Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0807/10.0BELRS
Data do Acordão:03/29/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO VERGUEIRO
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IVA
ISENÇÃO
COMPANHIA DE SEGUROS
Sumário:I - As operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 135º nº 1 alínea a) da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006.
II - As operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 136º alínea a) da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006.
III - A aquisição e venda de “salvados” pelas companhias de seguros é uma actividade complementar das operações de seguro e resseguro que não está incluída nas normas de isenção de IVA previstas nos nºs 28º e 32º (anteriores 29 ou 33) do artigo 9º do CIVA.
Nº Convencional:JSTA00071701
Nº do Documento:SA2202303290807/10
Data de Entrada:10/17/2018
Recorrente:A..., SA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:TRIBUNAL TRIBUTÁRIO DE LISBOA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:IVA
Legislação Nacional:nºs 28º e 32º do ARTIGO 9º do CIVA.
Legislação Comunitária:ARTIGO 135º nº 1 alínea a) da Directiva 2006/112/CE
do Conselho, de 28-11-2006.
Aditamento:
Texto Integral:
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Processo n.º 807/10.0BELRS (Recurso Jurisdicional)



Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

“B..., S.A., depois “C..., S.A.”, agora “A..., S.A.”, devidamente identificada nos autos, inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Tributário de Lisboa, datada de 30-12-2017, que julgou improcedente a pretensão pela mesma deduzida na presente IMPUGNAÇÃO relacionada com as liquidações de IVA, n.ºs ...71, relativa ao período 07/03T, ...73, relativa ao período 07/06T, ...75, relativa ao período 07/09T, ...77, relativa ao período 07/12T e, de Juros Compensatórios n.ºs 09172472, relativa ao período 07/03T, ...74, relativa ao período 07/06T, ...76, relativa ao período 07/09T, ...78, relativa ao período 07/12T, no valor global de Euros 18.715,86.


Formulou nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“ (…)

1.ª O presente recurso vem deduzido contra a sentença que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações de IVA n.º ...71, relativa ao período 07/03T, n.º ...73, relativa ao período 07/06T, n.º ...75, relativa ao período 07/09T e n.º ...77, relativa ao período 07/12T, e as respetivas liquidações de juros compensatórios n.º ...72, relativa ao período 07/03T, n.º ...74, relativa ao período 07/06T, n.º ...76, relativa ao período 07/09T e n.º ...78, relativa ao período 07/12T;

2.ª No entendimento do Recorrente, a venda de salvados deve ser qualificada, contrariamente ao que resulta da sentença recorrida, como uma operação isenta de IVA;

3.ª Estão isentas de IVA, nos termos do n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA (atual n.º 28 do artigo 9.º do Código do IVA), “As operações de seguro e resseguro, bem como as prestações de serviços conexas efectuadas pelos correctores e intermediários de seguro”, norma que tem na sua origem o artigo 13º, alínea B (outras isenções), subalínea a), da Directiva 77/388/CEE, do Conselho de 17 de Maio de 1977 (adiante apenas 6.ª Directiva do IVA), a que se seguiu o atual 135.º, n.º 1, alínea a), da Directiva do IVA;

4.ª Foram sobretudo razões de ordem técnica que se prendem com a dificuldade conceptual da inserção da atividade seguradora na lógica do imposto quando opera pelo método do crédito de imposto, uma vez que os prémios pagos pelos clientes só em pequena parte se destinam à cobertura de custos de administração, bem como, atento o facto de as companhias seguradoras desempenharem algumas atividades financeiras em concorrência com outras operações bancárias e financeiras, igualmente isentas de imposto por aquela diretiva, que estão na origem daquela isenção;

5.ª A norma comunitária que serve de base à isenção prevista no Código do IVA estabelece a isenção para as operações de seguro e de resseguro, sem estabelecer qualquer exceção ou restrição no seu âmbito de aplicação;

6.ª Com efeito, a referência às prestações de serviços conexas efetuadas por corretores e intermediários de seguros é efetuada de forma clarificadora do alcance da aplicação da isenção, não querendo com isso significar que quaisquer outras prestações de serviços conexas não estão incluídas;

7.ª De acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de Abril, as empresas de seguros “são instituições financeiras que têm por objecto exclusivo o exercício da actividade de seguro directo e ou de resseguro, podendo ainda exercer actividades conexas ou complementares da de seguro ou resseguro, nomeadamente no que respeita a actos e contratos relativos a salvados (...).”, resultando, assim, evidente da redação do aludido preceito que as operações relativas a salvados são encaradas pela lei como atividades conexas da atividade principal de seguro, integradas no objeto das empresas do sector;

8.ª Estas operações são indissociáveis da atividade normal de negociação e pagamento de indemnizações em caso de sinistro, uma vez que o montante desta será tanto maior ou menor consoante a companhia de seguros receba ou não a viatura danificada (o salvado) em troca, e que, na maioria dos casos, o saldo da operação não se traduz em qualquer mais-valia para a seguradora;

9.ª Pelo que, atenta esta complementaridade, consagrada, aliás, na própria legislação do sector, não se compreende como pode excluir-se a alienação de salvados do âmbito das operações de seguro para efeitos da aplicação da isenção do n.º 29.º do artigo 9.º do Código do IVA;

10.ª Acresce que, atento o disposto no n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA, não faria sentido o legislador ter optado por considerar estas operações, historicamente conexas com a atividade seguradora, fora do âmbito da isenção, estendendo-a, por outro lado, às operações de intermediação e corretagem exercidas por terceiros, atividade essa perfeitamente cindível da cobrança de prémios e pagamento de indemnizações, e para a isenção da qual nenhuma das referidas razões de ordem técnica aparentemente concorre;

11.ª De facto, atenta a sua intenção de desonerar toda a atividade seguradora em sentido lato, apenas em relação a estas últimas sentiu o legislador necessidade de consagrar expressamente a isenção, posto que, no seu silêncio, estas operações sempre se encontrariam sujeitas a tributação;

12.ª Pelo que, também com este fundamento se imporia a aplicação da isenção prevista no n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA;

13.ª A esta conclusão não obsta, com o devido respeito, a posição que tem vindo a ser sufragada em alguma jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais mais recente - em inversão de uma corrente jurisprudencial até então mais ou menos assente e de que era exemplo o Acórdão do STA de 19.02.2003, proferido no processo n.º 026435 - no sentido de considerar que não integra o conceito de operações de seguro as atividades conexas como a aquisição/venda de salvados;

14.ª Desde logo, no entendimento do Recorrente, não pode proceder a interpretação segundo a qual o artigo 9.º, n.º 9, do Código do IVA remete, no que se refere ao conceito de “operações de seguro e resseguro”, para o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 94-B/98, na medida em que o conceito de “operações de seguro e de resseguro” se trata de um conceito autónomo de Direito comunitário e que deve ser interpretado à luz da norma comunitária que lhe deu origem;

15.ª Depois, a alegada extensão da isenção às prestações de serviços conexas efetuadas por corretores e intermediários de seguros não significa que todas as prestações de serviços conexas estejam excluídas pela norma de isenção, sendo que a utilização da expressão “incluindo” visa, no entendimento do Recorrente, uma clarificação que o legislador comunitário entendeu dever fazer;

16.ª Pelo que, também com este fundamento, entende o Recorrente que não pode deixar de ser reconhecida a isenção das operações em apreço, nos termos do n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA, impondo-se a revogação da sentença recorrida e julgando-se procedente a impugnação judicial;

17.ª Caso assim não se entenda e estando em causa uma questão de interpretação de Direito da União Europeia que suscita dúvidas e assume relevância para a questão decidenda, deverá submeter-se a respetiva interpretação ao Tribunal de Justiça da União Europeia competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação do Direito da União Europeia, ao abrigo do disposto no artigo 267.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE);

18.ª Com efeito, estando em causa a interpretação de normas do Direito Comunitário - quais sejam, o artigo 13.º, n.º 1, alínea B), subalínea a), da Sexta Directiva do IVA e o artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Directiva do IVA - e sendo evidente que esta é uma questão que se presta a dúvidas - tanto mais que, como é facto dado como assente, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais não têm sido uniformes nesta temática apesar de a redação das normas em causa se manter inalterada -, justifica-se o recurso ao TJUE, o que se requer;

19.ª A questão a interpretar pelo Tribunal de Justiça da União Europeia é a seguinte: O artigo 13.º, n.º 1, alínea B), subalínea a), da Sexta Directiva do IVA e, por conseguinte, o actual artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Directiva do IVA devem ser interpretados no sentido de o conceito de “operações de seguro e de resseguro” compreender, para efeitos de isenção de IVA, atividades conexas ou complementares como a aquisição e venda de salvados?;

20.ª Sem prejuízo do acima exposto, e sem conceder, ainda que se admitisse não estarem as operações de venda de salvados isentas de IVA nos termos acima referidos, o que só por mera cautela se aceita, sem conceder, sempre as mesmas haveriam de beneficiar da isenção estabelecida no n.º 33 do mesmo artigo 9.º do Código do IVA, pelo que, também por esta razão, seriam ilegais as liquidações de IVA e juros compensatórios sob impugnação;

21.ª Deste modo, também aqui, com o devido respeito, incorreu a sentença recorrida em erro de julgamento, devendo ser anulada;

22.ª Com efeito, de acordo com o disposto naquele preceito, na parte que para o caso releva, encontram-se isentas de IVA “As transmissões de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta, quando não tenham sido objecto do direito à dedução, e, bem assim, as transmissões de bens cuja aquisição ou afectação tenha sido feita com exclusão do direito à dedução nos termos do n.º 1 do artigo 21.º”, norma que tem na sua origem, também, uma correspondente disposição comunitária, qual seja, o artigo 13.º, n.º 1, alínea B), subalínea c), da Sexta Directiva do IVA e, por conseguinte, o artigo 136.º, alínea a), da Directiva do IVA;

23.ª Este preceito - fundamental na lógica do sistema do IVA - visa evitar os efeitos cumulativos do imposto que inevitavelmente se verificariam sempre que a aquisição do bem tenha sido efetuada com exclusão do direito à dedução, quer por se tratar de aquisições efetuadas por sujeitos passivos isentos, quer de bens previstos no artigo 21.º, n.º 1, do Código do IVA;

24.ª É a primeira parte daquela norma de isenção que encontra aplicação nas operações de vendas de “salvados” efetuadas pela então Impugnante, ora Recorrente, por forma a assegurar-se a aludida neutralidade;

25.ª Com efeito, os bens em causa, por se tratarem de “meios de produção” que só à atividade seguradora interessam, não podem deixar de ser considerados como bens exclusivamente afetos a uma atividade isenta para efeitos do preenchimento do primeiro dos requisitos ali consagrados;

26.ª Por outro lado, ainda que aqueles veículos tenham conferido direito à dedução na esfera dos respetivos proprietários, e assim, dado lugar à liquidação do imposto na sua transmissão para a Impugnante, nunca esta, pela sua condição de sujeito passivo isento, o poderia deduzir, assim se preenchendo o segundo requisito consagrado naquela norma para a concessão da isenção por si prevista, qual seja, de que os bens afetos à atividade isenta não tenham sido objeto do direito à dedução;

27.ª Em suma, cumpre pois concluir que, ainda que se entendesse não estarem as operações de vendas de “salvados” isentas do imposto ao abrigo do artigo 9.º, n.º 29, do Código do IVA, sempre as mesmas haveriam de beneficiar da isenção consagrada no n.º 33 do mesmo preceito, como, aliás, também já foi entendimento desse STA, de que é exemplo o referido acórdão do STA datado de 19.02.2003, proferido no processo n.º 026435;

28.ª Pelo que, também por esta razão se afiguram ilegais, insista-se, as liquidações sub judice, com fundamento na violação do disposto no n.º 33 do artigo 9.º do Código do IVA, devendo, em consequência, ser anuladas;

29.ª Trata-se de conclusão que é tanto mais profícua quando se constata que é a própria Lei, secundada por alguma doutrina administrativa - de que é exemplo o ofício-circulado n.º 30.153/2013 -, que estabelece para a venda de salvados pelas seguradoras o mecanismo de autoliquidação do IVA pelo adquirente;

30.ª Entende o Recorrente que a referida disposição legal, secundada pela presente doutrina administrativa, evidencia uma intenção legislativa de não tributação na esfera das seguradoras, que não pode deixar de ser tida em consideração no caso sub judice, impondo-se também, com este fundamento, a revogação da sentença recorrida e a procedência da impugnação judicial apresentada;

31.ª Caso assim não se entenda e estando em causa uma questão de interpretação de Direito da União Europeia que suscita dúvidas e assume relevância para a questão decidenda, deverá submeter-se a respetiva interpretação ao Tribunal de Justiça da União Europeia competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação do Direito da União Europeia, ao abrigo do disposto no artigo 267.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE);

32.ª Com efeito, também neste caso, estando em causa a interpretação de normas do Direito Comunitário - quais sejam, o artigo 13.º, n.º 1, alínea B), subalínea c), da Sexta Directiva do IVA e, por conseguinte, o artigo 136.º, alínea a), da Directiva do IVA - e sendo evidente que esta é uma questão que se presta a dúvidas - tanto mais que, como também é facto dado como assente, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais não têm sido uniformes nesta temática apesar de a redação das normas em causa se manter inalterada -, justifica-se o recurso ao TJUE, o que se requer;

33.ª As questões a interpretar pelo Tribunal de Justiça da União Europeia são as seguintes:

a. O artigo 13.º, n.º 1, alínea B), subalínea c), da Sexta Directiva do IVA e, por conseguinte, o posterior artigo 136.º, alínea a), da Directiva do IVA devem ser interpretados no sentido de a aquisição e venda de salvados se considerar afeta exclusivamente a uma entidade isenta, desde que tais bens não tenham conferido direito à dedução do IVA?

b. É contrário ao princípio da neutralidade do IVA a não isenção de IVA sobre a venda dos salvados pelas seguradoras, nos casos em que não tenha havido direito à dedução do IVA?

Por todo o exposto, e o mais que o ilustrado juízo desse Tribunal suprirá, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com a consequente revogação da sentença recorrida e, nessa medida, a anulação dos atos em crise nos termos peticionados, assim se cumprindo com o DIREITO e a JUSTIÇA!”

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que se impõe o reenvio ao abrigo do artigo 267º do TFUE, formulando-se para tanto as questões em que assenta a controvérsia sobre a natureza das operações em causa nos autos, à luz do disposto nas sub-alíneas a) e c) da alínea B) do artigo 13º da Sexta Directiva, transpostos para o direito nacional pelos nºs 29º e 33º do CIVA.

Por decisão de 16-12-2021, foi decidido submeter à apreciação do TJUE as seguintes questões prejudiciais:

A. O artigo 13.º, n.º 1, alínea B), subalínea a), da Sexta Directiva do IVA e, por conseguinte, o actual artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Directiva do IVA devem ser interpretados no sentido de o conceito de “operações de seguro e de resseguro” compreender, para efeitos de isenção de IVA, actividades conexas ou complementares como a aquisição e venda de salvados?

B. O artigo 13.º, n.º 1, alínea B), subalínea c), da Sexta Directiva do IVA e, por conseguinte, o posterior artigo 136.º, alínea a), da Directiva do IVA devem ser interpretados no sentido de a aquisição e venda de salvados se considerar afecta exclusivamente a uma entidade isenta, desde que tais bens não tenham conferido direito à dedução do IVA?

C. É contrário ao princípio da neutralidade do IVA a não isenção de IVA sobre a venda dos salvados pelas seguradoras, nos casos em que não tenha havido direito à dedução do IVA?

Foi ainda decretada a suspensão da instância no âmbito dos presentes autos até ser emitida e comunicada pronúncia do TJUE.

Por Acórdão de 09 de Março de 2023, o TJUE, no processo C-42/22, declarou o seguinte:
1) O artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretado no sentido de que:

as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

2) O artigo 136.º, alínea a), da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que:

as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

3) O princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe à não isenção das operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, quando essas aquisições não tenham conferido direito à dedução do IVA.

Notificadas as partes para se pronunciarem, querendo, sobre o teor do Acórdão do TJUE antes mencionado, nada disseram.

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, vem o processo submetido à Conferência para julgamento.




2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que a matéria apontada nos autos resume-se, em suma, em saber se a venda dos denominados “salvados” pelas empresas que exercem a actividade seguradora está ou não isenta de IVA à luz do disposto no artigo 9º, nºs 29 e 33 do CIVA.




3. FUNDAMENTOS

3.1. DE FACTO

Neste domínio, consta da decisão recorrida o seguinte:

“…

1) A impugnante é uma empresa de seguros, actividade no âmbito da qual efectua a aquisição de salvados resultantes de sinistros ocorridos com os seus segurados, procedendo posteriormente à sua venda (cfr. relatório de inspecção);

2) Em resultado de uma de acção de inspecção efectuada pelos Serviços da Divisão de Inspecção a Seguradoras e Sociedades Financeiras, da Direcção de Serviços de Inspecção Tributária da então designada Direcção-Geral dos Impostos, respeitante ao exercício de 2007, foram propostas correcções em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no montante de Euros 17.213,70, acrescido de juros compensatórios (cfr. relatório de inspecção);

3) Tais correcções resultaram do entendimento preconizado pela Administração Fiscal relativamente à alienação de salvados, o qual se encontra expresso no relatório, entre o mais, da seguinte forma:

"O Sujeito Passivo não liquidou IVA na transmissão de bens (salvados).

A venda de salvados é uma operação sujeita a IVA nos termos do artigo 3.º do CIVA, por se considerar uma transmissão onerosa de bens corpóreos, à taxa de 21%, de acordo com a alínea c) do artigo 18.º do mesmo diploma”;

4) Em consequência a Administração Tributária procedeu às liquidações de IVA, n.ºs ...71, relativa ao período 07/03T, ...73, relativa ao período 07/06T, ...75, relativa ao período 07/09T, ...77, relativa ao período 07/12T e, de Juros Compensatórios n.ºs 09172472, relativa ao período 07/03T, ...74, relativa ao período 07/06T, ...76, relativa ao período 07/09T, ...78, relativa ao período 07/12T, no valor global de Euros 18.715,86.

5) A impugnante efectuou o pagamento das liquidações impugnadas no dia 23 de Novembro de 2009 (cfr. doc. n.º ... junto com a p.i.).


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Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

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A decisão sobre a matéria de facto assentou na análise crítica das informações oficiais e dos documentos constantes dos autos, conforme indicado a propósito de cada alínea do probatório.”

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3.2. DE DIREITO

Assente a factualidade apurada cumpre, então, entrar na análise da realidade em equação nos autos, sendo que a questão essencial a dirimir consiste em saber se a venda dos denominados “salvados” pelas empresas que exercem a actividade seguradora está ou não isenta de IVA à luz do disposto no artigo 9º, nºs 29 e 33 do CIVA.

Nas suas alegações, a Recorrente sustenta que a venda de salvados deve ser qualificada, contrariamente ao que resulta da sentença recorrida, como uma operação isenta de IVA, subsumível na previsão do n.º 29 do artigo 9º do Código do IVA (actual nº 28 do artigo 9º do Código do IVA), que isenta “As operações de seguro e resseguro, bem como as prestações de serviços conexas efectuadas pelos correctores e intermediários de seguro”, norma que tem na sua origem o artigo 13º, alínea B (outras isenções), subalínea a), da Directiva 77/388/CEE, do Conselho de 17 de Maio de 1977 (adiante apenas 6.ª Directiva do IVA), a que se seguiu o actual 135.º, n.º 1, alínea a), da Directiva do IVA, sendo que de acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de Abril, as empresas de seguros “são instituições financeiras que têm por objecto exclusivo o exercício da actividade de seguro directo e ou de resseguro, podendo ainda exercer actividades conexas ou complementares da de seguro ou resseguro, nomeadamente no que respeita a actos e contratos relativos a salvados (...).”, resultando, assim, evidente da redacção do aludido preceito, que as operações relativas a salvados são encaradas pela lei como actividades conexas da actividade principal de seguro, integradas no objecto das empresas do sector, verificando-se que estas operações são indissociáveis da actividade normal de negociação e pagamento de indemnizações em caso de sinistro, uma vez que o montante desta será tanto maior ou menor consoante a companhia de seguros receba ou não a viatura danificada (o salvado) em troca, e que, na maioria dos casos, o saldo da operação não se traduz em qualquer mais-valia para a seguradora, pelo que, atenta esta complementaridade, consagrada, aliás, na própria legislação do sector, não se compreende como pode excluir-se a alienação de salvados do âmbito das operações de seguro para efeitos da aplicação da isenção do n.º 29.º do artigo 9.º do Código do IVA e ainda que se entendesse não estarem as operações de vendas de “salvados” isentas do imposto ao abrigo do artigo 9.º, n.º 29, do Código do IVA, sempre as mesmas haveriam de beneficiar da isenção consagrada no n.º 33 do mesmo preceito, como, aliás, também já foi entendimento desse STA, de que é exemplo o referido acórdão do STA datado de 19.02.2003, proferido no processo n.º 026435, pelo que, também por esta razão se afiguram ilegais, insista-se, as liquidações sub judice, com fundamento na violação do disposto no n.º 33 do artigo 9.º do Código do IVA, devendo, em consequência, ser anuladas.

Que dizer?

Nos termos do nº 29 e 33º do artigo 9º do CIVA, na redacção então em vigor (2007), estavam isentas de imposto “as operações de seguro e resseguro, bem como as prestações de serviços conexas efectuadas pelos corretores e intermediários de seguros” e «as transmissões de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta, quando não tenham sido objecto do direito à dedução e bem assim as transmissões de bens cuja aquisição ou afectação tenha sido feita com exclusão do direito à dedução nos termos do n.º 1 do artigo 21.º».

Mais se diga que os referidos normativos decorrem da transposição das sub-alíneas a) e c) da alínea B) do artigo 13º da Sexta Directiva, e a sua interpretação tem originado acesa controvérsia, tendo a jurisprudência do STA, firmada no Acórdão do Pleno de 07/11/2012, Proc. 0748/12, adoptado uma posição contrária à defendida pela doutrina maioritária, como está bem ilustrado no artigo de António Carlos do Santos sob o tema “Ainda o IVA na transmissão de “salvados” por empresas de seguros” (Fiscalidade nº 35, Julho-Setembro 2008, pág.35-50).

Com efeito, no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA seguiu-se na íntegra a jurisprudência plasmada no acórdão de 19/04/2012, Proc. 0101/12, no qual se afastou a aplicação a situação similar à dos autos, da previsão tanto do nº 29 como do nº 33 do artigo 9º do CIVA, ou seja, concluindo-se pela sujeição a tributação da alienação dos denominados “salvados” por parte das seguradoras. Nesse sentido já se tinha pronunciado Maria Odete de Oliveira (em anotação ao Acórdão do STA de 19/02/2003, Recurso 26435, in Jurisprudência Fiscal Anotada, Almedina, 2003), cuja pronúncia é aliás largamente citada no referido acórdão de 19/04/2012.

No sentido de as operações em causa serem subsumíveis na previsão do artigo 9º do CIVA, ainda que com divergências quanto à aplicação do nº 29 ou 33 desse artigo, pronunciaram-se em sede doutrinal Xavier de Basto, Clotilde Celorico Palma, Tânia Ferreira e António Gaio (cfr. síntese das respectivas posições feita por António Carlos do Santos, in Fiscalidade nº 35, pág.35-50).

O que fica exposto, em termos de linha de análise, foi reiterado no Ac. deste Supremo Tribunal (Pleno) de 23-01-2013, Proc. nº 0642/11, www.dgsi.pt, onde se ponderou que:

“… a questão a decidir prende-se com o problema da venda de salvados pelas companhias de seguros e o âmbito de aplicação das normas sobre isenção de IVA, cuja resposta, por sua vez, depende da conclusão a que se chegar quanto a saber:

a) O sentido e alcance do art. 8º, nº1, do Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de Abril, sobre a distinção entre “actividade de seguro directo e ou resseguro” e “actividades conexas e complementares”;

b) Se o conceito de actividades conexas e complementares supra referido corresponde ao mesmo estabelecido pelo legislador do IVA no art. 9º, nº 29, quando se refere a prestações de serviço relacionadas com operações de seguro e resseguro efectuadas por correctores e intermediários de seguros;

c) O sentido e alcance da isenção estabelecida no art. 9º, nº 33, do CIVA e a sua relação com a actividade de aquisição/venda dos salvados.

2.2. Sentido e alcance do art. 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de Abril, sobre a distinção entre “actividade de seguro directo e ou resseguro” e “actividades conexas e complementares”

De acordo com o art. 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 94-B/98 (Alterado pelo Decreto-Lei nº 251/2003, de 14 de Outubro), as empresas de seguros referidas nos nºs 1 e 2 do artigo anterior são instituições financeiras que têm por objecto exclusivo o exercício da actividade de seguro directo e ou de resseguro, salvo naqueles ramos ou modalidades que se encontrem legalmente reservados a determinados tipos de seguradoras, podendo ainda exercer actividades conexas ou complementares da de seguros ou resseguro, nomeadamente no que respeita a actos e contratos relativos a:

a) salvados;

b) reedificação e reparação de prédios;

c) reparação de veículos;

d) manutenção de postos clínicos;

e) aplicação de provisões, reservas e capitais.

Do mencionado preceito resulta que a lei reserva às companhias de seguros o exercício das actividades de seguro directo e ou de resseguro, pelo que só elas podem desenvolver estas actividades a título principal. Isto sem pôr em causa a actividade de mediação de seguros ou de resseguros, cujas condições de acesso e âmbito de actividade constam do Decreto-Lei nº 144/2006, de 31 de Julho (O art. 8º estabelece três categorias de mediadores de seguros (mediador de seguros ligado, agente de seguros e corretor de seguros).

O facto de a actividade de seguro e ou de resseguro só poder ser exercida pelas companhias de seguros não significa que estas só possam desempenhar essas actividades. Com efeito, para além da actividade principal (de que detêm o exclusivo), as companhias de seguro podem desempenhar outras actividades acessórias, denominadas actividades conexas ou complementares, nos termos do disposto no art. 8º (2ª parte) do Decreto-Lei nº 94-B/98, entre as quais se inclui a venda de “salvados”. Ao integrar a aquisição/venda de salvados nas actividades conexas ou complementares, significa que, na óptica do legislador, não se trata de operações de seguro e ou de resseguro, sendo que existe uma diferença fundamental entre os dois tipos de actividades mencionadas. Na verdade, a actividade de seguro e ou de resseguro caracteriza-se pela prática de actos que fazem parte do objecto do contrato celebrado entre o tomador de seguro e a companhia de seguros e apenas podem ser levadas a cabo por seguradoras devidamente autorizadas para o efeito. Já no que respeita às actividades acessórias (De entre as principais conclusões da jurisprudência retirada de vários acórdãos do TJCE sobre a isenção relativa às operações de seguro e resseguro, CLOTILDE PALMA salientou a seguinte: “Uma prestação deve considerar-se acessória em relação a uma prestação principal quando não constitua para a clientela um fim em si, mas um meio de beneficiar nas melhores condições do serviço principal do prestador” (cfr. “Enquadramento da actividade seguradora em imposto sobre o valor acrescentado”, Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2006, p.621).) ou complementares, estamos a falar de actividades que não comungam da essencialidade da actividade de seguro e ou resseguro, tratando-se de actividades que podem ser desenvolvidas autonomamente por outras entidades que não seguradoras e não estão sequer sujeitas a autorização, nos termos do regime constante do Decreto-Lei nº 94-B/98 como o está a actividade principal levada a cabo pelas seguradoras.

Importa agora confrontar a redacção deste preceito com a do art.9º, nº 29, do CIVA, para ver em que medida há ou não coincidência nos seus âmbitos de aplicação.

O nº 29 do art. 9º do CIVA dispõe que estão isentas do imposto: “as operações de seguro e resseguro, bem como as prestações de serviços conexas efectuadas pelos corretores e intermediários de seguro”. Importa ainda reter que estes preceitos transpõem para a ordem jurídica portuguesa o art. 13º da Directiva 77/388/CEE, de 17 de Maio de 1977 (Sexta Directiva IVA), cujas alíneas a) e c) do art. 13º B consagram aquelas isenções, respectivamente, com o seguinte teor:

a) As operações de seguro e resseguro, incluindo as prestações de serviços relacionadas com essas operações efectuadas por correctores e intermediários de seguros;

c) As entregas de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta por força do presente artigo ou do nº 3, alínea b), do art. 28º, quando esses bens não tenham conferido direito à dedução, tenha sido excluída do direito a dedução nos termos do nº 6 do art. 17º”.

Posto isto, repare-se que quando o art. 9º, nº 29, diz que estão isentas de imposto as operações de seguro e resseguro está a remeter para a definição do nº 1 do art. 8º (1ª parte) do Decreto-Lei nº 94-B/98 e a referir-se, por conseguinte, às operações de seguro e ou de resseguro desenvolvidas por companhias de seguro.

Por sua vez, quando a seguir o preceito estende a isenção “às prestações de serviço conexas efectuadas pelos corretores e intermediários de seguros”, já está a reportar-se a operações dos intermediários conexas com as operações de seguro e ou de resseguro (Nos termos do disposto no art. 9º, nº1, do Decreto-Lei nº 144/2006, sob a epígrafe, “Âmbito da actividade”, os mediadores de seguros e de resseguros podem inscrever-se no registo e exercer a sua actividade: “a) Apenas no âmbito do ramo «Vida», incluindo operações de capitalização; b) Apenas no âmbito de todos os ramos «Não vida»; c) No âmbito de todos os ramos”. Por sua vez, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, “A mediação no âmbito de fundos de pensões enquadra-se na alínea a) do número anterior.”).

Decorre do exposto que a isenção prevista no nº 29 do art. 9º do CIVA abrange apenas as operações de seguro e resseguro das companhias de seguros, ficando de fora as actividades conexas ou complementares (Neste sentido, cfr. MARIA ODETE OLIVEIRA, “Anotação ao Acórdão do STA, de 19 de Fevereiro de 2003, Proc. nº 26435”, Jurisprudência Fiscal Anotada, Almedina, Coimbra, 2003, p. 93. Em sentido contrário, defendendo, embora sem adiantar grande argumentação, que a aquisição e posterior venda do salvado integra a actividade seguradora, cfr. ANTÓNIO GAIO, “O IVA e a actividade seguradora - a Tributação da venda de “salvados”, Fisco, nº 84/85, Setembro/Outubro, 98, p. 33).

Nas palavras de MARIA ODETE OLIVEIRA (Cfr. ob. cit., p. 93.), “a isenção do nº 29 abrange apenas as operações de seguro e resseguro das companhias de seguros. Que assim é resulta directamente da letra do preceito. E o preceito não comporta quanto às companhias de seguros quaisquer outras operações, contrariamente ao que sucede em isenções consignadas em diferentes números do art. 9º do CIVA em que o legislador entendeu abranger no âmbito da isenção algumas outras transmissões de bens ou prestações de serviços para além das que directamente justificaram a consagração da isenção, designado essa outras por conexas ou mesmo estritamente conexas. Só que quando assim o quis disse-o expressamente, como aliás se exige em matéria de normas que consagram isenções.” E a venda de salvados também não cabe na segunda parte da isenção prevista no nº 29 do art. 9º do CIVA porque, como já dissemos, o que o legislador quis foi alargar a isenção às prestações de serviço efectuadas pelos intermediários (mediador, agentes e correctores) e conexas com as de seguro e de resseguro.

Este resultado interpretativo, que se extrai da letra do art. 9º, nº 29, do CIVA conjugado com o disposto no art. 8º (1ª parte) do Decreto-Lei nº 94-B/98, é também o que está em conformidade com o que se retira da razão de ser da isenção consagrada no preceito e que tem de ser lida à luz da Sexta Directiva.

Com efeito, referindo-se à ratio daquela isenção quanto “às operações de seguro e resseguro, incluindo as prestações de serviços conexas efectuadas pelos correctores e os intermediários de seguros”, JOSÉ XAVIER DE BASTO (Cfr. “A Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional”, Ciência e Técnica Fiscal, 362, 1991, p. 148,) pondera que “O argumento mais corrente a favor da isenção de IVA para as actividades seguradoras é o de que o preço a que os serviços respectivos são vendidos – os chamados “prémios de seguro” - não reflecte necessariamente o valor dos serviços efectivamente prestados pelo segurador. A operação de uma companhia seguradora, na sua forma pura, consiste em recolher “prémios” dos clientes, formando um fundo, cujo valor, na sua maior parte, está consignado ao pagamento das “indemnizações”. As somas pagas pelos clientes só em pequena parte se destinam a cobrir os custos de administração e funcionamento; o resto constitui, a bem dizer, transferências. É este o caso da generalidade dos seguros de risco, por exemplo, de incêndio, de acidente de trabalho, etc. No caso de seguros de vida, há, no prémio pago pelos clientes, também um elemento de poupança, o que apela para um tratamento fiscal idêntico ao que recebem outros activos em que se fazem aplicações financeiras (…). A tributação do prémio bruto, permitindo apenas à seguradora a dedução do IVA contido nas aquisições de bens e de serviços de terceiros, não constituiria, nesta lógica, solução aceitável. Separar, todavia, de modo não arbitrário, a componente que se relaciona com o serviço da seguradora, como coisa distinta da componente que se destina a dar solidez financeira ao fundo segurador, ou da componente de poupança, é a dificuldade técnica principal com que se defronta a tributação pelo IVA das operações de seguro e de resseguro”.

Assim sendo, assiste razão à recorrente quando afirma que “a opção do legislador pela consignação da isenção do art. 9º, nº 29, do CIVA prende-se com o facto de ser difícil apurar e, em consequência, tributar, o valor acrescentado nas operações de seguro e resseguro nestes serviços, sendo que tais razões abrangem apenas os prémios de seguro (as operações de seguro e resseguro), não se estendendo às outras actividades que, embora conexas ou complementares, possam ser exercidas pelas seguradoras” (Conclusão XVI).

Por outro lado, estamos a falar da consagração de uma isenção objectiva e não subjectiva, uma vez que não são as seguradoras que estão isentas, mas sim as operações de seguro e de resseguro taxativamente enumeradas na norma (Como refere MARIA ODETE OLIVEIRA, “Não é a actividade que se encontra isenta mas tão só determinadas operações. Isto é, aliás, o que acontece com todas as isenções do art. 9º. Determinadas transmissões de bens e prestações de serviços – as enumeradas no artigo – são isentas em razão do seu objecto ou finalidade, constituindo delimitação do seu âmbito de aplicação. No mesmo sentido, cfr. CLOTILDE PALMA, “Enquadramento da actividade seguradora”…cit., p. 619.).

Em abono da tese interpretativa a que se chegou - não isenção da venda de salvados pelas companhias de seguros - aponta-se o exemplo seguido por vários países europeus, tais como a França, Espanha ou a ... que, embora adoptando em alguns casos um regime especial, não vão ao ponto de considerar aplicável à situação as disposições do art. 13º B) alíneas a) e c) da Sexta Directiva. Assim, a título de exemplo, no direito espanhol, diz-se que apenas se encontra isenta a cobertura do risco cuja contraprestação é o prémio de seguro, e referindo-se expressamente que a entrega a terceiros de bens deteriorados como consequência da realização de sinistro não está abrangida no âmbito da isenção, constituindo uma operação normalmente tributada” (Cfr. MARIA ODETE OLIVEIRA, ob. cit., pp. 94-95.).

2. 3. O sentido e alcance da isenção estabelecida no nº 33 do art. 9º do CIVA e a sua relação com a actividade de aquisição/venda de salvados pelas companhias de seguros

Resta agora averiguar se a aquisição/venda de salvados cabe na isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA ao estabelecer que “a isenção das transmissões de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta, quando não tenham sido objecto do direito à dedução, e bem assim, as transmissões de bens cuja aquisição ou afectação tenha sido feita com exclusão do direito à dedução nos termos do nº 1 do art. 21º”. Importa começar por reter que os salvados são, em geral, veículos sinistrados que as companhias de seguros, no decurso de um processo de indemnização por sinistro, recebem do segurado, e destinam posteriormente a venda a um terceiro, normalmente aos sucateiros (Nos termos do art. 16º do Código da Estrada (segundo a redacção do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01, vigente à data dos factos) entende-se por salvado um veículo a motor que entre na esfera patrimonial de uma companhia de seguros por força do contrato de seguro automóvel, em consequência de acidente e que tenha ocasionado danos que afectem gravemente as suas condições de segurança, ou cujo valor de reparação seja superior a 70% do valor normal que o veículo possuía à data do sinistro”.) , que os adquirem para, por sua vez, também os venderem à peça.

A sentença recorrida, ao decidir como decidiu, louvou-se do consignado no Acórdão do STA de 19/2/2003 (Jurisprudência reiterada no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28/10/2003, proc nº 05941/01.), proc. Nº 026435, onde se pode ler que “se os salvados são bens que (…) entram na esfera patrimonial de uma companhia de seguros por força de contrato de seguro (sublinhado nosso)”, nos termos do disposto no art. 16º do Código da Estrada, então a sua “aquisição/afectação decorre ainda e exclusivamente da actividade desenvolvida, a actividade seguradora - de operações de seguro e resseguro e prestações de serviços conexos -, actividade que, como vai referido e decorre do estabelecido pelo citado nº 29 do art. 9º do CIVA, se encontra isenta de tributação em sede de IVA.(…) atentando na específica actividade que estatutária e legalmente está cometida às companhias de seguros, designadamente no âmbito do ramo automóvel, já perante a inevitável e legal aquisição dos salvados ainda e exclusivamente em sede de cumprimento dos respectivos contratos de seguros imperioso é também considerar a subsequente venda/transmissão daqueles bens como bens exclusivamente afectos à actividade seguradora.

Em face do exposto, verifica-se que o argumento decisivo seguido no Acórdão referenciado reside na noção de salvado dada pelo Código da Estrada, extraindo-se daí a inevitabilidade da sua aquisição pelas companhias de seguro. Por outro lado, a conclusão do Acórdão também não atende à diversidade de segurados que consoante sejam ou não sujeitos passivos de IVA colocam problemas diferentes, assim como o tipo de veículos eventualmente envolvidos na aquisição/venda de salvados (Para maiores desenvolvimentos, cfr. MARIA ODETE OLIVEIRA, ob. cit., pp. 95 ss.).

Vejamos.

Como vimos, o art. 8º do Decreto-Lei nº 94-B/98 classifica a actividade de aquisição e venda de salvados como meramente conexa ou complementar e, por sua vez, também não procede o argumento segundo o qual a aquisição da propriedade dos salvados, por parte da seguradora, resulta estritamente do cumprimento dos respectivos contratos de seguro celebrados com os segurados (em virtude dos quais se estabelece o pagamento em contrapartida da aquisição dos salvados). Na verdade, o contrato de seguro (Sobre a noção dada pelo TJCE, cfr. CLOTILDE PALMA, “Enquadramento da actividade seguradora”… cit., p. 619.) é o contrato pelo qual uma das partes se obriga com outra, mediante o pagamento de um prémio, a efectuar uma prestação de natureza indemnizatória que possa ressarcir o prejuízo resultante da verificação parcial ou total de um risco. Em caso de sinistro, a companhia de seguros fica obrigada a efectuar uma prestação de natureza indemnizatória a favor do segurado, mas tal não implica necessariamente a aquisição do salvado (Segundo ANTÓNIO GAIO, ob. cit., p. 33, nota (13), o pagamento da indemnização, sendo um valor global, terá em conta a valorização do salvado, pelo que a tomada dos salvados pelas companhias de seguros estarão, porventura, mais ligadas à fidelização dos clientes.), enquanto obrigação decorrente de cláusulas típicas e obrigatórias de um contrato de seguro.

Mas ainda que se admitisse que a entrada do salvado na esfera patrimonial da companhia de seguros era uma operação necessariamente decorrente do quadro do contrato de seguro, ainda assim haveria que distinguir entre essa entrada e a posterior venda /transmissão do salvado, uma vez que só a primeira operação teria quanto muito fundamento para beneficiar da isenção de IVA (MARIA ODETE OLIVEIRA demonstra que não é bem assim e que tudo depende do estatuto do segurado, em especial se é sujeito passivo de IVA ou não e da natureza do veículo sinistrado (cfr. ob. cit., pp. 95 ss.) por não integrar o conceito de transmissão. Com efeito, sempre se poderia argumentar que a entrada do salvado na esfera patrimonial da companhia de seguros não tem subjacente um preço, mas sim o pagamento de um prémio de seguro, consequência automática da cobertura do risco derivado da apólice de seguro.

Em face do exposto, vejamos então, mais em pormenor, se a venda dos salvados cai na primeira parte do nº 33 do art. 9º do CIVA quando se refere “a isenção das transmissões de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta (....) quando não tenham conferido direito à dedução”.

Em primeiro lugar, cumpre ter presente a distinção entre actividade acessória ou complementar e actividade de seguro e de resseguro. Como ficou demonstrado, a isenção prevista no nº 29 do art. 9º do CIVA incide sobre operações de seguro e de resseguro, incluindo as prestações conexas levadas a cabo por intermediários, ficando de fora as actividades conexas ou complementares previstas no art. 8º, parte final do Decreto-Lei nº 94-B/98. Daqui deriva que enquanto as operações de seguro e de resseguro só podem de facto ser levadas a cabo pelas seguradoras, o mesmo não se passa com as denominadas actividades conexas ou complementares que tanto podem ser desempenhadas pelas seguradoras como por outras empresas, isto é, não se trata de actividades necessárias das seguradoras, de actividades a que estejam obrigadas a desempenhar por força da lei, mas sim de operações que a título eventual podem ser por elas desempenhadas. Por outro lado, assiste razão à recorrente quando alega que também não se pode dizer que os salvados são adquiridos pelas seguradoras para serem usados na sua actividade, uma vez que o objectivo das seguradoras é o de vender os salvados, lançando-os no circuito económico, não tendo essa venda qualquer conexão directa e/ou necessária mas sim meramente eventual com a sua actividade nuclear e para a qual carece de autorização, segundo o regime do Decreto-Lei nº 94-B/98.

Neste sentido, para MARIA ODETE OLIVEIRA a venda de salvados não integra a noção de “bem afecto a uma actividade isenta, dado que não constitui efectivamente imput nem indispensável nem tão pouco necessário nem habitual da parte da actividade seguradora que está abrangida no nº 29 do art. 9º (…) (Cfr. ob. cit., pp. 97/98.)” do CIVA.

Em segundo lugar, também não se verifica o pressuposto inserto no art. 9º, nº 33, do CIVA na parte em que exige tratar-se de transmissões de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta, “quando não tenham sido objecto do direito a dedução….”.

No caso de se tratar da entrega de um salvado por parte de um particular não sujeito passivo de IVA, não obstante a entrega do veículo pelo sinistrado constituir uma transmissão do direito de propriedade, que cabe no conceito do art. 3º, nº 1, do CIVA, não sendo o transmitente um sujeito passivo a operação fica de fora da incidência do imposto face ao disposto no art. 1º do CIVA. Com efeito, a transmissão do salvado não deriva do exercício de uma actividade económica, nos termos do disposto no art. 2º, nº 1, alínea a), do CIVA, que se refere a transmissões de bens e prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal, nem a operação preenche os pressupostos de incidência real do IRS, ou seja, não é sujeito passivo, condição exigida pelo art. 1º.

Em face do exposto, não cabe aqui o argumento de que estamos perante “transmissões de bens cuja aquisição ou afectação tenha sido feita com exclusão do direito a dedução nos termos do nº1 do art. 21º” (segunda parte do nº 33 do art. 9º do CIVA). Na verdade, como refere MARIA ODETE OLIVEIRA (Cfr. ob. cit., p. 96. Em sentido contrário, CLOTILDE PALMA defende verificarem-se os pressupostos da isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA (cfr. “O tratamento em sede de IVA da transmissão de salvados automóveis pelas seguradoras”, Fiscalidade, Julho, 2002, pp. 23 ss.). No entanto, a autora também refere que “a operação de venda dos salvados transcende o conceito de operação de seguro, dado se encontrar “a jusante demais”, dessa actividade para poder ser considerada ainda como nela integrada, por muito alargado que seja o conceito da operação de seguro que possamos construir” (cfr. ob. cit., p. 23.) Em obra mais recente, a autora não é tão clara na defesa daquela tese (cfr. “Enquadramento da actividade seguradora”…cit., pp. 618 ss).) , “(…) escapando à incidência do imposto, a entrega da viatura sinistrada à seguradora pelo segurado, não se poderá com propriedade dizer que a seguradora a adquiriu sem que tenha havido exercício do direito a dedução. Este direito de dedução é do IVA suportado. Se não houve IVA suportado nunca poderá falar-se em exercício ou não do respectivo direito a dedução”. Por outro lado, a estender-se o âmbito da isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA, no sentido do defendido na jurisprudência do Acórdão do STA, que serviu de fundamento à sentença “a quo”, implicaria aceitar-se que sempre que um qualquer sujeito passivo, uma vez que o preceito é de aplicação genérica, adquirisse um qualquer bem a um particular estaria em condições de isentar a sua posterior transmissão. Ora, acontece que, no caso mais frequente de comercialização de bens em segunda mão, em que os bens são adquiridos a particulares com intenção de os voltar a reintroduzir no circuito da comercialização, foi necessário prever uma disposição especial para cobrir tais situações, que não ficaram desta forma isentas de IVA. A questão foi objecto da emissão de directiva própria (Directiva 94/5/CE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1994 (7ª Directiva de IVA), transposta para o direito interno por força do Decreto-Lei nº 199/96, de 18 de Outubro. Segundo o regime decorrente da mencionada Directiva, nas situações em que o segurado seja um particular ou um sujeito passivo que não deduziu o IVA suportado aquando da aquisição do veículo aplica-se à venda pela companhia de seguros o regime da margem, uma vez que se verifica também aqui de bens usados adquiridos para venda (É o que se passa designadamente na Holanda. Para maiores desenvolvimentos, cfr. MARIA ODETE OLIVEIRA, ob. cit., p. 99.) .

Acresce que, no caso particular da aquisição/venda de salvados, o alargamento do âmbito da isenção levaria a questionar se o mesmo seria igualmente extensível às demais actividades conexas ou complementares previstas no art. 8º, nº1, do Decreto-Lei nº 94-B/98 (2ª parte), uma vez que também em relação às mesmas se pode argumentar que ocorrem ainda no seguimento ou decorrência do pagamento do prémio do seguro e no quadro dos contratos de seguros, entendido num sentido amplo.

Não procede também o argumento segundo qual a não isenção da posterior venda do salvado conduz a uma situação de sobretributação (imposto de imposto) (Só nas situações em que o segurado, ao adquirir o veículo, não pode deduzir o IVA suportado (por se tratar de um particular ou de um sujeito passivo isento sem direito à dedução do imposto suportado), é que se verificam efeitos cumulativos de IVA sobre IVA, caso se submeta a tributação, nos termos gerais, a venda do salvado, com violação do princípio básico da neutralidade que se visa alcançar com o IVA.) , uma vez que o veículo já havia sido tributado em IVA sem direito a dedução aquando da sua aquisição pelo segurado. Acontece que, em primeiro lugar, este argumento somente será válido no caso de o segurado ser um particular não sujeito passivo de IVA. Em segundo lugar, mesmo neste caso, o valor do salvado é mínimo, comparado com o valor inicial do veículo, pelo que eventuais efeitos de sobreposição não são significativos, e, por outro lado, a isenção da venda só adia o problema transferindo-o para o sucateiro, a menos que por esta ordem de ideias se conclua que a posterior venda também está isenta de IVA, nos termos do nº 33 do art. 9º do CIVA, porque adquiriu um bem sem exercício do direito à dedução, solução com consequências geradoras de concorrência desleal inaceitáveis.

Em suma, segundo MARIA ODETE OLIVEIRA, as condições da isenção prevista no nº 33 do art. 9º do CIVA são: “que o bem esteja afecto à actividade isenta e que a aquisição do bem pelo sujeito passivo tenha sido feita com exclusão do direito a dedução”. Ora, no caso, “não se trata de uma actividade isenta, mas apenas de operações isentas. A isenção não é das companhias seguradoras mas apenas das operações de seguro e resseguro por elas realizadas. A lei não estabelece que ficam isentas todas as actividades de seguro e resseguro, mas apenas as operações de seguro e resseguro. Também não foram abrangidas as actividades conexas ou complementares em geral. Só as dos intermediários e correctores de seguro e não todas mas apenas das conexas com as operações de seguro e resseguro. Depois o salvado não deve ser qualificado como bem afecto à actividade seguradora”, (…) pois “quando se fala de bens afectos à actividade isenta quer-se significar os bens que tenham sido utilizados na empresa transmitente na realização de operações isentas do imposto. Aplicá-la aqui era partir não da utilização do bem para determinar o regime da subsequente venda mas inverter a relação e ir buscar o regime que se pretende para a venda para qualificar a utilização anterior” (Cfr. ob. cit., pp. 98/99.).

Em face do exposto, interpretar a norma do art. 16º do Código da Estrada como implicando o alargamento da isenção recebida no art. 9º, nºs 29 e 33, do CIVA, significaria aceitar uma isenção não prevista nem pelo Código do IVA nem pela Sexta Directiva, com violação do Direito comunitário. Note-se que quando aquela Directiva quis abranger na isenção as prestações de serviço relacionadas com as operações de seguro e de resseguro efectuadas por corretores e intermediários disse-o expressamente. Considerando a natureza excepcional ou anti-sistema das normas de isenção de IVA o Tribunal de Justiça da União Europeia tem defendido que as mesmas estão sujeitas ao princípio da interpretação “estrita” ou “declarativa”, vazada, entre outros, no Acórdão SUFA, de 1989. Aí se pode ler que “os termos utilizados para designar as isenções [então] visadas pelo artigo 13º da Sexta Directiva devem ser interpretados restritivamente dado que constituem derrogações ao princípio geral de acordo com o qual o imposto sobre o volume de negócios é cobrado sobre qualquer prestação de serviços efectuada a título oneroso sobre um sujeito passivo. Como observa Rui Laires, o que o TJUE sugere, com expressão algo incerta, é que das normas de isenção em matéria de IVA seja feita uma interpretação estrita declarativa, sito é, uma interpretação literal que não vá além do que a rigorosa expressão textual da directiva permite. Esta doutrina, primeiro firmada no acórdão SUFA, veio depois a ser reiterada em muitas decisões posteriores - como os acórdãos Henriksen, de 1989, Dornier-Stiftung, de 2003, ou Temco-Europe, de 2004” (Cfr. SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 312/313. No mesmo sentido, também CLOTILDE PALMA faz ampla resenha da jurisprudência do TJCE, cfr. “Enquadramento da actividade seguradora”…cit., pp. 618 ss. A título de exemplo, segundo a Autora, “No considerando 42 do Acórdão Skandia pode ler-se que o facto de o art. 13ºB, alínea a) da Sexta Directiva, visar outras operações para além das operações de seguro, corrobora a análise segundo a qual a operação de seguro não pode ser interpretada de forma demasiado ampla” (cfr. ob. cit., p. 620).).

Impõe-se, concluir, pelas razões expostas, que a venda de salvados pelas companhias de seguros não cabe em qualquer das situações de isenção estabelecidas pelo art. 9º nºs 29 e 33 do CIVA (…). …”

Apesar do que ficou exposto, e em função dos elementos antes apontados, foi entendido que existia uma evidente controvérsia sobre a melhor interpretação do disposto nos nºs 29 e 33º do artigo 9º do CIVA, e concomitantemente do disposto nas sub-alíneas a) e c) da alínea B) do artigo 13 da Sexta Directiva, que aqueles preceitos transpuseram para o direito nacional, a justificar o reenvio ao Tribunal de Justiça da União Europeia, à luz do disposto no artigo 267º do TFUE, com vista a garantir a aplicação uniforme do direito europeu na Comunidade, tendo sido formuladas as seguintes questões:

A. O artigo 13.º, n.º 1, alínea B), subalínea a), da Sexta Directiva do IVA e, por conseguinte, o actual artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Directiva do IVA devem ser interpretados no sentido de o conceito de “operações de seguro e de resseguro” compreender, para efeitos de isenção de IVA, actividades conexas ou complementares como a aquisição e venda de salvados?

B. O artigo 13.º, n.º 1, alínea B), subalínea c), da Sexta Directiva do IVA e, por conseguinte, o posterior artigo 136.º, alínea a), da Directiva do IVA devem ser interpretados no sentido de a aquisição e venda de salvados se considerar afecta exclusivamente a uma entidade isenta, desde que tais bens não tenham conferido direito à dedução do IVA?

C. É contrário ao princípio da neutralidade do IVA a não isenção de IVA sobre a venda dos salvados pelas seguradoras, nos casos em que não tenha havido direito à dedução do IVA?

Por Acórdão de 09 de Março de 2023, o TJUE, no processo C-42/22, declarou o seguinte:
1) O artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretado no sentido de que:

as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

2) O artigo 136.º, alínea a), da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que:

as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

3) O princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe à não isenção das operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, quando essas aquisições não tenham conferido direito à dedução do IVA.

Em sede de enquadramento, o Acórdão do TJUE elegeu o seguinte quadro jurídico:

Direito da União

3 Nos termos do considerando 66 da Diretiva IVA:

«A obrigação de transpor a presente diretiva para o direito nacional deverá limitar-se às disposições que constituam alterações de fundo relativamente às diretivas anteriores. A obrigação de transpor as disposições inalteradas decorre das diretivas anteriores.»

4 O artigo 1.º, n.º 2, desta diretiva dispõe:

«O princípio do sistema comum do IVA consiste em aplicar aos bens e serviços um imposto geral sobre o consumo exatamente proporcional ao preço dos bens e serviços, seja qual for o número de operações ocorridas no processo de produção e de distribuição anterior ao estádio de tributação.

Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.

[...]»

5 O artigo 2.º, n.º 1, alínea a), da referida diretiva prevê:

«Estão sujeitas ao IVA as seguintes operações:

a) As entregas de bens efetuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade».

6 Nos termos do artigo 14.º, n.º 1, da mesma diretiva:

«Entende-se por “entrega de bens” a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário.»

7 O artigo 24.º, n.º 1, da Diretiva IVA tem a seguinte redação:

«Entende-se por “prestação de serviços” qualquer operação que não constitua uma entrega de bens.»

8 O artigo 135.º, n.º 1, alínea a), desta diretiva dispõe:

«Os Estados-Membros isentam as seguintes operações:

a) As operações de seguro e de resseguro, incluindo as prestações de serviços relacionadas com essas operações efetuadas por corretores e intermediários de seguros».

9 O artigo 136.º, alínea a), da referida diretiva enuncia:

«Os Estados-Membros isentam as seguintes operações:

a) As entregas de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta por força do disposto nos artigos 132.º, 135.º, 371.º, 375.º, 376.º, 377.º, no n.º 2 do artigo 378.º, no n.º 2 do artigo 379.º e nos artigos 380.º a 390.º, desde que tais bens não tenham conferido direito à dedução do IVA».

10 As disposições reproduzidas nos n.ºs 8 e 9 do presente acórdão correspondem, respetivamente, ao artigo 13.º, B, alínea a), e ao artigo 13.º, B, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme (JO 1977, L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54; a seguir «Sexta Diretiva»).

Direito português

11 O artigo 9.º, pontos 29 e 33, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 394-B/84, de 26 de dezembro de 1984 (Diário da República, I série-A, n.º 297, de 26 de dezembro de 1984), na sua versão aplicável aos factos do litígio no processo principal (a seguir «Código do IVA»), dispõe:

«Estão isentas do imposto:

[...]

29) As operações de seguro e resseguro, bem como as prestações de serviços conexas, efetuadas pelos corretores e intermediários de seguro;

[...]

33) As transmissões de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta, quando não tenham sido objeto do direito à dedução, e bem assim as transmissões de bens cuja aquisição ou afetação tenha sido feita com exclusão do direito à dedução nos termos do n.° 1 do artigo 21.º» …”


Em sede de considerações, o Acórdão do TJUE fez a leitura do alcance do reenvio prejudicial:

“21 Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre o destino das operações, tendo em conta o sistema comum do IVA, que consistem em uma companhia de seguros proceder à revenda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia, que a mesma adquiriu aos seus segurados.

22 A título preliminar, no que respeita ao direito da União aplicável ratione temporis ao litígio no processo principal, importa salientar que resulta do artigo 413.° da Diretiva IVA que esta entrou em vigor em 1 de janeiro de 2007. O considerando 66 desta diretiva indica que a obrigação de a transpor para o direito nacional deverá limitar-se às disposições que constituam alterações de fundo relativamente às diretivas anteriores e que a obrigação de transpor as disposições inalteradas decorre das diretivas anteriores.

23 Ora, o artigo 135.º, n.º 1, alínea a), e o artigo 136.º, alínea a), da Diretiva IVA correspondem, respetivamente, ao artigo 13.º, B, alínea a), e ao artigo 13.º, B, alínea c), da Sexta Diretiva, de modo que a obrigação de transposição que lhes diz respeito resulta desta última diretiva. Por conseguinte, uma vez que o litígio no processo principal tem por objeto correções em sede de IVA relativas ao ano de 2007, a Diretiva IVA é aplicável a este litígio (v., por analogia, Acórdão de 4 de outubro de 2017, Federal Express Europe, C-273/16, EU:C:2017:733, n.os 30 e 31).

24 Além disso, importa igualmente salientar que, embora as questões submetidas digam respeito a operações que consistem na compra, por uma companhia de seguros, de salvados pertencentes aos seus segurados e na revenda desses salvados a terceiros, resulta da decisão de reenvio que o litígio no processo principal se refere unicamente ao tratamento fiscal dessa operação de revenda para efeitos de IVA.

25 Em consequência, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio que lhe permita decidir este litígio, é necessário reformular as questões submetidas no sentido de que se referem unicamente às operações de revenda a terceiros, por uma companhia de seguros, de salvados adquiridos aos seus segurados. …”.

A partir daqui, o Acórdão do TJUE debruçou-se sobre a realidade a considerar nesta sede, ponderando que:
“…
Quanto à primeira questão
26 Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição e, portanto, estão isentas ao abrigo da mesma.
27 É necessário salientar, a título preliminar, que, por um lado, resulta dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que, no regime português do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, em caso de sinistro que implique a perda total do veículo coberto pelo seguro, o segurado e a companhia de seguros têm a possibilidade de decidir sobre a transferência da propriedade do salvado para essa companhia. Para esse efeito, esta é obrigada a comunicar o valor a que está disposta a comprar esse salvado ao segurado, a fim de lhe permitir tomar uma decisão. Na hipótese de essa transferência se realizar, a referida companhia procede, em seguida, como aconteceu nas situações em causa no processo principal, à revenda do referido salvado a um terceiro. O montante pago pela companhia de seguros ao segurado inclui o valor do salvado, assim determinado.
28 Por outro lado, importa recordar que as isenções previstas no artigo 135.º, n.º 1, da Diretiva IVA constituem conceitos autónomos do direito da União que têm por objetivo evitar divergências na aplicação do regime do IVA de um Estado-Membro para outro (Acórdão de 25 de julho de 2018, DPAS, C-5/17, EU:C:2018:592, n.º 28 e jurisprudência referida), que devem, por conseguinte, ser interpretadas de maneira uniforme no território de todos os Estados-Membros.
29 Além disso, os termos utilizados para designar as isenções referidas no artigo 135.º da Diretiva IVA são de interpretação estrita, dado que constituem exceções ao princípio geral segundo o qual o IVA é cobrado sobre cada entrega de bens e sobre cada prestação de serviços efetuadas a título oneroso por um sujeito passivo. Todavia, a interpretação desses termos deve ser conforme aos objetivos prosseguidos por essas isenções e respeitar as exigências do princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA. Assim, essa regra de interpretação estrita não significa que os termos utilizados para definir as referidas isenções devam ser interpretados de maneira a privá-las dos seus efeitos (Acórdão de 17 de janeiro de 2013, Woningstichting Maasdriel, C-543/11, EU:C:2013:20, n.º 25 e jurisprudência referida).
30 É à luz destas considerações preliminares que é necessário determinar se as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva IVA.
31 Nos termos desta disposição, os Estados-Membros isentam as «[a]s operações de seguro e de resseguro, incluindo as prestações de serviços relacionadas com essas operações efetuadas por corretores e intermediários de seguros».
32 O objetivo desta isenção diz respeito essencialmente à dificuldade em determinar a matéria coletável correta de IVA para os prémios de seguro relativos à cobertura do risco [v., neste sentido, Acórdão de 8 de outubro de 2020, United Biscuits (Pensions Trustees) e United Biscuits Pension Investments, C-235/19, EU:C:2020:801, n.º 32].
33 No que respeita, em primeiro lugar, ao conceito de «operações de seguro», na aceção do artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva IVA, estas operações caracterizam-se pelo facto de o segurador, mediante o pagamento prévio de um prémio pelo segurado, se comprometer a fornecer a este último, em caso de realização do risco coberto, a prestação acordada no momento da celebração do contrato [Acórdãos de 25 de fevereiro de 1999, CPP, C-349/96, EU:C:1999:93, n.º 17, e de 8 de outubro de 2020, United Biscuits (Pensions Trustees) e United Biscuits Investments, C-235/19, EU:C:2020:801, n.º 30 e jurisprudência referida]. A própria essência dessas operações reside no facto de o segurado se proteger do risco de perdas financeiras, que são incertas mas potencialmente importantes, através de um prémio cujo pagamento é, do seu ponto de vista, certo mas limitado (Acórdão de 16 de julho de 2015, Mapfre asistencia e Mapfre warranty, C-584/13, EU:C:2015:488, n.º 42).
34 Além disso, a identidade do destinatário da prestação tem importância para efeitos da definição das operações de seguro, as quais implicam, pela sua própria natureza, a existência de uma relação contratual entre o prestador do serviço de seguro e a pessoa cujos riscos são cobertos pelo seguro, ou seja, o segurado (v., por analogia, Acórdãos de 8 de março de 2001, Skandia, C-240/99, EU:C:2001:140, n.º 41, e de 22 de outubro de 2009, Swiss Re Germany Holding, C-242/08, EU:C:2009:647, n.º 36).
35 Ora, há que constatar que as operações de venda de salvados, como as que estão em causa no processo principal, ocorrem ao abrigo de convenções distintas de contratos de seguro que cobrem esses veículos, celebrados pela companhia de seguros com pessoas que não os segurados e que não estão abrangidas por uma relação de seguro.
36 Com efeito, a venda de um bem é alheia à cobertura de um risco e o preço corresponde ao valor do bem em causa no momento dessa venda. A determinação da matéria coletável do IVA não suscita dificuldades em tal caso.
37 A este respeito, é irrelevante o facto de, como foi salientado no n.º 27 do presente acórdão, essa operação incidir sobre o salvado resultante de um sinistro coberto pela companhia de seguros que o vendeu e que o montante da indemnização devida ao segurado em consequência desse sinistro inclua o preço de aquisição desse salvado. Com efeito, o valor do salvado constitui o valor residual, após o sinistro, do veículo segurado e, portanto, não faz parte, por definição, do dano sofrido pelo segurado. Por conseguinte, esse preço não faz parte da indemnização de seguro propriamente dita, sendo pago ao segurado em execução de um contrato de compra e venda distinto da convenção de seguro e separável desta.
38 Por conseguinte, uma operação de venda de salvados como as que estão em causa no processo principal não constitui uma «operação de seguro», na aceção do artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva IVA.
39 Por último, é necessário constatar que essa operação de venda não pode ser considerada como estando indissociavelmente ligada ao contrato de seguro relativo ao veículo em causa e, por esse facto, como devendo ter o mesmo tratamento fiscal que esse contrato.
40 É certo que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, em determinadas circunstâncias, várias operações formalmente distintas, suscetíveis de ser realizadas separadamente e de dar assim lugar, em cada caso, à tributação ou à isenção, devem ser consideradas uma operação única quando não sejam independentes. Está em causa uma operação única, nomeadamente, quando dois ou vários elementos ou atos fornecidos pelo sujeito passivo ao cliente estão tão estreitamente ligados que formam, objetivamente, uma única prestação económica indissociável, cuja decomposição revestiria um caráter artificial. É também o que sucede nos casos em que uma ou várias prestações constituem uma prestação principal e a outra ou as outras prestações constituem uma ou várias prestações acessórias que partilham do destino fiscal da prestação principal (Acórdão de 16 de abril de 2015, Wojskowa Agencja Mieszkaniowa w Warszawie, C-42/14, EU:C:2015:229, n.º 31 e jurisprudência referida).
41 No entanto, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que, embora todas as operações de seguro apresentem, por natureza, um nexo com o bem que visam cobrir, pelo que existe uma determinada conexão entre esta operação e uma outra operação relativa a esse mesmo bem, esse nexo não pode bastar, por si só, para determinar se existe ou não uma prestação única complexa para efeitos de IVA (v., neste sentido, Acórdão de 17 de janeiro de 2013, BG¯ Leasing, C-224/11, EU:C:2013:15, n.º 36).
42 No caso em apreço, como foi referido no n.º 35 do presente acórdão, as vendas dos salvados em causa no processo principal resultam de convenções distintas dos contratos de seguro que cobrem esses veículos e que são celebrados pela companhia de seguros com outras pessoas que não os segurados. Além disso, resulta do n.º 27 do presente acórdão que estes últimos, proprietários originais desses salvados, não são obrigados a cedê-los a essa companhia, pelo que a decisão desses segurados é independente desses contratos de seguro e tomada posteriormente à sua celebração, e mesmo à materialização do risco coberto.
43 Assim, não se pode considerar que o facto de vendas como as que estão em causa no processo principal serem realizadas por uma companhia de seguros e dizerem respeito a salvados resultantes de sinistros cobertos por essa companhia tenha por consequência que essas vendas e os contratos de seguro relativos a esses veículos estejam tão estreitamente ligados que formem, objetivamente, do ponto de vista económico, um todo cuja decomposição revestiria um caráter artificial.
44 No que respeita, em segundo lugar, ao conceito de «prestações de serviços relacionadas [com] operações [de seguro e de resseguro,] efetuadas por corretores e intermediários de seguros», na aceção do artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva IVA, é necessário salientar que as «prestações de serviços» são definidas no artigo 24.º, n.º 1, desta diretiva como qualquer operação que não constitua uma entrega de bens.
45 Ora, a venda de um salvado constitui uma «entrega de bens» na aceção do artigo 14.º, n.º 1, da referida diretiva, que visa a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário. Por conseguinte, essa venda não pode ser abrangida pelo conceito referido no número anterior.
46 Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.
Quanto à segunda questão
47 Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo n.º 136, alínea a), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição e, portanto, estão isentas ao abrigo da mesma.
48 O artigo 136.º, alínea a), da Diretiva IVA prevê a isenção das entregas de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta por força, nomeadamente, do artigo 135.º desta diretiva, desde que tais bens não tenham conferido direito à dedução do IVA.
49 No âmbito do artigo 136.º, alínea a), da Diretiva IVA, o termo «afetos» refere-se ao facto de um bem se destinar a uma determinada utilização, no caso em apreço, a ser utilizado para as necessidades de uma atividade que consiste em realizar operações de seguro, conforme definidas nos n.ºs 33 e 34 do presente acórdão.
50 Ora, tal não é o caso dos bens que uma companhia de seguros adquire, resultantes dos sinistros que cobre e que destina não à utilização no âmbito da sua atividade seguradora, mas a serem revendidos, no estado em que se encontram e sem terem sido utilizados, a terceiros. Esta última circunstância basta, aliás, para demonstrar que esses bens não são relevantes no âmbito dessa atividade seguradora.
51 Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 136.º, alínea a), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.
Quanto à terceira questão
52 Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe à não isenção das operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, quando essas aquisições não tenham conferido direito à dedução do IVA.
53 O princípio da neutralidade fiscal reflete-se no regime das deduções, regime que visa desonerar inteiramente o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, uma neutralidade perfeita quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas atividades estejam elas próprias sujeitas a IVA (Acórdão de 13 de março de 2014, Malburg, C-204/13, EU:C:2014:147, n.º 41 e jurisprudência referida).
54 Embora, como resulta do n.º 29 do presente acórdão, a interpretação das disposições da Diretiva IVA que prevêem isenções deva respeitar as exigências do princípio da neutralidade fiscal, este último não permite, no entanto, alargar o âmbito de aplicação de uma isenção na falta de uma disposição inequívoca. Com efeito, este princípio não é uma norma de direito primário que possa determinar a validade de uma isenção, mas um princípio de interpretação que deve ser aplicado paralelamente com o princípio de que as isenções são de interpretação estrita (Acórdãos de 19 de julho de 2012, Deutsche Bank, C-44/11, EU:C:2012:484, n.º 45, e de 8 de julho de 2021, Rádio Popular, C-695/19, EU:C:2021:549, n.º 44 e jurisprudência referida).
55 A exclusão de operações como as que estão em causa no processo principal do âmbito de aplicação das isenções previstas no artigo 135.º, n.º 1, alínea a), e no artigo 136.º, alínea a), da Diretiva IVA não pode, por conseguinte, ser posta em causa pelo facto de ser contrária ao princípio da neutralidade fiscal.
56 Por conseguinte, há que responder à terceira questão que o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à não isenção das operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, quando essas aquisições não tenham conferido direito à dedução do IVA. …”.

Assim sendo, TJUE declara que:
1) O artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretado no sentido de que:

as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

2) O artigo 136.º, alínea a), da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que:

as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

3) O princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe à não isenção das operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, quando essas aquisições não tenham conferido direito à dedução do IVA.

Nesta sequência, tem de dizer-se que a decisão recorrida andou bem quando seguiu a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal Administrativo sobre a questão no sentido de que “As operações de alienação de «salvados» realizadas por companhias de seguros não beneficiam das isenções previstas no artigo 9.º, nºs 28 ou 32, do CIVA [a que correspondem os nºs 29 e 33 do artigo 9.º na redação anterior ao DL n.º 102/2008, de 20 de junho], tratando-se, outrossim, de operações sujeitas a IVA nos termos do artigo 3.º do CIVA, por se considerarem transmissões onerosas de bens corpóreos”.

Pois bem, o Acórdão do TJUE proferido na sequência de pedido de reenvio prejudicial formulado nos autos vem dar suporte como que actual a tal jurisprudência e vai mais longe quando afasta as operações em apreço do âmbito de aplicação, quer do artigo 135.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, quer do artigo 136.º, alínea a), da Diretiva 2006/112, afirmando ainda que o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à não isenção das operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, quando essas aquisições não tenham conferido direito à dedução do IVA.

Em suma, tendo presente aquilo que constitui a jurisprudência deste Supremo Tribunal e a análise actual do TJUE sobre a matéria em discussão nestes autos, resulta clara a resposta a dar à questão de saber se a venda dos denominados “salvados” pelas empresas que exercem a actividade seguradora está ou não isenta de IVA à luz do disposto no artigo 9º, nº 29 e 33 do CIVA, no sentido de que “A aquisição e venda de “salvados” pelas companhias de seguros é uma actividade complementar das operações de seguro e resseguro que não está incluída nas normas de isenção de IVA previstas nos nºs 28º e 32º (anteriores 29 ou 33) do artigo 9º do CIVA”, o que retira qualquer virtualidade ao exposto pela Recorrente, o que implica que a decisão recorrida não merece qualquer censura, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão no que concerne ao presente recurso.




4. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, mantendo-se a decisão judicial recorrida.

Custas pela Recorrente.
Notifique-se. D.N..




Lisboa, 29 de Março de 2023. - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - (relator) - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.