Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0450/11.7BECTB 01424/17
Data do Acordão:12/13/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL
TRIBUNAIS JUDICIAIS
COMPETÊNCIA
Sumário:I - De acordo com o princípio consagrado no artigo 18º, nº1, da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, os tribunais judiciais só deverão rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção arbitral é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação;
II - Suscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção arbitral, deverão as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio.
Nº Convencional:JSTA000P23960
Nº do Documento:SA1201812130450/11
Data de Entrada:02/12/2018
Recorrente:ÁGUAS DE LISBOA E VALE DO TEJO, S.A.
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE AGUIAR DA BEIRA E OUTROS E MINISTÉRIO DO AMBIENTE, ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO E ENERGIA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. ÁGUAS DO VALE DO TEJO, S.A., interpõe este «recurso de revista» do acórdão proferido em 22.06.2017 pelo Tribunal Central Administrativo Sul [TCAS], o qual, concedendo provimento ao «recurso de apelação» interposto pelo MUNICÍPIO DE AGUIAR DA BEIRA e treze OUTROS [MUNICÍPIOS DE ALMEIDA; BELMONTE; CELORICO DA BEIRA; FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO; FORNOS DE ALGODRES; FUNDÃO; GOUVEIA; GUARDA; MANTEIGAS; PENAMACOR; MÊDA; PINHEL; e SABUGAL], «revogou» o saneador-sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco [TAF] e «declarou este tribunal competente em razão da matéria para conhecer do mérito da acção».

Culmina as suas alegações de revista da forma seguinte:

1- O douto acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do artigo 615º, nº1, alínea d), do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, por ter deixado de se pronunciar sobre os actos constantes dos artigos 1º e 3º, nº1, do DL nº121/2000, de 04.07, que criou o «Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e Saneamento do Alto Zêzere e Côa» e constituiu a sociedade «Águas do Zêzere e Côa, S.A.», e do artigo 2º, nº3, do DL nº379/93, de 05.11, os quais, ao invés do invocado pelos recorridos, não constituem actos administrativos, mas actos materialmente legislativos, fruto do desempenho de função primária pelo Governo, comportando opções inovadoras relativamente à organização do sector do abastecimento de água e saneamento, e, como tal, subtraídos à jurisdição administrativa [ver artigo 4º, nº2, alínea a) in fine, do ETAF, aprovado pela Lei 13/2002, de 19.02, na redacção dada pela Lei 20/2012, de 14.05], conhecimento que, por isso, se lhe impunha, como, aliás, foi, oficiosamente, decidido em sede de despacho- saneador sentença proferido pelo TAF de Castelo Branco;

2- No caso concreto, a recorrente não se conforma com a decisão do TCAS que decidiu que a cláusula 47ª, em especial do seu nº2, que os sujeitos contratuais que intervirem no contrato de concessão celebrado entre os Estado Português e a ré, e por interconexão nos contratos de fornecimento de água, de recolha e valorização que os Municípios, autores, celebraram com a ré, sociedade Águas do Zêzere e Côa, S.A., não acordaram a competência exclusiva do tribunal arbitral, ou dito de outra forma, não renunciaram expressamente aos tribunais estaduais;

3- A questão sub judice é de importância fundamental pela sua relevância social, que abrange 16 Municípios que integravam o «Sistema Multimunicipal da Águas do Zêzere e Côa, S.A.» e por se reportar ao serviço público de abastecimento de água às populações e recolha de águas residuais, cujo sistema foi instituído pelo legislador, que decidiu que os recorridos o passariam a integrar, conferindo exclusividade à extinta sociedade «Águas do Zêzere e Côa, S.A.» e fixou as cláusulas contratuais que se encontram nos respectivos diplomas legais, inserindo-se o presente litígio numa situação que se desenrola em várias acções interpostas pela ora recorrente contra os Municípios que integravam o referido sistema multimunicipal, com vista a cobrar os serviços de abastecimento de água e de saneamento que lhes presta, cujo montante global ascendia, em final de 2016, a cerca de «86 milhões de euros», daí a necessária intervenção do órgão de cúpula, à semelhança, aliás, do que sucedeu com a admissão das revistas nºs 595/17 e 775/17;

4- Por outro lado, nos acórdãos proferidos em 20.10.2016, e 19.12.2016, tirados nos processos 13184/16 e 13267/16, o TCAS interpretou as cláusulas de arbitragem dos ajuizados contratos no sentido de atribuir competência aos tribunais do Estado apenas e só relativamente às questões relacionadas com a facturação dos serviços prestados, já que, quanto às demais questões, como é o caso da ilegalidade da concessão por violação dos pressupostos legais que o DL nº121/2000 impõem, pois o sistema não inclui o Município da Covilhã, que é grosso modo a questão subjacente aos presentes autos, tem vindo a ser entendido, quer pelo TCAS quer pelo TAF de Castelo Branco que, em relação a elas, as partes acordaram no contrato de concessão que seriam dirimidas por tribunal arbitral pelo que, existindo tal convenção de arbitragem susceptível de ser aplicada àquelas questões, encontra-se a apreciação das mesmas subtraídas à jurisdição pública, justificando-se, assim, a admissão da presente revista para uma melhor aplicação do direito, uma vez que a decisão recorrida julgou em sentido totalmente oposto quer ao da 1ª instância quer às decisões por si anteriormente proferidas;

5- Na realidade, o bom funcionamento da justiça depende, em bom rigor, do esclarecimento da questão da interpretação da cláusula de arbitragem dos ajuizados contratos, cuja análise pelo STA contribuirá para clarificar as questões subtraídas à jurisdição pública, e que são as da competência desta, como é o caso das que se relacionam com a facturação dos serviços prestados de água e de saneamento;

6- Dessa forma, evitar-se-á a repetição no futuro do recurso aos tribunais administrativos para análise de questões excluídas da jurisdição do Estado Português, o que impedirá a expansão da controvérsia e delimitará as competências de conhecimento das questões administrativas por parte das respectivas instâncias;

7- Pelo que está em causa o esclarecimento de uma questão relevante para evitar a expansão da controvérsia e dessa forma importante para o melhor funcionamento e correcta aplicação do direito [ver AC STA de 04.01.2006, Rº01197/05];

8- Por isso, entendemos que não pode esse Venerando Tribunal deixar de receber a presente revista, na medida em que as questões jurídicas que estão aqui em causa são de importância fundamental pela sua relevância jurídica e social e porque a sua intervenção é necessária para uma melhor aplicação do direito, pelo que se requer a sua admissão, seguindo-se os demais termos;

9- Ao invés do decidido no acórdão recorrido, a cláusula dos ajuizados contratos estabelece a exclusividade da competência do tribunal arbitral atendendo quer à [i] pormenorizada regulamentação da cláusula arbitral, estabelecendo as regras para a constituição e funcionamento do tribunal arbitral, quer relativamente à [ii] omissão de qualquer alusão a tribunal não arbitral, sendo que o termo «poderá» inserto no nº2 não tem a ver com a opção pela competência jurisdicional, mas apenas com o propósito de procura inicial de uma solução conciliatória constante do nº1, e só em caso de frustração da solução amigável poderem enveredar pela via contenciosa, isto é, pelo recurso ao tribunal arbitral;

10- Como sublinha RAUL VENTURA - Convenção de Arbitragem, página 348 - É relativamente frequente prever em contratos que, antes de alguma das partes recorrer à arbitragem, sejam feitos esforços para se encontrar uma solução amigável do litígio. A variante de tais cláusulas é grande; por exemplo e esquematicamente: «se não for possível solucionar o litígio amigavelmente, será ele decidido, etc.»; «antes de alguma das partes recorrer à arbitragem, devem ambas, e durante X dias, tentar resolver o litígio por acordo»; «antes do recurso à arbitragem, haverá uma fase de conciliação [confiada a certas pessoas ou a uma instituição especializada]»; «a parte que invocar violação do contrato notificará a outra para no prazo de …, remediar essa violação e se esta não o fizer, haverá recurso arbitragem»;

11- Ora, o nº1 da cláusula em apreço contempla uma fase conciliatória prévia à arbitragem, frustrando-se essa tentativa, abre-se a fase da arbitragem, o que significa que apenas após a tentativa de solução amigável é que as partes podem recorrer à arbitragem;

12- Quando o nº2 de tal cláusula diz que as partes podem recorrer à arbitragem está a referir-se à abertura da via contenciosa [tribunal arbitral] por força da frustração da tentativa de solução amigável, e não a uma alternativa aos tribunais judiciais, como tem sido sustentado pela jurisprudência chamada a apreciar cláusulas de teor idêntico [AC STJ de 20.01.2011, processo 2207/09.6TBSTB.E1.S1, e da RL de 2011.10.06, processo 193098/09.7YIPRT.L1];

13- Por outro lado, as convenções arbitrais normalmente estabelecem a competência exclusiva dos tribunais arbitrais - é o id quoad plerumque accidit [Miguel Teixeira de Sousa, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lex, página 102];

14- A regra interpretativa acima enunciada [impressão do destinatário] leva-nos ainda a dizer que, bem mais do que apenas a previsão de hipotético recurso à arbitragem como meio de resolução de litígios, antes logo foi estabelecida uma firme cláusula compromissória, que, mais do que como se uma mera faculdade ao dispor, antes erigiu como direito potestativo a submissão do litígio à arbitragem, assim, a todo o momento, possa alguma das partes querer;

15- Conclui-se, pois, no sentido de que, quer em face da aplicação do disposto no artigo 236º, nº1, do CC, quer nos termos do artigo 238º, nº1, de tal diploma, não resulta que tivesse sido estabelecida, na referida cláusula, a competência jurisdicional concorrente, antes a competência exclusiva do tribunal arbitral;

16- O acórdão violou, pois, o disposto nos artigos 236º, nº1, e 238º, nº1 do CC, 13º do CPTA, e 577º, alínea a), 578º, e 576º, nº2, e 615º, nº1, alínea d), do CPC».

Termina pedindo a admissão da revista, e que lhe seja concedido provimento, o que significa a revogação, pelos fundamentos expostos, do acórdão recorrido.

2. Os MUNICÍPIOS recorridos contra-alegaram mas não formularam conclusões, sendo certo que reiteraram, em síntese, que a «cláusula de arbitragem» [47ª] não lhes é aplicável, e que, além disso, dela decorre uma mera faculdade e não uma obrigação de recorrer à arbitragem voluntária. Pedem a não admissão da revista, e, de todo o modo, o seu não provimento.

3. A revista foi admitida por este STA - formação a que alude o artigo 150º, nº6, do CPTA.

4. O Ministério Público pronunciou-se no sentido da concessão de provimento à revista e consequente revogação do acórdão recorrido [artigo 146º, nº1, do CPTA].

5. A esta pronúncia do Ministério Público reagiram os Municípios recorridos, no sentido de que a tese propugnada os obrigará a sujeitar-se a uma convenção de arbitragem que não assinaram e que a lei não lhes impõe.

6. Colhidos que foram os vistos legais, importa apreciar e decidir a «revista».

II. Apreciação

1. Passemos, já, à apreciação do objecto do recurso de revista, uma vez que as instâncias não fixaram qualquer factualidade provada, antes utilizaram os dados factuais pertinentes no desenvolvimento do respectivo julgamento de direito.

2. O MUNICÍPIO DE AGUIAR DA BEIRA e OUTROS, demandaram no TAF de Castelo Branco o então «MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, MAR, AMBIENTE E ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO» [MAMAOT] - a que sucedeu, ope legis, o «MINISTÉRIO DO AMBIENTE, ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO E ENERGIA» - e a então «ÁGUAS DO ZÊZERE E CÔA, S.A.» - a que sucedeu, ope legis, em todos os seus direitos e obrigações, a «ÁGUAS DO VALE DO TEJO, S.A.» - pedindo a «declaração de nulidade do contrato de concessão celebrado entre esta e o Estado Português» [em 15.09.2000, e sob a égide do DL nº121/2000, de 04.07], e ainda dos «contratos de fornecimento de água, recolha de efluentes, e cedência e valorização de infra-estruturas» celebrados, ao abrigo daquele contrato de concessão, entre eles e a concessionária.

Requereram, ainda, - ao abrigo do então artigo 325º do CPC - a «intervenção» dos Municípios de Seia, Oliveira do Hospital, e Covilhã.

Em sede de despacho saneador, foi proferida sentença a declarar a incompetência da jurisdição para conhecer da demanda, e absolvidos os réus da instância, pois foi entendido que havia cláusula compromissória que atribuía a competência ao tribunal arbitral.

A 2ª instância, chamada a pronunciar-se, concedeu provimento ao «recurso de apelação» interposto pelos Municípios autores, «revogou a sentença» proferida pelo do TAF de Castelo Branco, e «declarou este competente, em razão da matéria, para a apreciação do mérito da presente acção, se a tal nada mais obstar», tudo com base no entendimento de que a cláusula compromissória não impunha o recurso à arbitragem, antes concedia às partes a faculdade de o fazerem.

É deste acórdão que vem interposta a actual «revista» pela ré da acção, ou seja, pela «ÁGUAS DO VALE DO TEJO, S.A.», que lhe imputa uma nulidade, por omissão de pronúncia, e erro de julgamento de direito.

3. Da alegada nulidade do acórdão recorrido [artigo 615º, nº1 alínea d), do CPC, ex vi 1º CPTA].

Sustenta a ora recorrente que o acórdão recorrido padece do vício de «omissão de pronúncia», sancionado com a nulidade pela alínea d) do nº1 do artigo 615º do CPC, segundo a qual a sentença, ou acórdão, é «nula» quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». E a «questão» cujo conhecimento o acórdão teria omitido seria a de saber se os actos constantes dos artigos 1º, e 3º nº1, do DL 121/2000, de 04.07 - diploma que criou o «Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e Saneamento do Alto Zêzere e Côa» e constituiu a sociedade «Águas do Zêzere e Côa, S.A.» - e do artigo 2º nº3, do DL 379/93, de 05.11 - permite o «acesso de capitais privados às actividades económicas de captação, tratamento e rejeição de efluentes e recolha e tratamento de resíduos sólidos» - configuram actos administrativos, como pretendem os Municípios autores, ou actos materialmente legislativos, como entende a ré, ora recorrente, e neste caso subtraídos à jurisdição administrativa [artigo 4º, nº2, alínea a) in fine, do ETAF, aprovado pela Lei 13/2002, de 19.02, na redacção dada pela Lei 20/2012, de 14.05].

Constatamos que na 12ª conclusão do recurso de apelação, os aí recorrentes, e aqui recorridos, no afã de defenderem, contra o decidido pela 1ª instância, que os tribunais administrativos eram os competentes para conhecer deste litígio, e não o tribunal arbitral, sustentaram, nesse sentido, que os actos constantes dos artigos 1º e 3º nº1 do DL nº121/2000, de 04.07, são actos administrativos que foram praticados «sob forma legislativa» e, como tal, impugnáveis nos tribunais administrativos [não fazem qualquer referência ao artigo 2º, nº3, do DL nº379/93, de 05.11].

A questão, a ser assim entendida, não surge, pois, como autónoma, mas antes como «tempero» da tese dos Municípios autores no sentido de arredar qualquer intenção de defraudar as normas sobre competência material [artigo 21º do CC].

Ora, atento o conteúdo do acórdão recorrido nota-se que ele tratou, sobretudo, a questão da interpretação da cláusula 47º do contrato de concessão, concluindo que, nela, era concedida às partes a faculdade de recorrer à justiça arbitral, mas não lhes era imposta essa obrigação. Ou seja, tratou a questão fundamental que lhe foi colocada, a de saber se o litígio tinha necessariamente de ser submetido a um tribunal arbitral.

O que significa que, tendo concluído naquele primeiro sentido, e, declarado, em conformidade, o TAF de Castelo Branco «competente para conhecer da acção», restou prejudicada a apreciação da questão alegadamente omissa, porque o seu conhecimento caberá ao tribunal administrativo competente, a prevalecer a tese jurídica do acórdão recorrido.

Não ocorre, portanto, a nulidade imputada ao acórdão recorrido pela «ÁGUAS DO VALE DO TEJO, S.A.».

4. Do alegado erro de julgamento de direito [artigos 236º nº1, 238º do CC].

Como decorre da explanação factual realizada ao longo do acórdão recorrido - e pacífica nestes autos - o «contrato de concessão» celebrado entre a então «ÁGUAS DO ZÊZERE e CÔA, SA» e o «MAMAOT» incluía uma cláusula 47ª que reza assim:

[…]

«1. Em caso de desacordo ou litígio relativamente à interpretação ou execução deste contrato, as partes diligenciarão no sentido de alcançar, por acordo amigável, uma solução adequada e equitativa.

2. No caso de não ser possível uma solução negociada e amigável, nos termos previstos no número anterior, cada uma das partes poderá a todo o momento recorrer à arbitragem nos termos seguintes.

3. A arbitragem será realizada por um tribunal arbitral constituído nos termos desta cláusula e de acordo com o estipulado na Lei nº31/86, de 29 de Agosto.»

[…]

E consta do acórdão recorrido que esta cláusula compromissória foi replicada em cada um dos contratos de fornecimento de água, recolha de efluentes, e cedência e valorização de infra-estruturas celebrados, ao abrigo desse contrato de concessão, entre os Municípios autores e a concessionária.

A 2ª instância interpretou essa cláusula, no acórdão recorrido, contrariamente à 1ª instância, do seguinte modo:

[…]

«Na cláusula 47ª dos ajuizados contratos, as partes acordaram - atenta a terminologia utilizada no seu nº2 - que cada uma delas poderá a todo o momento recorrer à arbitragem.

A expressão «poderá» não tem outro sentido que não o de uma de faculdade dada às partes de recorrer a tribunal arbitral.

Na situação em apreço, tendo o recurso a tribunal arbitral sido clausulado como uma faculdade e não como uma obrigação, qualquer das partes, em caso de diferendo, pode optar, ou pelo recurso aos tribunais do Estado, ou ao tribunal arbitral, devendo, neste último caso, ser ele constituído de acordo com o mais clausulado em tal disposição contratual.

Caso a vontade das partes tivesse sido a de dotar a jurisdição arbitral de competência exclusiva, teriam formulado cláusula que traduzisse essa vontade por emprego de termos que expressassem a obrigatoriedade das partes de recorrer, ao tribunal de conflito [sic]; expressões como «tem as partes» ou «devem as partes».

Em suma: decorre da cláusula 47ª, em especial do seu nº2, que os sujeitos contratuais que intervirem no contrato de concessão […] e por interconexão nos contratos de fornecimento de água, de recolha e valorização que os Municípios autores celebraram com a ré - sociedade Águas do Zêzere e Côa, S.A. - não acordaram a competência exclusiva do tribunal arbitral, ou dito de outra forma, não renunciaram expressamente aos tribunais estaduais.

[…]

Ora, a autora da presente revista defende que tal interpretação da cláusula 47ª é errada porque se traduz, em suma, na violação dos «critérios interpretativos» consagrados nos artigos 236º e 238º do Código Civil [CC].

5. Esta «acção administrativa comum» [AAC] visa, primariamente, a declaração de nulidade do «contrato de concessão» que une as entidades rés, e visa, ainda, a consequencial declaração de nulidade dos contratos celebrados entre os Municípios autores e a ré concessionária.

Como vimos, o TAF de Castelo Branco absolveu os réus da instância porque, em seu entender, haveria em todos os contratos uma convenção de arbitragem que abrangia a matéria em discussão. Mas o TCAS revogou a decisão, pois entendeu que o teor dessa «convenção de arbitragem» conferia às partes contratantes a liberdade de submeter os litígios aos tribunais estaduais ou aos arbitrais.

A questão que se perfila nesta revista é, pois, saber se a cláusula compromissória prevista nos contratos em causa atribui uma competência exclusiva ao tribunal arbitral ou uma competência concorrente com a dos tribunais administrativos.

É que, como tem vindo a ser uniformemente entendido pela «jurisprudência» e pela «doutrina», a competência convencionalmente atribuída ao tribunal arbitral pode ser exclusiva ou concorrente com a do tribunal legalmente competente, se bem que, adverte-se - ver Miguel Teixeira de Sousa, «A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns», 1994, página 102 - «não é frequente» o recurso a esta última opção.

6. Cabe ao tribunal de revista, como manda a lei, aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido - ver artigo 150º, nº3, do CPTA.

E a respeito do presente litígio, no fundo sobre a determinação da competência do «tribunal da jurisdição administrativa ou do tribunal arbitral» para o resolver, importa desde logo ter presente, antes de partir para a interpretação da cláusula compromissória, o que diz a «Lei da Arbitragem Voluntária» [LAV] sobre o assunto.

Estipula essa lei [Lei nº31/86, de 29.08, aqui aplicável], no seu artigo 21º, acerca da decisão do tribunal arbitral sobre a sua própria competência, que «O tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção» [nº1], e que «A decisão pela qual o tribunal arbitral se declara competente só pode ser apreciada pelo tribunal judicial depois de proferida a decisão sobre o fundo da causa […]» [nº4].

Nesse mesmo sentido prescreve o actual artigo 18º nº1 e nº9 da LAV, aprovada pela Lei nº63/2011, de 14.12.

Esta norma consagra o princípio que a doutrina apelida de kompetenz-kompetenz do qual não decorre apenas, como sublinha Lopes dos Reis [A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral, in ROA, ano 58, Dezembro de 1998, página 1122], que ao tribunal arbitral assiste a competência para conhecer da sua própria competência, «decorre também que tal competência lhe cabe a ele, antes de poder ser deferida a um tribunal judicial».

Esse princípio, conhecido na sua designação germânica, impõe, na sua acepção negativa, «a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral», resultando que «apenas nos casos em que for manifesta a nulidade, a ineficácia, ou a inaplicabilidade da convenção de arbitragem, o juiz pode declará-lo, e, consequentemente, julgar improcedente a excepção.» [AC STJ de 20.01.2011, Rº2207/09].

Ao STA apenas cumprirá, portanto, em sede de recurso de revista, verificar se é manifesta e insusceptível de controvérsia séria e consistente a não aplicabilidade da cláusula compromissória em questão, pois que em caso de «dúvida fundada» sobre o seu «âmbito de aplicação» deverão as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio [ver o AC STJ de 09.07.2015, Rº1770/13]. Basta a plausibilidade de vinculação das partes à cláusula compromissória para que, sem mais, cumpra devolver ao tribunal arbitral voluntário a apreciação da sua própria competência [AC STJ de 09.07.2015, Rº1770/13; AC STJ de 21.06.2016, Rº301/14; AC STJ de 20.03.2018, Rº1149/14].

É o que passaremos a apreciar.

7. É pacífico na doutrina e na jurisprudência que a interpretação da convenção arbitral, e, portanto, também da cláusula compromissória, está sujeita às regras da «interpretação do negócio jurídico», as quais se reconduzem à disciplina dos artigos 236º e seguintes do Código Civil [CC].

A regra geral, ou seja, o sentido normal da declaração negocial é a de que esta vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, isto é, com esse sentido [artigo 236º, nº1, do CC].

E, sendo a convenção de arbitragem um «negócio formal» [artigo 2º, nº1, da LAV/86, e da LAV/2011], não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento [artigo 238º, nº1, do CC].

Deverão ser tidos em conta, pois, na interpretação da cláusula compromissória, «todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta» [Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, página 421; e, a respeito, M. P. Barroca, Manual de Arbitragem, Almedina, 2010, página 171].

Note-se, a este respeito, que a jurisprudência dos nossos tribunais superiores é pacífica no sentido de a interpretação das declarações ou cláusulas contratuais constituírem matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, mas que já constituirá matéria de direito, sindicável, portanto, pelo STA, determinar se, na interpretação das declarações foram observados os critérios legais dos artigos 236º e 238º do CC, para a interpretação do sentido que há-de vincular as partes face aos factos concretamente apurados pelas instâncias [ver, a título exemplificativo, AC STJ de 19.02.2008, Rº07ª4529; AC STJ de 18.06.2009, Rº246/09.6YFLSB.S1].

No caso vertente, o TCAS entendeu, como vimos, que as partes estabeleceram uma mera faculdade de recurso ao tribunal arbitral, e não uma obrigatoriedade, fazendo-o com base no uso do verbo «poder» [poderá].

Mas trata-se, a nosso ver, de uma interpretação que não surge de modo algum como inquestionável, segura, manifesta, de modo a arredar a «dúvida fundada» sobre a exclusividade da competência do tribunal arbitral para conhecer do litígio. E esta insatisfação enraíza tanto na letra da cláusula compromissória como na sua interpretação à luz da teoria da impressão do declaratário.

Efectivamente, se à primeira vista o ponto 2, da cláusula 47ª supra citada, pode inculcar no intérprete o sentido interpretativo adoptado no acórdão recorrido, o certo é ele não resiste a uma análise mais aprofundada da globalidade do texto.

Na verdade, o verbo «poder», que polariza o sentido do ponto 2 da cláusula 47ª, não significa necessariamente, e no contexto, a existência de uma faculdade de recorrer a uma ou outra via de julgamento do eventual litígio: tribunal estadual, ou tribunal arbitral. Tudo aponta para que signifique, antes, uma permissão de recorrer - a todo o momento - a uma segunda fase litigiosa de resolução do mesmo, ultrapassada que esteja, sem êxito, a fase conciliatória.

É que o termo «poderá» - inserto no referido ponto 2 - não se conexiona directamente com a «opção» pela competência jurisdicional - judicial ou arbitral - mas antes com a condição de as partes «diligenciarem» pela via conciliatória antes de enveredarem pela contenciosa, e só no caso daquela se frustrar ficarem livres para «poderem» recorrer à arbitragem.

Temos, pois, segundo tudo indica, que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, deveria interpretar a referida cláusula no sentido de as partes

Contratantes estabelecerem que no caso da via conciliatória falhar ficam livres para poderem recorrer à via contenciosa através da arbitragem.

Uma coisa é certa, na sua mínima expressão, a interpretação da cláusula, tendo em conta a letra da lei e o referido critério legal, resulta na ocorrência de uma «dúvida fundada», o que por si mesmo é bastante, como vimos, para que deva ser o tribunal arbitral a pronunciar-se sobre a sua própria competência.

III. Decisão

Face ao exposto, decidimos conceder provimento ao recurso de revista e, em conformidade, revogar o acórdão recorrido, mantendo-se a decisão proferida pela 1ª instância com a actual fundamentação.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2018. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Jorge Artur Madeira dos Santos.