Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01206/17.9BEPRT
Data do Acordão:05/29/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24608
Nº do Documento:SA22019052901206/17
Data de Entrada:02/08/2019
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto interpõe recurso da decisão de indeferimento do recurso judicial de impugnação de duas decisões de aplicação de coimas, proferidas em dois distintos processos de contraordenação não apensados mas remetidos ao tribunal com o recurso apresentada pela arguida.

1.1. Formulou alegações que rematou com as seguintes conclusões:

1ª - Na sentença recorrida decidiu-se indeferir a impugnação proposta, por ter sido apresentado um único recurso para duas decisões proferidas em outros tantos processos de contraordenação, que não estavam apensados, mas já juntos aos autos, e sem prejuízo da impugnante poder apresentar novos recursos nos termos do art.º 279º - nº 2 do CPC.

2ª - Se esse era o entendimento, então deveria ter decidido convidar a impugnante a apresentar um recurso para cada um dos processos de contraordenação e depois julgar-se em conformidade, como por exemplo, ordenando-se a separação de processos e remetendo-os individualmente à distribuição - cf. acórdão do STA de 27/05/2015, proferido no P. 113/15, disponível em www.dgsi.pt.

3ª - Mas se a recorrente apresentasse um recurso para cada uma das decisões proferidas, iríamos praticar um ato inútil e de má gestão processual, na medida em que os processos de contraordenação deveriam ser apensados por despacho judicial, e nesse caso já seria suficiente o recurso único apresentado, pelo que não pode a sentença recorrida decidir pela rejeição do recurso nesta fase processual.

4ª - Mas se esse era fundamento para indeferimento do recurso, que equivale à rejeição ou não aceitação de recurso prevista no nº 1, do art.º 63º do RGCO, aplicável subsidiariamente por força do disposto na al) b) do art.º 3º do RGIT, por falta de observância das exigências de forma, que seria o caso, então essa decisão teria de ser proferida no despacho inicial e esse foi proferido a fIs. 61, admitindo-se o recurso, por observar as exigências de forma, pelo que a sentença proferida não poderia decidir pelo indeferimento ou rejeição do recurso, pois ocorrera já trânsito em julgado formal do despacho de fIs. 61, que declarara que o recurso observava as exigências de forma.

5ª - SEM PRESCINDIR: Mesmo que assim se não entendesse e se aceitasse que com os fundamento invocados de apresentação de um único recurso para impugnar duas decisões administrativas de aplicação de coimas proferidas em dois distintos processos de contraordenação não apensados, ao Tribunal recorrido estava-lhe vedado, pela aplicação art.º 279, nº 1 e 2 do CPC, possibilitar à recorrente apresentar nova petição de recurso, porquanto este normativo não é aplicável ao processo penal, na medida em que neste não existe a figura da absolvição da instância, pelo que, neste caso, o recurso seria rejeitado, com as demais consequências legais, como sejam a de tornar exequível a decisão de aplicação de coima impugnada.

6ª- A aplicação subsidiária do CPC no processo penal e no RGCO tem as limitações próprias impostas pela harmonização das normas do processo civil com as regras do processo penal e os princípios gerais do processo penal, como se refere no acórdão do STA de 15/07/2009, proferido no P. 3151/09, disponível em www.dgsi.pt, onde se escreveu que o direito subsidiário do RGCO são as normas do CP e do CPP, e só na prossecução de princípios comuns ao processo civil e ao processo penal, como seja a busca da verdade material, é que pode haver recurso às normas do CPC.

7ª - Mais aprofundadamente escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/02/2014, proferido no P. 25/08.8FDCBR-B. C1, disponível em www.dgsi.pt, nomeadamente no ponto 3 deste acórdão, citando o Professor Figueiredo Dias: «Confere-se, assim, às normas legais do processo civil o estatuto de direito subsidiário, todavia sob condição de se demonstrar a sua harmonia, no caso, com os princípios do processo penal. Que o recurso a estes princípios, como fonte de integração, seja obrigatoriamente antecedido pelo recurso às normas de processo civil é uma concessão explicável à maior certeza e segurança que estas (já legalmente formuladas) oferecem perante aqueles (necessariamente abstratos). Que, por outro lado, se requeira a harmonia entre as normas do processo civil e os princípios do processo penal é exigência que bem se aceita perante as diferenças estruturais e funcionais que vimos interceder entre estes dois tipos de processo. Compreende-se, pois (e a nossa jurisprudência bem se tem dado conta disso) que todo o cuidado não seja demais antes que se confira a uma norma de processo civil função integrante de uma lacuna do direito processual penal» - Figueiredo Dias, ob. citada página 98."

8ª - Não há pois que aplicar na rejeição do recurso de decisões de aplicação de coimas o disposto no art.º 279 nº 1 e 2 do CPC, que possibilitaria à recorrente apresentar nova petição de recurso, porquanto este normativo não é aplicável ao processo penal, na medida em que neste não existe a figura da absolvição da instância e porque não está em harmonia com os princípios do processo penal.

9ª - A sentença a proferir deveria ordenar a apensação dos dois processos de contraordenação, tal como requer a recorrente na sua alegação de recurso e apreciar o mérito da impugnação e caso a julgasse improcedente, aplicar uma coima única, em cúmulo material, a que acresceriam as custas administrativas de ambos os processos e a condenação na respetiva taxa de justiça.

10ª - Sendo o recurso judicial de contraordenação um misto de recurso e de julgamento de facto em primeira instância, por força do disposto no art.º 25º do CPPP, aplicável subsidiariamente por força do disposto nos artigos 41º nº 1 do RGCO e artigo 3º-al) b) do RGIT, impõe-se a apensação dos recursos interpostos por esta arguida.

11ª - É pacífico na jurisprudência do STA que a apensação deverá também ser efetuada pelo Tribunal e sucede que neste TAF, na prática, não acontecem as referidas apensações, para julgamento do arguido num mesmo e único processo, com a invocação do disposto no art.º 267, nº 2 e 3, do CPC, ou seja, de que a apensação deveria ter sido requerida no processo instaurado em primeiro lugar e ao qual todos os outros tenham que ser apensados - cf. acórdãos de 03/04/2015, proferido no P. 1396/14, de 08/04/2015, proferido no P. 75/15, de 17/06/2015, proferido no P. 137/15, de 07/10/2015, proferido no P. 645/15, de 04/11/2015, proferido no P. 72/15 e de 15/11/2017, proferido no P. 1026/17, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

12ª - Por outro lado, a apensação destes recursos de contraordenação impõe-se também pela aplicação da regra da economia e da boa gestão processual prevista no art.º 130º do CPC, aplicável subsidiariamente ao CPP por força do seu art.º 4º e ao RGCO e ao RGIT, de modo a impedir que se pratiquem repetidos atos de prolação de sentenças e notificações absolutamente iguais, para os mesmos intervenientes, com evidentes prejuízos para uma boa e célere administração da justiça, para além, dos inerente e consequentes prejuízos orçamentais e financeiros que daí resultam,

13ª - A decisão recorrida, estando já juntos nos autos os dois processos de contraordenação, em que a arguida é a mesma, deveria era ter ordenado a apensação já requerida pela arguida na sua alegação de recurso e deveria apreciar o mérito da impugnação e caso a julgasse improcedente, aplicar uma coima única, em cúmulo material, a que acresceriam as custas administrativas de ambos os processos e a condenação na respetiva taxa de justiça.

14ª - Foram violados os artigos 4º, 24º, 25º e 28º, aI) c) do CPP, aplicável por força do art.º 41 nº 1 do RGCO e artigos 63º nº 1, 64º nº 1 e 2 também do RGCO, aprovado pelo DL 433/82 de 27/10, art.º 3º - aI) b) do RGIT e art.º 279º nº 1 e 2 do CPC.

Nestes termos, deverá ser julgado o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido, para que seja substituído por outro que ordene a apensação dos dois processos de contraordenação já juntos nos autos e conheça do mérito da impugnação, e assim se fazendo a habitual JUSTIÇA.

1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal não quis emitir parecer face à sua intervenção no processo na qualidade de Recorrente.

1.4. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

2. O presente recurso vem interposto da decisão que indeferiu o recurso de impugnação interposto pela arguida contra duas decisões de aplicação de coimas em dois distintos processos de contra-ordenação não apensados, numa situação em que não só a arguida solicitara essa apensação na sua petição de recurso, como também o Ministério Público formulara idêntica pretensão no acto de apresentação dos autos ao Juiz, e em que haviam sido enviados a Tribunal os dois processos de contra-ordenação.

A decisão recorrida tem o seguinte teor:

«A impugnação da decisão administrativa de aplicação de coima tem de ser apresentada separadamente em cada um dos processos de contraordenação, a não ser que os mesmos estejam apensados por se verificar competência por conexão em virtude da natureza das infrações em causa.

Decorre do artigo 3º al. b) do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGTT) que às contraordenações é aplicável subsidiariamente o regime geral do ilícito de mera ordenação social (RGCO) aprovado pelo DL. 433/82, de 27 de Outubro.

E do artigo 59º do RGCO resulta igualmente que cada decisão de coima poderá ser objeto de recurso no âmbito do correspondente processo contraordenacional, não se vislumbrando norma que permita a apresentação de recurso único para outra coima aplicada em outro processo.

E, sendo assim, não restaria outra hipótese ao Recorrente senão apresentar impugnação autónoma para cada uma das decisões de aplicação de coima.

Estando consequentemente legalmente vedada ao Recorrente a possibilidade de reagir contra todas as identificadas coimas mediante o mesmo recurso jurisdicional.

Nesses termos, o presente recurso não observa a forma legal que deveria revestir, nem a mesma pode ser suprida, por não poderem os presentes autos prosseguir apenas quanto a um dos processos de contraordenação, já que quanto ao outro, perderia a Recorrente o direito a impugnar a decisão nela proferida.

Atendendo a que já se mostra ultrapassada a fase liminar, e não se podendo rejeitar o recurso, nada mais resta senão indeferir o mesmo, dando-se a possibilidade ao Recorrente de apresentar novas petições para cada uma das decisões de aplicação de coimas.».

Ora, antes de proferir esta decisão, impunha-se ao Mmº Juiz que apreciasse e decidisse o aludido pedido de apensação dos processos de contra-ordenação, pedido que, como tem sido frisado pela jurisprudência do STA, pode e deve ser acolhido caso se mostrem verificados os respetivos pressupostos legais, devendo a apensação ser ordenada (até oficiosamente) no despacho liminar ou em qualquer momento antes de ser designada data para julgamento ou antes da prolação do despacho a que se refere o artigo 64º do RGCO - cfr, entre outros, acórdãos do STA de 17/06/2015, no proc. nº 0137/15, de 28/10/2015, no proc. nº 069/15, de 15/11/2017, no proc. nº 01026/17, e de 20/03/2019, no proc. nº 01895/17.

Como se deixou frisado no acórdão proferido no processo nº 0137/15, «facto de não se ter ordenado a apensação de todos os processos na fase administrativa, não impede que seja ordenada essa mesma apensação na fase judicial, cfr. artigo 29º, n.º 2, no despacho liminar ou em qualquer momento, antes de ser designada data para o julgamento ou antes da prolação da decisão por mero despacho, cfr. artigo 64º do RGIMOS e 82º do RGIT. // Nesta medida, incumbe ao juiz a quem compete o julgamento das impugnações das decisões administrativas, apreciar da aplicabilidade do disposto naquele artigo 25º do CPP, configurando-se, assim, o reconhecimento da conexão de processos e a determinação da apensação dos mesmos como um dever e não como uma faculdade que é concedida ao juiz, tudo em vista da melhor realização da justiça e da economia de meios».

Em suma, em vez de indeferir o recurso de impugnação, devia o Julgador ter analisado e decidido a requerida apensação dos processos de contra-ordenação que lhe foram remetidos, só depois prosseguindo com os ulteriores termos do processo.

Razão por que, sem necessidade de outras considerações, se impõe conceder provimento ao presente recurso e revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que aprecie o pedido de apensação dos dois processos de contraordenação e, no caso do seu deferimento, que conheça, se a tal nada mais obstar, do mérito da impugnação que tem por objecto essas duas decisões administrativas.

3. Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e determinar a baixa dos autos ao tribunal de 1ª instância para os efeitos supra referidos.

Sem custas.

Lisboa, 29 de Maio de 2019. - Dulce Neto (relatora) – Ascensão Lopes – Ana Paula Lobo.