Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:079/13
Data do Acordão:11/27/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:LIQUIDAÇÃO
ANULAÇÃO PARCIAL
Sumário:I – O acto tributário de liquidação é por natureza um acto divisível e, consequentemente, é susceptível de anulação parcial, no respectivo processo de impugnação.
II – Não é, todavia, possível proceder-se à anulação parcial do acto se ela implicar uma nova liquidação.
Nº Convencional:JSTA000P16605
Nº do Documento:SA220131127079
Data de Entrada:01/21/2013
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A... E MULHER
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO
1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira, interpõe recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que julgou totalmente procedente a impugnação judicial que A…………………. e mulher B………………., identificados nos autos, deduziram da liquidação do IRS do ano de 1999, no valor de 26.175,90 Euros.

1.2. Nas respectivas alegações conclui o seguinte:
1. Cinge-se o objecto do presente recurso apenas à parte da douta sentença recorrida que entendeu anular os rendimentos obtidos em Portugal que não foram impugnados.
2. A convicção do tribunal baseou-se no entendimento de que o acto tributário de liquidação é indivisível e de que não é possível a anulação meramente parcial da liquidação.
3. Os impugnantes nunca puseram em causa neste processo os rendimentos obtidos em Portugal, discordando apenas dos rendimentos pagos pela C……………...
4. O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo anula na totalidade a liquidação de IRS do ano de 1999, e consequentemente uma parte da liquidação que tão pouco foi impugnada, o que é ilegal.
5. Abrangendo a declaração de rendimentos do ano em causa outros rendimentos sujeitos a imposto em Portugal (e que não foram objecto de impugnação) não há lugar à anulação in totum da liquidação, mas só à anulação parcial da liquidação.
6. Não concordamos com o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo quando defende que o acto tributário de liquidação é indivisível.
7. O acto tributário é divisível por natureza já que se expressa num quantitativo pecuniário, e é divisível por disposição legal, já que o art. 100° da LGT prevê que pode ser objecto de mera anulação parcial.
8. A douta sentença fez uma incorrecta aplicação da lei, e violou o art. 100° da LGT.

1.3. Não houve contra-alegações.

1.4. O Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, com fundamento em que “o acto de liquidação enquanto acto divisível é susceptível de anulação parcial”.

1.5. Corridos os Vistos legais, cabe decidir.

FUNDAMENTOS
2. A sentença recorrida julgou provada a seguinte factualidade:
A) O Impugnante marido desde 04.01.999 e, pelo menos, até 28.07.2003 foi trabalhador dependente da D……………….. LTDA (cfr. fls. 21 e 22 dos autos);
B) O Impugnante marido possui certificado de residência fiscal brasileira referente ao ano de 1999 (cfr. fls. 39 dos autos);
C) Em 27.04.2000, o Impugnante marido entregou no Brasil a declaração anual de rendimentos do ano de 1999 (cfr. fls. 40 a 46 dos autos);
D) No decurso do ano de 1999, o Impugnante marido auferiu como trabalhador dependente da D……………… a importância de 169.879,88 Reais, tendo sido retido na fonte o valor de 40.064,74 Reais (cfr. fls. 47 dos autos);
E) A Impugnante mulher tem visto permanente no Brasil desde 30.12.1998 (cfr. fls. 23 a 35 dos autos);
F) Em 09.09.2001, os Impugnantes entregaram a declaração anual de rendimentos do ano de 1999, tendo indicado rendimentos de trabalho dependente auferidos pelo Impugnante marido, no valor de € 27,59, rendimentos de trabalho dependente auferidos pela Impugnante mulher, no valor de € 15.029,32 e rendimentos prediais, no valor de € 2.593,75 (cfr. fls. 48 a 50 dos autos);
G) A Administração Tributária notificou os Impugnantes, com data de 06.08.2003, para apresentarem declaração mod. 3 de substituição, relativa ao ano de 1999, com a indicação dos rendimentos pagos pela C…………………….., no montante de € 64.959,00 e ainda, para exercerem o direito de audição sobre o mesmo assunto (cfr. fls. 51 dos autos e fls. 9 do PA);
H) Em 13.10.2003, a Administração Tributária elaborou uma declaração de rendimentos oficiosa, relativa ao ano de 1999 e em nome dos Impugnantes, indicando os rendimentos referidos em G) (cfr. fls. 23 do PA);
I) Em 07.11.2003, com fundamento na declaração referida em H), a Administração Tributária emitiu, em nome dos Impugnantes, a liquidação oficiosa nº 20035324088895, relativa ao ano de 1999, no valor de € 26.175,90, sendo o montante de € 4.827,16 referente a juros compensatórios, com data limite de pagamento a 26.12.2003 (cfr. fls. 52 dos autos);
J) Em 29.03.2004, os Impugnantes deduziram reclamação graciosa contra a liquidação referida em I) (cfr. fls. 53 a 61 dos autos e fls. 2 a 26 do processo de reclamação apenso aos autos);
K) Com base no indeferimento tácito da reclamação graciosa referida em J), a presente impugnação foi apresentada em 09.12.2004 (cfr. carimbo aposto no cabeçalho da douta P.I.);
L) A Administração Tributária citou os Impugnantes, com data de 02.08.2004, do processo executivo nº 0027200401006460 que instaurou contra os mesmos, para cobrança do valor constante da liquidação referida em I) (cfr. fls. 62 e 63 dos autos);
M) Em 14.12.2004, os Impugnantes prestaram garantia bancária, no valor de € 36.638,45, para suspensão do processo executivo referido em L) (cfr. fls. 106 e 119 dos autos).

3. A Administração Tributária liquidou em IRS os rendimentos obtidos no Brasil pelo impugnante, no ano de 1999, por considerar que ele tinha residência fiscal em Portugal, local onde residia a seu agregado familiar.
A sentença anulou a liquidação por erro nos pressuposto de facto, uma vez que, à luz da Convenção de Dupla Tributação entre Portugal e Brasil, o impugnante deve ser considerado residente no Brasil, local onde os rendimentos foram sujeitos a tributação.
Reconhece a sentença que a liquidação impugnada, além dos rendimentos impugnados, inclui rendimentos obtidos em Portugal que não foram impugnados, designadamente os rendimentos de trabalho dependente auferidos pela impugnante mulher e rendimentos prediais, mas diz-se que «o acto tributário de liquidação é indivisível, sendo ainda certo que estamos na impugnação em sede de contencioso anulatório, pelo que o acto não poderia agora ser dividido em dois, não sendo possível a anulação meramente parcial da liquidação».
É contra este julgamento que se insurge a recorrente Fazenda Pública, defendendo que, abrangendo a declaração de rendimentos do ano de 1999 rendimentos sujeitos a imposto em Portugal, e que não foram impugnados, «não há lugar à anulação in totum da liquidação, mas só à anulação parcial da liquidação».
Vejamos.

4.1. Num contencioso de índole subjectivista, como o que resulta do art. 268º da CRP, o particular é lesado pela ilegalidade do acto e não pelo acto ilegal e a pretensão jurídica substantiva na qual se funda a própria pretensão daquele processa-se por referência directa às regras jurídica que porventura possam ter sido violadas pelo acto tributário. Daí que o acto só deva ser anulado na medida em que lese os direitos do particular, sendo que a consideração da medida da lesão pelos efeitos do acto abre caminho à anulação parcial, independentemente da divisibilidade em termos materiais ou da validade da parte restante: se o particular é lesado pela ilegalidade do acto e não pelo acto ilegal, então deve permitir-se a sua manutenção (parcial) na parte impecável.
Esta doutrina da anulação parcial, e que de certo modo está admitida no art. 100º da LGT, é mais notada nos chamados «actos divisíveis», os actos que contém duas ou mais decisões distintas e autonomizáveis ou que contenham uma decisão susceptível de ser materialmente dividida, acentuando-se, nestes casos, que a anulação deve limitar-se ao necessário para alcançar a protecção da norma violada, mantendo-se as disposições do acto que não a lesem.
Aliás, à luz do que anteriormente se dispunha nos arts. 5º do CPCI e 145º do CPT (como actualmente se dispõe no referido art. 100º da LGT), já a admissibilidade da anulação parcial do acto tributário de liquidação do imposto vinha sendo aceite consensualmente pela jurisprudência do STA e pela doutrina, quer apelando à divisibilidade, por natureza, do acto de liquidação, (Cfr., entre outros, os acs. do STA, de 9/7/1997, rec. 5874; de 22/9/1999, rec. 24101; de 16/5/2001, rec. 25532; de 26/3/2003, rec. 1973/02; de 27/9/2005, rec. 287/05.
E mais recentemente também no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 10/4/2013, rec. nº 298/12, se reafirma a jurisprudência vertida nos acórdãos da Secção, de 12/1/2011, rec. nº 0583/10, de 12/1/2012, recurso nº 0965/10, de 10/10/2012, rec. nº 0533/12 e de 5/12/2012, rec. nº 0477/12.) quer apelando à natureza de sentença de plena jurisdição da sentença de anulação parcial do acto, invocando-se, quanto a este aspecto, quer razões que se prendem com os princípios processuais, como o princípio da economia processual ou o princípio da oficialidade, para que da sentença ou acórdão do tribunal saia logo uma definição da situação que não careça de qualquer nova pronúncia da administração tributária, (Cfr. Saldanha Sanches, anotação ao citado ac. do STA, de 16/5/2001, rec. nº 25532, in Fiscalidade, 7/8, Julho-Outubro de 2001, pgs. 63 e ss.) quer, ainda, fazendo apelo a razões ligadas ao próprio âmbito do contencioso de mera anulação, num sistema de administração executiva como o nosso, no qual os limites à plena jurisdição de um tal contencioso só serão de aceitar em relação àqueles domínios ou aspectos da acção administrativa em que a plena jurisdição implique para o juiz tributário, enquanto juiz administrativo, a prática de actos que afrontem o núcleo essencial da função administrativa.(Cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2ª ed., pag. 397.).
Assim, se o juiz reconhecer que o acto tributário está inquinado de ilegalidade que só em parte o invalida, deve anulá-lo só nessa parte, deixando-o subsistente no segmento em que nenhuma ilegalidade o fira.


4.2. Há, portanto, casos em que a anulação parcial da liquidação não é possível.
É o que se passa, por exemplo, quando a AT tenha calculado a matéria colectável por métodos presuntivos, supondo uma determinada margem de lucro, e o juiz concluir pela inexistência de razões bastantes para a opção por essa margem de lucro, ficando, por isso, na “dúvida quanto à quantificação efectuada”. Nesta situação, não lhe resta senão anular totalmente a liquidação (cfr. o referido aresto do STA, de 26/3/03, rec. 1973/02).
Ou quando, como sucede no caso vertente, a anulação parcial, interferindo com a incidência objectiva (e até subjectiva) dos próprios rendimentos (os auferidos pelo impugnante marido na C………………. não tinham, por força da mencionada Convenção, que ser declarados em Portugal) e com as taxas aplicáveis (quer por efeito da alteração de escalões, quer da consequente alteração dos montantes para aplicação do coeficiente conjugal), implique, necessariamente, uma nova liquidação.
Não pode, portanto, no caso vertente, afirmar-se que a liquidação impugnada seja defeituosa apenas quanto à tributação da parte dos rendimentos auferidos no Brasil e que, por isso, deva ser anulada apenas nessa parte e se mantenha quanto aos demais rendimentos, ou seja, que a anulação parcial da liquidação apenas produzirá um efeito constitutivo traduzido na eliminação de determinada matéria colectável e implicando apenas uma pronúncia administrativa meramente declarativa destinada a certificar o montante em que ficou reduzida a liquidação por força da anulação.
E, assim sendo, o recurso deve improceder.

DECISÃO
Nestes termos acorda-se em, negando provimento ao recurso, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 27 de Novembro de 2013. – Casimiro Gonçalves (relator) – Dulce Neto – Isabel Marques da Silva.