Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0601/18.0BELRA-S1
Data do Acordão:11/07/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:ACTO DE ADJUDICAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
EFEITO SUSPENSIVO
INCIDENTE
REQUISITOS
Sumário:I - O levantamento pelo tribunal, nos termos do artigo 103.º-A do CPTA, do efeito suspensivo automático só pode ser concedido se, no caso, o diferimento da execução do ato se mostre como «gravemente prejudicial para o interesse público» ou que seja «gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos», exigência que implica que não é suficiente a invocação abstrata pelos requerentes do incidente de prejuízos genéricos, ou que sejam os que decorrem em termos normais da suspensão do ato de adjudicação e do atraso na celebração do contrato ou na sua execução.
II - O deferimento pelo tribunal de tal pedido de levantamento só deve ocorrer quando, na comparação do peso relativo dos interesses em presença, conclua que os danos dele decorrentes para o interesse público ou para os interesses dos contrainteressados seriam consideravelmente superiores àqueles que podem advir para o impugnante da celebração e execução do contrato.
Nº Convencional:JSTA000P25132
Nº do Documento:SA1201911070601/18
Data de Entrada:10/18/2019
Recorrente:ÁGUAS DO CENTRO LITORAL,SA
Recorrido 1:A..........,SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO
1. «A…………….., SA» [doravante «A.»], devidamente identificada nos autos, instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria [doravante «TAF/L»] a presente ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual nos termos dos arts. 100.º e segs. do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [CPTA - na redação que lhe foi introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02.10 - cfr. seu art. 15.º - redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos deste Código sem expressa referência em contrário] contra «ÁGUAS DO CENTRO LITORAL, SA» [doravante «R.»] e a contrainteressada «B…………., LDA.» [doravante «Contrainteressada»], nos termos e com a motivação aduzida na petição inicial de fls. 01/1255 e requerimento de ampliação de fls. 1272/1288 dos autos [paginação «SITAF» - tal como as ulteriores referências à mesma sem expressa menção em contrário], impugnando o ato de adjudicação do lote n.º 01 «Gestão de Lamas Desidratadas do Centro Operacional da Ria Norte» respeitante ao concurso público para «aquisição de serviços de gestão de lamas desidratadas» publicitado pelo anúncio de procedimento n.º 7315/2017 publicado na parte «L - Contratos públicos» do DR II Série n.º 165, de 28.08.2017, peticionando a sua anulação.

2. O «TAF/L», por decisão de 26.02.2019 [cfr. fls. 1613/1628], julgou totalmente procedente o incidente deduzido pela R. de levantamento do efeito suspensivo automático previsto no art. 103.º-A, n.º 1, do CPTA.

3. A A., inconformada, interpôs então recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul [doravante «TCA/S»], o qual, por acórdão de 09.05.2019 [cfr. fls. 1802/1828], concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão recorrida, julgando «improcedente o pedido formulado … para que seja levantado o efeito suspensivo automático do ato de adjudicação».

4. Invocando o disposto no art. 150.º, n.º 1, do CPTA, a R., agora inconformada com o acórdão proferido pelo «TCA/S», interpôs o presente recurso de revista, produzindo alegações [cfr. fls. 1839 e segs.], com o seguinte quadro conclusivo que se reproduz:
«
X. O Acórdão recorrido revogou a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que ordenou o levantamento do efeito suspensivo automático, concluindo, por um lado, que não estavam verificados os pressupostos para aquele levantamento, e por outro, que a Recorrente não alegou que os danos que resultam da manutenção do efeito suspensivo são superiores aos que resultam do seu levantamento.
XI. E tais conclusões assentam no entendimento do Tribunal a quo de que, era possível à Recorrente lançar mão de uma solução temporária, que não passe pela gestão das lamas nos termos contratados, mas pela aplicação do previsto na alínea b) do artigo 3.º do Decreto-lei n.º 178/2006 de 5 de setembro, solução que a Recorrente, alegadamente, não demonstrou ser impossível.
XII. Tal fundamento é, no entanto, absolutamente contraditório com o disposto no próprio do Acórdão quanto à alteração da matéria de facto propugnada pela Recorrida, porquanto o TCAS decidiu improcedendo o pedido da aqui Recorrida no sentido de julgar provado que era possível proceder ao armazenamento temporário das lamas incluídas no Lote 1, até decisão final dos autos com recurso a um Operador de Resíduos.
XIII. Ou seja, por um lado, o TCAS decidiu que não pode resultar provado nos autos que os Operadores de Resíduos indicados pela Recorrida possam proceder ao armazenamento temporário das lamas até decisão final, e por outro, entende que não existe grave prejuízo para o interesse público na manutenção do efeito suspensivo automático, porque pode a Recorrente lançar mão desta armazenagem.
XIV. Note-se ainda que, o TCAS por diversas vezes refere - incluindo na decisão - que as ETAR’s de tratamento de águas residuais estão sob o controlo da aqui Recorrida A……., o que é falso, e só demonstra que, tecnicamente, não conseguiu aquele Tribunal alcançar qual o papel da Recorrente no tratamento das águas residuais, como se processa aquele tratamento, o que resulta do mesmo e o que implica não ter um contrato de gestão de lamas vigente, e a ausência de interesse particular a ponderar, da aqui Recorrida.
XV. Assim, é inegável que o tratamento de uma questão de tão vital importância como a dos autos não é compatível com o “juízo/ponderação” realizado pelo TCAS refletido num Acórdão generoso em falácias de raciocínio, confusão de conceitos técnicos, e desconhecimento de questões de extrema relevância, que o tornaram obscuro e contraditório, e por isso anulável nos termos legais.
XVI. Se é verdade que, no âmbito do pedido de levantamento do efeito suspensivo automático e nos termos daquele dispositivo legal, cabe à Recorrente provar o grave prejuízo para o interesse público que resulta do efeito suspensivo do ato de adjudicação, e ainda que, no juízo de ponderação de interesses em causa, resulta um dano superior na manutenção do efeito suspensivo do ato, do que o dano que resulta do seu levantamento, certo é que tais requisitos foram cumpridos pela Recorrente.
XVII. E nesse sentido, demonstrou a Recorrente que a inexistência de um contrato válido para a gestão das lamas, implica a interrupção do adequado tratamento das águas que é contínuo, o que provocaria a descarga dos efluentes no meio hídrico sem o devido tratamento e originaria graves problemas para o ambiente e para a saúde pública.
XVIII. E provou a Recorrente que os prejuízos que adviriam da manutenção da suspensão do ato são superiores aos interesses da manutenção do efeito suspensivo, porquanto, a manter-se a suspensão, a Recorrente teria de lançar mão da celebração de um contrato ad hoc para a gestão das lamas, classificadas como resíduos não perigosos nos termos da lei.
XIX. E tal contrato não afastaria ou sequer evitaria os presumíveis (e meramente hipotético) danos que da execução do contrato pudessem resultar - ou seja, os danos para o ambiente relativos ao tratamento de resíduos alegadamente perigosos, como sendo não perigosos -, e, pelo contrário, implicaria ainda um prejuízo económico-financeiro para o erário público de mais de € 42.673,50, resultante do aumento do preço em 41%, em face do valor do Concurso Público.
XX. Sucede ainda que, ao contrário do que resulta do Acórdão recorrido, não era exigível à Recorrente, nos termos do disposto no artigo 103.º-A número 2 e 4 do CPTA, demonstrar que os danos particulares que resultariam para a Recorrida do levantamento do efeito suspensivo tinham uma maior preponderância para o interesse público.
XXI. Porque nenhum dano existe ou poderá existir para a Recorrida pois esta não apresentou sequer proposta no Concurso Público Internacional.
XXII. E tão-pouco era exigível à Recorrente demonstrar a impossibilidade de lançar mão de uma qualquer alternativa contratual ao levantamento do efeito suspensivo do contrato.
XXIII. O TCAS revogou a decisão do Tribunal de 1.ª instância por considerar que aquele não poderia ter decidido pelo levantamento do efeito suspensivo, por a Recorrente não ter demonstrado a impossibilidade de lançar mão de outra alternativa, designadamente o armazenamento temporário e provisório, até decisão da ação, mas tal ónus não encontra qualquer respaldo legal.
XXIV. Porquanto, a avaliação que é feita quanto aos danos resultantes da manutenção ou do levantamento do efeito suspensivo, faz-se por referência ao contrato em apreço que fora celebrado, e não da contratação alternativa, porque a assim ser, teria a Recorrente de imaginar um sem número de alternativas e identificar a inviabilidade de todas elas, ainda que não tivessem qualquer correspondência com a sua iniciativa contratual e com as suas concretas necessidades.
XXV. E tal ónus não era exigível à Recorrente nos termos daquela disposição legal, sendo por isso necessária a intervenção deste Supremo Tribunal no sentido de corrigir a ilegalidade da exigência da demonstração de tal factualidade.
XXVI. É certo que o ónus da prova quanto aos pressupostos de que depende o levantamento do efeito suspensivo incumbe à Recorrente, mas tal facto não pode significar, sob pena de esvaziar de conteúdo este escopo normativo, a obrigação de alegar e demonstrar que todas as opções existentes no âmbito da contratação pública são impossíveis.
XXVII. O TCAS fundamentou também a sua decisão de revogar a decisão de levantamento do efeito suspensivo automático, na existência da possibilidade da Recorrente lançar mão do recurso à armazenagem prevista na alínea b) do artigo 3.º do Decreto-lei 178/2006, de 5 de setembro, que segundo o Tribunal, permitiria o “abrigo” das lamas de forma temporária, até decisão da causa.
XXVIII. No entanto, não poderia o Tribunal ter-se debruçado sobre tal tema, na medida em que tal matéria não foi discutida em primeira instância, tendo apenas se debatido a questão relativa ao recurso à armazenagem preliminar, prevista na alínea c) do mesmo artigo 3.º do Decreto-lei 178/2006, de 5 de setembro, que implica a deposição das lamas no próprio local de produção, que resultou provado não ser possível.
XXIX. E não é possível porque, como resulta dos factos provados n.ºs 4 e 5, a produção de lamas é contínua e as instalações da Recorrente só têm capacidade para 2/3 dias de produção.
XXX. O recurso à Armazenagem nos termos da alínea b) do artigo 3.º do Decreto-Lei 178/2006 só foi aventada em sede de recurso, e por isso não poderia ter sido apreciada no Acórdão recorrido que está assim ferido de nulidade por excesso de pronúncia.
XXXI. Além disso, nunca poderia haver aqui lugar ao armazenamento temporário com recurso há contratação de um operador de resíduos, como forma alternativa ao levantamento do efeito suspensivo, sem a produção de iguais danos, hipoteticamente resultantes do levantamento daquele efeito.
XXXII. A “armazenagem” definida na alínea b) do artigo 3.º do Decreto-Lei 178/2006 não é uma operação suscetível a “depositar” as Lamas, de forma provisória, até decisão desta ação e da definição sobre que destino ou que classificação lhes dar, ainda que fora das instalações do produtor, sendo já uma operação de valorização de resíduos, ou seja, uma etapa final de tratamento do resíduo.
XXXIII. E essa operação implica assim a transferência da responsabilidade sobre o resíduo para o Gestor, nos termos do disposto na alínea b) do número 5 e número 6 do artigo 5.º do mesmo diploma, que o produtor nunca mais consegue recuperar ou controlar.
XXXIV. Pelo que não assume o carácter provisório e de afastamento dos danos resultantes da manutenção do efeito suspensivo automático, que lhe é atribuído erroneamente no acórdão, que apenas seria possível com base na armazenagem preliminar - ou seja, na deposição dos resíduos nas instalações da Recorrente pelo período máximo de um ano - o que resultou provado nos pontos 4 e 5 da matéria assente, ser impossível, na medida em que a capacidade da Recorrente é deveras limitada.
XXXV. Ao entender aplicável a solução prevista na alínea b) do artigo 3.º do Decreto-lei 178/2006, de 5 de setembro, como forma de, provisoriamente controlar a deposição de resíduos e evitar o levantamento do efeito suspensivo do ato de adjudicação deste contrato até decisão final, o TCAS cometeu um grave erro de julgamento.
XXXVI. Ou seja, a ponderação realizada pelo TCAS entre os possíveis danos resultantes do levantamento do efeito suspensivo e os danos resultantes da manutenção desse efeito, foi efetuada com base em pressupostos errados.
XXXVII. E o erro de aplicação das normas de direito no caso em apreço, ficou a dever-se fundamentalmente, ao facto daquele Tribunal não ter alcançado o papel da Recorrente (nem da Recorrida), nem na ação, nem no prosseguimento do interesse público de que está incumbida.
XXXVIII. Note-se que a Recorrente é uma empresa pública a quem foi concedida a exploração e a gestão do Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Centro Litoral de Portugal, por um período de 30 anos e no âmbito das suas atribuições está licenciada especificamente para o tratamento de águas residuais urbanas.
XXXIX. E as lamas resultantes do tratamento dado às Águas Residuais Urbanas, são classificadas pelo Código LER 19 08 05 - que é uma Classificação Europeia, aplicável e alterável apenas em consequência da aplicação de Diretivas emanadas pelo Parlamento Europeu e Decisões da Comissão Europeia - código este que respeita a resíduos não perigosos.
XL. Nesse sentido, no Concurso Público lançado pela Recorrente, foi exigido aos operados/concorrentes que estivessem devidamente licenciados para a gestão de resíduos não perigosos, uma vez que é essa classificação legal das lamas a tratar, sendo igualmente essa a classificação atribuída pela Recorrente no âmbito de um contrato ad hoc, ou mesmo nos termos de um armazenamento temporário, eventualmente a celebrar.
XLI. Logo, inexiste aqui qualquer dano hipoteticamente a produzir pelo levantamento do efeito suspensivo automático e a execução do contrato nos termos do Concurso Público Internacional, que pudesse ser evitado com recurso a qualquer uma destas formas de contratar a gestão das lamas.
XLII. Sendo certo que, ao contrário do espelhado no Acórdão recorrido, resulta provado dos autos todos os pressupostos para o levantamento do efeito suspensivo automático, e o Acórdão sendo em si mesmo contraditório, tornou a decisão ininteligível, e por isso é nulo nos termos do disposto na alínea c) do número 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
XLIII. Além disso, nunca poderia o recurso da aqui Recorrida ser procedente (e menos ainda totalmente procedente como se decidiu), considerando os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da manutenção do efeito suspensivo automático que se provou.
XLIV. Face ao exposto, a decisão recorrida não pode manter-se pois estão preenchidos os pressupostos para a aplicação daquele normativo, pelo que consequentemente deve ser determinado o levantamento do efeito suspensivo automático do ato de adjudicação relativo ao lote 1 do concurso público.
NORMAS VIOLADAS: artigo 103.º-A número 2 e 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, artigo 3.º alíneas b) e c), artigo 5.º número 5 alínea b) e número 6 do Decreto-lei 178/2006, de 5 de setembro, e artigo 615.º número 1 alínea c) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos …».

5. Devidamente notificada a A. veio produzir contra-alegações [cfr. fls. 1898 e segs.] que termina concluindo nos termos seguintes:
«
4.2. Da correção do Acórdão recorrido
K. Considerando a autorizada doutrina e a abundante jurisprudência citada supra em 3.2., deve concluir-se, quanto ao regime previsto no artigo 103.º-A do CPTA, que:
i. É sobre o requerente que impende o ónus de demonstrar que se encontram preenchidos os requisitos previstos nos n.ºs 2 e 4 do artigo 103.º-A do CPTA;
ii. De acordo com aquelas disposições os requisitos de que depende o levantamento do efeito suspensivo são dois e são cumulativos:
a. Primeiro, o requerente tem de demonstrar que o diferimento da execução do ato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou que geraria consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos; e
b. Segundo, o requerente tem de demonstrar que, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostram superiores aos que podem resultar do seu levantamento.
iii. Para determinar se os requisitos supra mencionados se encontram preenchidos não se deve atender a todos e quaisquer prejuízos que possam resultar para a entidade demandada e para os contrainteressados pela manutenção do efeito suspensivo, mas apenas e tão-só aos prejuízos excecionais e especialmente qualificados que poderão resultar daquela.
L. Como se referiu supra em 2.2. a RECORRENTE apenas invocou no seu Requerimento de Levantamento um prejuízo pecuniário (o de que a manutenção do efeito suspensivo implicaria a celebração de um contrato provisório com um custo acrescido de 41% em relação ao contrato a executar no âmbito do Concurso Público).
M. Ora, perante a excecionalidade dos prejuízos que a RECORRENTE tinha que demonstrar (“razões imperiosas de interesse geral”, nas palavras da Diretiva Recursos), facilmente se compreende que a RECORRENTE não cumpriu o ónus estabelecido na 1.ª parte do n.º 2 do artigo 103.º-A do CPTA.
N. Como se observou, nos termos da Diretiva Recursos “não deverá constituir razão imperiosa o interesse económico diretamente relacionado com o contrato em causa”.
O. Ora, é exatamente e exclusivamente esse interesse económico na execução do contrato resultante do Concurso Público que a RECORRENTE alega para levantar o efeito suspensivo, pelo que é evidente que não foi alegado, e muito menos demonstrado, que por decorrência da manutenção do efeito suspensivo seriam provocados graves prejuízos ao interesse público.
P. Apesar de o Tribunal a quo ter apresentado vários fundamentos para declarar improcedente o pedido de levantamento do efeito suspensivo, a verdade é que, para o efeito, bastava que o Tribunal tivesse concluído que os prejuízos invocados pela RECORRENTE no seu requerimento de levantamento não preenchiam o grau exigido pela 1.ª parte do n.º 2 do artigo 103.º-A do CPTA.
Q. Como se demonstrou supra, foi exatamente esse entendimento que o Tribunal a quo sufragou, pelo que, não merecendo este qualquer censura, sempre deverá o presente recurso improceder.
R. Em qualquer caso, era sobre a RECORRENTE que impendia o ónus de demonstrar que o entendimento do Tribunal a quo padecia de um qualquer erro e que, consequentemente, o prejuízo por si invocado deveria ser considerado como um “grave prejuízo para o interesse público”.
S. Sem prejuízo, a verdade é que a RECORRENTE não dedica, nas suas longas e prolixas alegações de recurso de revista, uma linha que seja a contrariar o entendimento subscrito pelo Tribunal recorrido, pelo que o presente recurso está também, por este motivo, votado necessariamente ao insucesso.
T. Tendo o Tribunal a quo entendido que o único prejuízo invocado pela RECORRENTE não poderia qualificar-se como um “grave prejuízo para o interesse público”, torna-se evidente que o segundo requisito de que depende o levamento do efeito suspensivo também não se encontra demonstrado.
U. É que, como se observou supra, na ponderação de danos exigida pela 2.ª parte do n.º 2 e pelo n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA deve pesar-se:
i. De um lado da balança, os tais “prejuízos qualificados”, apurados nos termos da 1.ª parte do n.º 2 do artigo 103.º-A do CPTA, sofridos pela entidade demandada e pelos contrainteressados por força da manutenção da suspensão; e
ii. Do outro, todos os prejuízos que seriam provocados ao demandante pelo levantamento do efeito suspensivo.
V. Se a RECORRENTE - como decidiu e bem o Tribunal a quo - não demonstrou que a manutenção do efeito suspensivo iria provocar um grave prejuízo para o interesse público, ter-se-á forçosamente que concluir que inexistem, nos termos da 2.ª parte do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA, quaisquer danos a pesar do lado da entidade demandada ou do contrainteressado, pelo que, nunca poderiam aqueles ser superiores aos danos sofridos pela RECORRIDA.
W. Pelo que bem andou o Tribunal a quo ao entender que “[d]a mesma forma, nestes autos não está provado que os danos que resultam da manutenção do efeito suspensivo são superiores aos que venham a resultar do seu levantamento” (cfr. p. 24 do Acórdão recorrido).
4.3. Da deturpação dos fundamentos do Acórdão recorrido
X. Ao contrário do alegado pela RECORRENTE, duma leitura atenta do Acórdão recorrido não se extrai que o Tribunal a quo:
i. Tenha alicerçado a sua decisão “apenas” no facto de a RECORRENTE ter a possibilidade de contratar o armazenamento temporário até que seja decidido o presente processo pré-contratual urgente;
ii. Tenha feito depender o levantamento do efeito suspensivo da demonstração, por parte da RECORRENTE, de que os resíduos objeto do Concurso Público não são perigosos; ou que
iii. Tenha feito depender o levantamento do efeito suspensivo da demonstração, por parte da RECORRENTE, de que não existiam alternativas ao mesmo.
Y. Apesar de a RECORRENTE apenas ter invocado o tal prejuízo pecuniário (acréscimo de custos de 41%) - já que nem equaciona a hipótese de as ETAR’s interromperem a sua atividade -, o Tribunal a quo demonstra no seu Acórdão que a RECORRENTE não fez devida prova de que a manutenção do efeito suspensivo teria como consequência a interrupção das ETAR’s.
É, pois, nesse contexto - absolutamente lateral para o sentido da decisão, como se observou - que o Tribunal afirma que:
iv. “Nos presentes autos não ficou provado nenhum facto que ateste que as indicadas lamas não possam ser transitoriamente armazenadas, designadamente, que não seja legal e factualmente possível à ACL, enquanto produtor de resíduos, contratar um operador para proceder à deposição controlada de resíduos nas suas instalações” (cfr. pp. 19 e 20 do Acórdão recorrido); e
v. “Era a esta Entidade que incumbia alegar e fazer prova que não lhe era possível, de forma alguma, ou que lhe era muito oneroso não prosseguir de imediato com a execução do ato de adjudicação e com a consequente celebração do contrato de gestão de resíduos” (cfr. p. 21 do Acórdão recorrido).
Z. E nem se diga, como afirma agora a RECORRENTE nas suas alegações de recurso de revista, que “a avaliação que é feita quanto aos interesses em jogo e aos danos resultantes da manutenção ou do levantamento do efeito suspensivo, faz-se por referência ao contrato em apreço que fora celebrado, e não da contratação alternativa”.
AA. É que, a um tempo, foi a própria RECORRENTE que afastou em absoluto a hipótese de a atividade das ETAR’s poder ser interrompida por efeito da suspensão do ato de adjudicação, referindo, pois, que caso não fosse levantado o efeito suspensivo teria que contratar um operador para provisoriamente (i.e. até decisão do presente processo) proceder à recolha e transporte para destino final das lamas produzidas nas suas ETAR’s.
BB. A outro tempo, a verdade é que a mencionada doutrina, na qual se baseia agora a RECORRENTE, viola flagrantemente o n.º 2 do artigo 103.º-A do CPTA.
CC. Por um lado, porque se apenas se atender às consequências diretas da suspensão (i.e. sem atender aos mecanismos alternativos na disponibilidade da entidade demandada para procurar contornar ou atenuar os prejuízos provocados pela manutenção do efeito suspensivo do ato de adjudicação), os danos a invocar pela entidade demandada não terão qualquer correspondência com a realidade, i.e. com os danos que se verificarão com base num juízo de prognose que tenha em conta os resultados prováveis e plausíveis dessa suspensão.
DD. Por outro lado, note-se que, se a contabilização dos danos sofridos pela entidade demandada apenas tiver em linha de conta as consequências diretas da suspensão, raros serão os casos em que o levantamento do efeito suspensivo não será decretado.
EE. Com efeito, se se considerar, sem mais, as consequências de adiar a realização do interesse público durante um período de 1 a 3 anos (tempo médio de decisão nos processos de contencioso pré-contratual urgente), dificilmente não se chegará à conclusão de que a suspensão provoca um grave prejuízo para o interesse público (que necessidade da Administração é que pode ser adiada durante 3 anos sem causar um grave prejuízo para o interesse público?).
FF. O que significa que, a proceder a interpretação pugnada pela RECORRENTE, ao arrepio das Diretivas Recursos, o levantamento do efeito suspensivo deixaria de ser uma exceção, para passar a ser a regra.
GG. Assim e pelo exposto, torna-se muito evidente que a interpretação realizada pela RECORRENTE, baseada na doutrina do Tribunal Central Administrativo Norte, não pode proceder e que o Acórdão a quo não padece de qualquer vício, antes realizando uma interpretação correta do n.º 2 do artigo 103.º-A do CPTA.
HH. Por fim, note-se que o Tribunal a quo, ao contrário do alegado pela RECORRENTE, não faz depender o levantamento do efeito suspensivo da demonstração de que os resíduos objeto do Concurso Público não são perigosos.
4.4. Das demais invalidades apontadas ao Acórdão a quo
... Nas suas alegações de recurso de revista, a RECORRENTE invoca ainda - sem sucesso como se observará - que o Acórdão a quo:
i. Padece de nulidade:
a. Uma vez que a decisão se mostra obscura e contraditória em face dos fundamentos nele vertidos;
b. Por excesso de pronúncia; e
ii. Cometeu um grave erro de julgamento ao entender aplicável a este caso a solução prevista na alínea b) do artigo 3.º do DL 178/2006.
… Sucede que, como se demonstrou em 3.5. supra, nenhum desses vícios se verifica, pelo que deve o presente recurso improceder …».

6. Pelo acórdão da formação de apreciação preliminar deste Supremo Tribunal, prevista no n.º 6 do art. 150.º do CPTA, datado de 27.09.2019, o presente recurso de revista foi admitido [cfr. fls. 2110/2112].

7. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 146.º, n.º 1, e 147.º ambos do CPTA [cfr. fls. 2118], o Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal não emitiu qualquer pronúncia [cfr. fls. 2119 e segs.].

8. Sem vistos, atento o disposto nos arts. 36.º, n.ºs 1, al. c), e 2, e 147.º, do mesmo Código, o processo foi submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.


DAS QUESTÕES A DECIDIR
9. Constitui objeto de apreciação nesta sede o aferir se o acórdão do «TCA/S», ao haver concedido provimento ao recurso de apelação deduzido pela A., ora recorrida, incorreu, conforme alegado, por um lado, em nulidade da decisão por contradição/ininteligibilidade [cfr. art. 615.º, n.º 1, al. c) do Código Processo Civil (CPC) - na redação que lhe foi introduzida pela Lei n.º 41/2013 - redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos daquele Código sem expressa referência em contrário] e, por outro lado, em erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação do disposto, mormente, nos arts. 103.º-A, n.ºs 2 e 4, do CPTA, 03.º, als. b) e c), e 05.º, n.º 5, al. b), e n.º 6, ambos do DL n.º 178/2006, de 05.09 [diploma que aprovou o regime geral da gestão de resíduos - na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 152-D/2017, de 11.12] [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].




FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO
10. Resulta apurado nas instâncias o seguinte quadro factual:
10.1) Em 28.08.2017 foi publicado na Parte L - Contratos Públicos da II Série do Diário da República n.º 165 o anúncio de procedimento n.º 7315/2017, com o seguinte teor:
«1 - IDENTIFICAÇÃO E CONTACTOS DA ENTIDADE ADJUDICANTE
NIF e designação da entidade adjudicante:
513606181 - Águas do Centro Litoral, S.A.
(…)
2 - OBJETO DO CONTRATO
Designação do contrato: Gestão de Lamas Desidratadas
Tipo de Contrato: Aquisição de Serviços
Valor do preço base do procedimento 2003068.98EUR
(…)
5 - DIVISÃO EM LOTES, SE FOR O CASO
Lote n.º 1
Designação do lote: Gestão de Lamas Desidratadas do Centro Operacional da Ria Norte
Preço base do lote: 544569,30 EUR
(...)
Lote n.º 2
Designação do lote: Gestão de Lamas Desidratadas do Centro Operacional da Ria Sul
Preço base do lote: 234135,00 EUR
(...)
Lote n.º 3
Designação do lote: Gestão de Lamas Desidratadas do Polo Mondego
Preço base do lote: 767149,68 EUR
(...)
Lote n.º 4
Designação do lote: Gestão de Lamas Desidratadas do Centro Operacional de Olhavas
Preço base do lote: 457215,00 EUR» - cfr. doc. n.º 01 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
10.2) Em 05.07.2018, foi deliberado pela Comissão Executiva da R. «por unanimidade, aprovar o Relatório Final de Análise de Propostas elaborado e subscrito pelo Júri do Procedimento (...) e, consequentemente a adjudicação à Concorrente B…….., Lda., dos lotes n.ºs 1 e 2 (...)» - cfr. fls. 420 do processo administrativo [«PA»] junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
10.3) Em 19.07.2018, foi deliberado pelo Conselho de Administração da R. «ratificar a deliberação da comissão executiva de 05/07/2018 que decidiu a aprovação do Relatório Final de Análise de Propostas elaborado e subscrito pelo Júri do Procedimento (...) e, consequentemente a adjudicação à Concorrente B…………, Lda., dos lotes n.ºs 1 e 2 (...)» - cfr. fls. 490 do processo administrativo [«PA»] junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
10.4) A produção de lamas em resultado do tratamento de águas residuais é contínua - cfr. acordo.
10.5) As ETAR’s de Cacia e Espinho não têm capacidade para armazenamento de lamas em quantidade superior às resultantes de 02 ou 03 dias de operação - cfr. acordo.
10.6) Em 09.07.2018 a R. celebrou contrato com a empresa «B………., Lda.» para a gestão de lamas desidratadas produzidas no Centro Operacional da Ria Norte [que inclui as ETAR’s de Cacia, Espinho e Remolha], pelo preço unitário de 25,00 € por tonelada - cfr. doc. n.º 01 junto com o requerimento de 14.01.2018, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
10.7) Na cláusula quarta do contrato identificado no número anterior estabelece-se que o respetivo prazo de execução é de 10 [dez] meses, mais se estabelecendo no n.º 2 da mesma cláusula o seguinte:
«O contrato cessará antes do decurso do prazo previsto no n.º 1, quando os pagamentos realizados ao adjudicatário perfaçam o montante correspondente ao preço contratual total 87.330,00 € (oitenta e sete mil, trezentos e trinta euros)» - cfr. doc. n.º 01 junto com o requerimento de 14.01.2018, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
10.8) A proposta adjudicada quanto ao lote n.º 01, no âmbito do concurso público identificado em 10.1) apresenta um preço unitário de 17,75 € por tonelada - cfr. relatório final constante de fls. 412 e ss. do «PA» cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

«*»

DE DIREITO
11. Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação do mérito do recurso considerando os fundamentos/motivação que se mostra aduzida pela recorrente nesta sede.

12. O «TAF/L» julgou procedente o pedido de levantamento do efeito suspensivo que havia sido deduzido ao abrigo do regime previsto no art. 103.º-A do CPTA pela R., aqui recorrente, para o efeito tendo entendido que estava em causa a execução de um serviço público essencial, que se exigia prestado de forma permanente e contínua, e cuja interrupção seria causadora de prejuízos em termos de salubridade, ambiente e saúde pública, lesando o interesse público, tanto mais que a eventual armazenagem preliminar dos resíduos, em cumprimento do disposto no art. 03.º, al. c), do DL n.º 178/2006, era uma solução inviável, por se verificar uma incapacidade de armazenamento nas instalações da R., e que a celebração de um contrato com uma terceira empresa para esse serviço também se mostrava uma solução imprestável, quer atendendo aos tempos que se exigem para a abertura do correspondente procedimento de formação contratual, quer ao facto de a celebração de novo contrato ad hoc com a «Contrainteressada» para a prestação do serviço de gestão de lamas desidratadas envolver um preço 41% superior ao concursado, envolvendo lesão gravosa em termos monetários do interesse público.

13. O «TCA/S» revogou a decisão que havia sido proferida e julgou improcedente o incidente de levantamento do efeito suspensivo para o efeito considerando não ter ficado provada a existência de uma situação de grave prejuízo para o interesse público ou a existência de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, por forma a se poderem julgar preenchidos os critérios definidos no referido preceito legal.

14. Contra este juízo se insurge a R. acometendo-lhe, desde logo, nulidade de decisão por contrariedade/obscuridade entre fundamentos e decisão e que a tornam ininteligível, já que segundo alega, por um lado, se entendeu não resultar provado que seria possível recorrer ao armazenamento temporário com recurso a operadores de resíduos especializados e, por outro lado, que inexistia grave prejuízo para o interesse público na manutenção do efeito suspensivo em virtude da a R. poder recorrer ao armazenamento temporário das lamas até à decisão final da ação [cfr. conclusões XLII) e XLIV) das alegações].
Analisemos.

15. Por força do disposto nos arts. 613.º, n.º 2, 615.º, 616.º, n.º 2, 617.º e 666.º do CPC ex vi dos arts. 01.º e 140.º do CPTA, os acórdãos são suscetíveis da imputação não apenas de erros materiais, mas, também, de nulidades.

16. Estipula-se no art. 615.º do CPC, sob a epígrafe de «causas de nulidade» e no segmento do mesmo poderia eventualmente relevar, que as decisões judiciais são nulas «quando: … c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível …» [n.º 1], derivando ainda do mesmo preceito que as «… nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença/«acórdão» - [cfr. n.º 1 do art. 666.º CPC] - se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades ...» [n.º 4].

17. As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da função jurisdicional podem estar viciadas de duas causas que poderão obstar à eficácia ou validade da dicção do direito: - por um lado, podem ter errado no julgamento dos factos e do direito e, então, a consequência é a sua revogação; - ou por outro, como atos jurisdicionais, podem ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, e, então, tornam-se passíveis de nulidade nos termos do art. 615.º do CPC.

18. Presente a alegação da R., ora recorrente, temos que a mesma não integra a causa de nulidade de decisão tipificada na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

19. Com efeito, tal nulidade, na sua primeira parte, assenta na contradição localizada no plano da expressão formal da decisão, redundando num vício insanável do chamado «silogismo judiciário», ou seja, traduz-se numa contradição de ordem formal quanto aos fundamentos estabelecidos e utilizados na mesma e não aos que resultam do processo.

20. A mesma está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos arts. 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC de o juiz fundamentar as suas decisões e, por outro lado, com o facto de se exigir que a decisão judicial constitua um silogismo lógico-jurídico, em que o seu inciso decisório deverá ser a consequência ou conclusão lógica da conjugação da norma legal [premissa maior] com os factos [premissa menor], ou seja, os fundamentos de facto e de direito insertos no acórdão devem ser logicamente harmónicos com a conclusão decisória, na certeza de que uma coisa é a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão do acórdão, e outra, radicalmente diversa, é o erro de interpretação dos factos ou do direito ou a aplicação deste.

21. Na situação vertente temos que, analisada a estrutura global da decisão judicial impugnada, a respetiva conclusão decisória mostra-se encadeada com a motivação fáctico-jurídica nela desenvolvida, inexistindo a apontada nulidade de decisão.

22. Com efeito, ao invés do sustentado, o primeiro segmento apontado à decisão [página 16 do acórdão] respeita ao juízo de improcedência que veio a recair sobre o erro no julgamento de facto que havia sido acometido à decisão ali recorrida e no qual se pretendia que fosse aditado à matéria de facto provada que as «empresas ………….., ………….., ………….. e ……………, dispõem de licença para proceder ao armazenamento temporário de resíduos perigosos» e que as mesmas empresas «podiam armazenar temporariamente as lamas incluídas no Lote 1 até final do presente processo».

23. Nessa medida, o juízo ali firmado centrou-se ou mostra-se reconduzido ao concreto erro no julgamento de facto que havia sido feito, juízo esse que não se situa, nem tem como lugar paralelo, o juízo que na mesma decisão recaiu sobre o preenchimento ou não no caso dos requisitos/pressupostos enunciados no art. 103.º-A do CPTA.

24. A discordância da recorrente acaba, depois, por se estribar ou radicar numa diversa e discordante subsunção dos factos e na interpretação do direito ou da sua aplicação, sendo que uma tal alegação não integra a nulidade em questão que nada tem que ver com o erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito aplicável.

25. De igual modo, a situação vertente não se mostra abrangida na 2.ª parte da previsão em referência e que diz respeito à existência de ambiguidade ou de obscuridade da decisão que a tornem ininteligível.

26. É que uma decisão só é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e ambíguo, quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes e/ou sentidos porventura opostos.

27. Ora analisado o acórdão objeto de impugnação não se vislumbra que os fundamentos/motivação e o juízo decisório nele emitido, quer em sede de apreciação do erro no julgamento de facto, quer em sede de julgamento do erro de direito, contenham algum aspeto ou passagem que se revele ininteligível ou ambíguo, ou que se preste a interpretações diferentes e/ou sentidos porventura opostos, porquanto o seu sentido é claro e perfeitamente inteligível, não se vislumbrando no mesmo algo que possa por em causa a sua cabal e total compreensão.

28. Poder-se-á discordar da sua motivação e decisão, mas tal alegação e conclusão não conduzem à nulidade de decisão arguida que, por conseguinte, terá de improceder in totum.

29. Insurge-se, ainda, a R. quanto ao juízo de provimento do recurso firmado no acórdão recorrido e consequente revogação da decisão do «TAF/L» que havia julgado procedente o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático pela mesma deduzido, porquanto, segundo alega, tal juízo enferma de erro de julgamento, por incorreta interpretação e aplicação do disposto, mormente, nos arts. 103.º-A, n.ºs 2 e 4, do CPTA, 03.º, als. b) e c), e 05.º, n.º 5, al. b) e n.º 6, ambos do DL n.º 178/2006.
Analisemos.

30. Resulta do disposto no art. 103.º-A do CPTA [preceito com e através do qual se procurou dar cumprimento ao determinado no art. 02.º, n.º 3, da Diretiva 2007/66/CE], sob a epígrafe de «efeito suspensivo automático», que «[a] impugnação de atos de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual urgente faz suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado» [n.º 1], conferindo-se a possibilidade à entidade demandada e aos contrainteressados de poderem «requerer ao juiz o levantamento do efeito suspensivo, alegando que o diferimento da execução do ato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, havendo lugar, na decisão, à aplicação do critério previsto no n.º 2 do artigo 120.º» [n.º 2], sendo que nesse caso e após contraditório caberá ao tribunal decidir [cfr. n.º 3 do preceito], presente que tal efeito suspensivo automático decorrente da impugnação contenciosa do ato de adjudicação [, que, operando ope legis, constitui um prolongamento da obrigação de «standstill» [cfr. arts. 02.º-A, n.º 2, da referida Diretiva, e 104.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) - na redação anterior à que lhe foi introduzida pelo DL n.º 111-B/2017, de 31.08 - cfr. seus arts. 12.º e 13.º - tal como as referências posteriores ao CCP salvo expressa indicação em contrário], será «levantado quando, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento» [n.º 4].

31. Deriva dos termos do preceito acabado de parcialmente reproduzir a consagração de exigentes pressupostos que terão de estar verificados em cada caso para a permissão de levantamento do efeito suspensivo automático que se apresenta com efeito regra.

32. É que o levantamento pelo tribunal de tal efeito suspensivo só pode ser concedido se, no caso, o diferimento da execução do ato se mostre como «gravemente prejudicial para o interesse público» ou que seja «gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos», sendo que o julgador só pode deferir tal pedido de levantamento quando, na comparação do peso relativo dos interesses em presença, conclua que os danos dele decorrentes para o interesse público ou para os interesses dos contrainteressados seriam consideravelmente superiores àqueles que podem advir para o impugnante da celebração e execução do contrato.

33. De notar que a referência para a obtenção do levantamento do efeito suspensivo ao «grave prejuízo para o interesse público» e à lesão «claramente desproporcionada dos outros interesses envolvidos» implica apenas que não é suficiente a invocação abstrata pelos requerentes do incidente de prejuízos genéricos, ou que sejam os que decorrem em termos normais da suspensão do ato de adjudicação e do atraso na celebração do contrato ou na sua execução, mostrando-se ser exigível a demonstração, em concreto, dos danos que a manutenção do efeito suspensivo acarreta para o interesse público ou os interesses privados relacionados com a adjudicação, para o que haverá que atender, nomeadamente, à natureza do contrato que é objeto do procedimento pré-contratual, à sua efetiva importância para a satisfação de necessidades coletivas, ao período de tempo previsível de duração e obtenção de uma decisão na ação, ou à situação em que se encontra a execução do contrato, ou das prestações e investimentos já realizados.

34. Atente-se, ainda, que se extrai dos considerandos 22 e 24 da Diretiva 2007/66/CE que a «instância de recurso independente da entidade adjudicante deverá analisar todos os aspetos relevantes a fim de estabelecer se existem razões imperiosas de interesse geral que exijam a manutenção dos efeitos do contrato», e de que o «interesse económico na manutenção dos efeitos do contrato só pode ser considerado razão imperiosa se, em circunstâncias excecionais, a privação de efeitos acarretar consequências desproporcionadas», sendo que «não deverá constituir razão imperiosa o interesse económico diretamente relacionado com o contrato em causa».

35. E como este Supremo Tribunal já afirmou [cfr. entre outros, os Acs. de 05.04.2017 - Proc. n.º 031/17, de 26.04.2018 Proc. n.º 062/18, e de 04.04.2019 - Proc. n.º 0198/19.4BELSB, todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jsta» - sítio a que se reportarão também todas as demais citações de acórdãos deste Supremo Tribunal sem expressa referência em contrário], constituindo objetivo do efeito suspensivo automático constante do n.º 1 do art. 103.º-A do CPTA «a tutela jurisdicional efetiva da posição jurídica do autor, evitando o facto consumado», então a decisão do incidente passa «sempre por uma ponderação racional e expressa, num juízo de prognose, de proporcionalidade entre todos os interesses em causa e os respetivos danos com base nos factos», e que «será de levantar o efeito suspensivo da interposição da ação se se concluir que os prejuízos que resultarão da manutenção do efeito suspensivo se mostram superiores aos prejuízos que possam resultar da retoma do prosseguimento do procedimento pré-contratual na fase pós-adjudicatória», sendo que impende sobre a entidade demandada e os contrainteressados «o ónus de alegar e provar que o diferimento da execução do contrato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos».

36. Revertendo à situação sub specie temos que, presente o quadro alegado e provado e os considerandos de enquadramento desenvolvidos, não poderemos acompanhar o juízo de ponderação feito à luz do art. 103.º-A do CPTA no acórdão recorrido.

37. Com efeito, ao invés do que ali se concluiu mostra-se no caso como satisfeito por parte da requerente do incidente, aqui ora recorrente, o ónus alegatório e de prova quanto à existência in casu de uma situação de ocorrência de «prejuízo qualificado» adveniente de a impossibilidade de celebração do contrato de aquisição de serviços de recolha, transporte e deposição das lamas desidratadas produzidas pelas ETAR’s de Cacia e de Espinho conduzir a grave lesão ou perigo para o interesse público [cfr., nomeadamente, os n.ºs 10.2) a 10.5) da factualidade apurada].

38. Está em causa funcionamento de atividade de recolha, tratamento e rejeição de efluentes domésticos e urbanos desenvolvida pela R., enquanto empresa que detém a exploração e gestão do «Sistema multimunicipal de abastecimento de água e saneamento do Centro Litoral de Portugal», atividade essa que exige e impõe uma laboração e um funcionamento permanente e regular, de modo pleno, contínuo e eficiente, de todo o sistema nas suas várias componentes e estruturas.

39. Ora presente tal natureza e as exigências de realização deste serviço público essencial de recolha, tratamento e rejeição de efluentes [domésticos e urbanos] temos que, nas circunstâncias apuradas, a R. logrou provar que a paralisação dos efeitos do ato de adjudicação afeta, de forma irremediável ou particularmente grave, a prossecução das necessidades coletivas em causa.

40. É que a omissão, pura e simples, da prestação do serviço de recolha e de tratamento das lamas, em resultado da suspensão dos efeitos do ato de adjudicação e da execução do contrato, mostra-se como geradora de grave lesão do interesse público em termos ambientais e de salubridade e saúde pública, já que um adequado funcionamento daquele sistema não é minimamente compatível, mormente, com a falta de recolha e de tratamento das lamas das referidas ETAR’s a qual acabaria por inviabilizar o seu normal funcionamento, interrompendo o contínuo e adequado tratamento dos efluentes e conduzindo a possíveis descargas dos mesmos sem o devido tratamento, com todas as consequências nefastas e lesivas daí decorrentes para o ambiente e saúde pública, tanto mais que aquelas ETAR’s não possuem capacidade para armazenamento de lamas em quantidade superior às resultantes de dois ou três dias de operação [cfr. n.º 10.5) da factualidade apurada].

41. Como este Supremo Tribunal já afirmou em situação em que também estava em causa incidente de levantamento do efeito suspensivo relativo a procedimento respeitante a atividade de recolha, transporte, armazenagem, triagem, tratamento, valorização e eliminação de resíduos [cfr. o citado Ac. de 05.04.2017 - Proc. n.º 031/17] «[a] função de gestão de resíduos urbanos inclui as atividades de recolha, transporte, armazenagem, triagem, tratamento, valorização e eliminação dos mesmos e está condicionada por múltiplos aspetos de ordem técnica, económica e social. (…) O interesse público específico, qualificado e concreto que aqui importa salvaguardar está, assim, consubstanciado na necessidade de assegurar, de imediato, a execução do serviço de recolha de resíduos. (…) Ou seja, na base da adjudicação impugnada está em causa um serviço a prestar … de gestão de resíduos urbanos, que impõe imediata continuidade e não se compadece com qualquer espera pelo trânsito da decisão a proferir na ação de contencioso pré-contratual. (…) A paralisação de um contrato (ou da respetiva adjudicação), relativo ao fornecimento de determinado combustível destinado a veículos … afetos ao serviço de recolha de resíduos urbanos e de limpeza da via pública e dos equipamentos de recolha de lixos, implicará por si só riscos de saúde pública e um clima de insegurança relativo às incertezas temporais relativas ao próprio decurso do processo de contencioso pré-contratual», sendo que o requerente do incidente não tem «o ónus de alegar o facto negativo de que não podia superar a suspensão automática da execução do contrato através de uma contratação alternativa», «[b]astando a alegação da premência de assegurar a continuidade do fornecimento de combustível destinado aos veículos utilizados no serviço de recolha de resíduos e de limpeza e as muito possíveis implicações que uma rutura do regular fornecimento ou do abastecimento de energia/combustível poderia aportar para a operacionalidade da frota automóvel que, movida àquele tipo de combustível, está afeta àqueles serviços e que seria forçada a imobilizar-se deixando de poder cumprir as tarefas de recolha de resíduos e de limpeza de vias e de contentores com as consequências e os potenciais perigos para a saúde e salubridade públicas».

42. De notar que atenta a natureza e o modo de funcionamento do serviço em questão não se mostra como aceitável ou admissível a possibilidade de interrupção ou de encerramento da laboração das referidas ETAR’s por período de tempo não determinado e que se venha a revelar necessário à obtenção de uma decisão judicial nos autos definidora da situação jurídica.

43. Inquestionavelmente a continuidade do funcionamento eficaz do serviço público apresenta-se como uma necessidade geral imperiosa, por irreparáveis os efeitos nocivos para o ambiente, para a salubridade e a saúde pública previsivelmente advenientes daquilo que seja a sua perturbação e descontinuidade naquilo que é o padrão normal de operação e funcionamento, sendo de atentar, ainda, que as opções apontadas como solução para o interim, em que iria perdurar ou manter-se a suspensão da execução do ato de adjudicação, não se apresentam como exequíveis ou procedentes.

44. É que, desde logo, face à necessidade administrativa ou de urgência objetivamente imperiosa de satisfação do interesse público em causa, temos que a exigência ou a possibilidade da R., à luz das razões e motivação jurídica desenvolvida pela A. e em que funda a impugnação da decisão adjudicatória, de poder vir a outorgar novos contratos ad hoc com sujeitos terceiros que não a Contrainteressada não se tem como opção ou solução isenta de problemas e que assegure a realização de tal interesse, tanto mais que também tais atos e contratos serão ou poderão ser passíveis de impugnação contenciosa com idênticos efeitos suspensivos e a situação ora vivenciada repetir-se-ia.

45. Por outro lado, à luz dos elementos factuais fixados nas e pelas instâncias não resulta como minimamente demonstrada a alegação dos riscos e perigos de lesão ambiental feita pela A. e que seriam advenientes da possibilidade de execução do ato adjudicatório e celebração do contrato da R. com a Contrainteressada e uma vez dado início à operação de recolha e tratamento nos termos contratados das lamas desidratadas do lote n.º 01 enquanto resíduos perigosos, inexistindo, assim, ao invés do afirmado no acórdão recorrido, uma base factual suscetível de legitimar e fundamentar, na incerteza, um juízo quanto à perigosidade de tal atividade e das suas consequências prejudiciais em termos ambientes e de saúde pública, para além de que, como já aludido supra, as ETAR’s de Cacia e de Espinho ao não possuírem capacidade para armazenamento de lamas em quantidade superior às resultantes de dois ou três dias [cfr. n.º 10.5) da factualidade apurada], então, as mesmas também não permitirão, enquanto próprio local de produção, uma operação deposição controlada de resíduos antes da sua recolha por período superior àquele.

46. Para além disso, temos que a contratualização que, entretanto, havia sido feita entre a R. e a Contrainteressada em 09.07.2018 também não se apresenta, in casu, como opção a considerar, pois não só a sua vigência inicial se revelar como temporalmente limitada a um período de 10 meses, período esse, aliás, já decorrido, como, inclusive, tal vigência poderia até vir a ser antecipada em função da evolução do ritmo/volume do serviço prestado e esgotamento do custo contratual máximo previsto/definido [no caso até que se atinja o valor total de pagamentos de 87.330,00 €] [cfr. os n.ºs 10.6) e 10.7) da factualidade apurada], na certeza de que também a uma prorrogação do mesmo contrato, se à luz do quadro contratual e legal viesse a ser possível eventualmente, seria suscetível de ser alvo de impugnação contenciosa com os idênticos efeitos suspensivos.

47. Por último, importa ter em atenção que para a realização, no quadro do incidente de levantamento do efeito suspensivo automático previsto no art. 103.º-A do CPTA, do juízo de ponderação ali imposto ao julgador a A., aqui ora recorrida, não terá apresentado sequer qualquer proposta no procedimento concursal em presença, pelo que, em tal juízo, nem poderemos equacionar o prejuízo patrimonial que para a mesma adviria da frustração pela não realização/execução do contrato objeto do procedimento e proventos/lucros daí decorrentes.

48. Daí que sem que tenham sido alegados e demonstrados quaisquer danos para a A. que decorram do levantamento do referido efeito suspensivo automático podemos concluir que os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo automático não se mostram superiores aos que podem resultar do seu levantamento.

49. Assim, assiste razão à R., aqui recorrente, nas críticas que dirigiu ao acórdão recorrido, porquanto, ao invés do que no mesmo se concluiu, o diferimento da execução do ato de adjudicação seria gravemente prejudicial para o interesse público, impondo-se proceder à sua revogação e, na ponderação dos interesses contrapostos em presença suscetíveis de serem lesados, julgar procedente o presente pedido de levantamento do efeito suspensivo automático por reunidas, in casu, as condições de que depende, nos termos da lei [cfr. art. 103.º-A, do CPTA], o seu deferimento.


DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em conceder provimento ao recurso jurisdicional sub specie e, consequentemente, pela motivação antecedente, revogar a decisão judicial recorrida, fazendo subsistir, pelas razões supra invocadas, a decisão proferida pelo TAF de Leiria.
Custas neste Supremo e no «TCA/S» a cargo da A., aqui recorrida.
D.N..




Lisboa, 07 de Novembro de 2019. – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Jorge Artur Madeira dos Santos.