Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01079/20.4BELRA
Data do Acordão:06/09/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES
MATRIZ PREDIAL
Sumário:I - A informação sobre os números dos artigos inseridos na matriz numa determinada data não tem natureza pessoal nem reservada;
II - O acesso a esta informação rege-se pelo disposto na lei de acesso aos documentos administrativos e à informação administrativa – Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto.
Nº Convencional:JSTA00071162
Nº do Documento:SA22021060901079/20
Data de Entrada:05/06/2021
Recorrente:A...........
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:SENTENÇA PROFERIDA PELO TAF DE LEIRIA
Decisão:CONCEDE PROVIMENTO
Área Temática 1:ACESSO A INFORMAÇÃO CONSTANTE DE BASE DE DADOS DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA
Legislação Nacional:ARTIGOS 4º E 5º DA LEI DE ACESSO AOS DOCUMENTOS ADMINISTRATIVOS
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A…………, contribuinte fiscal n.º ………, com domicílio indicado na Rua ……….., n.º …….., no lugar de …………., 2460-…………… São Martinho do Porto, interpôs, ao abrigo do disposto no artigo 26.º, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o presente recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou totalmente improcedente o pedido de intimação do Serviço de Finanças de Alcobaça para prestação de informações e, consequentemente, absolveu a entidade Requerida do pedido.

Com a interposição do recurso, juntou alegações e formulou conclusões, com numeração sequencial, que a seguir transcrevemos: «(…)

16. Nestes termos, e salvo melhor entendimento, deve de ser julgado procedente o presente recurso e ser revogada a sentença recorrida, por violação do nº1 do artigo 5º da Lei n.º 26/2016, e do nº1 do artº 130º do CIMI, que tem que ser interpretado, sob pena de inconstitucionalidade, ao abrigo do ponto 2 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa (lei superior).

17. Suscita-se a inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artº 130º do CIMI, caso não seja interpretada no sentido de considerar “um interesse directo, pessoal e legítimo” o direito à informação.

18. O pedido se trata de uma mera informação quanto aos documentos já existentes, e não um pedido para criar novos documentos, como facilmente se conclui do pedido feito à AT.

19. A informação solicitada não configura a situação prevista no nº 1 do artigo 64º da LGT, como decidiu (erroneamente) o tribunal a quo, porque não diz respeito nem à situação tributária dos contribuintes nem a elementos de natureza pessoal obtidos no procedimento. Quando se está perante dados públicos, que também o são por recurso a outras formas jurídico-institucionais, não se pode estar perante a “intimidade das pessoas”.

20. Sendo dados públicos e reais, que também o são por via do registo predial, tem o tribunal a quo de intimar a AT a facultar a informação solicitada, sob pena de violação constitucional do princípio da administração aberta. Não sendo dados protegidos, a regra é o livre acesso.

21. Da mesma forma, suscita-se a inconstitucionalidade da norma do nº1 do artigo 64º da LGT, caso seja interpretada no sentido de considerar “intimidade das pessoas” dados que são públicos, ademais reais (números de artigo).

22. Por isso, deve a sentença recorrida ser substituída por outra em que o tribunal a quo intime a AT a fornecer:

a) O primeiro número de artigo urbano da freguesia de São Martinho do Porto inserido na matriz no ano de 2020;
b) O último número de artigo urbano da mesma freguesia que foi inserido na matriz a 31 julho 2020;
c) Dos números inseridos entre desde 1 janeiro 2020 e 31 julho 2020, quais OS NÚMEROS DE ARTIGO que foram validados;

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou contra-alegações e formulou as seguintes conclusões, também em numeração sequencial:

36. Conforme exposto, muito bem andou o Tribunal a quo quando decidiu que, “embora a publicidade da propriedade dos prédios esteja garantida pelo Código do Registo Predial, ainda assim o acesso aos elementos constantes das matrizes prediais sofre alguma restrição para impedir que por via do acesso às matrizes, terceiros possam conhecer a capacidade contributiva dos proprietários constituída pelos bens imóveis que lhes pertence, pelo que estará protegido pelo dever de confidencialidade o pedido formulado por quem não demonstre a titularidade de um interesse direto, pessoal e legítimo.”

37. Muito bem andou o Tribunal a quo quando improcedeu o pedido, atendendo que o artigo 64.º da LGT, obriga os dirigentes, funcionários e agentes da AT ao dever de confidencialidade relativamente aos dados pessoais e patrimoniais obtidos no procedimento nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado, tendo reconhecido que o motivo aduzido pelo Recorrente, para acesso à informação, não é exercido para juízos de valor nem a ação de intimação o meio próprio para questionar a legalidade na atuação da AT.

A Mm.ª Juiz admitiu o recurso, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, a coberto dos seguintes dispositivos legais: artigo 279.º, n.º 2 do CPPT e nos artigos 140.º, 141.º, n.º 1, 142.º, n.º 1, 143.º, n.º 1, 144.º, n.ºs 1 e 2 e 147.º, n.º 1, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Remetidos os autos a este Tribunal, foram os mesmos com vista à Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta, que lavrou douto parecer, de que transcrevemos o segmento final: «(…)

A inscrição de imóveis na matriz e os repectivos artigos não são, salvo melhor opinião, documentos administrativos e não cabem, na previsão do art.º 5º Lei n.º 26/2016.

Aliás, o recorrente não alegou nem demonstrou, muito pelo contrário defendeu que não necessitava fazê-lo, qual o interesse directo pessoal e legítimo, para que ele pudesse aceder às informações pretendidas.

Como muito bem refere o Magistrado do Ministério Público em exercício no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria - parecer de fls 51 do SITAF - “mesmo perante o princípio da administração aberta, a obrigação de prestação de informações pela administração” depende da verificação de certo circunstancialismo, só podendo ser transmitida ao “terceiro” a informação estritamente necessária à realização do interesse directo, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido que fundamenta o acesso, ficando sempre, a informação, condicionada a um real e efectivo interesse na mesma, “o que pressupõe uma avaliação sobre os interesses e valores em confronto e do risco de violação ao acesso a direitos sigilosos, o que não pode deixar de passar por conhecer os fins e interesses subjacentes a esse acesso.

Prossegue aquele Magistrado que, de resto, tal se mostra em consonância com o disposto nos art.s 82º e 85º do CPA ao prescreverem que o acesso a informações administrativas depende da demonstração de um interesse legítimo na sua obtenção. O direito de acesso aos arquivos e registos da Administração não é, nem poderá ser, um direito absoluto, importando equacionar e ponderar o mesmo, em função dos demais direitos e valores constitucionais protegidos, com os quais potencialmente poderá colidir.” – cf. Ac. TCAN de 28/9/2018 no Procº 00517/17.8BECBR), disponível em www.dgsi.pt;

O recorrente não demonstrou que tem interesse directo pessoal e legítimo em obter a informação que pretende.

Sendo assim, pelas razões que, sinteticamente deixámos expostas, resulta o nosso entendimento de que o recurso não merece provimento uma vez que a Sentença não padece de qualquer vício e não merece a censura que lhe faz o recorrente.».

Com dispensa de vistos, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.

2. Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos: «(…)

1. Em 17.08.2020, o Autor solicitou à Autoridade Tributária, através do sítio da internet da sua área pessoal o seguinte: “Que me indique qual o primeiro número de artigo urbano da freguesia de São Martinho do Porto inserido na matriz este ano (desde 1 de janeiro 2020); Que me indique qual o último número de artigo urbano da mesma freguesia que foi inserido na matriz a 31 julho 2020, quais OS NÚMEROS DE ARTIGO que foram validados. Não pretendo informação pessoal. Apenas pretendo saber os números de artigos validados na freguesia de SMP onde moro, a fim de tentar compreender em que termos o Serviço de Finanças de Alcobaça valida ou não as declarações” – cf. Doc. N.º 1 junto com a p.i.

2. Em 25.11.2020, através do ofício n.º 9079-2020, de 20.11.2020, o Requerente foi informado que os seus pedidos de informação foram indeferidos, por os mesmos estarem abrangidos pelo sigilo fiscal – cf. Doc. N.º 2 junto com a p.i.

3. O Autor teve um litígio com o Serviço de Finanças de Alcobaça, o qual deu origem ao processo judicial n.º 631/20.2BELRA, por não lhe ter sido validada atempadamente a declaração modelo 1 do IMI registada sob nº 7539847, submetida via internet com vista à inscrição matricial do seu artigo urbano (terreno para construção) número ………. da Freguesia de S. Martinho do Porto – cf. Doc. N.º 3 junto com a p.i.

4. A presente intimação foi apresentada neste Tribunal, via SITAF, em 15.12.2020 – cf. Fls. 1 do SITAF.».

3. Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou improcedente o pedido de intimação do Serviço de Finanças de Alcobaça para prestar informação sobre elementos da matriz predial urbana de uma freguesia do concelho.

Com o assim decidido não se conforma o Recorrente, por entender, basicamente, que lhe deve ser concedido o acesso à informação pretendida a coberto dos artigos 5.º da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto [também conhecida como “Lei de acesso a Documentos Administrativos” e que doravante identificaremos pelo acrónimo “LADA”], 130.º, n.º 1, do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis [doravante “CIMI”] e 268.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa [doravante “CRP”].

Não está em causa que o artigo 5.º da LADA dá execução ao direito geral de acesso aos arquivos e registos administrativos e o consequente princípio da administração aberta, consagrado no artigo 268.º, n.º 2, da CRP. É inequívoco, por outro lado, que o Recorrente interpreta o artigo 130.º do Código do IMI como uma concretização deste princípio no plano específico do acesso aos registos matriciais das finanças.

Assim sendo, a questão fundamental a decidir é a de saber se todas as pessoas têm o direito de acesso aos registos que constam das matrizes prediais sem necessidade de enunciar qualquer interesse e a coberto do princípio da administração aberta.

À pretensão do Recorrente vêm opostas, essencialmente, duas questões prévias: a primeira, suscitada pela entidade administrativa e desenvolvida na douta sentença recorrida é a de saber se a pretensão da Recorrente nem sequer deve ser enquadrada no regime geral de acesso aos registos administrativos, por sobre ela incidir legislação específica; a segunda, suscitada no douto parecer do M.º P.º, é a de saber se as matrizes prediais nem sequer são «documentos administrativos» para os efeitos da LADA.

Vamos analisa-las separadamente, começando pela questão de saber se a pretensão do Recorrente é regulada por legislação especial ou específica que afaste, designadamente, a aplicação da LADA).

4. Deriva do n.º 4 do artigo 1.º da LADA que o que nela vem regulado «não prejudica a aplicação do disposto em legislação específica, designadamente quanto:»

i. Ao «regime de exercício do direito dos cidadãos a serem informados sobre o andamento dos processos em que sejam diretamente interessados (…), que se rege pelo Código de Procedimento Administrativo» [alínea a)];

ii. Ao «acesso a informação e documentos abrangidos pelo segredo (…) fiscal» [alínea d)];

iii. O «acesso a documentos objeto de outros sistemas de informação regulados por legislação especial» [alínea c) in fine].

Ora, o Serviço de Finanças de Alcobaça fundou a decisão de indeferimento, essencialmente, no regime do segredo fiscal, tendo invocado expressamente o artigo 64.º da Lei Geral Tributária.

Pelo seu lado, o Tribunal de Primeira Instância apoiou a decisão recorrida no regime de acesso a elementos constantes das inscrições matriciais vertido no artigo 130.º do CIMI.

Que, todavia, conjugou com o artigo 85.º do Código de Procedimento Administrativo, que consagra uma extensão do direito à informação no regime de acesso a informação procedimental administrativa.

Comecemos, então, pelo regime do segredo fiscal.

O segredo fiscal pode ser definido como um regime de proteção de dados. Serve para salvaguardar o «sigilo sobre os dados recolhidos» - n.º 1 do artigo 64.º da Lei Geral Tributária). Qualquer que seja o suporte da informação ou o tratamento que lhe seja dado.

Não é, por isso, um meio de classificar documentos.

Assim, se um documento contiver informação que só em parte esteja protegida pelo segredo fiscal, este regime não pode ser invocado para obstaculizar o acesso à parte restante.

Os dados abrangidos pelo segredo fiscal são, por um lado, «os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes» e, por outro lado, «os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado».

Pela primeira parte do preceito, são integrados no segredo fiscal os dados fiscais propriamente ditos, isto é, os dados fiscais por natureza, por exprimirem de alguma forma a situação tributária do contribuinte.

Pela segunda parte do preceito são integrados no segredo fiscal os dados pessoais dos contribuintes que, não sendo fiscais em si mesmos, têm conexão com o exercício da atividade fiscal, por terem sido recolhidos em procedimentos ou ações tributárias.

O legislador, reconhecendo que a ação tributária implica algum nível de intrusão noutras esferas da vida pessoal dos cidadãos, acautela por aqui a proteção de outros dados pessoais que sejam recolhidos no exercício ou por causa das funções exercidas, alargando, para o efeito, o âmbito do sigilo fiscal e sobrepondo-o à proteção por qualquer outro dever de segredo.

Estes últimos dados não têm que revelar a situação tributária dos contribuintes para estarem protegidos pelo segredo fiscal: têm apenas que estar protegidos por outro dever de segredo e terem sido obtidos no âmbito de uma ação tributária.

Por isso se disse, no acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de novembro de 2011, que a «regra do sigilo fiscal, constante do artigo 64.º da Lei Geral Tributária, corresponde, precisamente, à extensão e reconhecimento do direito à privacidade no âmbito da atividade tributária, estando por ela abrangidos os dados de natureza pessoal dos contribuintes (pessoa singular ou coletiva) e os dados expressivos da sua situação tributária» (processo n.º 0838/11, disponível em redação integral in www.dgsi.pt).

Dizendo de outro modo: atualmente, e ao contrário do que sucedeu na vigência do artigo 17.º do Código de Processo Tributário, o sigilo fiscal não corresponde apenas à privacidade no âmbito da situação tributária dos contribuintes (confidencialidade dos dados de natureza tributária, isto é, que contenham elementos relevantes para a determinação da capacidade contributiva), abrangendo também a privacidade no âmbito da atividade tributária da administração (confidencialidade dos dados de natureza pessoal obtidos no exercício ou por causa das funções tributárias e que, nos termos da lei em vigor, tenham caráter reservado ou confidencial).

De acordo com os artigos 12.º e 80.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e a Portaria n.º 894/2004, de 22 de julho, as matrizes prediais (urbanas) são registos informatizados de todos os prédios inscritos num serviço de finanças e de onde constam a identificação (número do artigo, data da inscrição, número de identificação predial) e a origem matricial dos prédios, a sua localização, as suas confrontações, a sua composição (tipo, pisos, divisões, etc.), as áreas, os dados da avaliação, os titulares e as isenções.

Destes dados, apenas os referentes à avaliação, e às isenções são dados fiscais propriamente ditos (expressão que aqui utilizamos para nos referirmos a elementos que relevam para a determinação da situação patrimonial e fiscal dos contribuintes e são diretamente utilizados para a administração dos impostos), conjugados com a identificação dos titulares.

Pessoais são, por outro lado, apenas (e em si mesmos) os elementos que permitam identificar os titulares dos prédios.

Os restantes elementos não servem para determinar situações fiscais nem para identificar pessoas. Servem apenas para identificar, localizar e caracterizar prédios. São cadastros.

O Recorrente não pretende aceder a dados fiscais propriamente ditos. Porque não pediu informação sobre o valor patrimonial tributário, dados de avaliação ou de isenções, de prédios inscritos em nome de determinados titulares. Nem pediu o acesso a documento que contivesse essa informação, como a caderneta predial (ver o artigo 93.º, n.ºs 6 e 7, do CIMI).

Por outro lado, o Recorrente também não pretende aceder a quaisquer dados pessoais. Porque não pediu informação sobre os titulares de prédios ou quaisquer dados que os pudessem identificar.

O que o Recorrente pretende é informação sobre números inseridos na matriz em certa data e sua validação. E estes dados nem sequer são nominativos, no sentido de que não podem, em si mesmos, ser relacionados com nenhum sujeito de direitos identificado ou identificável.

O próprio Recorrente teve o cuidado de salientar no seu requerimento inicial, quando especificou que não pretendia aceder a «informação pessoal» mas apenas a «os números de artigos validados na freguesia de SMP».

E nem o Serviço de Finanças, verdadeiramente, explicou porque é que entende que a informação pretendida contendia com o segredo fiscal.

Não podendo a informação pretendida pelo Recorrente considerar-se abrangida pelo segredo fiscal, não pode opor-se à aplicação da LADA a respetiva legislação específica, nos termos da alínea d) do n.º 4 do seu artigo 1.º.

Passemos, agora, ao regime de acesso a informação procedimental.

Consta, em geral, dos artigos 82.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo e pode ser definido como um regime de acesso a informação sobre procedimentos administrativos ou sobre o seu estado de tramitação.

O acesso à informação procedimental não é livre e pressupõe, como se sabe, a invocação e demonstração de que se é interessado no procedimento ou que se tem um interesse legítimo em elementos desse procedimento.

Também este regime se deve considerar, por isso, especial em relação ao regime geral de acesso a documentos administrativos.

A verdade, porém, é que o Recorrente não pretende aceder a nenhum procedimento em curso ou saber o que foi decidido em procedimentos administrativos ou tributários (que, de resto, nunca identificou).

A informação que pretende nem sequer está arquivada em procedimento nenhum, nomeadamente no próprio procedimento de inscrição de prédios nas matrizes ou de obtenção e caderneta predial.

A informação que o Recorrente pretende consta de um registo administrativo de dados, isto é, uma forma de armazenamento condensado e sistemático de dados referentes a múltiplos contribuintes e que fornece a realidade factual da propriedade imobiliária de uma determinada freguesia para efeitos de administração dos impostos sobre o património.

Este tipo de informação não pode estar abrangida pelo direito à informação procedimental porque não tem a ver com nenhum procedimento em particular (isto é, com uma sucessão encadeada de atos dirigida à declaração de direitos tributários de um certo contribuinte).

Pelo que também não pode opor-se à aplicação da LADA a respetiva legislação específica, nos termos da alínea a) do n.º 4 do seu artigo 1.º.

Vejamos, agora, se a informação pretendida pelo Recorrente se relaciona com outros sistemas de informação regulados por legislação especial, nos termos e para os efeitos da sua alínea c).

Vem ao caso o artigo 130.º do CIMI, que consagra o direito do sujeito passivo ou do titular de um interesse direto, pessoal e legítimo a consultar ou obter documento comprovativo dos elementos constantes das inscrições matriciais.

Estamos perante um direito à informação que serve para assegurar o conhecimento dos elementos que permitem aos interessados reclamarem das matrizes (como deriva da sua epígrafe).

O que temos, portanto, é o direito à informação que é necessária para assegurar o acesso a um procedimento. Que já foi designado de direito à informação instrumental e que o Tribunal Constitucional considerou implícito nos n.ºs 4 e 5 da CRP [ver os acórdãos do Tribunal Constitucional de 4 de maio de 1999 e de 9 de janeiro de 2013, tirados nos processos n.ºs 456/97 e 478/12, respetivamente (acórdãos n.ºs 254/99 e 2/2013)].

O Recorrente não invocou nenhum direito à informação instrumental, visto que nunca disse que necessitava da informação para instaurar nenhum procedimento. E a referência no artigo 20.º da douta petição inicial a um litígio judicial (aparentemente findo) não serve, por si só, para o invocar porque não o relaciona com qualquer interesse carente de tutela.

E, sobretudo, nunca disse que pretendia reclamar de nenhum elemento constante de inscrição matricial de quem quer que fosse.

Assim sendo, a sua pretensão não tem enquadramento no artigo 130.º do CIMI.

Questão diversa será a de saber se o acesso aos registos constantes das matrizes só pode fazer-se nos casos a que alude este dispositivo legal e verificados os seus pressupostos.

Mas a esta questão temos que responder negativamente.

Por um lado, o que se garante ali é que o interessado tem acesso aos elementos necessários para reclamar das matrizes, e não que mais ninguém tem acesso a essa informação ou a parte dela.

Por outro lado, há outros mecanismos legais de acesso a essa informação. A parte dela que consta das cadernetas prediais é acessível nos termos do artigo 93.º, n.ºs 6 e 7 do mesmo Código. E a parte dela que corresponde a informação cadastral será acessível através do Sistema Nacional de Exploração e Gestão da Informação Cadastral (SINERGIC) criado pelo Decreto-Lei n.º 224/2007, de 31 de maio.

E não faria sentido algum que o legislador pretendesse limitar o acesso à informação cadastral através das matrizes e, do mesmo passo, criasse um sistema paralelo que consagrasse o princípio da publicidade da informação cadastral (artigo 3.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei) a aceder nos termos da LADA (artigo 42.º, n.º 2, do mesmo Decreto-Lei).

Pelo que concluímos este ponto dizendo a pretensão do Recorrente não é regulada por legislação especial ou específica que afaste, designadamente, a aplicação da LADA.

5. Passemos à segunda questão prévia (a de saber se as matrizes prediais são «documentos» para os efeitos da LADA).

Em geral, considera-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa, ou um facto (artigo 362.º do Código Civil) e documento electrónico o que, como mesmo fim, for elaborado mediante processamento electrónico de dados (artigo 2.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto).

Associa-se, por isso, o conceito de documento a informação já processada. Pelo que os dados que, em si mesmos, não relevem como forma de representação de pessoas, coisas ou factos não serão, em princípio, documentos.

Embora o conceito de documento a que alude o artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da LADA pareça ser mais amplo (porque inclui qualquer conteúdo ou parte de conteúdo que seja suporte de informação), a verdade é que não são acessíveis, em regra, os conteúdos que careçam de processamento de dados para constituírem informação, como deriva do seu artigo 13.º.

No entanto, as matrizes são registos de dados em modelo oficial informatizado, preparados para consulta e emissão de certidões sem necessidade de qualquer atividade de processamento dados – ver a Portaria n.º 894/2004, de 22 de julho.

Cabem, por isso, sem dificuldade alguma, no conceito de documento.

6. É livre o acesso a informação contida em documentos administrativos a que não devam ser opostas restrições ao acesso – artigo 5.º, n.º 1, primeira parte, da LADA.

O acesso compreende tanto os direitos de consulta e de reprodução, como os de informação sobre existência e sobre o conteúdo – artigo 5.º, n.º 1, segunda parte, da mesma Lei.

Sendo pedida informação sobre parte do conteúdo do documento, não devem ser opostas à pretensão restrições de acesso que não digam respeito ao conteúdo pretendido.

Porque ao acesso à informação administrativa se aplicam os princípios gerais da atividade administrativa, entre eles o princípio da proporcionalidade – seu artigo 2.º, n.º 2. E dele deriva que só devem ser opostas ao acesso as restrições que sejam verdadeiramente necessárias à salvaguarda da informação protegida.

Assim, se um documento contém, simultaneamente, informação protegida e informação de acesso livre, e o requerente pretende apenas o acesso à informação não protegida, não lhe devem ser opostas as restrições de acesso à informação protegida.

No caso, o Recorrente pretende apenas o acesso aos números de artigos prediais inseridos em determinadas datas. Informação que, em si mesma, não deve ser considerada pessoal nem protegida pelo sigilo fiscal.

A este respeito, referiu-se na decisão administrativa que não se vislumbra nem se reconhece ao requerente um interesse direto e legítimo nem o direito legalmente constituído de auditar qualquer serviço público.

Mas o direito de acesso nos termos do n.º 5 da LADA não depende da invocação de qualquer interesse (como, de resto, referiu o Recorrente) nem de qualquer competência para a realização e auditorias. O princípio da administração aberta serve precisamente para que os administrados possam contemplar a informação administrativa que não deva constituir informação reservada.

É claro que este acesso não se faz sem regras. Desde logo, porque a lei institui formas de acesso no artigo 13.º. Depois porque não se pode pedir aos serviços ou esforço desproporcionado que ultrapasse a simples manipulação de documentos – n.º 6 deste artigo. Em ultima análise, os princípios fundamentais do relacionamento entre a administração e os cidadãos poderão, mais uma vez, servir para temperar este exercício e prevenir eventuais excessos.

Porém, e neste particular, o que se nos oferece dizer é que o pedido formulado pelo Requerente aparenta ser contido, no que à dimensão da informação pretendida diz respeito. E não parece que a qualidade da informação pretendida exija dos serviços mais do que a consulta e a manipulação dos dados constantes das matrizes.

Assim sendo, não encontramos razão bastante para que a pretensão do Recorrente não seja acolhida.

Pelo que a sentença, pese embora a douta argumentação que a suporta, não pode manter-se.

7. Conclusões:

III. A informação sobre os números dos artigos inseridos na matriz numa determinada data não tem natureza pessoal nem reservada;

IV. O acesso a esta informação rege-se pelo disposto na lei de acesso aos documento administrativos e à informação administrativa – Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto.

8. Decisão:

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a douta sentença recorrida e intimar a Requerida a prestar a informação pretendida nos termos peticionados e no prazo ali indicado.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 9 de junho de 2021

Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Gustavo André Simões Lopes Courinha – Anabela Ferreira Alves e Russo (vencida, de acordo com a declaração de voto que junta).

Voto de vencida

A sentença recorrida julgou improcedente o pedido de intimação com fundamento em que o Recorrente não alegou e, consequentemente, não provou ser titular de um interesse pessoal, directo e legítimo na obtenção de elementos constantes da matriz que solicitou relativamente a prédios sitos na freguesia que indicou, limitando-se a afirmar que apenas pretendia saber “os números de artigos validados na freguesia de SMP onde moro, a fim de tentar compreender em que termos o Serviço de Finanças de Alcobaça valida ou não as declarações”.

No acórdão que ora se vota ficou reconhecido que o Recorrente não invocou a existência do referido interesse directo, pessoal e legítimo, limitando-se a sustentar o pedido da forma supra indicada. Mas também se conclui que o não tem que fazer. Porque nos termos do artigo 5.º da LADA, qualquer pessoa, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, têm direito de acesso aos documentos administrativos, o qual compreende os direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua existência e conteúdo. E que esta interpretação e densificação do direito consagrado no artigo 5.º da LADA é a que vem merecendo acolhimento constitucional, citando-se particularmente o acórdão do tribunal constitucional n.º 117/15, de 12 de Fevereiro de 2015, proferido no processo n.º 686/12.

Discordamos por duas ordens de razões.

Por um lado, porque há que distinguir direito de acesso e condições de acesso. Por outro, porque existe uma especial regulamentação quanto ao direito de acesso a elementos constantes da matriz.

Começando por esta última objecção, realçamos que o artigo 130.º, n.º 1 do CIMI veda expressamente o acesso a elementos da matriz a outros que não os próprios sujeitos passivos do imposto (o que, obviamente, não é o caso) salvo se um terceiro (como é o caso) invocar e demonstra um interesse directo, pessoal e legítimo (“O sujeito passivo ou qualquer titular de um interesse directo, pessoal e legítimo, pode consultar ou obter documento comprovativo dos elementos constantes das inscrições matriciais “).

Ao estabelecer esse regime o legislador restringiu e quis restringir o acesso a esses elementos a quem alegasse e demonstrasse ser titular desse interesse, o que fez através de uma norma especial que não pode entender-se derrogada pelo artigo 5.º da LADA.

E não se diga que a interpretação que realizamos contende com a essência do regime consagrado no artigo 5.º da LADA, com a amplitude desse direito ou com a interpretação que o Tribunal Constitucional vem veiculando quanto à interpretação constitucional conforme do direito reconhecido no referido normativo legal.

Desde logo, porque a própria LADA admite restrições ao direito de acesso aos arquivos e registos administrativos. Restrições que de forma expressa e directa enuncia (artigo 4.º) e restrições contidas noutros diplomas legais que também expressamente salvaguarda (artigo 7.º, n.º 1 da LADA “Sem prejuízo das demais restrições legalmente previstas …“). Como é o caso do regime especial de acesso a documentos comprovativos dos elementos constantes das inscrições matriciais disciplinado no artigo 130.º, n.º 1 do CIMI.

Depois, porque o que o Tribunal Constitucional vem densificando, com pertinência para a questão que ora se aprecia, particularmente no acórdão do Tribunal Constitucional convocado em abono da tese que fez vencimento, é o direito de aceder à informação e não dos requisitos para o acesso. No caso não se está a discutir se ele tem ou não direito, ou seja, se o direito que ele invoca é um interesse fundamentado, mas sim que o não fundamentou nos termos especialmente previstos e, consequentemente, não accionou devidamente o direito de acesso à informação.

O princípio do arquivo aberto assegura o direito à informação, mas não invalida que o legislador possa impor critérios para o exercício desse direito, como sucede neste caso (artigo 130.º, n.º 1 do CIMI). Não se pode confundir a existência e a garantia de um direito com as condições de exercício do mesmo, sobretudo quando está também em causa o funcionamento de um serviço público. As condições de exercício (neste caso, a necessidade de invocar um interesse, directo pessoal e legítimo) neutralizam situações de exercício do direito por razões fúteis, que penalizariam o funcionamento do serviço.

A isso acresce, neste caso, o que parece ser também um exercício do direito à informação, que o legislador quis que fosse exercido de forma harmonizada com a privacidade dos direitos dos titulares dos bens matricialmente inscritos, pelo que a preponderância do primeiro impõe que esteja em causa a satisfação de um interesse juridicamente tutelado ou, pelo menos, diferenciado de um mero interesse de facto no acesso à informação.

Em síntese, concordando com a tese que obteve vencimento na parte em que diz, como o Recorrente invocou, que estamos perante uma pretensão de acesso a documentos fundado no direito de acesso aos arquivos e registos administrativos consagrado pelo artigo 5.º da LADA, salvaguardando esta Lei eventuais restrições a esse direito que estejam consagradas em outros diplomas legais (7.º, n.º 1 da LADA) e vedando o artigo 130.º, n.º 1 do CIMI o acesso por parte de terceiros a elementos constantes da matriz a terceiros, salvo se alegarem e demonstrarem serem titulares de um interesse pessoal, directo e legítimo, concluiria que o Recorrente tinha que alegar e provar ser titular desse direito. Não o tendo feito, confirmaria, com a presente fundamentação, a sentença recorrida.
Anabela Ferreira Alves e Russo