Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0116/12.0BEMDL
Data do Acordão:10/29/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:LICENÇA
LEGALIZAÇÃO DE OBRA
PROTECÇÃO
Sumário:I - Nos procedimentos de legalização de obras, em que a licença é, obviamente, emitida a posteriori, para conferir a uma edificação o necessário título que ela não obteve (ou não obteve de forma válida) no momento em que o deveria ter obtido exige-se que a edificação a “legalizar/licenciar” esteja em conformidade com as normas urbanísticas em vigor à data em que esse acto de licenciamento-legalização é emitido.
II - A “protecção do existente” apenas se aplica às edificações presentes que tenham sido erigidas em conformidade com um título (autorização ou licença) válido.
Nº Convencional:JSTA000P26623
Nº do Documento:SA1202010290116/12
Data de Entrada:06/16/2020
Recorrente:A....... E OUTROS
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE VILA REAL
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 – Em 17 de Abril de 2012, B………….. e A……………, sua mulher, propuseram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (TAF de Mirandela) acção administrativa especial, pedindo a declaração de nulidade do acto praticado pelo Vereador do Pelouro do Urbanismo, no exercício de poderes delegados pela Câmara Municipal de Vila Real; acto que deferiu os pedidos de licenciamento inicial e respectivos aditamentos e ordenou a emissão dos alvarás de uma edificação da C…………….

2 – Por sentença de 12 de Janeiro de 2016, o TAF de Mirandela declarou nulo o referido acto ao abrigo do disposto no artigo 68.º, al. a) do RJUE, considerando que violava as normas do PDM.

3 – Inconformado, o Município de Vila Real recorreu dessa decisão para o Tribunal Central Administrativo Norte (TCA Norte), que, por acórdão de 29 de Novembro de 2019, concedeu provimento ao recurso e revogou a sentença do TAF de Mirandela, por considerar que teria havido um erro nos pressupostos de facto que condicionara a aplicação do direito, ou seja, considerou que não se verificavam os pressupostos do disposto no artigo 20.º, n.º 2, al. a) e b) do PDM de Mirandela.

4 – Inconformados com o acórdão do TCA Norte, os autores e aqui Recorrentes interpuseram recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, o qual foi admitido por acórdão de 21 de Maio de 2020, com o seguinte fundamento «[N]a sua revista, as recorrentes dirigem ao aresto criticas varias, em que avultam duas: «primo», o TCA teria violado normas adjectivas ao estabelecer que o edifício visado pelo acto tem uma função económica diferente da que resultara do acordo das partes (na fase dos articulados); «secundo»., o TCA ter-se-ia equivocado na aplicação, «in casu», do princípio «tempus regit actum».

5 – Os Autores, e aqui Recorrentes, apresentaram alegações que concluíram da seguinte forma:
«[…]

1.ª O presente Recurso Excepcional de Revista é interposto do d. Acórdão proferido pelo TCA Norte, datado de 29/11/2019, que, concedendo provimento ao Recurso interposto pelo Réu/Recorrente – Município de Vila Real, revogou a d. Sentença proferida a 12 de Janeiro de 2016 pelo TAF de Mirandela, a qual julgou a acção procedente, e, consequentemente, declarou nulo o acto impugnado, com base no PA, nos demais documentos juntos aos autos e na legislação aplicável,
2.ª Inconformado, em sede de recurso interposto para o TCA Norte, o Recorrente / Município de Vila Real, contrapondo àquela que havia sido a conclusão do TAF de Mirandela, pugnou pela validade do acto administrativo impugnado, o que veio a ser decidido pelo Tribunal a quo,
3.ª Importará referir que, em sede de 1ª Instância, não se realizou audiência pública destinada à discussão oral da matéria de facto, pelo que não ocorreu produção de prova (testemunhal), quiçá, porque a 1ª Instância entendeu que a matéria de facto não era controvertida.
4.ª O pedido formulado nestes autos foi o seguinte: “termos em que a acção deve ser julgada como provada e procedente e, em consequência declarar-se nulo o acto impugnado, reconhecendo-se e declarando-se como não licenciado nem legalizável o projecto de construção apresentado pela C…………… e pelo qual pretendeu, no âmbito do processo administrativo 167/89, legalizar o armazém já construído“ – sic,

5.ª As ali Recorridas estão convictas, ainda que respeitem mas não se conformem com a opinião contrária, de que a Sentença agora revogada deveria ter sido mantida in totum, não padecendo a mesma de qualquer vício ou violação de Lei, tal qual a 2ª Instância refere no d. Acórdão do qual ora se recorre, o qual, ao alterar a decisão da 1ª Instância, para além de declarar que in casu ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, com notória influência na decisão, o que, com o respeito devido por opinião contrária, não se verificou, viola ainda o previsto na Lei, mormente no DL 555/99 de 16/12, com a redacção à data aplicável, mormente e entre outros, o seu artº 60 e o princípio que o mesmo consagra – princípio tempus regit actum,

6.ª Não se podem conformar as aqui Recorrentes com este entendimento, por entenderem não só que há uma relevância social manifesta na apreciação, em sede de revista, desta questão, mas também por considerarem que houve uma errada aplicação do Direito na prolação do d. Acórdão recorrido que se traduz numa clara decisão “contra legem”, que se pode repercutir num número indeterminado de casos futuros.

7.ª O artº 150 nº 1 do CPTA permite que “das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, e a revista, atento o teor do nº 2 do mesmo preceito legal, “só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual”, sem descurar que o nº 3 dispõe que “aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado” – sic, o que, a nosso ver, implicará a sua apreciação por este d. Tribunal ad quem.

8.ª O requisito do nº 1 do citado artigo verifica-se pela questão da complexidade e novidade do caso e implica um detalhado exercício que requer a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo, tudo para lograr uma melhor aplicação do direito. Afigura-se-nos que essa relevância jurídica se justifica também por ser necessária uma melhor aplicação do direito, e por estar em causa uma questão manifestamente complexa, de difícil resolução, cuja subsunção jurídica impõe debate pela doutrina e jurisprudência com o objectivo de obter um consenso com vista a servir de orientação, quer para as pessoas que possam ter interesse jurídico ou profissional na resolução de tal questão, a fim de tomarem conhecimento da provável interpretação, com que poderão contar, das normas aplicáveis, quer para as Instâncias, por forma a obter-se uma melhor aplicação do direito.

9.ª Com efeito, está em causa saber, entre outros infra expostos, se há ou não violação do artº 60 do RJUE e do próprio princípio tempus regit actum, supra referido, o que em nossa opinião, in casu, ocorreu de forma clara e manifesta.

10.ª A manter-se essa violação e admitir-se como bom o Acórdão recorrido, com o devido respeito, tal equivale a permitir que se diminua, “contra legem”, os direitos dos cidadãos, mormente da Recorrente, fixados pelo legislador. E, também por este motivo, e com o devido respeito, que é muito, a manter-se a interpretação propugnada pelo d. Acórdão recorrido, que configura um erro grosseiro de Direito, tal contende directamente com a esfera de protecção constitucionalmente prevista e garantido pelo princípio da legalidade, o que deve nortear e se impõe à função jurisdicional.

11.ª Afigura-se-nos pois que se reveste de relevância jurídica, fundamentadora do presente recurso de revista excepcional, a questão de saber qual a interpretação jurídica correcta desse mesmo preceito, e, de um modo especial, do princípio que este artigo consagra.

12.ª Acompanhando o d. Acórdão recorrido resulta que o Tribunal a quo concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão recorrida julgando a acção improcedente, (re)apreciando assim, incorrectamente, a pretensão formulada neste processo pelas AA., a qual consistia no pedido de “declarar-se nulo o acto impugnado, reconhecendo-se e declarando-se como não licenciado nem legalizável o projecto de construção apresentado pela C………… e pelo qual pretendeu, no âmbito do processo administrativo 167/89, legalizar o armazém já construído“, o que, tal como supra dissemos, o TAF declarou.

13.ª E isto ocorreu, por força do que é exposto pelo Tribunal a quo em seu d. Acórdão, in III – Enquadramento jurídico 1. Do erro dos pressupostos de facto – pág. 11 e 12, cujo teor se deixou transcrito e que agora aqui, por questão de economia processual, se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

14.ª Ao contrário do que se diz no d. Acórdão recorrido, uma coisa é o licenciamento do armazém para arrumos (facto a que infra voltaremos) e outra, bem distinta, é a função que o mesmo armazém tem no dia a dia, o qual à data da entrada da acção era a de actividade industrial (poluente), o que ainda hoje se mantém com a conivência do ora Recorrido, factualidade que foi alegada na p.i. pelas ora Recorrentes, de forma expressa, no artº 26, entre outros – como por ex. no artº 95 desse mesmo articulado – onde se diz “tudo isto com a construção já desde há muito tempo em pé e o pavilhão em plena actividade” – sic, destaque nosso.

15.ª No d. Acórdão recorrido é dito que “ a não impugnação expressa do Réu, ora Recorrente, não conduz à sua confissão, já que tudo o supra referido ilide tal confissão e impede-a, em conformidade com o disposto no n° 4 do artigo 83° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (a falta de impugnação especificada não importa só por si confissão dos factos articulados) “. Porém, o mesmo preceito, in fine, sempre vai dizendo que “o tribunal aprecia livremente essa conduta para efeitos probatórios “.

16.ª Quer isto dizer que, a postura do TAF, ao dar como provados os factos que como tal considerou, os quais levaram à declaração de nulidade do acto em causa, essa postura, dizíamos, não Lhe estava vedada por Lei, pois o que vem de se transcrever do nº 4 (parte final) do artº 83 do CPTA não permite a conclusão formulada pelo TCA.

17.ª Não se podemos deixar de dizer também que o ora Recorrido, em sede própria, não contesta que no imóvel esteja instalada uma actividade industrial, a qual foi alegada na p.i. e reiterada a quando das alegações escritas das AA. que precederam a d. Sentença proferida pelo TAF de Mirandela, inexistindo impugnação tácita, até porque o R. pura e simplesmente não impugnou essa factualidade, tendo que se tirar as devidas consequências dessa sua postura, que não são por certo as expostas no d. Acórdão recorrido.

18.ª Aliás, a nível processual, a falta de impugnação pode é originar outro tipo de actuação por parte das partes, levando, por exemplo, à produção de prova, o que in casu não ocorreu, como supra já se deixou dito. Mas, tal facto, isto é, a falta de impugnação, como in casu se verificou, não permite concluir por uma impugnação tácita, até porque quod non est in actiis non est in mundo, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais.

19.ª Acresce também que, no d. Acórdão do qual se recorre é dito que o Mº Juiz da 1ª Instância teve “acesso aos documentos que provam o contrário”. Contudo, o Tribunal a quo não fundamenta essa sua alegação a qual contribui também para a revogação da d. Sentença proferida pelo TAF, fundamentação que legalmente se impunha ao TCA e cuja falta aqui se invoca para todos os efeitos legais. Por outro lado, a força probatória da maioria dos documentos juntos aos autos é passível de ser questionada nos termos do disposto no CCivil, pois os mesmos não gozam de força probatória plena, o que aqui se deixa expresso para legais efeitos.

20.ª A invocação por parte das AA. do PDM e a sua violação pelo R. é uma invocação clara e oportuna nos presentes autos, sendo inquestionável que desse Regulamento resulta quer a classificação do solo quer a sua aptidão em termos de uso.

21.ª In casu, o PDM à data em vigor não permitia a utilização (industrial) que o contra-interessado ali exerceu e (ainda) exerce, nos termos das disposições desse Regulamento, mormente do seu artº 20, que aqui se invocam para todos os efeitos legais.

22.ª O Recorrido também não podia licenciar o edifício, o que fez em notória violação do PDM e sem a obrigatória vistoria, que a ter existido só podia mencionar a laboração que contra legem no edifício estava a ocorrer, sendo certo que in casu a vistoria era imposta por Lei – artº 64, nº 2 do RJUE, preceito que sai violado pelo do d. Acórdão ora recorrido, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais.

23.ª Por questão de economia processual, dá-se aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, o teor do d. Acórdão, in pág. 12 e 13 (ponto 1.2) que supra se transcreveu, e, no seguimento dizemos que, o PDM é constituído, entre outros, por um Regulamento que constitui o elemento normativo do PDM e que estabelece as regras e os parâmetros aplicáveis à ocupação, uso e transformação do solo, vinculando as entidades públicas e ainda, direta e imediatamente, os particulares, servindo aquele para a organização municipal do território, estabelecendo a referenciação espacial dos usos e actividades do solo municipal.

24.ª Ora, o enquadramento jurídico expresso no ponto 1.2 do d. Acórdão recorrido é claramente violador da Lei, nomeadamente pelas seguintes razões:

a) Porque afasta a aplicação do PDM a este caso concreto, quando tal Regulamento se lhe impõe por Lei, o que urge declarar tal qual se fez e se disse na d. Sentença proferida pelo TAF;

b) Ao contrário do que se diz no d. Acórdão recorrido a caracterização da zona U1 não é genérica, desde logo porque tal zona não foi tida como zona de expansão pelo PDM, sendo antes zona à época já consolidada, daí o estar abrangida e ser denominada “Cidade de Vila Real”, pelo que, o argumento constante do d. Acórdão não pode colher (“o local da construção estar abrangido pelo espaço designado como Cidade de Vila Real, o que é certo é que se localizava em localidade diferenciada da Cidade, concretamente em …………….“), tratando-se de uma conclusão que não encontra suporte em nenhuma alegação.

25.ª Além disso, não é o simples facto da construção em causa nestes autos estar em localidade diferenciada da Cidade, concretamente em …………., que lhe retira as características e a sua integração na parte correspondente do PDM em causa.

26.ª Estamos em crer que o Tribunal a quo não desconhece a existência de aldeias satélite das vilas / cidades, as quais começam, imediatamente, onde umas e outras terminam, sendo que aí, quer numas quer noutras, se encontram (ainda hoje) locais tranquilos, isolados e aprazíveis, como in casu ocorria, o que não contraria o facto de que o edifício em causa se localiza em local fortemente urbanizado (facilmente perceptível num simples visita ao google maps) – primeiro fundamento da ilegalidade do acto impugnado gerador da sua nulidade, que se impõe (novamente) declarar, o que aqui e por esta via se requer, com legais consequências.

27.ª Dá-se aqui por reproduzido, por questão de economia processual, o ponto “2. Os erros nos pressupostos de direito. 2.1. As características das construções existentes na zona envolvente”, in pág. 13 e 14 do d. Acórdão recorrido, cujo teor foi supra transcrito, sendo certo que no tocante a essa matéria o Tribunal a quo peca por errada interpretação do direito atenta a factualidade provada.

28.ª E isto porque, uma vez que o PDM consagra e impõe para aquele local qual a tipologia das construções e o uso (habitacional) das mesmas, o facto de estarmos perante a casa de morada das AA. que se coaduna com a legislação em vigor e aplicável àquela área concreta, a existência de um edifício em notória violação da legislação urbanística vigente não se trata de “presunção” mas antes de uma realidade que se traduz na violação do disposto no nº 2, al. a) e b) do artº 20 do PDM em causa, cuja aplicação se impunha e impõe, face à violação da mesma por parte do TCA, que urge agora reparar e repor nos termos efectuados pelo TAF na d. Sentença por Ele proferida, o que aqui e por esta via se requer.

29.ª Também por questão de economia processual, dá-se aqui por reproduzido o teor do d. Acórdão recorrido, in pág. 14 e 15, sob o ponto “2.2 O quadro legal aplicável à situação considerada” e supra transcrito, não concordando as ora Recorrentes com o entendimento ali exarado pelo Tribunal a quo, o qual em seu entender não tem aqui aplicação e é violador do próprio preceito citado – artº 60 do RJUE.

30.ª A este propósito e para os devidos efeitos, as Recorrentes trazem à lide e acolhem o pensamento exposto em anotação a esse mesmo artigo pelas I. Prof.ªs Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves e Dulce Lopes, in Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado, Almedina, 2016, 4ª Ed., pág. 460, onde dizem o seguinte:

“O artigo em apreço corresponde à consagração, entre nós, do princípio da garantia do existente, quer na sua vertente passiva, quer ativa.

A primeira destas vertentes, prevista no n.º 1 do artigo, corresponde à consagração da situação geral de aplicação das normas no tempo traduzida no princípio tempus regit actum que se encontra consagrada no artigo 67.º do presente diploma, normativo que determina que a validade das licenças ou das autorizações de utilização depende da sua conformidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis em vigor à data da sua prática. Por isso se afirma que as edificações construídas ao abrigo do direito anterior e as utilizações respetivas não são afetadas por normas legais e regulamentares supervenientes.

As edificações construídas ao abrigo do direito anterior referidas no artigo em comentário são aquelas que, no momento da respetiva construção, cumpriram todos os requisitos materiais e formais exigíveis. Deste modo, uma edificação que apesar de cumprir, à data da respetiva construção, todas as normas materiais em vigor, designadamente as dos instrumentos de planeamento, mas em relação à qual o interessado não obteve a respectiva licença ou ato com efeitos análogos, não pode considerar-se “construída ao abrigo do direito anterior” para efeitos de aplicação do regime instituído neste normativo. Assim, se o pedido para obter a licença em falta (e regularizar, deste modo, a situação ilegal) apenas for apresentado num momento em que se encontra em vigor um novo instrumento de planeamento ou novas exigências técnicas, não se encontra esta abrangida pelo regime de garantia instituído neste normativo devendo ser-lhe aplicadas as regras relativas à legalização, previstas no artigo 102.º-A do RJUE” – sic.

31.ª Ora, o acto impugnado foi praticado no dia 30 de Novembro de 2011, já depois da entrada em vigor do PDM de 2011, publicado por aviso na 2ª Série do DR, nº 57, de 22/03/2011, sendo-lhe aplicável este Regulamento, o que o d. Acórdão não teve em consideração fazendo-o em notória violação da Lei, a qual aqui se invoca para todos os efeitos legais.

32.ª A tudo isto ainda que, mesmo que se considere que a edificação em causa foi construída ao abrigo do direito anterior, a verdade é que no momento da respetiva construção, a mesma não cumpriu todos os requisitos materiais e formais exigíveis, tal qual resulta do PA, o que aqui se alega para todos os efeitos legais. E, a ser assim, como de facto é, a verdade é que o d. Acórdão ao revogar a d. Decisão proferida pelo TAF fê-lo em notória violação da Lei efectivamente aplicável in casu e mencionada de forma expressa na d. Sentença proferida pela 1ª Instância, o que aqui se invoca / alega para todos os efeitos legais e urge reparar, o que pela presente via se requer.

33.ª Por último, no tocante ao uso, tal como foi alegado e provado, desde sempre que naquela construção esteve a ser exercida uma actividade industrial, causadora de prejuízo às AA., situação que não se coaduna com a legislação em vigor, mormente com o PDM, sendo que o acto viola este Regulamento e o licenciamento só correu por manifesta incúria e desleixo do R. o qual não deu cumprimento ao artº 64, nº 2 do RJUE, preceito que foi também violado, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais.

34.ª As ora Recorrentes não se podem conformar com a revogação da d. Sentença proferida pelo TAF, estando ainda convictas de o d. Acórdão recorrido não faz a melhor aplicação do Direito que in casu seria e devia ser possível / aplicável.

35.ª Acresce que, estando a jurisdição administrativa sujeita ao princípio da legalidade, in casu, face à não observância do mesmo, estamos também perante a violação deste princípio, violação que aqui se alega para os devidos efeitos.

36.ª Face ao que vem de se dizer, fica claro que o d. Acórdão recorrido para além de claro erro de julgamento de facto viola também, por erro de interpretação e aplicação, os preceitos legais supra invocados, o que nesta sede urge agora reparar / declarar, estando em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – artº 150 do CPTA.

37.ª Daí que não se podendo aceitar como boa a fundamentação do d. Acórdão recorrido, em sede de Revista, deve ser o mesmo ser revogado in totum, com legais consequências, como é de

JUSTIÇA!

[…]».


4 – O Recorrido Município de Vila Real, devidamente notificado, não contra-alegou.

5 - O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

6 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.


II – Fundamentação

1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

2. De direito
2.1. A única questão vem suscitada no presente recurso é a de saber se existe ou não erro de julgamento do TCA Norte quando considera que “(…) a edificação em causa é uma construção edificada antes da elaboração e aprovação do Plano Director Municipal de 1993, razão por que tendo ocorrido inexistência do respectivo licenciamento e sendo o mesmo praticado posteriormente, não lhe é aplicável a restrição prevista no Plano Director Municipal “mesmo que tal norma fosse a que resulta da sentença, por força do disposto no art.º 60.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação na redacção aplicável à data do licenciamento impugnado, em 30/11/2011” ou se assiste razão aos Recorrentes quando alegam que deve ser declarada a “nulidade do acto de 30/11/2011, impugnado, reconhecendo-se e declarando-se como não licenciado nem legalizável o projecto de construção apresentado pela “C…………”- que em 1989 levou a cabo a construção da edificação questionada - e pelo qual pretendeu, no âmbito do processo administrativo n.º 167/89, legalizar o armazém já construído”.

2.2. Da factualidade dada como provada nos autos resulta que: i) o contra-interessado C………… havia solicitado à Câmara Municipal de Vila Real, em 10 de Março de 1989, uma licença para construção de um edifício, localizado num terreno em frente à moradia dos autores, afecto à sua actividade industrial (construção de carroçarias), uma pretensão que, após diversas vicissitudes, acabou por não ser autorizada; ii) em 25 de Agosto de 1994, o sócio gerente da firma C………. solicitou informação sobre a viabilidade de construção, no referido terreno, de um armazém para arrumos de produtos de apoio à indústria, tendo o pedido sido deferido e o alvará de construção (alvará n.º 41/97) emitido em 28 de Janeiro de 1997; iii) em 09.02.2009 os Recorrentes entregaram requerimento, dirigido ao Chefe do Departamento de Gestão do Território de Vila Real, da Câmara Municipal de Vila Real, pedindo informações quanto à legalidade das obras interiores e exteriores que estavam a ser realizadas no referido armazém; iv) em 12.02.2009, o TAF do Porto julgou inexistente o acto de licenciamento relativo àquele alvará; v) em 16.03.2009, os Recorrentes foram notificados do ofício da Câmara Municipal de Vila Real em que se dava conta de que o contra-interessado fora notificado para proceder à legalização das operações urbanísticas que havia levado a cabo sem o respectivo licenciamento; vi) em 25.03.2009 foi emitido parecer favorável, pelo Departamento de Gestão do Território da Câmara Municipal de Vila Real, ao pedido de licenciamento referente à legalização de obras efectuadas no âmbito do processo n.º 167/89; vii) em 26.06.2009 os Recorrente foram notificados da emissão do alvará de obras de alteração do edifício; ix) em 27.11.2010, os Recorrentes deram entrada no TAF do Porto a um pedido de execução da sentença que declarara inexistente o acto de licenciamento; x) em 14.4.2011 foi decidida, em sentença proferida no referido processo executivo, a demolição da obra, salvo se a mesma pudesse e fosse legalizada no prazo de 6 meses; xi) em 30/11/2011 o Sr. Vereador do Pelouro do Urbanismo deferiu os pedidos de licenciamento apresentados no âmbito da legalização da obra e ordenou a emissão dos respectivos alvarás.

A questão que vem suscitada no presente Recurso prende-se com a impugnação deste acto de licenciamento-legalização. E para fundamentar a nulidade do acto de licenciamento o TAF de Mirandela considerou verificada a violação do artigo 20.º do PDM de 1993, baseando-se nos seguintes pressupostos de factos: i) na vigência do RPDM de Vila Real aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 63/93, a obra em causa localizava-se em aglomerado urbano que o Regulamento classificava de nível U1, sendo esse o PDM aplicável à factualidade em apreço; ii) à data da sua construção, entre 1986 e 1988, o prédio urbano situava-se num local tranquilo, isolado e aprazível, a que corresponde um ponto alto e panorâmico, com excelente vista sobre a cidade de Vila Real e todo o vale e Serra do Marão; iii) a construção do pavilhão em causa que se destinava à construção de carroçarias.

2.3. O acórdão do TCA corrigiu a matéria de facto, fixando o seguinte: i) o imóvel destinava-se a armazém e não à construção de carroçarias; ii) o imóvel localizava-se na zona U1 do PDM, mas não em local fortemente urbanizado e sim em localidade diferenciada da cidade de Vila Real, mais concretamente em zona semi-rural denominada ………………..

Com base na matéria de facto fixada na 1.ª instância e corrigida em sede recurso para o TCA Norte, matéria de facto cuja apreciação e julgamento não cabe no âmbito de competências deste Supremo Tribunal Administrativo, nem no âmbito do recurso de revista, acabou por revogar a decisão do TAF de Mirandela, que havia julgado nulo o acto de licenciamento.

A decisão do TCA Norte fundamentou-se, essencialmente, nos pressupostos de que à apreciação da legalidade do acto de licenciamento praticado em 30.11.2011 deveriam aplicar-se, ex vi do disposto no artigo 60.º do RJUE (na redacção em vigor nessa data), as normas legais e regulamentares em vigor à data da edificação original, ou seja, em 1990, e de que o uso de armazenamento, aquele para o qual a edificação foi licenciada, encontrava-se expressamente prevista na al. a) do artigo 20.º do PDM de 1993 e não consubstanciava qualquer prejuízo para os autores e aqui Recorrentes.

2.4. Na revista que interpõem para este Supremo Tribunal Administrativo alegam os Recorrentes, como único fundamento que aqui pode ser conhecido (os restantes prendem-se com matéria de facto), que o acórdão do TCA Norte incorre em erro de direito quanto à determinação das normas aplicáveis ao acto de licenciamento de legalização do imóvel existente, o qual, segundo os Recorrentes, teria de subordinar-se ao PDM em vigor à data da emissão da licença “legalizadora” ― 30 de Novembro de 2011, lembre-se ― ou seja, ao PDM de 2011, publicado na 2.ª Série do DR, n.º 57, de 22.03.2011 e não às regras em vigor em 1990.

E têm razão os Recorrentes quanto à determinação do parâmetro legal aplicável. O TCA Norte começa por fazer uma errada interpretação do disposto no artigo 60.º do RJUE. Com efeito, quando aí se estipula que “As edificações construídas ao abrigo do direito anterior e as utilizações respectivas não são afectadas por normas legais e regulamentares supervenientes”, o que se pretende dizer é que as edificações construídas ao abrigo de actos autorizativos validamente emitidos não são afectadas pelos regimes jurídicos supervenientes, o que abrange até, como acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo, eventuais obras de reconstrução ou de alterações, com algumas condicionantes, quer aqui não importa aprofundar. O que cabe sublinhar é que o princípio da conservação do existente não tem aplicação a obras ilegais, ou seja, àquelas que tenham sido realizadas sem um título válido, como sucedeu no caso dos autos.

Nos procedimentos de legalização de obras, em que a licença é, obviamente, emitida a posteriori, para conferir a uma edificação o necessário título que ela não obteve (ou não obteve de forma válida) no momento em que o deveria ter obtido ― sendo muitas vezes estes procedimentos (como sucede também aqui) a alternativa menos onerosa em matéria de tutela da legalidade urbanística, evitando uma demolição ― exige-se que a edificação a “legalizar/licenciar” esteja em conformidade com as normas urbanísticas em vigor à data em que esse acto de licenciamento-legalização é emitido. Caso contrário, podem ser exigidas alterações (incluindo demolições parciais) para que o edificado fique em conformidade com as normas. A “protecção do existente” apenas se aplica às edificações presentes que tenham sido erigidas em conformidade com um título (autorização ou licença) válido.

Assim, há que revogar o acórdão do TCA Norte porque incorreu em erro de direito ao interpretar o disposto no artigo 60.º do RJUE e há também que revogar a sentença do TAF de Mirandela, que considerou ser aplicável ao caso o disposto no Regulamento do PDM de 1993, ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 63/93, publicado no D.R., 1.ª Série de 8 de Novembro de 1993, quando o parâmetro normativo para a legalização teria de ser o PDM em vigor em 2011, data em que foi praticado o respectivo acto administrativo.

Na presente acção foram suscitados outros fundamentos de invalidade do acto, bem como a questão da caducidade do direito de acção; questões cujo conhecimento ficou prejudicado por o TAF de Mirandela ter considerada verificada a nulidade do acto ao abrigo do disposto no artigo 68.º, al. a) do RJUE, ou seja, da violação das normas do PDM de 1993. Ora, sendo a sentença agora revogada por erro de julgamento, importa que o TAF conheça dos restantes fundamentos de invalidade do acto, ampliando para o efeito, se necessário, a matéria de facto.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso de revista, revogar o acórdão do TCA Norte e a sentença do TAF de Mirandela, ambos por erro na interpretação e aplicação do direito, e ordenar a baixa dos autos para que o TAF de Mirandela conheça dos restantes fundamentos de invalidade do acto.
Custas pelo Recorrido em ambas as instâncias.


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Lisboa, 29 de Outubro de 2020 ― Suzana Tavares da Silva

A Relatora atesta, nos termos do art.º 15-A do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de Março, o voto de conformidade dos Ex.mos Senhores Conselheiros Adjuntos Cristina Santos e José Veloso.

Suzana Tavares da Silva