o acto final do procedimento, e não já os actos interlocutórios ou procedimentais, porquanto só o acto final atinge ou lesa, imediatamente, a esfera jurídica do contribuinte, fixando a posição da administração tributária perante este e definido os seus direitos e obrigações. E dele resulta, ainda, que no contencioso tributário, ao contrário do que acontece actualmente no contencioso administrativo, o critério da impugnabilidade dos actos é o da sua lesividade imediata e actual (e não meramente potencial), ou, por outras palavras, depende da produção de efeitos negativos imediatos na esfera jurídica do contribuinte, pela violação dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Deste modo, os actos interlocutórios do procedimento tributário, sendo meramente instrumentais ou preparatórios da decisão final, ainda que ilegais, não são, em princípio, imediatamente lesivos dos interesses do contribuinte, pois a sua situação tributária não fica com eles definida ou resolvida. Na verdade, sendo o procedimento de liquidação tributária constituído por uma série de actos interligados e dirigidos à concretização de um resultado jurídico final, ou seja, à liquidação do montante do imposto que o contribuinte tem de entregar nos cofres do Estado, compreende-se que só o acto final (liquidação em sentido estrito) seja susceptível de afectar, de forma objectiva e imediata, a esfera jurídica do contribuinte, sendo esse, por conseguinte, o acto lesivo e contenciosamente impugnável.

E porque é a esta luz que deve ser visto o princípio da impugnação unitária, inviabilizador da impugnabilidade dos actos procedimentais, como é o caso dos actos praticados no procedimento de revisão contemplado no art. 91º da LGT, compreende-se que ele só deve ceder quando esteja em causa um dos seguintes actos susceptíveis de impugnação imediata: (i) actos interlocutórios cujo escrutínio imediato e autónomo se encontre expressamente previsto na lei (“actos destacáveis”); (ii) actos que, embora inseridos no procedimento e anteriores à decisão final, sejam imediatamente lesivos, abrindo-se então a possibilidade da sua impugnação imediata, sem prejuízo de a sua ilegalidade poder ainda ser suscitada na impugnação que venha a ser deduzida contra o acto final; (iii) actos trâmite que ponham um ponto final na relação da administração com o interessado, já que nestes casos, muito embora o acto continue a ser, na economia geral do procedimento, um acto preparatório pré-ordenado ao acto final, é para o seu destinatário o acto que define a posição da Administração e, por isso, o acto lesivo dos seus direitos ou interesses legítimos.

No caso vertente, a impugnante deduziu impugnação judicial contra o acto praticado pelo Director de Finanças de Faro no âmbito de procedimento de revisão do rendimento colectável fixado pela administração tributária para o ano de 2008 através da aplicação de métodos indirectos, acto que manteve os valores apurados por tais métodos, fixando, por consequência, o rendimento em € 157.500,00 para efeitos de IRS e em € 47.250,00 para efeitos de IVA.

Não se tratando de um acto previsto na lei como um acto destacável, uma vez que nunca foi alegado do que se esteja perante um caso em que a decisão do Director de Finanças não iria dar origem a qualquer liquidação de imposto (único caso em que, por força do disposto no nº 3 do art. 86º da LGT, esse acto seria susceptível de impugnação directa e autónoma), nem se tratando, pela mesma razão, do acto final que põe termo à relação da administração com o interessado (termo que só ocorrerá com o acto da liquidação), a sua impugnabilidade contenciosa directa e autónoma dependeria da sua qualificação como acto imediatamente lesivo.

Ora, tal acto não é imediatamente lesivo, por não ser susceptível de provocar, por si, efeitos jurídicos negativos imediatos na esfera jurídica da impugnante. A fixação de rendimentos referente a um determinado ano constitui o acto propulsor do procedimento tributário tendente à determinação da colecta e à liquidação do imposto, isto é, constitui o acto impulsionador e preparatório desse procedimento tributário, pelo que as suas vicissitudes não afectam, em princípio, de forma imediata, a esfera jurídica do contribuinte, a qual só será atingida com o acto final de liquidação do imposto.

Com efeito, os eventuais vícios ocorridos no acto que fixou os rendimentos só se cristalizam no acto de liquidação onde produzirão, então, a verificar-se, efeitos negativos sobre a esfera jurídica da impugnante. E, por conseguinte, esta terá de esperar pelo acto final de liquidação para o impugnar, invocando os fundamentos que, no seu entender, a inquinam, designadamente no que concerne aos pressupostos levados em conta pela Administração Tributária para a fixação da matéria colectável.

Por outro lado, esta solução legal em nada contende com os princípios constitucionais que a Recorrente invoca, maxime o que se refere ao direito à tutela jurisdicional efectiva, já que o artigo 54º do CPPT prevê, expressamente, a impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos dos direitos dos contribuintes e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, poderem ser invocados todos os vícios de que padeçam os actos interlocutórios. Ou seja, o acto em questão nos presentes autos é efectivamente impugnável, mas só mediatamente, através do acto de liquidação que vier a ser praticado, pelo que fica, desta forma, assegurada a possibilidade de controlo judicial da sua legalidade.

Por tal motivo, a inimpugnabilidade autónoma e directa de actos procedimentais não constitui uma restrição do direito de impugnação contenciosa. Trata-se de um mero condicionamento do direito à impugnação, que se traduz em permitir o controlo judicial da legalidade dos actos tributários apenas quando ele é necessário, e esse condicionamento não é proibido pela Constituição, como o não são outros como a sujeição a prazos ou a imposição regras processuais, que em vez de restringirem o exercício do direito visam assegurá-lo eficazmente. (Sobre a distinção entre restrição e condicionamento de direitos, podem ver-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 74/84 (publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 351, página 172, e 201/86 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 7, tomo II, página 93).
Como assim, a sentença recorrida não padece do erro que a recorrente lhe imputa, tendo julgado como é de direito a questão que, na circunstância, se impunha solucionar.

E também não se vislumbra como possa ter sido violado o disposto no art. 123º do CPPT, uma vez que, ao contrário do que vem alegado pela recorrente, o Mmº Juiz não incorreu em erro ao sintetizar a pretensão da impugnante e os fundamentos da acção, tendo analisado prioritariamente, como se lhe impunha, a questão da impugnabilidade do acto sindicado, por se tratar de excepção dilatória que, conduzindo à absolvição da instância, obsta ao conhecimento do mérito da pretensão anulatória deduzida, ficando, desse modo, prejudicado o conhecimento de todos os vícios que a Impugnante imputava ao acto sindicado nesta acção.

Pelos motivos expostos, improcedem todas as conclusões das alegações do recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em não admitir o recurso interposto pelo Ministério Público e em negar provimento ao recurso da sentença interposto pela Impugnante.

Custas do recurso da sentença pela respectiva recorrente; e sem custas o recurso interposto pelo Ministério Público, por delas se encontra isento.

Lisboa, 13 de Novembro de 2013. – Dulce Neto (relatora) – Isabel Marques da Silva – Pedro Delgado.