Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 0301/14.0BEBRG 01478/17 |
Data do Acordão: | 10/29/2020 |
Tribunal: | 1 SECÇÃO |
Relator: | MARIA BENEDITA URBANO |
Descritores: | REQUISITOS DE INSCRIÇÃO PODERES DE COGNIÇÃO DO TRIBUNAL APRECIAÇÃO DA PROVA |
Sumário: | I – Os tribunais, excepcionados os casos em que estão legalmente impedidos de o fazer, não só podem, como devem reapreciar o julgamento de facto realizado pela Administração em toda a sua extensão, ou seja, devem reapreciar todos os elementos de prova que foram produzidos nos autos. II – Nesta sua tarefa, os tribunais não devem autolimitar-se ao ponto de só intervirem no julgamento de facto realizado pela Administração quando estejam perante erros manifestos ou grosseiros. |
Nº Convencional: | JSTA000P26625 |
Nº do Documento: | SA1202010290301/14 |
Data de Entrada: | 02/21/2018 |
Recorrente: | A......... |
Recorrido 1: | ORDEM DOS TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I – Relatório 1. A……………, devidamente identificada nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do acórdão do TCAN, de 07.07.2017, que negou provimento ao recurso por si interposto e manteve a decisão da 1.ª instância. Na origem do recurso interposto para o TCAN esteve uma decisão do TAF de Braga, de 27.09.2016, que julgou parcialmente procedente a acção por ela intentada, condenando a R. à emissão de novo acto administrativo, desta feita com a observância da devida audição da A., ora recorrente. Na presente acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido, a. peticiona na correspondente p.i. a condenação da “entidade demandada a, no prazo de 10 dias, praticar o acto administrativo consubstanciado na inscrição da A. na OTOC, sob pena de aplicação de sanção pecuniária compulsória aos membros do seu conselho directivo”.
2. Inconformada, a., ora recorrente apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. 382-422 – paginação SITAF): “1. O objecto do presente recurso preenche os pressupostos previstos no art. 150º do CPTA para permitir a sua admissão e julgamento pelo Supremo Tribunal Administrativo. 2. Com efeito, nele se discute uma questão de importância jurídica fundamental, consubstanciada na definição dos poderes de controlo jurisdicional dos Tribunais Administrativos relativamente aos juízos efetuados sobre a prova no procedimento administrativo por parte da Administração Pública. 3. Trata-se de questão delicada que extravasa em muito os limites do caso concreto dos autos, sendo susceptível de se colocar perante a jurisdição numa multiplicidade de litígios. 4. Por outro lado, o presente recurso constitui o último troço de um caminho das pedras que a recorrente vem percorrendo desde 1998, e que visa alcançar o seu legítimo direito ao exercício da profissão, uma vez que preenche, de facto e materialmente, os requisitos para a inscrição na OTOC, hoje OCC, previstos no art. 1º da Lei nº 27/98. 5. Neste contexto e considerando a influência da decisão na vida da recorrente, é imperativo reconhecer que o recurso deve ser admitido também devido à sua importância social. 6. Por fim, o recurso mostra-se ainda imprescindível para assegurar uma melhor aplicação do direito, na medida em que o Acórdão recorrido incorpora uma interpretação dos poderes do Tribunal em matéria de apreciação dos juízos sobre a prova produzidos no procedimento pela Administração incompatível com o princípio da tutela jurisdicional efectiva e com o contencioso administrativo de um Estado de Direito Democrático do Séc. XXI. 7. O acto administrativo que recusou, novamente, a inscrição da ora recorrente é a expressão da assumida resistência da entidade demandada em dar cumprimento a uma Lei da República (Lei nº 27/98, de 3 de Junho), já que depois de ter “inventado” um regulamento elegendo como meio de prova único dos requisitos de inscrição ali previstos a assinatura das declarações fiscais, após a anulação da recusa inicial com tal fundamento, reincidiu, recusando apreciar outros meios de prova e só após condenação em processo executivo e ameaça de sanção pecuniária compulsória acedeu à audição das testemunhas. 8. Mas esta diligência foi uma mera formalidade, já que a decisão de recusa da inscrição estava, de há muito, pré-determinada e a deliberação aqui impugnada limitou-se a fingir que apreciava os depoimentos prestados, fazendo uma apreciação, incompleta, truncada e preconceituosa do seu conteúdo, tendente ao indeferimento da inscrição da A., que estava previamente decidida, como os antecedentes bem demonstram. 9. O acto impugnado adopta um conceito de responsabilidade directa que equivale materialmente à restrição probatória julgada ilegal pelas decisões judiciais juntas como Documentos 1 e 2 com a p.i., na medida em enuncia que tal conceito demanda que se trate da pessoa a quem a Administração fiscal interpela em caso de irregularidade. 10. A Administração Tributária só pode interpelar como interlocutor quem assine as declarações fiscais dos contribuintes, já que de outra forma não poderia conhecer a identidade do responsável directo pela contabilidade. 11. Ou seja, o acto impugnado adopta, materialmente, a mesma restrição probatória julgada ilegal pelas decisões judiciais referidas, pois continua, na prática, a exigir a assinatura das declarações para prova da responsabilidade directa pela contabilidade. 12. O acto em causa envolve, assim, uma violação do caso julgado que dimana das referidas decisões judiciais, sendo nulo, nos termos dos arts. 133º, nº 1, al. h) do CPA e 158º, nº2 do CPTA. 13. Ao assim não considerar, julgando antes cumprido o caso julgado que dimana das decisões do TAF Porto (DOC.1 junto com a p.i.) e do STA (DOC. 2 junto com a p.i.) o Acórdão recorrido viola os arts. 173º, nº 1 e 158º, nº 2 do CPTA e o art. 133º, nº 1, al. h) do CPA (de 1991). 14. O Acórdão recorrido expressa um entendimento segundo o qual estaria vedado ao Tribunal sindicar a apreciação da prova produzida no procedimento plasmada no acto impugnado, exceptuando nos casos de erro grosseiro, crasso ou palmar. 15. Aliás, esta interpretação plasmada no Acórdão recorrido dos poderes de cognição do Tribunal e portanto do art. 3º do CPTA é manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado nos arts. 20º e 268º, nº 4 da CRP. 16. Como a doutrina e a jurisprudência reconhecem de forma inequívoca, a apreciação da prova em sede procedimental constitui uma actividade materialmente idêntica à desenvolvida pelos Tribunais, que obedece exactamente às mesmas regras e princípios e visa um único e mesmo objectivo: o apuramento da verdade e o carreamento dos factos (verídicos) necessários à decisão. 17. Ao contrário do que decidiu o Acórdão recorrido, não existe qualquer obstáculo legal ou constitucional a que o Tribunal possa e deva sindicar a forma e a correcção (ou a incorrecção) da apreciação probatória efectuada pela Administração. 18. Deverá, pois, este venerando Tribunal revogar o Acórdão recorrido e sindicar a valoração da prova contida no acto impugnado, em cumprimento do princípio da tutela jurisdicional efectiva. 19. Sendo certo que uma apreciação isenta e intelectualmente honesta dos depoimentos testemunhais prestados concluirá, inevitavelmente, que o acto impugnado incorre em erro manifesto de apreciação na valoração da prova testemunhal efectuada e vício de erro sobre os pressupostos de facto ao não considerar demonstrados os factos alegados pela A., ora recorrente, no procedimento, designadamente a responsabilidade directa por contabilidade organizada durante os anos de 1991 e 1992. 20. O depoimento prestado no procedimento pela testemunha ……………………… e o documento apresentado por esta (Cfr. p.a.i.) demonstram inequivocamente que a., ora recorrente, foi responsável directa pela contabilidade organizada da sociedade comercial …………………, Lda. durante os anos de 1991 e 1992. 21. O depoimento prestado no procedimento pela testemunha ………………. (Cfr. p.a.i.) demonstra inequivocamente que a., ora recorrente, foi responsável directa pela contabilidade organizada da sociedade comercial …………, Lda. durante os anos de 1991 e 1992. 22. Os depoimentos prestados no procedimento pelas testemunhas ………………. e …………………. (Cfr. p.a.i.) demonstram inequivocamente que a., ora recorrente, foi responsável directa pela contabilidade organizada da sociedade comercial ……………., Lda. durante o ano de 1992. 23. Os depoimentos de …………… e ………….. demonstram inequivocamente que a. foi responsável pela contabilidade organizada da sociedade comercial ……………, Lda. durante o ano de 1992. 24. Caso este Venerando Supremo Tribunal entenda que a questão não cabe no recurso de revista, deverão os autos baixar para que o TCA Norte proceda à apreciação plena da prova produzida no procedimento e no caso de considerar que a análise do p.a.i. é insuficiente para a prova dos factos alegados e consequente demonstração dos aludidos vícios, o que não se admite, ordene, nos termos do art. 149º, nº 2 do CPTA, a produção de prova testemunhal requerida, à cautela, com a p.i. 25. Apreciada a prova produzida constante do p.a.i. designadamente os depoimentos testemunhais atrás mencionados, o Tribunal, além de considerar procedentes os vícios do acto atrás referidos, tem inevitavelmente de concluir que a., ora recorrente, foi, efectivamente, responsável pela contabilidade organizada, de várias empresas nos anos de 1991, 1992, 1993 e 1994. 26. Ou seja, a., ora recorrente, demonstra ter sido responsável directa pela contabilidade organizada, nos termos do POC, de várias entidades durante três anos, seguidos ou interpolados, entre 1 de Janeiro de 1989 e a publicação do Decreto-Lei n.º 265/95, de 17 de Outubro, preenchendo os requisitos de inscrição previstos no art. 1º da Lei nº 27/98, de 3 de Junho. 27. Sendo assim, a entidade demandada, ora recorrida, está legalmente vinculada a aceitar a inscrição da A., ora recorrente, não lhe restando qualquer margem de discricionariedade. 28. Pelo que se impõe condenar a entidade demandada, ora recorrida, à prática do acto de inscrição da A., ora recorrente, na Ordem dos Contabilistas Certificados, no prazo de 10 dias, nos termos dos arts. 66, nº 1 e 71º, nº 1, parte final do CPTA, conforme havia sido peticionado. 29. A menos que este Venerando Tribunal entenda ser de ordenar a baixa dos autos ao TCA Norte, caso em que este segmento do recurso, relativo à condenação à prática do acto devido não poderá ser apreciado, devendo ser, posteriormente, reapreciado por aquele Tribunal”.
“(…) «In casu», a recorrente veio a juízo impugnar o acto que – já em execução de anterior julgado
6. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.
II – Fundamentação
1. De facto: Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC. (ii) Observações sobre os poderes do tribunal de apelação em relação ao julgamento de facto levado a cabo pela decisão recorrida. Pode ler-se no acórdão recorrido: “Ao contrário do invocado, não se reconhece pois que a decisão recorrida tenha incorrido em qualquer erro nos pressupostos de facto subjacentes, uma vez que não se detectaram quaisquer erros crassos, grosseiros, ou palmares passíveis de legitimar a sua intervenção corretiva”. O problema que de imediato cumpre apreciar e decidir nesta sede prende-se com o primeiro aspecto acima identificado.
III – Decisão
Lisboa, 29.10.2020
A presente decisão foi adoptada por unanimidade pelos Senhores Conselheiros Maria Benedita Urbano (Relatora), Jorge Artur Madeira dos Santos e Carlos Carvalho, e vai assinada apenas pela Relatora, com o assentimento (voto de conformidade) dos Senhores Conselheiros adjuntos, de harmonia com o disposto no artigo 15-A (Recolha de assinaturas dos juízes participantes em tribunal colectivo) do DL n.º 10-A/2020, de 13.03 – preceito introduzido pelo DL n.º 20/2020, de 01.05. |