Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0831/11
Data do Acordão:11/16/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
IRS
IRC
HIPOTECA
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO GERAL
Sumário:Os privilégios imobiliários previstos nos artigos 111º do CIRS, 116.° do CIRC e 205.° do Cód. do Regime Contributivo do Sistema Providencial da Segurança Social aprovado pela Lei n.º 110/09, de 16/9 (que sucedeu ao disposto nos arts. 10.º e 11.° do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9/5) são gerais e não especiais pelo que não preferem ao crédito hipotecário, também reclamado, na respectiva graduação de créditos.
Nº Convencional:JSTA000P13470
Nº do Documento:SA2201111160831
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:CENTRO DISTRITAL DE SEGURANÇA SOCIAL DE BRAGA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
I – A A……, com os sinais dos autos, vem recorrer para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga de 19 de Maio de 2011, proferida nos autos de verificação e graduação de créditos à execução fiscal nº 0450-2002/501026690, instaurada contra a sociedade B…… melhor identificada nos autos, por dívidas de dois contratos de mútuo, no montante global de 684.330,91€.
Termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1ª)- Decorre do disposto no artigo 686° do Código Civil que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo;
2ª)- Os créditos por IRS, IRC e os créditos por contribuições devidas à Segurança Social apenas fruem de privilégio geral (mobiliário ou imobiliário), conforme decorre do disposto nos artigos 111º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, 108° do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas e 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, respectivamente.
3ª) - Relativamente aos créditos com privilégio geral, dispõe o artigo 749° do Código Civil que o mesmo não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente;
4ª) - Assim, de harmonia com o preceito legal vindo de citar, o privilégio geral não pode efectivar-se com prejuízo dos direitos de terceiro sobre os bens atingidos pelo dito privilégio;
5ª) - O concurso entre uma garantia geral (privilégios gerais) e uma garantia especial (hipoteca) terá de ser resolvido pela prevalência da garantia especial;
6ª) - Foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma contida artigo 104° do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas singulares, aprovado pelo Decreto-Lei no 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho, no seu artigo 111º, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751° do Código Civil, por violação do artigo 2° da Constituição (Acórdão do TC n°362/2002, D.R. nº 239, Série 1-A, de 2002.10.6);
7ª) - Foi igualmente declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma contida artigo 11° do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751° do Código Civil, por violação do artigo 2° da Constituição (Acórdão do TC n°363/2002, D.R. n°239, Série 1-A, de 2002.10.16);
8ª) - A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatório geral, proferida pelo Tribunal Constitucional, possui força de lei e vincula, para além de outras entidades, todos os tribunais que, na resolução dos processos pendentes, não podem aplicar normas que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consagrados (cfr. artigo 204° da Constituição).
9ª) - Por analogia das situações e identidade dos fundamentos, é igualmente inconstitucional a norma do artigo 108° do CIRC, quando interpretada no sentido de o privilégio imobiliário geral nela conferido à Fazenda Pública, preferir à hipoteca, nos termos do artigo 751° do Código Civil.
10ª) - A douta Sentença recorrida, ao graduar o créditos reclamados relativos a IRS a IRC e a contribuições devidas à Segurança Social, que gozam de privilégio imobiliário geral, com preferência sobre os crédito hipotecário reclamado, violou as normas constantes dos artigos 9°, 686° e 749° do Código Civil e dos artigos 2°, 13°, 18° e 204° da Constituição da República Portuguesa.»
II - Não foram apresentadas contra alegações.
III - O Exmº Magistrado do Mº Pº emitiu parecer no seguinte sentido:
“Estando em causa valores constitucionais como o da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático a que se refere o art. 2. ° da C.R.P., afigura-se ser de emitir o seguinte parecer, ainda sucinto, sobre a questão da graduação de créditos com privilégio imobiliário e garantido por hipoteca:
A questão encontra-se resolvida pela solução que foi entretanto dada pelo legislador, face ao que inicialmente se encontrava previsto no C. Civil em que todos os privilégios imobiliários eram especiais.
Com efeito, resulta actualmente claro que nem todos os privilégios imobiliários são especiais, apenas assim o sendo os previstos no C: Civil - art. 735 ° n.º 3 do C. Civil, na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 38/03, de 8/3 -
Ora, os créditos de I.R.S., I.R.C. e por contribuições à Segurança Social, e respectivos juros que foram reconhecidos na sentença recorrida gozam de privilégio imobiliário, mas do tipo geral, por assim se encontrar previsto em várias disposições especiais, como são os arts. 111 ° do C. do I.R.S., 116.° do C. do I.R.C, e 205.° do C. do Regime Contributivo do Sistema Providencial da S.S. aprovado pela Lei n.º 110/09, de 16/9, que sucedeu ao disposto nos arts. 10.º e 11.° do Dec Lei n.º 103/80, de 9/5.
Assim, ao caso é de aplicar o disposto no art. 749º n.º 1 do C. Civil, na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 38/03, de 8/3, e não no art. 75l° do C. Civil - cfr., por todos, ac. do S.T.J. de 17-5-2007 proferido no proc. P. 07131309, acessível em www.dgsi.pt.
Não se pode, pois, deixar de concordar com se defende no recurso interposto pelo A……, no sentido que o crédito que reclamou, garantido por hipoteca, e tal como foi reconhecido é de graduar em posição anterior aos referidos créditos de I.R.S., I.R.C., contribuições à Segurança Social, e juros.
Nestes termos, o recurso é de proceder, pelo que é de alterar nessa parte a graduação de créditos efectuada, conforme acima referido.”
IV- Colhidos os vistos legais, cabe decidir.
V – A decisão recorrida é do seguinte teor:
«No âmbito dos autos de execução fiscal nº 0450-2002/501026690, do 1.º Serviço de Finanças de V. N. de Famalicão, que correm termos contra “B……”, foram reclamados os seguintes créditos:
- Pelo Centro Distrital de Segurança Social - Braga (CDSS), um crédito originado em contribuições não pagas relativas aos meses de Abril a Dezembro de 2004, de Janeiro a Novembro de 2005 e de Janeiro a Dezembro de 2007, tudo no montante global de 222 482,04 €;
- Pela A……, um crédito no montante global de 686.330,91 €, originado em dois contratos de mútuo (abertura de crédito) com garantias hipotecárias, titulados por escrituras celebradas a 16-7-2001 e a 14-2-2003, ambas no Notariado Privativo da A…… no Porto;
- Pela sociedade “C……,” um crédito em vias de cobrança coerciva na execução comum nº 1769/04, do 4.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de V. N. de Famalicão, no decurso da qual foi penhorado (em 14-7-2005) o bem imóvel supra referido estando essa penhora registada naquele mesmo dia - cfr. fls. 103 a 105 e 172 a 192;
- Pela FAZENDA PÚBLICA, crédito respeitante a dívidas de IMI do ano de 2007, atinente ao referido prédio urbano, e, ainda de IRS de 2007 e de IRC de 2006 - cfr. fls. 130 e 131.
Os créditos foram liminarmente admitidos e não houve impugnações nem foram reclamados outros créditos.
Vejamos:
Neste caso, a penhora que recaiu sobre o prédio urbano destinado à indústria, inscrito na matriz sob o art.º 485, sito na freguesia de Novais - S. Simão, do concelho de V. N. de Famalicão, e que se acha descrito na Conservatória do Registo Predial competente com n.º 127, tendo tido a 8-7-2008, facto esse inscrito na dita conservatória naquele mesmo dia cfr. fls. 27 do apenso junto aos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
O crédito reclamado pela Fazenda Pública, respeitante a dívida de IMI do ano 2007, goza de privilégio imobiliário especial, porque incide sobre o bem penhorado e foi inscrita para cobrança nos dois anos anteriores (cfr. art. 122°, do CIMI e 744°, do Código Civil).
Os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social gozam dos privilégios (mobiliário e imobiliário) referidos nos arts 10º e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio.
Os juros de mora beneficiam, reflexamente, das garantias do imposto a que pertencem, de harmonia com o disposto no art.º 8° do Decreto-Lei 73/99, de 16 de Março.
Os créditos de IRS e de IRC, porque gerados nos três anos que antecederam a penhora, gozam de privilégio imobiliário nos termos dos artigos 111º e 108°, do CIRS e do CIRC, respectivamente.
Os juros de mora gozam, reflexamente, de privilégio similar ao do imposto de que dependem, nos termos do art.º 8° do D-L 73/99, de 16 de Março.
A A…… reclama crédito originado em dois contratos de mútuo (abertura de crédito) com garantias hipotecárias, titulados por escrituras celebradas a 16-7-2001 e a 14-2-2003, ambas no Notariado Privativo da A……. no Porto.
Estas garantias incidiram sobre o prédio acima melhor identificado.
Os referidos ónus encontram-se registados em definitivo desde 28-5-2001 e 20-12-2002, respectivamente, conforme resulta da certidão da referida conservatória, a fls. 25 e 26 do apenso.
Os créditos reclamados pela A……, devidamente titulados, gozam da garantia especial prevista nos artigos 686 e 687 do Código Civil, até ao limite máximo registado, tendo os juros acessórios a limitação imposta no art.º 693, n.º 2, do mesmo código.
A sociedade “C……”, reclama crédito em vias de cobrança coerciva na execução comum n.º 1769/04, do 4.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de V. N. de Famalicão, no decurso da qual foi penhorado (em 14-7-2005) o bem imóvel supra referido estando essa penhora registada naquele mesmo dia - cfr. fls. 103 a 105 e 172 a 192;
Este crédito goza, apenas, da preferência resultante da penhora, tendo o reclamante o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior, nos termos do art.º 822° do C. Civil.
Os créditos exequendos não carecem de ser reclamados - n.º 2 do art 240.° do CPPT.
No entanto, do exame das certidões de dívida juntas aos autos, somos de concluir que os mesmos respeitam a dívidas de IRS, IRC e IMI, grosso modo fora do âmbito dos artigos 108 do CIRC, 111º do CIRS e 122° do CIMI. No entanto, dentre tais créditos existe uma dívida de IMI de 2007 e outras, de IRS e IRC respeitantes aos anos de 2006 e 2007.
Os demais créditos que integram o rol dos créditos exequendos, atento o lapso temporal a que respeitam (ou a sua natureza, no caso de coimas), gozam apenas da garantia que lhes advém da penhora. Sem prejuízo do que acima se disse, o art. 822° n.º 1 do Código Civil refere que pela penhora adquire o credor o direito de ser pago pelo valor dos bens penhorados com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.
Decisão:
Em consequência do exposto, reconheço os créditos reclamados, graduados da seguinte forma:
• Em 1° lugar os créditos reclamados pela Fazenda Pública, respeitantes a IMI, de 2007, e respectivos juros;
• Em 2° lugar, os créditos de IRS e IRC reclamados pela F.P., respeitantes a IRS e IRC e os créditos do ISS;
• Em 3° lugar, o crédito da reclamante A…… (e respectivos juros) até ao montante máximo garantido pela(s) hipoteca(s);
• Em 4° lugar o crédito reclamado pela “C…….”;
• Em 5° lugar os créditos exequendos;
• Custas pela executada.»
Contra o assim decidido insurge-se a recorrente alegando que a sentença recorrida, ao graduar o créditos reclamados relativos a IRS a IRC e a contribuições devidas à Segurança Social, que gozam de privilégio imobiliário geral, com preferência sobre os crédito hipotecário reclamado, violou as normas constantes dos artigos 9°, 686° e 749° do Código Civil e dos artigos 2°, 13°, 18° e 204° da Constituição da República Portuguesa.
VI
É nesta divergência que se funda a questão apreciar, que consiste em saber se os dois créditos reclamados pela A…… que gozam de garantia real constituída por hipoteca têm preferência, na graduação, aos créditos relativos a IRS, IRC e contribuições à Seg. Social.
Cumpre desde já referir que o recurso merece provimento.
Com efeito o Código Civil consagrava no seu artº 735º, nº 3 o princípio de que os privilégios imobiliários eram sempre especiais.
Porém, com a redacção introduzida pelo Dec.-Lei 38/2003, de 08.03 a norma em causa passou a ter a seguinte redacção: «Os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais».
Pretendeu-se assim salvaguardar o caso de outros privilégios imobiliários gerais, criados posteriormente ao Código Civil e constituíam excepção ao referido princípio.
Eram eles os privilégios imobiliários das instituições de Segurança Social sobre imóveis do devedor à data da instauração da acção executiva e do Estado, e, relativamente a IRS e IRC, sobre os imóveis existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou acto equivalente.
Tais privilégios imobiliários previstos nos artigos 111º do CIRS, 116.° do CIRC e 205.° do Cód. do Regime Contributivo do Sistema Providencial da Segurança Social aprovado pela Lei n.º 110/09, de 16/9 (que sucedeu ao disposto nos arts. 10.º e 11.° do Dec. Lei n.º 103/80, de 9/5) são gerais, porque referentes à generalidade dos bens imóveis do devedor.
Neste sentido se tem pronunciado, de forma dominante, a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo da qual destacamos, por mais recentes, os Acórdãos de 28.03.2007, recurso 132/07, de 21.01.2009, recurso 953/08, de 21.12.2009, recurso 724/09 e de 10.03.2010, recurso 1000/09, de 13.01.2010, recurso 917/09, de 13.10.2011, recurso 921/09 e de 17.03.2011, recurso 630/10-50 (do Pleno) todos in www.dgsi.pt. (Vide também, na doutrina, Rui Duarte Morais, A Execução Fiscal, pag. 167, e António Carvalho Martins, Reclamação e Verificação de Créditos, pag. 89.).
Como se sublinha nos Acórdãos 953/08 de 21.01.2009, e 917/09, de 13.10.2011, «o direito de crédito garantido por hipoteca só cede perante os créditos que disponham de privilégio imobiliário especial ou prioridade de registo (cfr. nº 1 do art. 686º do CCivil) já que «dos privilégios creditórios só os especiais, porque envolvidos de sequela, se traduzem em garantia real de cumprimento de obrigações, limitando-se os gerais a constituir mera preferência de pagamento e sendo apenas susceptíveis de prevalecer em relação a titulares de créditos comuns».
Acresce dizer, tal como alega a recorrente, que as normas constantes do art.º 11.º do DL n.º 103/80, de 9 de Maio, e do art.º 2.º do DL n.º 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil, foram declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 363/02, de 17/09/2002.
E, do mesmo modo o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do art. 104º do CIRS (actual art. 111º), se interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do CCivil, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito (ac. nº 362/2002, publicado no DR - I-A, nº 239, de 16/10/2002).
Daí que se conclua que os créditos reclamados relativos a IRS, a IRC e as contribuições à Segurança Social gozam de privilégio imobiliário geral pelo que não preferem ao crédito hipotecário também reclamado.
O recurso merece, pois, provimento.
Termos em que acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em, concedendo provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida na parte impugnada e, em consequência, proceder à graduação dos créditos nos termos seguintes:
1° Os créditos reclamados pela Fazenda Pública, respeitantes a IMI, de 2007, e respectivos juros;
2° o crédito da reclamante A……. (e respectivos juros) até ao montante máximo garantido pela(s) hipoteca(s);
3° os créditos de IRS e IRC reclamados pela F.P., respeitantes a IRS e IRC e os créditos do ISS;
4° o crédito reclamado pela “C…….”;
5° os créditos exequendos;
Sem custas.
Lisboa, 16 de Novembro de 2011. - Pedro Delgado(relator) - Valente Torrão - Casimiro Gonçalves.