Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0992/11
Data do Acordão:11/30/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LINO RIBEIRO
Descritores:RECLAMAÇÃO DE ACTO PRATICADO PELO ÓRGÃO DA EXECUÇÃO FISCAL
SUBIDA EM SEPARADO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO DE PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário:I - A falta de notificação do parecer final do Ministério Público sobre a reclamação de um acto do órgão de execução fiscal só constitui nulidade processual se no parecer forem suscitadas questões novas susceptíveis de influenciar a decisão da reclamação;
II - Em regra, a reclamação de acto do órgão de execução fiscal deve ser apresentada em tribunal incorporada no processo executivo;
III - Se for remetida em separado, o momento processual mais adequado para sanar tal irregularidade deve ser, nos termos do art. 19º do CPPT, o da sua apresentação em tribunal.
IV - Na fase de decisão final, tal irregularidade processual não pode ser qualificada como nulidade secundária, que implique a anulação de todo o processado, se a discussão e decisão da reclamação não ficar prejudicada com a falta dos elementos constantes da execução fiscal.
Nº Convencional:JSTA00067288
Nº do Documento:SA2201111300992
Data de Entrada:11/07/2011
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A... E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:DESP TAF FUNCHAL DE 2011/07/27 PER SALTUM
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL
Área Temática 2:DIR PROC CIV
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART2 C ART13 N2 ART19 ART97 ART98 ART99 ART113 ART121 ART165 ART278 N1 N3 N4 N5 ART170 N3
CONST76 ART20 N4 ART202 N1 N2
CPC96 ART3 ART3-A ART153 ART205 ART668 N1 ART201 N1 ART666 ART288 N3
CPTA02 ART147 N2 ART7
LGT98 ART99 N3 ART101 D ART103 N2
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC47621 DE 2001/10/04; AC STAPLENO PROC44196 DE 2003/05/08
Referência a Doutrina:ALBERTO DOS REIS COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VII PAG507
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
1. A Fazenda Pública interpõe recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, de 27/7/2011, proferida nos autos de reclamação do despacho do Chefe do Serviço de Finanças que indeferiu aos executados o pedido de dispensa da prestação de garantia, e que, por falta de incorporação da reclamação no processo de execução fiscal, anulou todo o processado.
Nas respectivas alegações, conclui o seguinte:
A) Vem a ora recorrente interpor o presente recurso da douta sentença de fls… dos autos.
B) Sentença, pela qual, veio o Meritíssimo Juiz a quo julgar que foi cometida, pelo órgão de execução fiscal - este estabelecido nos termos do art.º 149.° do CPPT - uma irregularidade por não ter sido incorporada a reclamação em apreço no processo de execução fiscal (de agora em diante designado abreviadamente por PEF), o que, no seu entender obsta à apreciação da questão invocada pelo reclamantes, que é a revogação do despacho proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças do Funchal - 1, em 23 de Fevereiro de 2011, e constitui uma nulidade processual.
C) Não se conforma a recorrente com essa douta sentença, desde logo porquanto, atenta a matéria factual assente nos autos, a mesma viola claramente normas legais imperativas.
D) Coloca-se uma primeira questão prévia, pois que na douta sentença recorrida, designadamente no relatório, é dito que: - "O Ministério Público deduziu parecer no sentido da improcedência da reclamação por não se verificarem os requisitos para a dispensa de garantia".
E) A Fazenda Pública não foi notificada do douto parecer do Dig.mo Procurador da República, como deveria ter sido, e em observância ao princípio do contraditório, quer à luz do disposto no artº 113.°, nº 1, quer atento ao disposto no artº 121.°, nº 2, ambos do CPPT, a conjugar com o disposto no art.º 3.°, nº 3 do CPCivil este último aplicável ex vi do artº 2.°, alínea e) do CPPT.
F) Parecendo-nos que o artº 113.° do CPPT é o normativo aplicável ao caso presente, uma vez que tendo sido indicada prova testemunhal por ambas as partes em litigio, não houve lugar à sua produção.
G) Por outra parte, a douta sentença é omissa e contraditória, porque tendo sido levantadas questões de direito e de facto, o processo só vai de vista ao Ministério Público, para depois o Juiz conhecer logo do pedido, se o processo fornecer os elementos necessários.
H) No presente caso, o Meritíssimo Juiz a quo afirma na douta sentença, pasme-se, que não sabe se tem todos os elementos necessários à decisão - o Dig.mo Procurador da República não se pronunciou nesse sentido -, pelo facto de não ter seguido o PEF para o Tribunal juntamente com o requerimento da reclamação apresentada nos termos dos artigos 276.° e ss do CPPT, mormente, do disposto no art.º 278.°, n.º 3, alínea d) do mesmo diploma legal.
I) Numa segunda questão prévia que igualmente se coloca, e conforme aflora o Meritíssimo Juiz a quo a fls. 6 da douta sentença recorrida, mas não no sentido que dá - indeferimento liminar -, a questão da única irregularidade encontrada que veio a conhecer na sentença recorrida - não incorporação do processo de reclamação no PEF - deveria ter sido conhecida, em nosso entender e em observância ao princípio da colaboração, na fase inicial do processo, isto é, quando o processo subiu ao Tribunal e nos termos do artº 19.° do CPPT e atento o disposto nos artigos 59.° da LGT e 266.°, nº 1 do CPC por força do estatuído no art.° 2.°, alínea e) do CPPT.
J) Nesse sentido, consideramos estar igualmente perante uma ofensa aos princípios do inquisitório e da celeridade processual, dado que nos parece evidente que cabia ao Meritíssimo Juiz a quo in casu ter notificado o órgão de execução fiscal para este informar e juntar aos autos os elementos que considerasse em falta e necessários à boa composição do litigio - vide artigos 55.° e 58.° ambos da LGT e 10.° do CPA.
L) No âmbito do processo de reclamação dos actos do órgão de execução fiscal, cujo regime jurídico vem previsto nos artigos 276.° a 278.º do CPPT, em regra, o Tribunal só conhece das reclamações quando o processo - leia-se PEF - lhe for remetido a final - cfr. artº 278.° do diploma atrás citado.
M) E, no caso de se verificar a omissão dessa remessa, verificar-se-á, eventualmente, a irregularidade processual encontrada na douta sentença recorrida, com a fundamentação e raciocínio jurídico ali explanados, sendo esse o sentido da jurisprudência indicada na douta sentença.
N) Todavia, no caso em apreço, verifica-se, em nosso entender, um regime excepcional, previsto nos números 3, 4, 5 e 6 do artº 278.° do CPPT, designadamente, quando estejamos perante - como é o caso presente - um processo de reclamação que segue as regras dos processos urgentes e que se fundamenta em prejuízo irreparável causado pela putativa determinação da prestação de garantia indevida ou superior à devida - vd. art.º 278.°, n.º 3, alínea d) do CPPT.
O) Neste caso, o processo de reclamação do acto do órgão de execução fiscal não tem de ser incorporado no PEF - vide no mesmo sentido Acórdão do TCA Sul, CT 2.° Juízo, datado de 18/11/2008, no rec. n.º 02595/08 e, igualmente, Acórdão do TCA Sul, CT 2.° Juízo, datado de 27/09/2005, no rec. n.º 00738/05 -, pois é um verdadeiro incidente da instância, com a mesma não se confundindo, cabendo ao reclamante juntar à sua PI todos os elementos de prova do alegado prejuízo irreparável e bem assim de que observou e mantém todos os requisitos legais previstos pelos quais deveria ter visto reconhecida a dispensa de garantia anteriormente requerida perante o órgão de execução fiscal.
P) Caso o Meritíssimo Juiz a quo tivesse considerado que lhe faltava tomar conhecimento de algum dos documentos presentes no PEF, tidos por indispensáveis à boa decisão da causa - o que não se concede -, deveria, em nossa opinião, ter notificado, na fase inicial do processo, atento o consignado no art.º 19º do CPPT, o serviço de finanças em causa para que este lhos transmitisse ou facultasse, em observância dos princípios do inquisitório e da celeridade a que se encontra obrigado, previstos, nomeadamente, nos artigos 55.° e 58.° da LGT, que no presente processo não observou.
Q) Subscreve-se, sobre essa matéria, a posição defendida por JORGE LOPES DE SOUSA in Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado e Comentado, Volume II, Editora "Áreas Editora", 5.ª Edição, na nota n.º 18 ao art.º 165.° do CPPT, quando diz "Este regime de nulidades, previsto neste Código, é mais restritivo do que o previsto no CPC ( ... ). Esta diversidade de regimes não pode considerar-se materialmente inconstitucional, designadamente por violação do princípio da igualdade, consignado no artº 13º da CRP. Na verdade, o processo de execução fiscal é destinado apenas à cobrança de créditos do Estado e, em face do interesse público que ela tem para permitir ao Estado e a outras entidades públicas levar a cabo as tarefas que lhe são constitucionalmente atribuídas, justifica-se a utilização de um processo especial, despido de algum formalismo do processo civil e presumivelmente mais célere. A existência de interesse público subjacente à cobrança destes créditos, não existente em relação aos créditos de outras entidades, permite afirmar que não se está no processo de execução fiscal e no processo civil perante situações idênticas e, por isso, um tratamento distinto não poderá ofender o princípio da igualdade, que apenas poderia ser violado se se estivesse em situações substancialmente semelhantes."
R) Porquanto ficou exposto, não se encontra praticada a irregularidade processual considerada na douta sentença proferida e ora recorrida, por a lei não impor a supra indicada incorporação do PEF em qualquer dos seus normativos e, também, tendo em atenção a letra do n.º do n.º 3 do art.º 278.° do CPPT, ab initio, quando expressa "o disposto no n.° 1 não se aplica ... " nem a referida irregularidade se encontra prevista nos artigos 98.° e 165.° do CPPT.
U) Para além de que, somos de parecer que dos presentes autos constavam todos os elementos necessários a justa composição do litigio, não tendo os reclamantes manifestado ou declarado não estarem devidamente notificados dos despachos proferidos pelo órgão de execução fiscal e atinentes ao pedido de dispensa de garantia requerido, muito embora os reclamantes não tivessem logrado provar o quanto vieram alegar em juízo.
V) De facto, A…… e B……, com os NIF …… e ……, respectivamente, apresentaram, nos termos do disposto nos artigos 276.° e ss do CPPT, reclamação do despacho do órgão de execução fiscal, datado de 23/02/2011, a fls. dos presentes autos, proferido aquele no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2810200301065688, a correr os seus termos no Serviço de Finanças do Funchal - 1, para tanto invocando, apenas em sede da presente reclamação, prejuízo irreparável causado pela alegada ilegalidade da determinação da prestação de garantia, portanto, fizeram-no com fundamento no disposto no art.° 278.°, n.º 3, alínea d) do CPPT.
X) O despacho reclamado conheceu do requerimento que os ora reclamantes apresentaram, em 09/02/2011, no Serviço de Finanças do Funchal - 1, e pretendeu responder ao solicitado por meio do sobredito requerimento, apreciando, portanto, se os requisitos atinentes ao pedido de dispensa de prestação de garantia, estariam, a final, in casu, verificados, tendo-se concluído pela ausência dos mesmos, como de seguida melhor se elencará.
Z) A reclamação em apreço insurge-se contra a decisão de indeferimento do pedido de dispensa da prestação de garantia do pagamento da dívida exequenda no PEF acima referenciado, tendo sido defendido a legalidade, suficiência e oportunidade do requerimento apresentado pelos revertidos/reclamantes, em 09/02/2011.
AA) Na verdade, os reclamantes aquando da apresentação do sobredito requerimento de pedido de dispensa da prestação de garantia, não alegaram, nem provaram, o apenas agora alegado prejuízo irreparável.
BB) Mais, somos de opinião, que ainda que o tenham feito já em sede de reclamação, não lograram fazer prova cabal do indicado prejuízo irreparável.
CC) Na realidade os reclamantes/interessados deveriam indicar em que é que se concretiza esse prejuízo, mencionando as razões que levam a crer que existe uma séria probabilidade de esse prejuízo vir a acontecer caso não seja dispensado de prestar a garantia e fazendo disso prova.
DD) Para além disso, a manifesta falta de meios económicos para efeitos de prestação de garantia, no texto da lei, afere-se ou é revelada pela insuficiência de bens penhoráveis, o que igualmente não se verifica no presente caso, conforme indicado no despacho de indeferimento sub iudice e mantido na informação de 28/03/2011.
EE) Assim sendo, dadas as circunstâncias acima referenciadas, não se verificam, no caso em apreço, os pressupostos para deferir o pedido de dispensa da garantia, atento ao estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 170.°, n.º 3 e 199.°, n.º 3, ambos do CPPT, e 52.º, n.º 4 da LGT.
FF) Por outra parte, dado se ter verificado não se estar perante a inexistência de bens penhoráveis, que cubram a totalidade da dívida exequenda e do acrescido, bem como da não dispensa de prestação de garantia, designadamente, quanto a este último aspecto, porque os reclamantes não reuniram, nem provaram a existência dos requisitos legais previstos para o efeito, nunca o órgão de execução fiscal poderia ter deferido o sobre dito pedido, devendo, portanto, o PEF prosseguir os seus trâmites até final (conforme, designadamente, artigos 165.º, 170.º, 195.º e 199.° todos do CPPT e 52.°, n.º 4 da LGT).
GG) Pelo exposto, ao decidir a assim, o Meritíssimo Juiz a quo violou claramente o disposto nos artigos 59.°, 55.°, 58.° todos da LGT; artigos 113.°, 278.°, n.º 3, 19.°, 97.°, 98.°, 165.° todos do CPPT; artigos 3.º, n.º 3 e 266.°, n.º 1 ambos do CPCivil e art.º 10.° do CPA.
HH) Devendo a douta sentença recorrida ser anulada e substituída por nova decisão que julgue a acção improcedente, por não provada, com consequente absolvição total do pedido.
2. Não houve contra-alegações.
1.3. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso por entender que a nulidade invocada na decisão recorrida não é de conhecimento oficioso.
2. Na decisão recorrida equacionaram-se os seguintes factos:
a) A……, NIF ……, e B……, NIF ……, foram citados no processo de execução fiscal nº 2810200301065688, na qualidade de devedores subsidiários e que foi instaurado por dívidas da sociedade C……;
b) A dívida exequenda é de €10.786,12;
c) Os ora reclamantes deduziram oposição à execução fiscal com fundamento em não se encontrarem provados os requisitos para se operar a reversão (doc. nº 1 junto com a PI);
c) Em 21/01/2011 os reclamantes foram notificados para, em 15 dias, prestar garantia idónea;
d) Dentro do prazo de 15 dias os reclamantes requereram a dispensa de garantia, com fundamento em manifesta falta de meios económicos para a prestar e prejuízo irreparável (doc. nº 2, junto com a PI);
e) Em 23 de Fevereiro de 2011, pelo Chefe do Serviço de Finanças Funchal-1 foi proferido despacho de indeferimento, que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, que recaiu sobre o requerimento dos reclamantes (doc. nº 3, junto com a PI);
f) Em 2 de Março de 2011 os reclamantes foram notificados do despacho do Chefe do serviço de Finanças-I, que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia (doc. n° 3 junto com a PI);
g) Sobre os imóveis registados em nome dos ora reclamantes incidem hipotecas (doc. nº 4, junto com a PI);
h) Em 23 de Março de 2011 foi proferido despacho de remessa dos autos ao Tribunal (fls. 52, dos autos);
i) Em 28 de Março de 2011 foi elaborada uma informação sob o título "Reclamação da Decisão do Chefe do Serviço de Finanças" (doc. nº 1 junto com a contestação);
j) Em 30 de Março de 2011, pelo Serviço de Finanças foi extraída uma certidão que se encontra junta a fls. 53 a 66, dos autos, que contém uma certidão de dívida, um aviso de citação, o requerimento dos ora reclamantes, uma declaração de rendimentos, um recibo de vencimento, uma informação datada de 14 de Fevereiro de 2011, elaborada pelo serviço de finanças, o despacho ora impugnado e a notificação do mesmo;
l) Os presentes autos foram autuados neste tribunal em 27 de Abril de 2011.
3.1. A decisão recorrida anulou os actos processuais praticados no processo de reclamação que, nos termos do artigo 276º do CPPT, os recorridos efectuaram do despacho do órgão de execução fiscal que lhes indeferiu o pedido de dispensa da prestação de garantia.
E fê-lo com os seguintes fundamentos: (i) a reclamação judicial de actos do órgão da execução fiscal deve ser incorporada no próprio processo de execução fiscal e não autuada em separado, (ii) a falta dessa incorporação constitui nulidade processual susceptível de influir na decisão da causa; (iii) tal nulidade assume gravidade idêntica à falta de informações oficiais prevista no art. 98º, nº 1 do CPPT, pelo que é de conhecimento oficioso.
Após invocar a nulidade processual por falta de notificação do parecer do Ministério Público, a recorrente discorda dessa decisão pelos seguintes motivos: (i) a irregularidade da falta de incorporação da reclamação no processo de execução fiscal deveria ter sido conhecida na fase inicial do processo; (ii) é uma ofensa aos princípios do inquisitório e da celeridade o facto do órgão de execução fiscal não ter sido notificado para juntar aos autos os elementos em falta; (iii) nos processos de reclamação que seguem as regras dos processos urgentes, o processo de execução fiscal não precisa de subir ao tribunal (iv) a irregularidade da falta de incorporação da reclamação no processo de execução fiscal não está prevista nos artigos 98º e 165º do CPPT; (v) o processo contem todos os elementos necessários para a questão que importa decidir.
3.2. Comecemos pela questão prévia da falta de notificação do parecer do Ministério Público.
No esquema processual fixado na lei para a reclamação de actos dos órgãos de execução fiscal, o Ministério Público é ouvido na fase antecedente ao conhecimento da reclamação (cfr. nº 2 do art. 278º do CPPT).
A lei não prevê a notificação do parecer do Ministério Público quer ao reclamante quer ao representante da Fazenda Pública. Para o processo de impugnação essa notificação está prevista apenas quando no parecer se suscite «questão que obste ao conhecimento do pedido» (cfr. art. 113º nº 2 e 121º nº 2 do CPPT). Mas, na opinião da recorrente, a omissão dessa notificação constitui violação do princípio do contraditório consignado designadamente nos artigos 20º, nº 4 e 202º, nº 1 e 2 da CRP e 3º e 3º-A do CPC.
Impõe-se, desde já, esclarecer que a recorrente não invoca uma das nulidades de sentença taxativamente indicadas no art. 668º. nº 1 do CPC, mas sim uma nulidade processual, ou seja, um desvio do formalismo processual prescrito na lei, determinante de invalidade de acto processual, no caso, nulidade atípica ou inominada, cuja regulamentação genérica consta do art. 201º, nº 1 do referido código.
O esclarecimento não pode deixar de ser feito, porque, se a omissão cometida ao nível da tramitação processual anterior à peça decisória não constitui vício próprio da decisão, não se subsumindo em qualquer das nulidades previstas no art. 668º, então a reacção contra tal ilegalidade só podia ocorrer através do incidente de reclamação perante o juiz do processo, com o regime previstos nos art. 205º e ss do CPC. Quando a infracção processual não está, ainda que de forma implícita, coberta por qualquer despacho judicial, o meio próprio para reagir é a reclamação e não o recurso.
Ora, a eventual nulidade da falta de notificação do parecer do Ministério Público não foi arguida perante o juiz a quo no prazo de 5 dias a contar da notificação da decisão recorrida. Por se tratar de um processo urgente (art. 278º nº 3 e 5 do CPPT), o prazo geral de 10 dias para se invocar nulidades processuais é reduzido a metade (cfr. art. 147º, nº 2 do CPTA ex vi, art. 2º, al. c) do CPPT e art. 153º do CPC), o que significa que, a haver nulidade, a mesma se encontra sanada.
Apesar disso, não pode deixar de se seguir a corrente jurisprudencial consolidada no contencioso administrativo segundo a qual “a notificação do parecer do Ministério Público, para garantir o contraditório, só tem de existir quando, sem ele fique prejudicada, para uma das partes, a ampla discussão de todos os fundamentos de direito em que a decisão se possa basear, sendo injustificada a notificação quando no referido parecer não seja suscitada ou abordada qualquer questão nova” (cfr. Acs. do STA - Pleno, de 4///01, rec. nº 47621; de 21/2/02, no rec. nº 4096; de 8/5/03, rec. nº 44196).
Não parece que fosse sequer necessário discutir se o Ministério Público é ou não parte no processo ou se a reclamação tem natureza objectiva ou subjectiva para, a partir das respostas dadas, se estender ou não o contraditório aos seus pareceres. Sendo um problema de regularidade de actos processuais é nessa sede que a resposta se deve encontrada. Ora, um dos princípios informadores da matéria de nulidades dos actos processuais é o da redução da nulidade à mera irregularidade do acto, sem consequências, sempre que haja atingido o seu fim. Tal princípio está consagrado nº 1 do artigo 201º do CPC, quando se dispõe que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produzem a nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida «possa influenciar no exame ou na decisão da causa». Não restam dúvidas que aqui estão incluídas todas as irregularidades ou desvios ao formalismo processual que atinjam o próprio contraditório. E se assim é, ter-se-á que ver, caso a caso, se a ausência de pronúncia das partes sobre o parecer do Ministério Público as prejudicou. Naturalmente que tal só acontece quando o parecer levanta questões novas nunca discutidas pelas partes até aí, as quais tiveram uma influência decisiva no desfecho da causa.
Ora, no caso do parecer que o Ministério Público emitiu sobre a legalidade da decisão reclamada que indeferiu o pedido de dispensa da prestação de garantia nenhuma questão nova foi suscitada em termos de merecer o contraditório.
3.3. A decisão recorrida oficiosamente conheceu da nulidade processual da falta de incorporação da reclamação no processo de execução fiscal.
Sobre essa decisão, a recorrente levanta três questões: (i) que a nulidade deveria ter sido apreciada na fase inicial do processo; (ii) que a reclamação sobre ao tribunal em separado do processo executivo (iii) que não é uma das nulidades insanáveis previstas nos arts. 98º e 165º do CPPT oficioso.
É evidente que, a admitir-se que a reclamação deve estar incorporada no processo de execução fiscal, o momento processual mais adequado para sanar tal irregularidade deve ser o da sua apresentação em tribunal. Assim se deduz do artigo 19º do CPPT quando estabelece que o tribunal para onde subir o processo, «se nele verificar qualquer deficiência ou irregularidade que não possa ser sanar, mandá-lo-á baixar para estas serem supridas». Ao constatar-se que a reclamação foi remetida pelo serviço de finanças desacompanhada do processo de execução fiscal, duas atitudes poderiam ser tomadas nessa fase: (i) ordenar-se a baixa da reclamação para ser junta ao processo e devolvida novamente; (ii) solicitar-se aos serviços de finanças a remessa do processo de execução fiscal, para nele ser incorporada a reclamação. Seja pelo disposto naquele artigo 19º, seja em concretização do princípio da colaboração processual previsto no nº 3 do art. 99º da LGT e nº 2 do art. 13º do CPPT, era sempre possível e desejável que uma deficiência daquela espécie fosse imediatamente reparada.
Mas não se diga, como deixa transparecer a recorrente, que o facto de nada se ter dito no despacho liminar que recebeu a reclamação se terá feito caso julgado formal sobre a omissão da incorporação da reclamação na execução fiscal e que por isso, já não era possível anular o processado com esse fundamento.
É que, para efeito de caso julgado, não se pode ficcionar o silêncio ou a passividade do juiz como uma decisão judicial que admite a reclamação em processo autónomo. Não existindo qualquer despacho nesse sentido, o silêncio apenas pode configurar uma omissão de acto processual, a qual não se pode converter em caso julgado, pois a reacção contra a ilegalidade dessa omissão é a arguição ou reclamação da nulidade e não o recurso. A máxima tradicional «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se» (cfr. Alberto Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, pág. 507) impede que se forme caso julgado sobre uma infracção processual não coberta por despacho judicial. Se não chega a existir uma decisão, é evidente que não está nem pode estar em causa o princípio da imodificabilidade, que constitui a essência do caso julgado. Por isso, enquanto não for proferida decisão, com a qual fica esgotado o poder jurisdicional (art. 666º do CPC), não estava o juiz impedido de exarar os despachos que houver de dar para prosseguimento do processo.
3.4. A questão fulcral é saber se a reclamação que segue a forma dos processos urgentes deve “subir” ao tribunal nos próprios autos do processo de execução fiscal ou em separado.
Não se vê que os serviços de finanças tenham autuado e registado a reclamação em processo próprio diferente do processo de execução fiscal. Apresentada a reclamação, foi emitido um despacho a ordenar a remessa a tribunal, juntamente com os “elementos necessários”, o que foi feito com a junção de uma certidão de vários documentos do processo de execução.
Regra geral, a reclamação judicial de actos do órgão da execução fiscal deve ser incorporada no próprio processo de execução fiscal. É o que resulta literalmente da alínea d) do art. 101º da LGT, da alínea n) do nº 1 do art. 97º e do nº 1 do art. 278º do CPPT. Como aí se diz, a reclamação é efectuada «no próprio processo» e o tribunal só a conhecerá quando, depois de realizada a penhora e a venda, «o processo lhe for remetido a final». A lei configura-a como uma “questão incidental”, com fins limitados à apreciação da legalidade de um acto do órgão de execução fiscal, que surge no decurso do processo executivo, sem autonomia processual. Se, em regra, a reclamação sobe a tribunal no final da causa, compreende-se que nessa fase se remeta a tribunal o próprio processo onde foi remetida a decisão reclamada. Em caso de provimento da reclamação, anular-se-ão todos os trâmites subsequentes conexionados com o acto reclamado e por isso mesmo pode interessar conhecer a influência que a ilegalidade praticada tem no conjunto de actos processuais que se lhes seguiram.
A lei prevê, contudo, reclamações que pela sua natureza não podem aguardar o decurso do processo executivo, sob pena de se causar “prejuízo irreparável» ao executado ou, numa interpretação jurisprudencial mais alargada, de se comprometer irremediavelmente o «efeito útil» da eventual sentença anulatória do acto reclamado. Nesses casos, que vêm referidos no nº 3 do art. 278º do CPPT, a reclamação tem a natureza de processo urgente, e por conseguinte, «o órgão da execução fiscal fará subir a reclamação no prazo de oito dias», não se aplicando a norma do nº 1 do mesmo artigo. Ou seja, se nos cingirmos à “letra da lei”, o que é remetido ao tribunal é apenas a «reclamação» e não todo o «processo» onde ela se incorpora. A interpretação gramatical parece indicar que nestes casos a reclamação será desentranhada dos autos e remetida ao tribunal, pois a lei apenas diz que o órgão da execução fiscal fará subir a reclamação, e não também o processo executivo. Com efeito, confrontando o n.º 1 com o nº 4 do art.º 278.º do CPPT, onde se distingue “processo”, querendo-se referir ao processo executivo, da reclamação propriamente dita, conclui-se que a reclamação “subirá” em separado ao tribunal.
Parece-nos, em todo o caso, que essa conclusão não é tão segura como parece, porque se a reclamação tiver “efeito suspensivo”, não se vislumbra qual o interesse na tramitação da reclamação em separado da execução. Tal só se justificaria se a reclamação, sendo de conhecimento imediato, não prejudicasse a prossecução da execução fiscal.
Note-se, todavia, que não é fácil determinar a natureza jurídica deste meio processual, para daí se definir com mais rigor o respectivo regime jurídico. Se, por um lado, o nº 2 do artigo 103º da LGT aponta mais no sentido de uma acção impugnatória, por outro, o artigo 278º do CPPT, não só parece diminuir o alcance da norma daquele artigo, como configura a reclamação como um verdadeiro recurso judicial. E daí que se possa questionar se o dito “efeito suspensivo” incide sobre o acto reclamado, impedindo a sua execução, ou sobre a marcha do processo, implicando que o mesmo não prossiga até à decisão da reclamação. E a resposta que se der pode não ser indiferente à determinação do “modo de subida”, podendo questionar-se também se a reclamação é expedida a tribunal no próprio processo onde foi proferido ao acto reclamado, ou em separado, integrada com certidão extraída do processo principal.
3.5. Seja como for, no caso dos autos, o efeito suspensivo da reclamação projecta necessariamente os seus efeitos na suspensão da execução fiscal. A reclamação tem por objecto o acto que indeferiu o pedido de dispensa da prestação de garantia. Se esse acto está suspenso, então a execução fiscal não pode avançar para a fase da penhora enquanto não se decidir em definitivo sobre a legalidade do acto reclamado.
Admitindo-se, portanto, que a reclamação deveria estar incorporada no processo, coloca-se o problema das consequências que derivam do facto de ter sido remetida a tribunal uma reclamação desintegrada do processo executivo.
O desvio em relação ao formalismo processual prescrito na lei só configura nulidade processual se comprometer o exame e a discussão da causa. Não se tratando de uma das nulidades principais consagradas nos arts. 98.º e 165º do CPPT, é à luz do regime do art. 201.º e segs. do CPC que se deve aferir se estamos perante uma irregularidade processual susceptível de ser qualificada como nulidade secundária. Nesta matéria, o princípio geral já acima referido é o de que «a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa».
No caso sub judice, não se vê em que medida a instrução, a discussão e a decisão da reclamação ficou prejudicada com a falta dos elementos constantes do processo executivo. Nem se pode equiparar essa falta à “falta de informações oficiais” passível de nulidade insanável, nos termos da alínea b) do art. 98º do CPPT.
Desde logo, porque a maior parte desses elementos, senão todos, está junta à reclamação, pois os serviços de finanças, juntamente com a reclamação, remeteram uma certidão (doc. de fls. 53 a 66) que contém a certidão de dívida, o aviso de citação, o requerimento dos reclamantes, uma declaração de rendimentos, um recibo de vencimento, uma informação datada de 14 de Fevereiro de 2011, elaborada pelo serviço de finanças, o despacho ora impugnado e a notificação do mesmo.
Depois, porque incumbe ao reclamante fundamentar de facto e de direito o pedido de isenção da prestação de garantia «instruído com a prova documental necessária» (cfr. nº 3 do art. 170º da CPPT). É com base nessa prova que o tribunal vai fiscalizar se o órgão de execução fiscal avaliou e verificou correctamente os pressupostos da dispensa da prestação da garantia. O mérito da reclamação depende da prova que os reclamantes façam do “prejuízo irreparável” causado pela prestação da garantia ou da “manifesta falta de meios económicos” revelada pela inexistência ou insuficiência de bens penhoráveis para pagamento da dívida exequenda, desde que tal não resulte da sua responsabilidade (cfr. nº 4 do art. 52º da LGT). E se assim é, não se vê como é que a posição processual dos reclamantes ou o contraditório possam ficar afectados com a falta dos restantes elementos do processo executivo.
Finalmente, importa reconhecer que se o juiz a quo considerava existir deficit de instrução, e que tal se devia à falta da execução fiscal, não estava impedido de realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurassem úteis para a conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente podia conhecer (cfr. nº 1 do art. 99º do CPPT). Em concretização deste princípio inquisitório sempre se poderia solicitar os elementos em falta, caso fossem necessários à decisão da reclamação.
A sentença recorrida considerou que a falta de incorporação da reclamação no processo de execução fiscal constitui uma nulidade processual, mas não justifica em que medida essa irregularidade afecta a decisão de fundo a tomar sobre a reclamação. Diz que o conhecimento do processo de execução fiscal, através da certidão, «é muito limitado e fragmentado e, manifestamente, impede a apreciação conscienciosa das questões da legalidade dos actos praticados nesse processo pelo órgãos da execução fiscal». Mas apenas está em discussão o acto que indeferiu o pedido de dispensa da garantia, sendo certo que sobre esse acto consta dos autos todo o procedimento em que o mesmo foi praticado. Nada se tendo dito sobre quais as diligências probatórias necessárias, fica-se sem saber quais eram, na óptica do juiz a quo, as peças e actos processuais da execução fiscal que têm a ver com a apreciação da prova dos factos alegados na reclamação e cuja ausência constitui uma violação do contraditório.
A sentença não explica pois como é que aquele vício formal tem influência na apreciação do prejuízo irreparável ou na manifesta a falta de meios económicos dos oponentes. Para que a irregularidade pudesse ser qualificado como nulidade processual era necessário que a sentença especificasse quais os elementos do processos executivo cuja falta influi na decisão da reclamação. Como não o fez, nem se vislumbra quais sejam esses elementos, a nulidade reduz-se a mera irregularidade, sem quaisquer consequências.
A irregularidade não foi arguida pelos reclamantes, aqueles a quem mais podia interessar a incorporação da reclamação na execução fiscal. Não pode deixar de impressionar que, estando o processo na fase de decisão final, se venha a anular oficiosamente todo o processado, fazendo regressar a reclamação aos serviços de finanças para ser incorporada na execução fiscal, após o que se repetirão todos os actos anulados. Este caminho, que valoriza excessivamente os preceitos formais em detrimento da decisão de mérito, tem vindo a ser rejeitado, como comprova o artigo 7º do CPTA ou o artigo 288º nº 3 do CPC, que apontam para uma aplicação das normas processuais no sentido de promover a emissão de pronúncias de mérito e de evitar situações de denegação de justiça, designadamente por excessivo formalismo.
4. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, e ordenar a baixa do processo para prosseguir, se nada mais obstar.
Sem custas.
Lisboa, 30 de Novembro 2011. - Lino Ribeiro(relator) - Casimiro Gonçalves - Ascensão Lopes.