Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0629/20.0BEALM
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
AJUDAS COMUNITÁRIAS
Sumário:Não é de admitir a revista se as questões suscitadas desmerecem tanto por não se divisar a necessidade de uma melhor aplicação do direito, como por, face aos contornos particulares do caso concreto, elas não terem vocação «universalista».
Nº Convencional:JSTA000P31848
Nº do Documento:SA1202401250629/20
Recorrente:IFAP - INSTITUTO DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA E PESCAS, I.P.
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em «apreciação preliminar», na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. INSTITUTO DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA E PESCAS, I.P. [IFAP] - demandado nesta acção administrativa - vem, invocando o artigo 150º do CPTA, interpor recurso de revista do acórdão do TCAS - datado de 09.11.2023 - que negando provimento à sua apelação da sentença do TAF de Almada - datada de 11.12.2022 - decidiu mantê-la na ordem jurídica, e, assim, confirmar o julgamento de procedência da acção proposta por AA - cujo pedido era o de anulação da decisão administrativa do Vice-Presidente do IFAP que lhe ordenou a «devolução da quantia de 43.824,44€» corresponde a parte do apoio atribuído no âmbito da operação nº020000901821 - PRODER - Acção 3.1.2./Criação e Desenvolvimento de Microempresas.

Alega que o «recurso de revista» deve ser admitido em nome da «necessidade de uma melhor aplicação do direito» e em nome da «relevância jurídica e social da questão».

A autora e ora recorrida - AA - não contra-alegou.

2. Dispõe o nº1, do artigo 150º, do CPTA, que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Deste preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 149º do CPTA - conhecendo em segundo grau de jurisdição - não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar: i) Quando esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou, ii) Quando o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. No âmbito do presente litígio, o TAF de Almada proferiu «sentença» em 11.12.2022 - antecipando o juízo da causa principal [artigo 121º do CPTA] - em que julgou procedente a acção, anulando o acto administrativo pelo qual o Vice-Presidente do IFAP ordenara à autora a restituição da quantia de 43.824,44€ correspondente a parte do «apoio que lhe havia sido atribuído» no âmbito de operação -020000901821/PRODER/Acção 3.1.2. - visando o desenvolvimento de microempresas.

Fê-lo por considerar «prescrito o procedimento» visando a aplicação de sanções e a restituição de ajudas comunitárias consideradas como «irregulares» - artigos 1º, e 3º nº1, do Regulamento (CE/EURATOM) nº2988/95, de 18.12. Para tanto, entendeu que a irregularidade em causa se consubstanciava na não criação líquida de dois postos de trabalho - e não, como entende o IFAP, na «não devolução das ajudas concedidas» - e que não se tratava de uma irregularidade de natureza continuada ou repetida, sendo «a partir da sua ocorrência» que deveria ser contado o «prazo de prescrição de quatro anos» previsto no artigo 3º, nº1, do Regulamento (CE/EURATOM) nº2988/95, de 18.12. Mais entendeu que quando a autora foi notificada do projecto de decisão - primeiro acto, emanado da autoridade competente, pelo qual lhe foi dado conhecimento da instauração e instrução de procedimento por irregularidade - já tinha, de facto, decorrido o prazo de prescrição do procedimento em causa.

O TCAS, por acórdão de 09.11.2023, negou provimento à apelação do IFAP, mantendo a sentença recorrida na sua decisão e fundamentos relativos à questão da prescrição. Escreve-se no «acórdão recorrido» - após larga citação do julgamento vertido na sentença - o seguinte: […] O julgamento efectuado não merece qualquer censura. A fundamentação adoptada é conforme à jurisprudência consolidada nessa matéria, a que também aderimos, devendo, portanto, manter-se nos seus exactos termos […]. A irregularidade detectada é efectivamente a não criação líquida de dois postos de trabalho, não tendo qualquer fundamento legal a afirmação do recorrente no sentido de que a mesma se consubstancia na «não devolução das ajudas concedidas», que, em si mesmo é a consequência da irregularidade. Recusando-se a tese de que a irregularidade reside nessa recusa de devolução do incentivo, cai por terra a relevância do seu carácter continuado, também defendida pelo recorrente. Sendo que, como bem se julgou, a irregularidade em causa [a não criação líquida de dois postos de trabalho] não assume uma natureza continuada antes se tendo consumado em 2014 pelo que, em 2020, aquando da notificação do projecto de decisão [altura em que a recorrida teve conhecimento da instauração do procedimento por irregularidade], já havia decorrido o prazo prescricional previsto no artigo 3º, nº1, do Regulamento. […]

O demandado e apelante IFAP volta a discordar, e pede revista do assim mantido pelo tribunal de apelação qualificando de «errado o seu julgamento de direito» no tocante à questão da prescrição do procedimento visando a aplicação de sanções e a restituição de ajudas comunitárias irregulares. Alega, e novamente, que ocorreu uma «incorrecta aplicação do Regulamento» quanto à data de início da contagem, e quanto à própria contagem do prazo de prescrição, entendendo, para tal efeito, que a irregularidade em causa deverá ser «a não devolução das ajudas concedidas», e que esta irregularidade terá natureza continuada. Invoca, pois, a errada interpretação e aplicação dos artigos 1º e 3º, nº1, do Regulamento (CE/EURATOM) nº2988/95, de 18.12.

Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Ora, como vem sublinhando esta «Formação», a admissão da revista fundada na clara necessidade de uma melhor aplicação do direito prende-se com situações respeitantes a matérias relevantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente, ou, até, de forma contraditória, a exigir a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como essencial para dissipar as dúvidas sobre o quadro legal que regula essa concreta situação, emergindo, destarte, a clara necessidade de uma melhor aplicação do direito com o significado de boa administração da justiça em sentido amplo e objectivo. E que a relevância jurídica fundamental se verifica quando se esteja - designadamente - perante questão jurídica de elevada complexidade, seja porque a respectiva solução envolve a aplicação conjugada de diversos regimes jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha já suscitado dúvidas sérias na jurisprudência ou na doutrina. Por seu lado, a relevância social fundamental aponta para questão que apresente contornos indiciadores de que a respectiva solução pode corresponder a paradigma de apreciação de casos similares, ou que verse sobre matérias revestidas de particular repercussão na comunidade.

A «questão» nuclear trazida à presente revista tem a ver com a questão da prescrição do procedimento visando a aplicação de sanções e a restituição de ajudas comunitárias irregulares - artigos 1º e 3º, nº1, do Regulamento (CE/EURATOM) n°2988/95 do Conselho, de 18.12 - e, mais em concreto, com a determinação, no caso, da data de início e de termo da contagem do respectivo prazo, o que passa pela determinação da ocorrência da irregularidade e da sua respectiva natureza.

Constata-se que os tribunais de instância julgaram, de forma unânime, e juridicamente consistente, que a irregularidade em causa se consubstanciava na «não criação líquida de dois postos de trabalho», e não, como pretende o réu IFAP na «não devolução das ajudas concedidas», e que tal irregularidade não tinha natureza continuada ou repetida e que era a partir da sua ocorrência que deveria ser contado o prazo de prescrição de quatro anos previsto no artigo 3º, nº1, do Regulamento (CE/EURATOM) nº2988/95, de 18.12. Assim, da avaliação preliminar sumária que nos é pedida ressuma que a decisão de anular o acto impugnado se nos apresenta como aceitável e juridicamente razoável, para além de não destoar da jurisprudência que a respeito vem sendo produzida por este Supremo Tribunal. Deste modo, a dita questão, apesar de relevante, apresenta-se aparentemente bem resolvida no «acórdão recorrido», pelo que não se patenteia como claramente indispensável a sua revista em ordem a «melhor aplicação do direito».

É certo que o IFAP está vinculado ao princípio da legalidade, que se limita a aplicar no âmbito da atribuição das ajudas bem como no âmbito da recuperação daquilo que, na sua perspectiva jurídica, se mostra indevidamente recebido. Por isso mesmo, esta sua missão contende com um interesse à partida socialmente relevante, o qual, porém, se encontra no presente caso fortemente esbatido em face do aparente acerto decisório do acórdão recorrido. Daí que entendamos também não estar devidamente preenchido o pressuposto da importância fundamental da questão objecto da pretensão de revista.

Destarte, e bem vistas as coisas, o presente recurso de revista consubstancia-se numa «pretensão de abertura de terceira instância», não permitida por lei.

Por isso, entendemos não se verificar qualquer um dos «pressupostos» justificativos da admissão da revista, não sendo o presente caso susceptível de quebrar a «regra» da excepcionalidade da admissão do respectivo recurso.

Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em não admitir a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024. – José Veloso (relator) – Teresa de Sousa – Fonseca da Paz.