Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0389/21.8BESNT
Data do Acordão:12/16/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
REVISTA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
FUMUS BONI JURIS
Sumário:Não é de admitir revista se não se vislumbra que haja razões com relevância jurídica ou social de importância excepcional ou necessidade de uma melhor aplicação do direito, se o acórdão recorrido parece ter decidido com acerto a questão atinente à falta de verificação do fumus boni iuris, quer quanto à invocada violação do direito à habitação, quer quanto ao que expendeu de forma a sustentar a falta de probabilidade de a acção principal vir a ter êxito.
Nº Convencional:JSTA000P28719
Nº do Documento:SA1202112160389/21
Data de Entrada:12/07/2021
Recorrente:A.........
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE CASCAIS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal Administrativo

Formação de Apreciação Preliminar



1. Relatório
A………… intentou no TAF de Sintra, providência cautelar contra o Município de Cascais, peticionando a suspensão de eficácia do acto administrativo praticado pelo Presidente da Câmara Municipal de Cascais, em 03.11.2020, que determinou a cessação da ocupação ilegal do prédio urbano sito na Estrada ........., nº ....... (casa .......), em Cascais, de propriedade municipal, bem como a execução do despejo, caso não ocorra a desocupação voluntária do fogo.

Por sentença de 04.07.2021 o TAF de Sintra indeferiu a providência cautelar.

A Requerente interpôs recurso desta decisão para o TCA Sul que por acórdão de 31.08.2021 negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

A Requerente/Recorrente não se conforma com esta decisão, interpondo a presente revista, por entender que há erro de julgamento do acórdão recorrido, estando reunidos os requisitos para que seja concedida a providência e que a questão em causa tem relevância social fundamental.

O Recorrido contra-alegou defendendo a inadmissibilidade da revista ou a respectiva improcedência.


2. Os Factos
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

3. O Direito
O art. 150º, nº 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de uma importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como resulta do próprio texto legal, e a jurisprudência deste STA tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como, aliás, o legislador sublinhou na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs 92/VIII e 93/VIII, considerando o preceito como uma “válvula de segurança do sistema”, que só deve ter lugar, naqueles precisos termos.

Alegou, em síntese, a Recorrente que o acórdão recorrido violou o conteúdo essencial do direito à habitação consagrado no art. 65º, nº 1 da CRP, tendo incorrido em nulidade por omissão de pronúncia ao não ter abordado a questão do direito de retenção do imóvel, pelo crédito referente a obras no locado [art. 615º, nº 1, al. d) do CPC e arts. 754º e 755º, nº 1, al. e) do Código Civil (CC)]. E que mesmo a entender-se que era verdadeiro o entendimento da 1ª instância de que não estavam esclarecidos nos autos a situação económica da Requerente, não permitindo ao tribunal formular um juízo de preenchimento do requisito do periculum in mora, deveria ter havido um convite a aperfeiçoar o requerimento inicial, suprindo essa insuficiência alegatória, ao abrigo dos princípios da cooperação e da justa composição do litígio (nºs 3 e 4 do art. 590º do CPC).

O TAF de Sintra, em síntese, apreciou o requisito do periculum in mora do nº 1 do art. 120º do CPTA, julgou-o não verificado por, quanto a tal requisito, nada ter sido alegado em concreto quanto à existência de um facto consumado ou prejuízo de difícil reparação, “firmando-se apenas na alegação (cfr. artigo 28.º), de que, juntamente com o seu marido, “auferem apenas as respectivas pensões de reforma”, no valor mensal de 192,65 euros e de 278,35 euros, sem cuidarem de alegar e provar se efectivamente não tinham mais rendimentos o que, aliás, se veio a vislumbrar não corresponder à realidade dos factos, o que se afere pelas quantias que auferem por via do Serviço de Pensões da Inglaterra, informação esta prestada apenas, após notificação do Tribunal para o efeito.
Mais referiu que: “…o que resulta, numa análise perfunctória, face às alegações que expende no seu requerimento inicial e da factualidade supra descrita é que a aqui autora, não viveu no imóvel desde 1986, de forma permanente e reiterada, apenas usando o locado para deslocações a Portugal, fosse de férias ou noutras ocasiões, mas tendo o seu centro de atenções familiares em Inglaterra, sendo irrelevante que ali recebesse a sua correspondência ou recebesse familiares e amigos, ou as obras que ali tenha realizado, questão esta irrelevante para o efeito que pretende com a presente acção cautelar.”
Concluiu, assim, não estar verificado este requisito, tanto bastando para que a providência não pudesse ser concedida (visto os requisitos do nº 1 do art 120º do CPTA serem de verificação cumulativa). No entanto, considerou, ainda, não resultar qualquer aparência de bom direito [fumus boni iuris], face a uma ocupação de um fogo municipal, através de uma posse não titulada, ou seja, desprovida de qualquer título jurídico, tendo apenas por base uma autorização precária à mãe da requerente em 1945.
Assim, decidiu indeferir a providência cautelar requerida.

O acórdão recorrido confirmou a sentença de 1ª instância, negando provimento ao recurso, tendo em conta, desde logo, a não verificação do requisito do fumus boni iuris, previsto no nº 1 do art. 120º do CPTA, por o actual CPTA exigir para o deferimento de um pedido de suspensão de eficácia um juízo de probabilidade de que a acção principal seja procedente, o que implica a probabilidade da ilegalidade do acto ou da norma, sendo que a simplicidade, provisoriedade e sumariedade que caracterizam este meio cautelar urgente, não se coadunam com uma apreciação exaustiva dos vícios que devam ser apreciados. Realçou ainda que a providência cautelar não se destina a retardar a execução do acto, mas a acautelar o efeito útil da acção principal destinada à anulação do mesmo.
Assim, no caso concreto, considerou o acórdão o seguinte: “(…), importa sublinhar que o fogo habitacional em questão está a ser ocupado sem título. Como se explicita na sentença recorrida, trata-se de “uma posse não titulada, fundada em anterior comodato, autorizado pelo Instituto da Segurança Social, face à inexistência de qualquer contrato, autorização ou outro instrumento, face à exiguidade dos valores em causa na “renda” associada”. Mais se referindo na sentença recorrida: “entenda-se que o próprio direito de ocupação concedido à mãe da requerente, relativamente ao prédio em causa, enquadra-se no âmbito duma cedência precária titulada por alvará, tal como o previa o Decreto n.º 35.106, de 06/11/1945, entretanto revogado pela Lei n.º 21/2009 (cfr. art.º 1.º). // Conforme expressamente resultava do art.º 1.º do Decreto n.º 35.106 a concessão de habitação social concedida nos termos desse diploma era a título precário, tratando-se, pois, de um regime legal fortemente marcado pela precariedade do direito à ocupação por parte dos destinatários de tais habitações”.
Ou seja, em suma, e ao que aqui apenas importa, a RECORRENTE não é ocupante autorizada do fogo municipal, não detendo qualquer título para o efeito.
É que o título de ocupação que em 1940 foi atribuído à mãe da RECORRENTE tinha carácter meramente precário e não era transmissível hereditariamente. Donde, a ocupação do imóvel que a mesma RECORRENTE fez nos últimos anos não configura um contrato de arrendamento, mas antes uma cedência precária, a qual não confere ao seu titular direitos contratuais de uso da coisa cedida.
E tanto basta para impedir o deferimento da providência requerida, sendo o demais alegado irrelevante atento o meio processual em uso (sem prejuízo de poder relevar noutra sede, nomeadamente no âmbito da tutela indemnizatória).
Assim, em conclusão, não se encontra minimamente demonstrado o requisito do fumus boni iuris, isto é, que o acto em apreço seja inválido e que a acção a propor para impugnação do mesmo tenha qualquer viabilidade de procedência.”. Assim, sendo os requisitos do art. 120º de verificação cumulativa entendeu que ficava, desde logo, prejudicado o conhecimento dos restantes requisitos.
No entanto, referiu ainda acerca do direito à habitação que o art. 65º, nº 1 da CRP, não confere um direito imediato a “uma prestação efectiva dos poderes públicos mediante a disponibilização de uma habitação, antes rege na garantia de critérios objectivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo sector público (sobre esta questão, também em caso similar ao presente, o ac. deste TCAS de 2.04.2014, proc. n.º 1133/14, idem o 21.03.2013, proc. n.º 9712/13). Também por aqui não se antevê, portanto, o mínimo de probabilidade de ganho de causa na acção principal.”


Como se viu as instâncias coincidiram no entendimento de que não se verificava o requisito do fumus boni iuris, um dos requisitos de que o nº 1 do art. 120º do CPTA faz depender o deferimento das providências cautelares, conjuntamente com o periculum in mora (apreciado em 1ª instância), e o requisito negativo do nº 2 do referido preceito.
Na revista a Recorrente pugna mais uma vez pela violação do conteúdo essencial do direito à habitação consagrado no art. 65º, nº 1 da CRP, agora pelo acórdão recorrido, alegando ter este incorrido em nulidade por omissão de pronúncia ao não ter abordado a questão do direito de retenção do imóvel, pelo crédito referente a obras no locado (art. 615º, nº 1, al. d) do CPC e arts. 754º e 755º, nº 1, al. e) do CC).
A argumentação da Recorrente não é, porém, convincente.
O acórdão recorrido procedeu a uma análise do fumus boni iuris (consonante com o já decidido em 1ª instância) concluindo que não é provável a procedência da pretensão formulada na acção principal, sendo certo que a não verificação deste requisito acarretou o não conhecimentos do periculum in mora e da ponderação de interesses prevista no nº 2 do art. 120º do CPTA, visto serem de verificação cumulativa, conforme bem realça o acórdão recorrido e é jurisprudência pacífica.
Ora, o acórdão recorrido parece ter decidido com acerto a questão atinente à falta de verificação do fumus boni iuris, quer quanto à invocada violação do direito à habitação, quer quanto ao que expendeu de forma a sustentar a falta de probabilidade de a acção principal vir a ter êxito. Por outro lado, não se vislumbra que tenha incorrido em nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d) do CPC que justificasse a admissão da revista.
Com efeito, a questão do direito de retenção do imóvel por conta de um alegado crédito não se mostra relevante para aferir do fumus boni iuris, não tendo sido alegada como fundamento daquele requisito no requerimento inicial, sendo que ainda assim o acórdão recorrido a refere brevemente ao dizer que o mais alegado (no qual se incluirá esta alegação) pode relevar noutra sede, nomeadamente para efeitos de tutela indemnizatória (cfr. pág. 25 do acórdão). E, se o alegado tem em vista o requisito do periculum in mora, tal como se diz no acórdão complementar que se pronunciou sobre a invocada nulidade por omissão de pronúncia – acórdão do TCA Sul de 04.11.2021 -, ter-se-á que considerar prejudicado por o acórdão recorrido não ter julgado verificado o fumus boni iuris, o que torna igualmente irrelevante o alegado quanto a um eventual convite a aperfeiçoar o requerimento inicial, suprindo essa insuficiência alegatória, ao abrigo dos princípios da cooperação e da justa composição do litígio - nºs 3 e 4 do art. 590º do CPC -, por respeitar a requisito cuja apreciação ficou prejudicada.
Assim, não se vislumbrando que haja razões com relevância jurídica ou social de importância excepcional ou necessidade de uma melhor aplicação do direito, não se justifica o afastamento da regra da excepcionalidade do recurso de revista. Até por o recurso estar circunscrito ao caso concreto, tanto mais que se trata de uma providência cautelar, na qual as questões são analisadas de forma sumária, circunstância menos propensa ao cumprimento do papel esperado das decisões dos tribunais supremos (cfr. neste sentido o ac. de 08.09.2017, Proc. nº 0910/16).

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em não admitir a revista.
Custas pela Recorrente.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2021. – Teresa de Sousa (relatora) – Carlos Carvalho – José Veloso.