Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:074/19.0BCLSB
Data do Acordão:05/07/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
TRIBUNAL ARBITRAL
RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR
CLUBES DESPORTIVOS
RELATÓRIO
JOGOS
PROVA
PRESUNÇÃO
Sumário:I - A presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e dos relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP-2017), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2º, 20º, nº 4 e 32º nºs 2 e 10 da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
II - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista nos arts. 172º, 182º, 186º e 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
III - A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
IV – Tal responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas verifica-se quer as condutas inadequadas dos seus sócios, adeptos ou simpatizantes ocorram em jogos disputados nos seus estádios ou recintos (“em casa”) quer ocorram em jogos disputados em estádios ou recintos alheios.
Nº Convencional:JSTA000P25880
Nº do Documento:SA120200507074/19
Data de Entrada:01/28/2020
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:SPORT LISBOA E BENFICA - FUTEBOL, SAD.
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I - RELATÓRIO

1. “SPORT LISBOA E BENFICA - FUTEBOL, SAD” (“SLB, SAD”) interpôs no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), ao abrigo do disposto nos arts. 4º, nºs 1 e 3 a) da Lei nº 74/2013, de 6/9, na redação conferida pela Lei nº 33/2014, de 16/6 (LTAD), contra a “FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL” (“FPF”), recurso de impugnação do acórdão do Conselho de Disciplina da “FPF”/Secção Profissional que manteve a pena disciplinar que havia condenado a “SLB, SAD” na multa de € 18.630,00 pela prática da infrações disciplinares p. e p. pelos arts. 182º nº 2, 186º e 187º nº 1 b) do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017 (RD/LPFP).

2. O TAD, por acórdão de 24/4/2019, no âmbito do seu processo arbitral nº 65/2018, julgou totalmente improcedente o recurso interposto, confirmando a decisão punitiva - cfr. fls. 143 e segs. da paginação “SITAF”.

3. A “SLB, SAD”, inconformada com esta decisão arbitral, interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), o qual, por acórdão de 26/9/2019 (cfr. fls. 336 e segs. “SITAF”), concedeu provimento ao recurso e, revogando a decisão arbitral recorrida, anulou o ato disciplinar punitivo ali confirmado.

4. A “FPF”, agora inconformada com este Acórdão proferido pelo TCAS, veio interpor, ao abrigo do disposto no art. 150º do CPTA, o presente recurso jurisdicional de revista, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 372 e segs. “SITAF”):

«1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 26 de setembro de 2019, que revogou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto. Esta instância, por seu turno, havia decidido confirmar a decisão de aplicação ao SLB de multas por comportamento incorreto do público, p. e p. pelos artigos 182.º, n.º 2, 186.º e 187.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional;

2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogos de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;

3. A questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;

4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;

5. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos relacionados com o rebentamento de engenhos pirotécnicos, o arremesso dos mesmos para o relvado, invasões do terreno de jogo, entre outros, tudo por ocasião de jogos de futebol;

6. São deveres dos clubes assegurar que os seus adeptos não têm comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da Lei e da Constituição;

7. Admitir, como fez o TCA Sul, que os clubes devem ser desresponsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos – ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão – é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;

8. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 70 processos relativos a sanções aplicadas a clubes por comportamento incorreto dos seus adeptos;

9. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;

10. O SLB não colocou em momento algum em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do SLB os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas;

11. Entende o TCA Sul que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios de Jogo) que o SLB violou deveres de formação a que se encontra adstrito, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;

12. Assim, os Relatórios da equipa de arbitragem e dos Delegados da LPFP, atento os respectivos conteúdos, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrida no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);

13. Isto não significa que os Relatórios dos Delegados da LPFP e da equipa de arbitragem contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos respetivos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrida incumpriu os seus deveres.

14. Para abalar essa convicção, cabia ao SLB apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

15. Em sede sancionatória, o “arguido”, não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.

16. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não o SLB.

17. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrida demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrida nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.

18. Os argumentos trazidos aos autos pelo SLB são manifestamente inaptos a comprovar que as eventuais medidas que possa ter tomado são suficientes ou adequadas a evitar os comportamentos incorretos.

19. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”.

20. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que dando provimento ao recurso de revista diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;

21. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o SLB, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrida e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos.

22. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.

23. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;

24. No que ao tipo disciplinar previsto no artigo 182.º, n.º 2.º do RD da LPFP, pelo qual a Recorrida também foi sancionada, um isqueiro, arremessado da bancada em direção a jogadores que aí se encontram próximos, desarmados, pois, face ao arremesso contra si desse mesmo objeto, pode revelar-se de alta contundência, constituindo, desse modo, um instrumento dotado da potencialidade de poder desencadear um perigo para a integridade física do agente desportivo visado, de consequências que, abstratamente, se podem revestir de especial gravidade em função da parte do corpo atingida.

25. Sendo certo que um isqueiro, pela simples circunstância de ser um instrumento que permite atear fogo a outros objetos e materiais sempre seria, abstratamente, um objeto idóneo a causar lesão de especial gravidade.

26. Acresce que, ainda que se considere que tal arremesso constitui uma manifestação de desagrado, não pode deixar de se concluir que com o comportamento apontado, os seus autores, adeptos afetos à Recorrida, quiseram atingir os jogadores, ou, ainda que assim não fosse, que a realização desse facto (atingir os jogadores ou qualquer outra pessoa presente no recinto desportivo) fosse representada como uma consequência possível dessa conduta.

27. Por outra parte, e agora no que diz respeito ao tipo disciplinar p. e p. pelo artigo 186.º, n.º 1, do RD da LPFP, o arremesso para o terreno do jogo de artigos pirotécnicos, tendo pelo menos um petardo aí explodido violentamente, num contexto em que os visados estão atentos ao desenrolar do jogo, impotentes em face do seu arremesso, não podem deixar de revelar-se de alta contundência, constituindo, desse modo, instrumentos dotados de potencialidade para desencadear um perigo para a integridade física de qualquer dos agentes.

28. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 172.º, 182.º, 186.º, 187.º, n.º 1, al. e b), 222.º, n.º 2, 250.º, n.º 1 e 258.º do Regulamento Disciplinar da LPFP».

5. A Demandante “SLB, SAD”, aqui ora recorrida, para o efeito notificada, apresentou contra-alegações no sentido da inadmissibilidade do recurso de revista ou do seu improvimento, sem, contudo, as rematar com conclusões (cfr. fls. 434 e segs. “SITAF”).

6. O presente recurso de revista foi admitido pelo Acórdão de 6/2/2020 proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 5 do art. 150º do CPTA (cfr. fls. 545 e segs. “SITAF”), nos seguintes termos:

«(…) 6. O «TAD» julgou totalmente improcedente a impugnação que a «SLB SAD» havia dirigido à deliberação do Conselho de Disciplina da «FPF - Secção Profissional», mantendo o sancionamento que à mesma tinha sido aplicado [cfr. fis. 143/219].

7. O «TCA/S» revogou a decisão arbitral e anulou aquela deliberação impugnada.

8. A R., aqui ora recorrente, para além da relevância social e jurídica do litígio, sustenta a necessidade de melhor aplicação do direito, insurgindo-se, neste segmento, contra o que entende ser a errada interpretação e aplicação feita no acórdão recorrido do quadro normativo supra enunciado.

9. O acórdão do «TCA/S», pese embora faça menção à jurisprudência deste Supremo produzida sobre a matéria e que refere «adotar», acaba, no juízo que faz, por decidir, primo conspectu, ao arrepio e afrontando aquela jurisprudência, donde se segue a necessidade de recebimento do recurso, para reanálise do assunto com vista a uma esclarecida aplicação do direito».

7. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto deste STA, notificada nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 146º nº 1 e 147º nº 2 do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso da “FPF”, embora por manifesto e ostensivo lapso de escrita tenha aludido a “improcedência”, pois que expressamente referiu (cfr. fls 557 e segs. “SITAF”):

«A questão a enfrentar no âmbito do presente recurso de revista tem vindo a ser submetida a este Supremo Tribunal, que a tem vindo a decidir unanimemente no sentido sufragado na Alegação da Recorrente Federação Portuguesa de Futebol, que acompanho, sem aditamento ou reserva».

8. Sem vistos (atento o disposto nos arts. 36º nºs 1 e 2 e 147º do CPTA e 8º nº 2 da Lei do TAD, aprovada e publicada em anexo à referida Lei nº 74/2013, na redação supra referida), mas com prévia divulgação do projeto de acórdão pelos Srs. Juízes Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

9. Constitui objeto do presente recurso:

Aferir se o Acórdão do TCAS, de 26/9/2019, ao ter concedido provimento ao recurso jurisdicional da “SLB, SAD” e revogado a decisão arbitral do TAD de 24/4/2019, julgando procedente o recurso que perante o mesmo havia sido interposto e anulando o ato disciplinar punitivo (acórdão de 3/7/2018 do Conselho de Disciplina da «FPF»/Secção Profissional) nele impugnado, enferma de erro de julgamento por errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 13º al. f), 172º, 182º, 186º, 187º nº 1 b), 222º nº 2, 250º nº 1 e 258º do RD/LPFP.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

10. Resultou elencado, na decisão arbitral do TAD, como assente o seguinte quadro factual:

a) No dia 17 de março de 2018, no Estádio Marcolino de Castro, em Santa Maria da Feira, realizou-se o jogo oficialmente identificado sob o nº 12.703 (203.01.235), a contar para 273 jornada da "Liga NOS", e que opôs a Clube Desportivo Feirense — Futebol SAD à Sport Lisboa e Benfica Futebol, SAD.

b) O aludido jogo foi interrompido desde cerca do minuto 43 até cerca do minuto 45 da primeira parte, devido a altercação na bancada central do mencionado estádio, onde se encontravam, exclusivamente, adeptos da Clube Desportivo Feirense — Futebol SAD.

c) No decurso daquela interrupção do jogo (i.e., desde cerca do minuto 43 até cerca do minuto 45 da primeira parte), na Bancada Topo Sul do dito estádio, ocupada exclusivamente por adeptos da Sport Lisboa e Benfica — Futebol, SAD), e a partir da mesma:

(i) Foram incendiadas várias cadeiras, por adeptos da Arguida;

(ii) Foram acesos vários artefactos pirotécnicos, por adeptos da Arguida;

(iii) Foram arremessados vários objetos na direção de jogadores da equipa da Clube Desportivo Feirense — Futebol SAD, nomeadamente, isqueiros, por adeptos da Arguida.

d) Ainda durante a sobredita interrupção do jogo (i.e., desde cerca do minuto 43 até cerca do minuto 45 da primeira parte), a partir da Bancada Topo Sul do estádio, ocupada exclusivamente por adeptos da Sport Lisboa e Benfica — Futebol, SAD, foi arremessado por estes mesmos adeptos um petardo para a pequena área da Clube Desportivo Feirense — Futebol SAD, zona do terreno de jogo em que se encontravam o Guarda-Redes desta equipa e o árbitro principal, …………, onde explodiu, levando a que a equipa médica da Clube Desportivo Feirense — Futebol SAD acorresse àquele, não tendo chegado a ser prestada assistência médica e tendo o atleta continuado a jogar em menos de um minuto, sem lesões aparentes.

e) O arremesso e explosão do referido petardo, "não teve qualquer impacto na duração da interrupção, que duraria os mesmos dois minutos se o mesmo não tivesse sido arremessado".

f) Durante a segunda parte do jogo em apreço, cerca das 19h34 e até cerca das 19h35, foram deflagrados por adeptos da Arguida, situados na Bancada Topo Sul do estádio, vários artefactos pirotécnicos, nomeadamente, vários flashlights, vários potes de fumo e um petardo, que rebentou.

g) Cerca das 19h49 (minutos 31 e 32 da segunda parte do jogo), logo após ter sido marcado um 2º golo pela equipa da Arguida, foram lançados por adeptos desta, situados na Bancada Topo Sul do estádio, 16 (dezasseis) foguetes, o que não causou qualquer consequência física para qualquer interveniente no jogo ou espectador.

h) Na Bancada Topo Sul do estádio (sublinhe-se, ocupada exclusivamente por adeptos da arguida), durante e imediatamente após o jogo em apreço:

(i) foi deflagrado por adeptos da Arguida um flashlight ao minuto 40 da primeira parte;

(ii) foram deflagrados por adeptos da Arguida outros 6 (seis) flashlights e um petardo,

(iii) foi deflagrada por adeptos da Arguida uma bomba de fumo aos 16 minutos da segunda parte;

(iv) foram acionados por adeptos da Arguida outros 2 flashlights, um aos 32 da segunda parte, um outro no minuto imediatamente posterior.

i) Aos 15 e aos 32 minutos da segunda parte do jogo em apreço, com o jogo interrompido, foram arremessados por adeptos da Arguida, a partir da Bancada Topo Sul do estádio, ocupada exclusivamente por adeptos da Arguida, para o terreno de jogo, respetivamente, 1 pote de fumo e um flashlight, 3 (três) flashlights.

j) No final do jogo, na Bancada Topo Sul do estádio, foi acionado por adeptos da Arguida um flashlight.

k) Imediatamente após o final do jogo, foram recolhidos e apreendidos pela PSP, no terreno de jogo/relvado, 5 (cinco) isqueiros para ali arremessados desde a Bancada Topo Sul do estádio, na qual assistiram ao jogo, exclusivamente, adeptos da Arguida.

l) Na mesma ocasião, foram, também, recolhidos e apreendidos pela PSP, na Bancada Topo Sul do estádio, na qual assistiram ao jogo, exclusivamente, adeptos da Arguida, 11 (onze) partes ("invólucros") de engenhos pirotécnicos ali acionados durante o jogo por adeptos da Arguida.

m) Não obstante tais comportamentos serem proibidos pelo ordenamento jusdisciplinar desportivo, os adeptos da Arguida não se abstiveram de os concretizar.

n) A Arguida não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias à evitação de tais acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, ficando a dever-se a tal omissão a ocorrência dos sobreditos factos.

o) A Arguida providenciou a produção e afixação no Estádio Marcolino Castro e nas respetivas zonas de acesso/limítrofes, de um documento/cartaz, de tamanho A3, onde se lê:

"E PLURIBUS UNUM

O SPORT LISBOA E BENFICA ADVERTE QUE A UTILIZAÇÃO DE QUALQUER TIPO DE ENGENHO PIROTÉCNICO ANTES E NO DECORRER DO JOGO DETERMINARÁ A APLICAÇÃO DE SANÇÕES DISCIPLINARES GRAVES AO NOSSO CLUBE.

(Ex. Exclusão das Provas Nacionais ou Jogos à Porta Fechada)

A SPORT LISBOA E BENFICA APELA E AGRADECE O APOIO INCANSÁVEL DE TODOS, MAS SEM O RECURSO A QUALQUER TIPO DE ARTEFACTO PIROTÉCNICO"

p) A Arguida agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto clube participante no dito jogo de futebol.

q) Na época desportiva de 2017/2018, até à data da prática dos factos, a Arguida foi sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares.

r) A Demandante, no jogo dos autos em que atuou na condição de equipa visitante, como forma de prevenção da violência, teve o cuidado de fazer-se acompanhar pelo Oficial de Ligação aos Adeptos e pelo Diretor de Segurança.

s) A Demandante tem incentivado, pelo menos desde há três anos, ao espirito ético e desportivo dos seus sócios e adeptos.

11. A matéria dada como provada, pelo TAD, sob as alíneas n) e s), foi excluída do probatório pelo Ac. TCAS recorrido, ao abrigo do art. 662º nº 1 do CPC (cfr. seu ponto 3.1), pois entendeu não se tratar de matéria de facto, mas sim de conclusões ou de matéria de direito.

12. E, ao abrigo da mesma citada norma processual, acrescentou ao probatório os seguintes factos, que considerou injustificadamente tidos como não provados pelo TAD (cfr. ponto 3.2):

t) - a “SL Benfica SAD”, mesmo nos casos em que joga na condição de equipa visitante, como forma de prevenção da violência tem o cuidado de fazer-se sempre acompanhar pelo Oficial de Ligação aos Adeptos e pelo Diretor de Segurança ou pelo Diretor de Segurança Substituto, de modo a poder, através de acção de esforço conjunto com o clube visitado e com as forças públicas de segurança, criar condições de segurança para os adeptos e prevenir quaisquer comportamentos antidesportivos de intolerância, racismo, xenofobia, violência e ou de falta de fair play;

u) - Entre outras medidas destinadas a promover a manutenção da ordem, da segurança e da correção entre adeptos, a SL Benfica SAD incentiva sempre ao espírito ético e desportivo dos seus sócios e adeptos;

v) - há presença recente da SL Benfica SAD no amplo debate realizado na Assembleia da República sobre este tema, no qual se fez representar pelo Presidente do seu Conselho de Administração, ………….., pelo seu Diretor de Segurança, ………., e pelo seu Oficial de Ligação aos Adeptos, ………..;

x) - Existe uma estreita colaboração entre a Recorrente e as forças da autoridade, de cooperação mútua permanente, que tem como objetivo minimizar os riscos inerentes ao espetáculo desportivo;

z) - A Recorrente dotou o seu Estádio de um sistema de CCTV completo, com um número elevado de câmaras, estando parte dos postos de controlo entregues aos operacionais da PSP que prestam serviço em dia de jogo e que é utilizado para identificar os autores de quaisquer ilícitos que sejam cometidos.

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III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

13. Como vimos, insurge-se a Recorrente “FPF” quanto ao juízo firmado pelo TCAS ao julgar procedente o recurso jurisdicional de apelação, revogando a decisão do TAD e anulando a decisão disciplinar punitiva, considerando que aquele padece de erro de julgamento, ocorrendo, assim, infração, nomeadamente, ao que se mostra disposto nos arts. 13º al. f), 172º, 182º, 186º, 187º nº 1 b), 222º nº 2, 250º nº 1 e 258º do RD/LPFP

- O Ac. TCAS ora recorrido concedeu provimento ao recurso de apelação intentado pela “SLB, SAD”, concluindo, designadamente, que:

«(…) 7. Em síntese, o ato administrativo impugnado e a decisão arbitral colegial (por maioria) recorrida contêm os seguintes erros de julgamento:

- Não afirmou como provados factos (positivos ou negativos, é indiferente) que consubstanciem violação dos cits. deveres de formação e de vigilância (aqui, num estádio visitado) por parte da recorrente, apesar de esta violação dos deveres ser, segundo a lei, este Tribunal Central Administrativo, o Supremo Tribunal Administrativo e o TC, o elemento subjetivo do tipo de ilícito em causa; como é evidente, o elemento subjetivo do ilícito disciplinar imputado à SAD não pode ser a vontade de uma outra pessoa totalmente autónoma e livre;

(…) - Intuiu que as cits. presunções de verdade dos relatórios, duvidosas, mas que admitimos aqui, se reportariam também à suposta violação daqueles deveres, o que é ostensivamente incorreto;

- Não afirmou e provou qualquer ligação fáctica ou jurídico-normativa entre a (não provada) violação objetiva dos cits. deveres de formação e de vigilância (aqui, num estádio visitado) e o resultado material ocorrido;

- Contradisse na fundamentação de Direito o que fez constar dos já transcritos factos sob O), R) e S), concluindo paradoxalmente pela violação dos deveres da SAD que o probatório elencara como cumpridos, a que se acrescentam os factos agora aditados sob T) a Z);

- Concluiu pela (imprescindível) violação objetiva e voluntária dos cits. deveres a partir apenas da existência de factos objetiva e subjetivamente imputáveis a outrem, a cidadãos concretos, invertendo assim a ordem lógico-jurídica da questão;

- Caso o ato administrativo confirmado pelo TAD demonstrasse a responsabilidade disciplinar (subjetiva) da SAD recorrente, por violação dos cits. deveres (e não pelas ações dos cits. "sócios ou simpatizantes"), ainda assim, o arremesso de isqueiros, sem mais, nunca poderá caber na previsão do artigo 186° cit., mas sim no artigo 187° cit.».

14. O objeto de dissídio do recurso de revista “sub specie” não é novo neste Supremo e sobre o mesmo a resposta dada, de forma uniforme e reiterada, pelo mesmo (cfr. Acs. de 18/10/2018, Proc. nº 0144/17.0BCLSB; de 20/12/2018, Proc. nº 08/18.0BCLSB; de 21/2/2019, Proc. nº 033/18.0BCLSB; de 21/3/2019, Proc. nº 075/18.6BCLSB; de 4/4/2019, Procs. nºs 040/18.3BCLSB e 030/18.6BCLSB; de 2/5/2019, Proc. nº 073/18.0BCLSB; de 19/6/2019, Proc. nº 01/18.2BCLSB; de 5/9/2019, Procs. nºs 058/18.6BCLSB e 065/18.9BCLSB; de 26/9/2019, Proc. nº 076/18; de 3/10/2019, Proc. nº 034/18; de 12/12/2019, Proc. nº 048/19; de 16/1/2020, Proc. nº 039/19, todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jsta»), considerou que «a prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência», que «a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo» e que «a responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência», tratando-se, antes, “in casu”, de uma responsabilidade desportiva disciplinar subjetiva «já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido».

15. Perante a jurisprudência acabada de enunciar, que aqui se reitera e secunda, entendemos assistir razão à Recorrente nas críticas que dirige ao Ac. TCAS recorrido, soçobrando a tese sustentada pela Recorrida nas suas contra-alegações.

16. Tal como afirmado na jurisprudência deste STA, o conhecimento em sede de recurso de revista mostra-se reconduzido a matéria de direito, porquanto o recurso de revista «só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual» e aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido «o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado», cientes de que «o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova - cfr. arts. 12º nº 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), na redacção que lhe foi introduzida pelo DL nº 214-G/2015 (…), e 150º nºs 2 a 4 do CPTA» e de que «assente este pressuposto temos que o juízo formulado pelo TCAS quanto à matéria de facto apenas pode ser censurado na medida em que se traduza numa questão de direito, questão essa que, como vimos, efetivamente se mostra colocada face aos termos do recurso de revista sob apreciação dado que, mormente, está em causa uma alegada infração de vários comandos normativos - cfr., nomeadamente, os insertos nos arts. 13º al. f), 222º nº 2 e 250º do RD/LPFP-2017, 349º do CC, 2º, 20º nº 4 e 32º nºs 2 e 10, da CRP - naquilo que foi, no contexto de processo disciplinar, o apelo ou recurso a presunções judiciais na fixação da factualidade tida por relevante e que foi pressuposto da imputação e responsabilização disciplinar» (cfr. §§ 31 e 32 do Ac. de 21/2/2019 - Proc. nº 033/18.0BCLSB), sendo que o STA «ao afastar-se do raciocínio subjacente à decisão do TCAS não está a alterar a matéria de facto provada neste último tribunal (…), apenas estará a fazer uma valoração distinta dos factos, não estando legalmente impedido disso. Não está, por esta forma, a incorrer em qualquer excesso de pronúncia e nem a desrespeitar os princípios acima assinalados» (cfr. Ac. de 5/9/2019 - Proc. nº 058/18.6BCLSB) nem «está a julgar de facto através de uma distinta valoração probatória, mas a aplicar o direito aos factos que foram considerados provados pelo tribunal recorrido» - cfr. Ac. de 05/9/2019 - Proc. nº 065/18.9BCLSB.

17. Assim, e quanto ao erro de julgamento por incorreta interpretação e aplicação do art. 13º al. f) do RD/LPFP, extrai-se, no que releva dos pontos 26 a 29 e 33 a 45 da fundamentação expendida no supra citado acórdão deste Supremo de 21/2/2019 (Proc. nº 033/18.0BCLSB), o seguinte:

«(…) 26. Na verdade, como afirmado no acórdão deste STA de 07.06.2005 [Proc. n.º 0374/05] a «“prova dos factos integrantes da infração disciplinar cujo ónus impende sobre a entidade administrativa que exerce o poder disciplinar, através do instrutor do processo, tem de atingir um grau de certeza que permita desferir um juízo de censura baseado em provas convincentes para um apreciador arguto e experiente, de modo a ficar garantida a segurança na aplicação do direito sancionatório”», segurança essa que não se encontra garantida se «a prova coligida no processo disciplinar não legitimar uma convicção segura da materialidade dos factos imputados ao arguido».

27. Note-se, todavia, que a condenação do arguido em processo disciplinar não exige que a certeza tenha de ser «absoluta, férrea ou apodítica da sua responsabilidade» [cfr., entre outros, os Acs. deste Supremo de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10, de 15.03.2012 - Proc. n.º 0426/10, de 07.01.2016 - Proc. n.º 0131/13], dado o preenchimento do grau de certeza exigido se bastar com existência de elementos probatórios coligidos no processo e que o «demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável».

28. Com efeito, a prova dos factos não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado «a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática» [cfr. o citado Ac. deste Supremo de 07.01.2016 - Proc. n.º 0131/13], uma «verdade histórico-prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida» [cfr. J. Figueiredo Dias, in: «Direito Processual Penal», I, 1981, pág. 194], bastando, por isso, que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.

29. É que «nos juízos de facto a emitir num processo disciplinar, é lícito à Administração, e até obrigatório, usar das presunções naturais que se mostrem adequadas», porquanto «é legítimo, e obrigatório, usar de presunções naturais na realização dos julgamentos de facto. Esse é, aliás, um exercício quotidiano nos tribunais, permitido pelo art. 351º do Código Civil; e de igual metodologia se serve a Administração nos juízos que emita sobre a prova produzida» [cfr. o citado Ac. deste Supremo de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10].

(…) 33. Em apreciação da matéria objeto de discussão nos autos afirmou este Supremo nos acórdãos citados, em linha, como vimos, com o que constitui entendimento deste Tribunal, que aqui se secunda e reitera, que «no domínio do direito disciplinar, a que se aplicam subsidiariamente os princípios do direito penal, é lícito o uso das presunções judiciais».

34. E que aliada a tal afirmação importa ter, ainda, como «indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa” [art. 13.º, al. f), do RD]», sendo que «[e]sta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado».

35. Ora, ao invés do que se sustenta no acórdão do «TCA/S» aqui objeto de impugnação, a decisão do «TAD» não incorreu em erro de julgamento ao haver mantido incólume o quadro factual que havia sido fixado como provado na decisão disciplinar punitiva.

36. O juízo na mesma firmado nessa sede louvou-se ou socorreu-se não apenas do princípio da presunção de veracidade dos factos nos termos que se mostram previstos na al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017, mas, também, de presunções naturais radicadas em circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência [cfr. art. 349.º do CC] (…).

37. Esta não viu radicar, pois, o juízo punitivo numa qualquer presunção de culpa da «…, SAD», antes se mostrando o mesmo juízo alicerçado, ao invés, naquilo que foi a prova lograda coligir e produzir no processo disciplinar e o uso de presunções, considerando e fazendo apelo, inclusive, daquilo que são decorrências do cumprimento das obrigações que impendem sobre os clubes no decurso e participação nas competições em que estão envolvidos [cfr., nomeadamente, os arts. 34.º a 36.º do RC/LPFP-2017, e arts. 06.º, 07.º 08.º, 09.º, 10.º e 11.º do RPV/RC/LPFP-2017] e em que a designada «bancada topo Sul» do Estádio …, indicada expressis verbis no relatório como local onde os ilícitos ocorreram, é consabidamente um local ocupado por adeptos, sócios, apoiantes ou simpatizantes afetos ao clube «…»/«…, SAD», (…).

38. A aqui recorrida, «…, SAD», verdadeiramente não nega ou põe efetivamente em causa a ocorrência dos factos registados no «relatório do delegado» da LPFP ao jogo, já que a impugnação, ou a discussão se centra, no fundo, que tenham sido adeptos seus os autores dos factos em causa nos presentes autos.

39. Ocorre, contudo, que pese embora a mesma teça diversas considerações sobre hipotéticas possibilidades no que respeita à autoria das sobreditas «ocorrências», a aqui recorrida, nem no processo disciplinar, nem na impugnação deduzida quanto à decisão disciplinar punitiva, não conseguiu infirmar, com plausibilidade, o que foi redigido no referido relatório, mediante a alegação de factos perfeitamente ao seu alcance e a produção de meios probatórios que, fazendo a contraprova [cfr. art. 346.º do CC], permitissem ilidir a mera presunção de veracidade de que o mesmo relatório goza [cfr. al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017], presunção esta que não corresponde a uma qualquer presunção legal, ou a uma regra de dispensa, liberação ou de inversão do ónus da prova [cfr. art. 344.º do CC], que seria, aliás, inadmissível no plano constitucional e legal no âmbito de matéria sancionatória.

40. O considerar-se que a aqui recorrida não conseguiu destruir os factos que lhe foram imputados mediante a alegação de factos e a apresentação de provas apenas significa que a prova coligida durante a instrução do processo não foi infirmada na subsequente fase de defesa de que a mesma dispôs, não sendo possível inferir de uma tal afirmação a conclusão de que era àquela que, enquanto arguida, competia fazer a prova a inexistência dos factos e da sua não culpa, não ocorrendo, por conseguinte, uma qualquer infração ao princípio de presunção de inocência do arguido [cfr., entre outros, o Ac. do STA de 10.03.1998 - Proc. n.º 040528], nem sequer a situação, no contexto apurado de efetiva existência de culpa da arguida, permite o operar do princípio do in dubio por reo.

41. De referir ainda que do facto de nem as autoridades policiais, nem os delegados da «LPFP», ou o árbitro, terem identificado pessoalmente quem, em concreto, fez uso dos engenhos pirotécnicos ou proferiu as expressões/cânticos reportados, tal não invalida ou impossibilita a fixação da factualidade nos termos que se mostram realizados.

42. É que para o que constitui o objeto de incriminação e tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram [no decurso de um jogo de futebol e em que os adeptos e simpatizantes estavam numa bancada afeta a adeptos do «…», mostrando-se portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao respetivo clube, nomeadamente, as referidas bandeiras, cachecóis e camisolas] a circunstância de, no meio daquela imensa mole humana, não ter sido efetuada a identificação pessoal dum concreto sujeito ou dos concretos sujeitos, tem-se como de todo em todo desnecessária, já que a imputação não é feita aos concretos adeptos, mas ao clube de que os mesmos são apoiantes ou simpatizantes, adeptos esses que, refira-se, não estão sequer sujeitos ou abrangidos pelo âmbito do «RD/LPFP» [cfr., nomeadamente, seus arts. 03.º, 04.º, n.º 1, al. b), e 187.º].

43. Ressuma do exposto que o juízo posto em crise mostra-se, assim, em consonância com o entendimento e jurisprudência convocada, não padecendo, como tal, de qualquer erro de julgamento, nem das apontadas inconstitucionalidades.

44. Como afirmado por este Supremo nos seus acórdãos de 18.10.2018 e de 20.12.2018, supra citados, o estabelecimento e previsão de uma tal presunção de veracidade «não se vê que … seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (…), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário» e de que como o mesmo TC entendeu «para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (…) cremos que a presunção de veracidade em causa - que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza - não acarreta qualquer presunção de culpabilidade suscetível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art. 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP)», já que «o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percecionados pelos delegados e não aos demais elementos da infração, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva, mas só prima facie ou de interim, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio in dubio pro reo, a sua absolvição».

45. A decisão disciplinar punitiva não radicou, pois, numa qualquer presunção de culpa da «…, SAD», decorrente duma inversão do ónus probatório [cfr. art. 344.º do CC] estribado no art. 13.º, al. f) do RD/LPFP-2017, antes se mostrando alicerçada naquilo que, levando a consideração em matéria desportiva os princípios enformadores do processo disciplinar, foi a prova coligida no mesmo processo e o uso lícito e legítimo das aludidas presunções [cfr. art. 349.º do CC], tudo em observância e sem entorses aos princípios e comandos normativos [constitucionais e legais] convocados [cfr. arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP, 13.º al. f), 127.º, 187.º e 258.º do RD/LPFP-2017] …».

18. Refere-se no Acórdão TCAS aqui recorrido (cfr. seu ponto 5) que se adota a jurisprudência deste STA, citando-se, nomeadamente, o entendimento vertido nos Acs. STA de 5/9/2019 (065/18), de 19/6/2019 (01/18), de 2/5/2019 (073/18) e de 21/2/2019 (033/18).

No entanto, como desde logo se notou no Acórdão que admitiu a presente revista (cfr. ponto 6 supra), «o acórdão do “TCA/S”, pese embora faça menção à jurisprudência deste Supremo produzida sobre a matéria e que refere “adotar”, acaba, no juízo que faz, por decidir, “primo conspectu”, ao arrepio e afrontando aquela jurisprudência».

Na verdade, como resulta daquela jurisprudência, para além da presunção legal “juris tantum” (ilidível, portanto) prevista no art. 13º f) do RDLPFP relativa à veracidade dos factos percecionados e inscritos nos relatórios de jogo pelos árbitros e delegados da Liga, é possível retirar do comportamento dos adeptos e simpatizantes dos clubes, por presunção judicial ou natural, apoiada na experiência comum, a inferência de que os clubes não cumpriram os deveres, que legalmente lhes estão adstritos, de formação, vigilância e segurança.

Ora, sendo as presunções judiciais (ou naturais), nos termos do art.º 349º do Cód. Civil, ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos), traduzindo-se e concretizando-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351º do Cód. Civil), não se vê como seja possível afirmar a adoção da referida jurisprudência deste STA e, ao mesmo tempo, perante os factos assentes nos presentes autos referentes ao comportamento dos adeptos da “SLB, SAD” – nomeadamente, nas alíneas c), d), e), f), g), h), i), j), k), l) e m) do probatório – concluir que «não se descortina no ato administrativo impugnado ou na decisão arbitral recorrida qualquer facto que baseie a conclusão de que a recorrente nada fez para cumprir os seus cits. deveres»; ou que «o probatório, depurado das meras conclusões como fizemos supra, não permitia à entidade administrativa autora do ato administrativo, nem à entidade arbitral aqui recorrida, concluir que a recorrente violou os cits. deveres que explicam a sua responsabilidade não objetiva».

Estas conclusões, perante os factos dados como provados nas aludidas alíneas, afrontam, efetivamente, a dita jurisprudência deste STA, uma vez que aqueles factos – salvo para quem exclua a utilização de presunções judiciais -, permitem a inferência, como deliberou o TAD e alega a Recorrente “FPF”, de que a aqui Recorrida incumpriu os seus citados deveres.

Por isso não podemos acompanhar o entendimento vertido no Ac. TCAS, com referência ao concreto caso dos autos, quando expressa que: «Tendo por axiomático que o princípio constitucional da culpa concreta em matéria sancionatória diz que não há ilícito sem voluntariedade, nem castigo sem culpa ou censura ao agente do facto ilegal, cabe sublinhar que o princípio é inabalável por meros juízos de suposta normalidade advindos de origem factual desconhecida ou não comprovada». Nem quando ali se afirma, quanto aos deveres impostos aos clubes, que: «Deveres de formação e vigilância que não são, obviamente, causa normal, habitual, necessária ou desnecessária da existência ou inexistência das ações-resultado descritas nos cits. artigos do RD/LPFP». Ou, ainda, quando se refere que: «a novel presunção de verdade dos relatórios dos árbitros e delegados ("oficiais públicos"?) nada tem a ver com os factos legalmente imputáveis aos clubes, i.e., os factos referentes aos deveres de formação e vigilância cits. em estádios próprios ou mesmo em estádios alheios».

19. O Ac. TCAS recorrido, na sequência das alegações da “SLB, SAD”, fez relevar decisivamente, no seu julgamento, a circunstância de o jogo em causa se ter disputado em estádio alheio, em “casa” do clube adversário “Feirense”, jogando o “SLB” na qualidade de equipa visitante.

E, baseando-se nas disposições regulamentares, designadamente do “Regulamento da Prevenção da Violência”, que atribuem ao clube visitado, em conjunto com as autoridades policiais, a responsabilidade pelo controlo das entradas e pela segurança no estádio, iliba o “SLB, SAD”, enquanto clube visitante, da responsabilidade a este assacada no ato punitivo.

Não cremos que tenha razão. Não se põe em causa a referida culpa ou conculpa do cube visitado e das autoridades nas falhas de controlo nas entradas que se tenham verificado. O que se põe em causa é que tal circunstância possa ilibar a “SLB, SAD” do constatado comportamento dos seus adeptos. Na verdade, são responsabilidades distintas, movendo-se em planos distintos: v.g., a não deteção da entrada de um petardo ou de um pote de fumo não iliba, obviamente, a responsabilidade pela sua detenção, introdução, ativação ou arremesso; e, consequentemente, a responsabilidade dos clubes pelo incumprimento dos deveres que possibilitam estes comportamentos dos seus adeptos.

E a norma constante do nº 1 do art. 172º do RDLPFP, que refere que «os clubes são responsáveis pelas alterações do ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial», não distingue, compreensivelmente, os jogos disputados em recinto próprio dos disputados em recinto alheio, aplicando-se a todos os jogos oficiais onde quer que se disputem.

Aliás, o Tribunal Constitucional, no seu Ac. 730/95, de 14/12, já referia, a este propósito, que: «(…) o sujeito passivo da aplicação das medidas sancionadoras não é só o clube visitado. Em regra assim acontecerá, na medida em que sobre ele recai um conjunto de deveres que lhe são impostos por lei, no sentido de assegurar que não ocorram distúrbios de espectadores (e não só dos seus sócios, adeptos ou simpatizantes) no recinto desportivo, mas não podem marginalizar-se situações em que é o clube visitante a desrespeitar deveres relativamente ao comportamento dos seus sócios, adeptos ou simpatizantes (…) Daí que se possa dizer que há sempre uma relação de imputação das faltas cometidas ao clube a punir, ainda que este seja o visitante (…)».

Ora, o que está em causa nos presentes autos é, exclusivamente, a responsabilidade da “SLB, SAD” pelo comportamento dos seus adeptos por via do incumprimento dos deveres de formação, vigilância e segurança de que está legalmente incumbida e que permitiu aqueles atos ou comportamentos desadequados dos seus adeptos.

20. O Ac. TCAS parte da constatação dos factos arrolados no probatório (nomeadamente, os acrescentados por sua iniciativa) para concluir que, no seu entendimento, a “SLB, SAD” cumpriu os deveres a que estava legalmente adstrita, em face das medidas por si tomadas, ali dadas como comprovadas.

Porém, tal conclusão contrasta flagrantemente com os resultados constatados no jogo aqui em causa: constantes deflagrações e arremessos, durante todo o jogo, para o campo ou para as bancadas, de dezenas de artefactos pirotécnicos – foguetes, petardos, potes de fumo e flashlights -, cadeiras incendiadas, arremesso de objetos vários.

Ora, perante esta constatação, erra o Ac. TCAS ao entender não poder usar, no caso, o meio de prova da presunção judicial, no sentido da ligação destes resultados ao incumprimento, pela “SLB, SAD”, dos deveres legais a que está adstrito, invocando que tal consubstanciaria uma violação da presunção de inocência ínsita no direito sancionatório ou uma inversão, não permitida, do ónus da prova.

Mas, como a jurisprudência deste STA tem repetido (tal, aliás, como o Tribunal Constitucional), a utilização destas inferências, resultantes de presunções judiciais, não é incompatível com os direitos assegurados pelo direito sancionatório disciplinar (nem sequer o seria no âmbito do direito criminal), não significando qualquer violação do princípio da presunção de inocência ou qualquer inversão do ónus da prova (visto que constitui, precisamente, “a prova”).

Desta forma, sempre se teriam que haver como manifestamente insuficientes os atos do “SLB, SAD”, dados como provados no probatório, levados a cabo com o alegado propósito de evitar os constatados comportamentos inadequados dos seus adeptos.

E não se diga que, desta forma, se estará a impor aos clubes uma obrigação de resultado, pois o que está em causa é uma obrigação de meios – mas, certamente, uma obrigação de meios adequados e não, como resulta patente, de meios que resultam manifestamente insuficientes.

Como a este propósito referiu o TAD e alega a Recorrente “FPF”, «sistematicamente as infrações vão sendo cometidas e sistematicamente a Demandante parece adotar as mesmas, invariavelmente repetitivas, medidas profiláticas cuja prática demonstra serem insuficientes e inócuas, para abrandar o ímpeto comportamental dos adeptos pelos quais se responsabiliza. Dito de outro modo, não será pelo simples facto de existir um resultado que se puniu a Demandante, mas sim porque invariavelmente toma as mesmas medidas e invariavelmente é punida. Esta evidência cria a convicção inabalável que a formação, vigilância ou sancionamento sobre os próprios simpatizantes que antecedeu o jogo dos autos foi incipiente.

(…) Parece-nos de valorar a colocação de cartazes nas imediações dos estádios onde atua na condição de visitante pelo carácter pouco comum desta forma de interpelação, mas sem olvidar que, revelando-se essa medida constantemente insuficiente, haverá que incrementar a formação e vigilância dos seus próprios adeptos noutra direção.

(…) Em rigor, não obstante as diversas medidas preventivas tomadas pela Demandante há pelo menos três anos, no mesmo período de tempo o seu cadastro disciplinar demonstra que foram bastas as vezes (por temporada desportiva, na grande maioria dos jogos) em que se verificaram as infrações decorrentes do comportamento incorreto do público afeto à Demandante.

Quer isto dizer que não denotamos qualquer atividade da Demandante para, nomeadamente após cada jogo em que se verifica o comportamento incorreto do público que lhe é afeto, incrementar ou alterar as medidas de sensibilização e combate aos ilícitos em questão. Não é que o resultado acarrete, automaticamente, a presunção de culpa do clube (logicamente sem esse resultado desaparece um elemento também decisivo, e que é o efetivo comportamento disciplinarmente reprovável por parte do espectador afeto ao clube, vulgo facto ilícito).

(…) Em nenhum momento prévio ao do jogo dos autos, fosse com maior ou menor proximidade histórica, existiu uma única medida adicional (e que fosse apta a abalar a ilação tomada) que demonstrasse a vontade e a implementação de uma estratégia de formação, vigilância e por ventura sancionatória que efetivamente visasse diminuir ou fazer cessar o cometimento recorrente dos ilícitos em causa (…).

Neste particular, entendeu, e bem, o TAD, que as medidas adotadas pela Recorrida se revelaram insuficientes para preencher o cumprimento de todas as obrigações a que se encontra adstrita, pelo que, considerou provados os factos constantes das alíneas n), o) e p) da decisão recorrida, sem que isso implique qualquer contradição entre a matéria de facto provada.

(…) Não basta a mera alegação de um conjunto de medidas adotadas junto dos respetivos adeptos para prevenir e reprimir a violência no desporto, mas sim a prova concreta da realização das mesmas e que, in casu, elas seriam aptas a evitar o resultado.

(…) Assim como não é suficiente afirmar que realiza reuniões de segurança, que procede à revista dos espectadores nos jogos em casa, que contrata forças de segurança privada e policiamento para os eventos em casa, que assegura o acompanhamento dos seus grupos de adeptos, que dotou o estádio da Luz de um sistema de CCTV: isto são tudo obrigações da Demandante, não são ações da sua iniciativa! (…)»

21. Pelo que vem de ser exposto não podemos seguir o juízo firmado no Ac. TCAS recorrido, juízo esse fundado na inexistência de prova pela Recorrente da efetiva culpa da aqui Recorrida dada a ausência de demonstração da ocorrência de conduta ou comportamento de incumprimento de um qualquer dever que sobre a mesma impendesse, e que, como tal, mostravam-se violados aquele quadro normativo e, como sustenta a Recorrida, os princípios da culpa - dada a inexistência de responsabilidade objetiva por facto de outrem e de não se haver avaliado a concreta conduta da mesma enquanto agente desportivo, tanto mais que não resulta em evidência qualquer ato ou omissão que possa ter contribuído para os acontecimentos - e da presunção da inocência (e inerente direito de defesa) e do “in dubio pro reo”.

22. Aliás, analisando o erro de julgamento por incorreta interpretação e aplicação dos arts. 127º, 172º, 187º nº 1 als. a) e b) e 258º do RD/LPFP, extrai-se, no que releva, dos pontos 48 a 74 da fundamentação expendida no aludido acórdão deste Supremo de 21/2/2019 (Proc. nº 033/18.0BCLSB), o seguinte:

«(…) 48. Constitui uma incumbência do Estado, em colaboração, nomeadamente, com as associações e coletividades desportivas [in casu, os clubes de futebol] a prevenção e combate à violência no desporto [cfr., no quadro internacional a «Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das Manifestações Desportivas e nomeadamente de Jogos de Futebol» vulgo «Convenção ETS n.º 120» (aprovada, por ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 11/87, de 10.03, e que cessou a sua vigência em 01.01.2019 - cfr. Aviso n.º 90/2018 publicado DR 26.07.2018) e a «Convenção sobre uma Abordagem Integrada da Segurança, Proteção e Serviços por Ocasião de Jogos de Futebol e Outras Manifestações Desportivas» (ETS n.º 218 - vigente na nossa ordem jurídica desde 01.08.2018 - cfr. Aviso n.º 91/2018 publicado DR 26.07.2018); no quadro normativo interno, nomeadamente, os arts. 79.º, n.º 2, da CRP, 03.º, n.º 2, 05.º da Lei n.º 5/2007, de 16.01 (Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto - doravante LBAFD), 01.º, 05.º, 07.º, 08.º, 09.º, 16.º a 18.º, 23.º a 25.º, da Lei n.º 39/2009, de 30.07 (diploma que veio estabelecer o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança - com as alterações introduzidas pela Lei n.º 52/2013, de 25.07)], pugnando-se para que a atividade desportiva seja «desenvolvida em observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes» [cfr. o art. 03.º, n.º 1, da LBAFD].

49. Em decorrência do que neste domínio constituem as obrigações e deveres legais enunciados no referido quadro normativo, que impendem, também, sobre os clubes e as sociedades desportivas, vieram, entretanto, a ser aprovados e publicitados pelas entidades responsáveis e organizadores das competições desportivas diversos regulamentos internos em matéria não apenas da organização daquelas competições, mas, também, de prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos, e, bem assim, de disciplina, nomeadamente, dos clubes de futebol e sociedades desportivas e dos agentes desportivos [cfr., no que aqui releva, o RD/LPFP-2017 - seus arts. 04.º, n.º 1, als. a) e b) 19.º, 66.º, 80.º, 94.º a 96.º, 105.º, 113.º, 131.º, 132.º, 145.º, 151.º a 154.º, 157.º a 159.º, 173.º, 178.º a 187.º - e o RC/LPFP-2017 - seus arts. 03.º, als. a) e d), 34.º, 35.º, 36.º e Anexo VI ao mesmo Regulamento].

50. Assim, no contexto do futebol, extrai-se do art. 06.º do RD/LPFP-2017 que o regime disciplinar desportivo é autónomo e independente da «responsabilidade civil ou penal, assim como do regime emergente das relações laborais ou estatuto profissional, os quais serão regidos pelas respetivas normas em vigor» [n.º 1], bem como da «responsabilidade disciplinar de natureza associativa decorrente da qualidade de associado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional» [n.º 2], sendo que a «aplicação de sanções criminais, contraordenacionais, administrativas, cíveis ou associativas não constitui impedimento, atento o seu distinto fundamento, à investigação e punição das infrações disciplinares de natureza desportiva» [n.º 3], prevendo-se, no que releva, quanto ao âmbito subjetivo de aplicação das normas disciplinares que os «clubes são responsáveis pelas infrações cometidas nas épocas desportivas em que participarem nas competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional e no âmbito dessas competições» [cfr. art. 07.º, n.º 2].

51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no n.º 1 do art. 17.º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos seus arts. 29.º e 30.º o leque de sanções disciplinares [principais e acessórias] e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.

52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RD/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» [cfr. subsecção I, arts. 62.º a 83.º], «graves» [cfr. subsecção II, arts. 84.º a 118.º] e «leves» [cfr. subsecção III, arts. 119.º a 127.º], seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espectadores», resultando enunciado no art. 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» [n.º 1] e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial da equipa visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» [n.º 2] [sublinhado nosso].

53. Também as «infrações dos espectadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» [cfr. subsecção II, arts. 173.º a 178.º], «graves» [cfr. subsecção III, arts. 179.º a 184.º] e «leves» [cfr. subsecção IV, arts. 185.º a 187.º], estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art. 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» [n.º 1].

54. Decorre, por outro lado, do art. 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» [n.º 1], e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado; … d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» [n.º 2].

55. Resulta do art. 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (…) k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» [n.º 1], e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis» [n.º 2], sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» [n.º 6] [sublinhados nossos].

56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência [cfr. art. 36.º daquele RC] a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP - adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art. 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art. 04.º que «[c]ompete à Liga e aos seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art. 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» [cfr. art. 06.º do mesmo Regulamento].

57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art. 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos [cfr. art. 11.º] se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art. 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.

58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.

59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afeto ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.

60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.

61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.

62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.

63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.

64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.

65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.

66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/» e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos arts. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18.08 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que «[n]ão é, pois, (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».

67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.

68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos arts. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.

69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar [cfr. arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD/LPFP-2017] que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».

70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.

71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.

72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.

73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra, ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.

74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o primeiro princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio».

23. Pela motivação exposta no excerto acabado de transcrever, que aqui se secunda e reitera, e apresentando-se como desnecessárias quaisquer considerações complementares, importa, quanto à questão acabada de analisar, concluir no sentido da procedência do recurso jurisdicional “sub specie”, visto assistir inteira razão à Recorrente nas críticas que acometeu ao acórdão recorrido, não podendo manter-se o juízo nele firmado, cientes de que este nosso julgamento, presente o disposto, nomeadamente, nos arts. 172º, 182º, 186º, 187º nº 1 b), 222º nº 2, 250º nº 1 e 258º do RD/LPFP, não infringe, como ali se concluiu de igual modo, os princípios da culpa, da presunção de inocência (e inerente direito de defesa) e do “in dubio pro reo”.

24. Soçobra, nesta sede, a invocação feita pela ora Recorrida da ofensa ao princípio da presunção da inocência (e inerente direito de defesa) e do “in dubio pro reo” dado que não só se mostra desfasada e deslocada neste contexto, mas, também, porque insubsistente à luz de tudo o atrás exposto, cientes de que, em momento algum do procedimento e/ou do processo, resultaram preteridos à mesma os seus direitos e/ou as garantias de defesa - cfr. neste sentido a jurisprudência supra convocada (pontos 13 e 14), firmada, mormente, nos Acs. de 21/2/2019 (Proc. nº 033/18.0BCLSB), de 5/9/2019 (Proc. nº 058/18.6BCLSB) e de 26/9/2019 (Proc. nº 076/18).

25. Julgou-se também no Ac. TCAS recorrido:

«Alega ainda a recorrente que nem todos os objetos arremessados (isqueiros) eram ou são idóneos a provocar lesão de especial gravidade, como refere o artigo 186º nº 1 cit. E tem razão. Caso o ato administrativo confirmado pelo TAD demonstrasse a responsabilidade disciplinar (subjetiva) da SAD recorrente, por violação dos cits. deveres (e não pelas ações dos cits. "sócios ou simpatizantes"), ainda assim, o arremesso de isqueiros, sem mais, nunca poderá caber na previsão do artigo 186° cit., mas sim no artigo 187° cit. (cf. artigo 9° do Código Civil)».

Sucede, porém, que a ora Recorrida não foi responsabilizada nem punida, no que toca ao arremesso de isqueiros, ao abrigo da previsão do art. 186º do RDLPFP, pelo que resulta incompreensível, por deslocado deste caso concreto, a discussão sobre se os isqueiros são, ou não, “pela sua própria natureza”, “idóneos a provocar lesão de especial gravidade”.

Efetivamente, conforme resulta da decisão singular punitiva, de 31/7/2018, do CD da FPF (Secção Profissional), proc. 62-17/18, confirmada pelo Acórdão de 21/8/2018 do Plenário em recurso hierárquico impróprio, e depois também confirmada pelo Acórdão do TAD de 24/4/2019, a “SLB, SAD” foi punida: por uma infração p.p. pelo art. 186º do RDLPFP pelo arremesso para o terreno de jogo de um petardo que aí explodiu e que é idóneo a provocar lesão de especial gravidade, bem como pelo arremesso para o terreno de jogo de um pote de fumo e de um flashlight, que são objetos também idóneos a provocar lesão de especial gravidade; por outra infração p.p. pelo art. 182º nº 2, com referência ao art. 20º nºs 3 e 4 (tentativa), do mesmo RDLPFP, pelo arremesso de vários objetos, nomeadamente isqueiros, na direção de jogadores da equipa contrária; e por outra infração p.p. pelo art. 187º nº 1 b) do mesmo RDLPFP, pelo incendiamento de cadeiras e acionamento de artefactos pirotécnicos.

Assim sendo, também se afigura errado, por inaplicável ao caso concreto dos autos, o julgamento do Ac. TCAS quanto à questão da idoneidade, ou não, dos isqueiros arremessados para, nos termos previstos no art. 186º do RDLPFP, provocar lesões de especial gravidade, pois que a arguida, aqui Recorrida, não foi punida, no processo disciplinar em causa, ao abrigo do citado art. 186º pelo arremesso, por parte dos seus adeptos, dos ditos isqueiros.

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IV - DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:

- Conceder provimento ao recurso jurisdicional “sub specie” deduzido pela Recorrente “FPF”, revogando-se o acórdão recorrido, e em fazer subsistir, pelas razões supra invocadas, o acórdão do TAD.

Custas a cargo da “SLB, SAD”, aqui Recorrida.

D.N.

Lisboa, 7 de maio de 2020 – Adriano Cunha (relator por vencimento) – Carlos Carvalho – Maria Benedita Urbano.

VOTO DE VENCIDO

(PRIMITIVA RELATORA)

Desde já se antecipa que a nossa discordância respeita tão somente à questão da aferição do grau de responsabilidade disciplinar da SLB, SAD. É, pois, especificamente sobre uma tal questão que irá incidir este nosso voto de vencido.

Não obstante no caso dos autos estarmos perante comportamentos incorrectos de sócios e simpatizantes (para simplificar, adeptos) da SLB, SAD, é nossa convicção, baseada nos textos legais e regulamentares aplicáveis, que no apuramento do concreto grau de responsabilidade disciplinar pelos desacatos ocorridos não pode deixar-se de ter em conta aquelas que são as responsabilidades do clube visitado, enquanto promotor do espectáculo desportivo, em matéria de segurança e ordem no “seu” estádio. Estando previstas molduras de sanções relativamente ao cometimento dos vários tipos de infracções tipificadas, é nossa convicção que de entre os elementos a valorar na medição da concreta sanção disciplinar a aplicar a um clube por comportamentos incorrectos dos seus adeptos estarão os ditos deveres de ordem e segurança a cargo do clube ou sociedade desportiva (para simplificar, clubes) promotora do evento desportivo. Deveres esses que devem ser cumpridos em relação, ao que agora nos interessa, a todos os espectadores ao jogo, sejam eles seus adeptos, adeptos do clube adversário ou, ainda, meros espectadores não filiados em nenhum dos clubes envolvidos no jogo em que se verificaram os comportamentos incorrectos. Ora, não é possível encontrar nos autos qualquer menção a que essas responsabilidades do clube visitado tenham sido consideradas, e certamente não são consideradas no acórdão a que esta declaração de voto vai aposta, e isto, pela simples razão de que os autores desses comportamentos eram adeptos do clube punido.

Segundo cremos, o tratamento desta questão dos comportamentos incorrectos em estádios de futebol deve ser contextualizada no âmbito do direito desportivo ao qual deve ser reconhecida alguma autonomia atentos os bens e valores específicos que protege. É verdade que o acto que contém a decisão sancionatória é considerado um acto administrativo. Mas também é verdade que o legislador não está impedido de criar um regime disciplinar/sancionador próprio para certas questões desportivas, como é esta que envolve a violência, física ou verbal, nos estádios de futebol, com isto manifestando a vontade de, justamente, conferir alguma autonomia ao direito sancionatório desportivo. O que foi reconhecido pelo legislador português ao estabelecer, para o caso que nos interessa, a autonomia do regime disciplinar desportivo no artigo 6.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017 (RD/LPFP-2017) – preceito que estabelece, no seu n.º 1, que “O regime disciplinar desportivo é autónomo e independente da responsabilidade civil ou penal, assim como do regime emergente das relações laborais ou estatuto profissional, os quais serão regidos pelas respetivas normas em vigor”.

O poder disciplinar não é um poder autónomo, antes se mostrando acessório a determinadas situações ou relações jurídicas, pelo que a autonomia do ordenamento desportivo pode justificar e consentir soluções jurídicas adaptadas à realidade que pretende regular. E são estas particularidades que justificam a consagração, em vários países, que não apenas em Portugal, de uma obrigação geral de segurança que impende sobre os clubes e que, de forma genérica, os torna responsáveis por comportamentos incorrectos dos seus adeptos (cfr. art. 172.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017: RD/LPFD-2017). Trata-se de obrigação de meios reforçada que, nessa medida, se aproxima de uma obrigação de resultados. Tudo isto para tentar neutralizar ou mitigar situações de violência, física ou verbal, por parte de grupos de adeptos em que não é possível ou, pelo menos, não é nada fácil, sobretudo em grandes jogos e em grandes estádios, individualizar e identificar os responsáveis pela conduta desordeira. Daí que não seja necessário, para efeitos de operar esta responsabilidade, identificar o instigador, o autor e os cúmplices.
A responsabilidade dos clubes pelos actos incorrectos dos seus adeptos, prevista em vários ordenamentos jurídicos, foi desde sempre contestada e tem dado lugar a posições divergentes, quer na doutrina, quer na jurisprudência (nacional e estrangeira), quanto à sua admissibilidade. Tratando-se de responsabilidade disciplinar desportiva, questionava-se e ainda hoje se questiona a possibilidade de se consagrar uma responsabilidade por actos de terceiros num âmbito em que, por similitude com o âmbito criminal, vigora, entre outros, o princípio da pessoalidade das penas, que implica a presença de um elemento subjectivo relacionado com a autoria do acto. Questionava-se e questiona-se, em suma, a presença de uma responsabilidade considerada objectiva neste domínio. Enquanto uns, aceitando-a, tentam encontrar uma justificação para a sua existência no âmbito da disciplina desportiva, outros alertam para a circunstância de que, na realidade, se está em face de uma responsabilidade subjectiva dos clubes. Tem sido esta última a orientação deste STA com a qual não podemos deixar de concordar. Efectivamente, esta responsabilidade dos clubes pelos comportamentos incorrectos dos seus adeptos configura uma responsabilidade subjectiva por desconhecimento e/ou incumprimento ou incumprimento defeituoso da sua obrigação genérica de segurança e dos correspondentes deveres de formação e de vigilância. Ou seja, o clube é sancionado pela sua falta. Como se disse no Acórdão do STA de 21.02.19, Proc. n.º 33/18.0BCLSB, “o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido”. Admitimos, todavia, que, pela sua especial configuração, esta é uma responsabilidade subjectiva quase objectiva (Barmejo Vera fala em “culpabilidade objectiva” – “El principio de «culpabilidad objetiva» en el Derecho disciplinario deportivo”), mas, em todo o caso, ainda subjectiva.

O já mencionado artigo 172.º do RD/LPFD-2017, com a epígrafe “Princípio geral”, consagra a responsabilidade dos clubes “pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial”. Este preceito, como se antecipou, atribui uma obrigação genérica de segurança aos clubes, não a associando à sua condição de clube visitante ou visitado. Pode afirmar-se que essa obrigação genérica de segurança, de natureza preventiva e também repressiva, desdobra-se fundamentalmente num dever de formação e num dever de vigilância.
Porque a violência que se regista, em especial nos estádios de futebol não é apenas resultado do abuso de álcool ou de outras substâncias proibidas, antes é, de igual forma, uma questão social e cultural, é imposto aos clubes um dever de formação de modo a inculcar nos respectivos adeptos a consideração de valores humanos como o respeito, a tolerância e a convivência sã entre todos, qualquer que seja, entre outros, a sua filiação clubística, a sua raça, etnia, credo ou ideologia. Aos clubes cabe, em particular, o desenvolvimento de acções de desradicalização de adeptos violentos devendo, se necessário, erradicá-los, se não do clube, pelo menos dos estádios de futebol. A par deste dever, existe, como se disse, um dever de vigilância em relação aos seus adeptos. E é sobretudo este último que deve ser relacionado com os deveres gerais de segurança e ordem que recaem sobre o clube visitado enquanto promotor do evento desportivo. Com efeito, segundo cremos, não se pode isolar o artigo 172.º, que, como se disse, estabelece um princípio geral, de todos os preceitos que constam de outros regulamentos que igualmente se aplicam ao caso dos autos e que, claramente, apontam, de forma explícita ou implícita, para os deveres de segurança e ordem a cargo do clube visitado, considerado o promotor do jogo, responsável por garantir, antes de mais, as condições técnicas de segurança do “seu” estádio. Vejam-se, a título exemplificativo, os artigos 30.º, 34.º, 35.º, e, em particular, os artigos 49.º e 50.º do Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017 (RC/LPFP-2017), e o artigo 6.º do Regulamento de Prevenção da Violência (Anexo VI do RC/LPFP-2017). Cabe, pois, a cada clube, com particular destaque para o clube promotor da partida de futebol, não favorecer, não criar ou não deixar subsistir um estado de coisas perigoso para todos os participantes no jogo, incluindo os espectadores, devendo tomar todas as medidas adequadas, preventivas ou repressivas. Estas medidas adequadas são várias, de variada natureza e a adoptar em distintos momentos temporais. A título de exemplo, refiram-se algumas: controlo da venda de bilhetes (para afastar aqueles/as cuja entrada foi interditada; controlo das entradas no estádio com revista dos que ingressam; interdição ou restrição de venda de álcool; interdição de venda de garrafas de vidro; listagem de objectos proibidos; remoção de gradeamento entre os diversos sectores do estádio; interdição de entrada no estádio a certos adeptos considerados violentos ou por qualquer forma desestabilizadores; vias de acesso sempre desimpedidas; acompanhamento e enquadramento dos espectadores, em especial das claques ultra e dos hooligans; controlo permanente das bancadas, nomeadamente por parte dos stewards, para assegurar que os espectadores se mantêm nos sectores respectivos; expulsão daqueles que se comportem de forma agressiva; formação dos responsáveis pela segurança em gestão de multidões; separação adequada dos vários grupos de espectadores. Agora vejamos. No caso dos autos, entre outras coisas, foram arremessados, em vários momentos do jogo, engenhos pirotécnicos. Sabendo nós que eles só rebentaram durante o jogo porque foram introduzidos indevidamente no estádio, poderá inferir-se que, desde logo, o controlo das entradas dos espectadores não foi totalmente eficiente e, de igual modo, que após o arremesso do primeiro engenho pirotécnico nada terá sido feito para averiguar se haveria mais. E esse controlo cabe maioritariamente ao clube promotor, seja em relação aos seus adeptos, seja em relação aos adeptos da equipa visitante, seja, ainda, em relação a qualquer outro espectador.

Em síntese, é verdade que a SLB, SAD, não cumpriu devidamente (porque, v.g., não basta a colagem de cartazes a apelar à não introdução de objectos proibidos no recinto desportivo) os seus deveres de formação e vigilância em relação aos seus adeptos e, por esse facto, teria de ser sancionada pelos comportamentos incorrectos por eles praticados. Mas, quanto à questão da segurança em geral do espectáculo desportivo, e em particular em relação ao arremesso de engenhos pirotécnicos (questão diferente será, obviamente, o incendiar as cadeiras do estádio ou o entoar de cânticos ou o afixar cartazes ofensivos), o Clube Desportivo Feirense-Futebol, SAD, enquanto clube visitado/promotor do jogo, tinha, também ele, responsabilidades acrescidas. Mais ainda, não querendo desconsiderar ou menorizar os deveres de formação dos clubes, a verdade é que o resultado do cumprimento desses deveres não é instantâneo (basta atentar no número de processos desta natureza que chegam ao TAD e à jurisdição administrativa) e sempre vai defrontar-se com resistências por parte de adeptos que parecem não compreender os perigos daquilo que consideram ou alegam ser manifestações de alegria e de apoio à equipa. Razão pela qual o cumprimento do dever de vigilância dos adeptos pelos respectivos clubes e os deveres de segurança e ordem que incumbem ao clube visitado se revelam de particular importância nesta luta contra a violência no desporto, qualquer que seja a forma pela qual a mesma se manifesta.
Para finalizar, e de forma simplificada, não podemos concordar com a ideia de que, na medição do grau de responsabilidade disciplinar de um clube pelos comportamentos incorrectos dos seus adeptos, não sejam valorados os específicos deveres de segurança e ordem a cargo do clube visitado, que, uma vez incumpridos, e na medida desse incumprimento, deveriam funcionar como atenuante. Com efeito, em relação a certos factos ocorridos no estádio pode constatar-se que ambos os clubes, visitante e visitado, incumpriram deveres relacionados com a segurança dos espectáculos desportivos. Por assim ser, a responsabilidade disciplinar do clube cujos adeptos praticaram os actos desordeiros não pode ser medida como se, afinal de contas, o clube visitado não tivesse ele próprio deveres gerais de segurança e ordem no que se refere ao evento de que é o promotor.

Lisboa, 7 de Maio de 2020.
Maria Benedita Urbano