Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:034/18.9BCLSB
Data do Acordão:10/03/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
ERRO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
RELATÓRIO
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Sumário:I - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percepcionados, estabelecida pelo art.º 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não é inconstitucional.
II - O acórdão que revogou a decisão do TAF, partindo do pressuposto que, em face do princípio da presunção de inocência do arguido, não se poderia atender a quaisquer presunções, como a resultante do referido relatório, incorre em erro de direito, devendo, por isso, ser revogado.
III - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas pelos comportamentos social ou desportivamente incorrectos dos seus adeptos e simpatizantes não é objectiva, mas subjectiva, por se estribar numa violação de deveres legais e regulamentares que sobre eles impendem.
Nº Convencional:JSTA000P24968
Nº do Documento:SA120191003034/18
Data de Entrada:07/03/2019
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL E OUTROS
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

1. A Federação Portuguesa de Futebol (FPF), inconformada com o acórdão do TCA – Sul que concedeu provimento ao recurso que a “Futebol Clube do Porto – Futebol SAD”, interpusera do acórdão do Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) que mantivera a pena de multa que lhe havia sido aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF, dele interpôs, para este STA, recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:

“1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 21 de fevereiro de 2019, que revogou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto. Esta instância, por seu turno, havia decidido confirmar a decisão de aplicação ao FCP de multas por comportamento incorreto do público, punidas através do artigo 187.º do RD da LPFP;
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogos de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;
3. A questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos – revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;
4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;
5. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos relacionados com o rebentamento de engenhos pirotécnicos e arremesso de objectos por ocasião de jogos de futebol;
6. São deveres dos clubes assegurar que tais objetos não entram nos estádios de futebol e que os seus adeptos não tenham comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da lei e da Constituição;
7. Admitir, como fez o TCA Sul, que os clubes devem ser desresponsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos – ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão – é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;
8. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em catorze processos arbitrais a questão foi decidida de forma contrária à que fez o Tribunal a quo, contra apenas três em sentido coincidente;
9. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 50 processos relativos a sanções aplicadas ao FCP por comportamento incorreto dos seus adeptos;
10. Tais números não só demonstram de forma incontestável que a Recorrida nada tem feito ao nível da intervenção junto dos seus adeptos para que não tenham comportamentos incorretos nos estádios, como demonstram que o FCP tem traçado um “plano de ataque” que não verá um fim num futuro próximo;
11. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;
12. O FCP não colocou em momento algum em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do FCP os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas;
13. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls. … do processo arbitral, os Delegados da Liga são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do Futebol Clube do Porto, sem deixar qualquer margem para dúvidas;
14. Com base nesta factualidade, o Conselho de Disciplina instaurou os competentes processos sumários ao FCP. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito;
15. Este é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório de jogo (e, possivelmente, outros elementos aí referidos) que, como se sabe, tem presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);
16. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;
17. Assim, quando os Delegados da LPFP colocam no seu relatório que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso os Delegados coloquem os seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;
18. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD’s que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas o FCP;
19. Entende o TCA que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório de Jogo) que o FCP violou deveres de formação e vigilância, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;
20. Assim, o Relatório de Jogo, atento o seu conteúdo, é perfeitamente suficiente e adequado para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento;
21. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;
22. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;
23. Também o FCP nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede;
24. No que diz respeito ao cumprimento ou incumprimento dos seus deveres, o FCP nada refere;
25. Do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair diretamente duas conclusões: (i) que o Futebol Clube do Porto incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do Futebol Clube do Porto, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;
26. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do FCP e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, o qual tem presunção de veracidade. Posteriormente, o FCP pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;
27. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;
28. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que dando provimento ao recurso de revista diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;
29. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o FCP, a verdade é que o facto (alegado e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos do FCP e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos;
30. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere o FCP e do que parece entender o TCA Sul;
31. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;
32. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 172.º, 187.º, n.º 1, al. b) e 258.º do Regulamento Disciplinar da LPFP.”

A “Futebol Clube do Porto – Futebol SAD” contra-alegou, tendo concluído do seguinte modo:
“i. Inconformada com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 21.02.2019 pretende a recorrente, em sede de revista, ver esclarecido o critério legal da apreciação da prova em processo disciplinar desportivo.
ii. Fá-lo, pretendendo que este Supremo Tribunal Administrativo funcione como uma terceira instância de apelação.
iii. O juízo sobre a matéria de facto é, via de regra, insindicável, porquanto o Supremo Tribunal Administrativo só poderá revogá-lo e determinar que o Tribunal Central Administrativo dê como provados factos que julgou como não verificados em face da prova existente se e apenas na medida em que esse juízo tenha violado disposição legal expressa que fixe a força de determinado meio de prova (art. 150.°-4 do CPTA).
iv. Não se vê, nem a recorrente a identifica, que norma legal haja sido violada pelo Tribunal Central Administrativo na apreciação da prova, devendo o recurso interposto pela recorrente ser julgado improcedente.
v. A revogação pelo STA do decidido pelo Tribunal a quo, com o fundamento de que a prova dos autos seria suficiente para sustentar a decisão condenatória tomada pela recorrida, ultrapassando a apreciação da prova realizada pelas instâncias competentes, incorrerá em excesso de pronúncia e violará o regime do recurso de revista instituído pelo art. 150º do CPTA.
vi. Acresce que, caso o acórdão proferido por este Tribunal ad quem anule a decisão recorrida, contrariando o previsto no art. 150.° do CPTA, com fundamento de que a decisão condenatória proferida pela demandada, aqui recorrente, seria de considerar plausível e sustentável à luz do regime normativo que incide sobre a valoração da prova em sede disciplinar desportiva, então incorrerá em violação do princípio constitucional da repartição de funções de apreciação de recursos de apelação e de revista atribuídas, respectivamente, aos Tribunais Centrais Administrativos e ao Supremo Tribunal Administrativo, violando, destarte, o principio da segurança jurídica no âmbito do exercício de funções jurisdicionais pelos tribunais administrativos, corolário do princípio do Estado de direito consagrado no art. 2.° da CRP.
vii. O arguido em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, até porque, aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar vigora ainda o princípio da presunção de inocência.
viii. Donde, toda a prova susceptível de conduzir à responsabilidade jurídico-penal do arguido deve ser carreada para os autos pelo titular da acção disciplinar, não sendo, por isso, admissível qualquer inversão do ónus da prova em sede disciplinar.
ix. Portanto, sem que esteja demonstrada e devidamente comprovada, através de robustas provas, a materialidade e autoria da infracção disciplinar fica comprometida qualquer condenação do arguido/recorrida, que deve ter a seu favor a presunção de inocência (cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).
x. Ainda que os documentos gozem de uma presunção de veracidade e sejam elaborados pelos Delegados presentes ao jogo, não se podem aqui diminuir as exigências de prova e de sua apreciação, bastando-se com simples afirmações vertidas em relatórios.
xi. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.°, f), do RD, pode contrariar o quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador.
xii. A presunção de veracidade, prevista no art. 13.° f) do RD, dos factos que nele se prevê só abrange os factos constantes das declarações, relatórios e autos lavrados pelos agentes e que hajam sido por eles percepcionados, e não outros.
xiii. Ora, como é evidente, pela própria natureza das coisas, há elementos típicos que, por norma, não são demonstráveis através dos relatórios de jogo da equipa de arbitragem e/ou dos delegados da Liga, nomeadamente, os que se prendem com a infracção pelo clube, com culpa, dos deveres, legais ou regulamentares, a que estava adstrito, e com a conexão que há-de estabelecer-se entre essa infracção e a conduta proibida ocorrida.
xiv. É, de todo o modo, inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.°- 2 e -10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.°-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.° da CRP), a interpretação do art 13º al. f) do RDLPFP no sentido de que factos não constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga podem ser dados como provados, por presunção, se a sua versão não for infirmada pelo arguido, que, desde já, se argui para os devidos efeitos legais.
xv. Para efeitos disciplinares, como in casu, é relevante afirmar que a prova dos factos integradores da infracção é determinada face aos elementos existentes no processo e pela convicção do julgador, estando sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cf. art. 127.° do CPP e art. 94.°-4 do CPTA).
xvi. Uma vez que o RDLPFP nada dispõe em contrário, competirá ao julgador - na fixação dos factos e pressupostos da aplicação da pena disciplinar - formular o seu juízo sobre a realidade e sentido dos factos através da apreciação do material probatório, segundo aquela que é a sua livre convicção.
xvii. A imputação de todos e cada um dos elementos do tipo “incriminador” deve estribar-se em meios de prova que os sustentem, com a natureza de prova directa ou, pelo menos, de prova indirecta.
xviii. Considerando os pressupostos legais exigidos para a imputação e condenação pela prática das infracções p. e p. pelo art.º 187.°-1, b) do RDLPFP, era necessário que o Conselho de Disciplina da FPF tivesse carreado aos autos prova suficiente de que i) os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da Futebol Clube do Porto - Futebol SAD, como ainda que ii) tais condutas resultaram de um comportamento culposo da Futebol Clube do Porto - Futebol SAD.
xix. Tal produção de prova jamais podia competir ou ser exigido à arguida, não se podendo neste âmbito admitir - como pretende a recorrente — uma inversão do ónus da prova.
xx. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese da recorrida equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência, o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.
xxi. Além do mais, não se pode aqui abrir a porta, a uma “prova por presunção” sobre a autoria dos factos e sobre a violação de deveres constitutiva da ilicitude típica.
xxii. Com isto não se quer significar que não se possa, no domínio disciplinar desportivo, recorrer a presunções judiciais no acto decisório de valoração probatória, mas o seu fundamento não pode ser arbitrário e contrariar exigências epistemológicas mínimas: o princípio da livre apreciação da prova não consente que se possa presumir, sem mais, que pelo facto de adeptos adoptarem comportamentos incorrectos houve, necessariamente, a montante, uma violação, pelo seu clube, dos deveres de vigilância e controlo idóneos a prevenir e evitar tais comportamentos.
xxiii. A prova em sede disciplinar, designadamente aquela assente em presunções judiciais, tem de ter robustez suficiente, tem de ir para além do início da prova, para permitir, com um grau sustentado de probabilidade, imputar ao agente a prática de determinada conduta, tendo sempre presente um dos princípios estruturantes do processo sancionatório que é o da presunção da inocência, designadamente: “todo o acusado tenha o direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular” (GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, 1, Verbo, 2008, p. 82).
xxiv. Também não se pode aqui admitir a aplicação de acordo com o qual: à recorrente, titular do poder punitivo disciplinar, caberia fazer a prova da primeira aparência da verificação do facto; e à recorrida, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
xxv. Tal critério consubstancia uma clamorosa violação ao princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a recorrida é titular.
xxvi. E do mesmo passo implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
xxvii. Note-se que, tal posição não tem qualquer base legal ou regulamentar: nesta matéria, os regulamentos aplicáveis não estabelecem qualquer presunção da verificação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar, nem se atribuiu ao arguido qualquer ónus de infirmação do que quer que seja.
xxviii. Trata-se, aliás, de critério decisório incompatível com o princípio da presunção de inocência, por duas ordens de razões: por implicar a imposição de um ónus de prova ao arguido; e por baixar o grau de convicção da verificação do facto para um nível insuportável: não a certeza correspondente à convicção para além de toda a dúvida razoável, mas a suspeita baseada somente na primeira aparência.
xxix. Atendendo aos pressupostos exigidos pelo tipo legal previsto no art.º 187.°- 1, b) do RD sempre se exigirá para a condenação do clube, in casu a recorrida, que semostrassem suficientemente provados através da produção de prova que incumbe ao titular do processo disciplinar e a qual será sujeita a uma livre apreciação - os factos consubstanciadores da prática das infracções disciplinares; não se tendo verificado tal prova nos autos, e considerando o quadro normativo aplicável ao caso, fica necessariamente prejudicada a alegação da recorrente.
xxx. Repare-se que, mesmo atentando ao descrito nos relatórios de jogo percebe-se que nenhum facto neles é sequer descrito em favor do preenchimento de pressuposto essencial dos tipos legais: uma actuação culposa da recorrida.
xxxi. De todo o modo, é inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art.º 2.° da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.°-2 e -10 da CRP), a interpretação dos arts. 13.f), 187.º-1 b) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui.
xxxii. Mais, deverá igualmente considerar-se inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art.º 2.º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art.º 32.º-2 e-10), a interpretação dos artºs. 13.º, f) e 187.º-1, b) do RDLPFP e do art.º 127.º do Código de Processo Penal no sentido que a indiciação de que sócios ou simpatizantes de um clube praticassem condutas social ou desportivamente incorrectas poderá levar a que se presuma que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube.
xxxiii. Porquanto se mostram por preencher todos os elementos das infracções e não tendo o titular da acção disciplinar carreado aos autos algum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais - uma actuação culposa por parte do clube – sempre se impunha resolver “em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo”.
xxxiv. Face ao exposto, não padece o acórdão recorrido de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido correctamente os factos alegados ao direito aplicável.
xxxv. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da recorrente, reputa-se como inconstitucional - por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.°, n.° 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.°-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2° da CRP) — a interpretação dos artigos 187º-1, b) 222.°-2 e 250.°-1 do RDLPFP segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
xxxix. O douto acórdão do Tribunal a quo não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se “in totum”
A referida recorrida, ao abrigo do art.º 633.º, do CPC, interpôs recurso subordinado, tendo na sua alegação, formulado as conclusões seguintes:
“i. Os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º-1 e 268.°-4 da CRP).
ii. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.º e 268.°-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
iii. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.º- 1 e - 5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria n.° 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.°/1/2/3 e 77.°/4/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art.º 2.º da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art.º 20.º-1 e 268.º- da CRP), devem essas normas ser desaplicadas”.
A recorrente principal não contra-alegou.

Pela formação a que alude o art.º 150.º, do CPTA, foi proferido acórdão a admitir a revista, com a seguinte fundamentação:
“(…).
«Primo conspectu», o acórdão do TCA afronta a mais recente jurisprudência do Supremo neste campo. Donde se segue a necessidade de recebimento do recurso da FPF – para reanálise do assunto com vista a uma esclarecida aplicação do direito.
O recebimento dessa revista implica – para que as partes sejam tratadas de um modo equitativo e igual – a admissão do recurso subordinado, interposto pelo FCP, SAD. Assim, à Secção cumprirá ver em que medida esse recurso subordinado, porque aparentemente recaído sobre uma matéria que o TCA considerou prejudicada, pode ou não ser conhecido (artºs. 655.º, n.º 2, e 679.º do CPC)”.

A Exmª. Sr. Procuradora-Geral-Adjunta junto deste tribunal, notificado nos termos do art.º 146.º, nº 1, do CPTA, emitiu parecer, onde concluiu que o recurso principal merecia provimento e que o recurso subordinado não deveria ser conhecido.

Sem vistos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
“– No dia 13/8/2017 disputou-se no Estádio João Cardoso, na cidade de Tondela, o jogo entre as equipas de futebol do F.C.Porto e do Clube Desportivo de Tondela a contar para a 2.ª jornada da liga NOS.
- No Estádio João Cardoso adeptos afectos à Demandante (equipa visitante) entraram e fizeram uso de materiais pirotécnicos.
- No início do jogo aquando da entrada das equipas rebentou um petardo na bancada afecta ao F.C.Porto.
- Aos 37 minutos da 1.ª parte aquando do golo do clube visitante deflagrou um pote de fumo na bancada afecta ao clube visitante”.

3. A ora recorrida impugnou, junto do TAD, o acórdão do Pleno da Secção Profissional do CD, datado de 12/9/2017, que, negando provimento ao recurso hierárquico que interpusera, confirmou a aplicação da pena de multa no montante de € 1.720,00, pela prática da infracção prevista e punida pelo art.º 187.º, n.º 1, al. b), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante RD).
O acórdão do TAD, começando por apreciar da questão da eventual existência de erro na apreciação da prova, considerou que por a demandante não ter especificamente impugnado, ou sequer posto em dúvida, os factos constantes do relatório do delegado da LPFP, teriam estes de ser dados por provados. E uma vez que esses factos eram suficientes e adequados para sustentarem a punição do demandante a título de culpa, concluiu pela manutenção da decisão recorrida.
O acórdão recorrido revogou esta decisão arbitral e anulou a referida multa, por entender que haviam sido violados os princípios da culpa e da presunção de inocência do arguido em processo disciplinar. Para o efeito considerou que essa decisão invertera ilegalmente o ónus da prova, porque não era ao Futebol Clube do Porto que cabia impugnar os factos que lhe eram imputados e que constavam dos aludidos relatórios, ocorrendo, por isso, uma insuficiência de prova para determinar a sua condenação “por apenas se indiciar mas não ter ficado demonstrado com uma probabilidade próxima da certeza que o rebentamento do petardo e a deflagração do pote de fumo tinha sido realizada por sócios ou simpatizantes da SAD recorrente, pois que não se demonstra que tal bancada estivesse exclusivamente afecta a adeptos do FCP”. E não estando demonstrado que os comportamentos punidos foram levados a cabo por adeptos do clube, nem que este violou os seus deveres de formação e de vigilância, não poderia ocorrer a transmissão para este da culpa dos seus adeptos por a tal se opor o princípio da culpa.
Contra este entendimento, a FPF, no seu recurso, alega fundamentalmente que, dado o teor do relatório do delegado da LPFP e a presunção de veracidade de que este goza, estabelecida pelo art.º 13.º, al. f), do RD, está demonstrado que as condutas que vieram a ser objecto de punição foram perpetradas por adeptos do Futebol Clube do Porto, devendo extrair-se desses relatórios, através de presunção judicial, que este clube violou os seus deveres de formação e vigilância.
Vejamos se lhe assiste razão.
No recurso de revista, este Supremo só conhece de direito (cf. art.º 12.º, n.º 4, do ETAF), pelo que o juízo formulado pelo TCA quanto à matéria de facto apenas pode ser censurado na medida em que se traduza numa questão de direito.
As presunções judiciais, como ilações que o julgador tira de um facto conhecido para, através de um raciocínio lógico-dedutivo, afirmar um facto desconhecido (cf. art.º 349.º, do C. Civil), fundam-se nas regras da vida e da experiência comum, implicando essencialmente um juízo de facto, pelo que o Supremo só pode sindicar o juízo presuntivo efectuado pelas instâncias se esta actividade se traduzir num erro de direito, por ofensa de uma qualquer norma legal ou se padecer de ilogicidade (cf. Ac. do STJ de 25/11/2014 – Proc. n.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1).
No domínio do direito disciplinar, a que se aplicam subsidiariamente os princípios do direito penal, é lícito o uso de presunções judiciais que, no entanto, como juízo de facto, só pode ser censurado por este tribunal nos estritos limites que ficaram referidos.
No caso em apreço, para anular a sanção que havia sido aplicada pelo CD, o acórdão recorrido entendeu que a circunstância de os comportamentos incorrectos terem ocorrido em bancadas ocupadas por adeptos do Futebol Clube do Porto não permitia considerar provado que os seus autores eram sócios ou simpatizantes deste clube, atento à necessidade de emissão de um juízo de certeza nesta área do direito e ao facto de do relatório do jogo elaborados pelos delegados da LPFP não se poder inferir a inversão do ónus da prova que impendia sobre o acusador. Dado o princípio da presunção de inocência do arguido, era ao titular da acção disciplinar que cabia sempre o ónus da prova dos factos constitutivos do ilícito disciplinar, não podendo haver lugar a um esforço probatório aliviado por via de recurso a presunções.
A esta apreciação probatória, a recorrente aponta um erro de direito, resultante de não se ter tomado em consideração a presunção de veracidade legalmente estabelecida para o mencionado relatório.
E, com efeito, o acórdão recorrido desconsiderou-a.
Porém, é indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percepcionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa [art.º 13.º, al. f), do RD].
Esta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos referidos relatórios relativamente aos factos deles constantes que tenham sido percepcionados pela equipa de arbitragem ou pelos delegados da Liga.
E não se vê que o estabelecimento desta presunção seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (publicado no DR, II Série, de 16/11/2015) considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário.
Aliás, tal como o Tribunal Constitucional entendeu para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (cf., entre muitos, o Ac. de 6/5/87 in BMJ 367.º-224; o Ac. de 9/3/88 in DR, II Série, de 16/8/88; o Ac. de 30/11/88 in DR II Série, de 23/2/89; o Ac. de 25/1/89 in DR, II Série, de 6/5/89; o Ac. de 9/2/89 in DR, II Série, de 16/5/89; e o Ac. de 23/2/89, in DR, II Série, de 8/6/89), cremos que a presunção de veracidade em causa – que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza – não acarreta qualquer presunção de culpabilidade susceptível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegida (art.º 32.º, n.º 10, da CRP). Com efeito, o valor probatório dos relatórios, além de respeitarem, como vimos, aos factos que neles são descritos como tendo sido percepcionados e não aos demais elementos da infracção, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva mas só “prima facie” ou de “ínterim”, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio “in dubio pro reo”, a sua absolvição.
Assim, o acórdão recorrido, ao efectuar uma apreciação probatória partindo do pressuposto que, dado o princípio da presunção de inocência do arguido, o ónus da prova recaía sempre sobre quem acusava, não se podendo atender a quaisquer presunções como a que resultava do citado art.º 13.º, al. f), incorreu no erro de direito que lhe é imputado, devendo, por isso, ser revogado.
Em consequência, e uma vez que este tribunal não conhece de facto, terão os autos de baixar ao tribunal recorrido para aí se proceder à valoração da prova considerando a aplicação do disposto no art.° 13.°, al. f), do RD, que implicará, pelo menos, o conhecimento do teor exacto e integral do relatório em questão – a fim de aferir quais os factos que estão abrangidos pela presunção de que ele goza – e o que tenha sido alegado pela ora recorrida para pôr em causa a sua veracidade – para permitir averiguar se foi criada uma situação de “incerteza razoável” –, bem como se, com base nos factos que se devem considerar provados, se podem extrair outros através de presunção judicial (cf. o Ac. deste Supremo de 18/10/2018 – Proc. n.° 0144/17.0BCLSB, que temos seguido de perto e que decidiu questão idêntica à que está em causa nos presentes autos).
Refira-se finalmente que a possibilidade de o clube vir a ser responsabilizado pelos comportamentos incorrectos dos seus sócios ou simpatizantes não se traduz na imposição de uma responsabilidade objectiva, violadora do princípio constitucional da culpa, dado que, como tem sido entendimento uniforme deste Supremo nos vários casos idênticos ao dos autos que tem julgado (cf. v.g., os Acs. de 21/2/2019 – Proc. n.° 033/18.0BCLSB, de 21/3/2019 – Proc. n.° 075/18.6BCLSB, de 4/4/2019 – Proc. n.° 040/18.3BCLSB, de 2/5/2019 – Proc. n.° 073/18.0BCLSB e de 5/9/2019 – Procs. n°s. 058/18.6BCLSB e 065/18.9BCLSB), ela se estriba naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre o mesmo impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido.
Efectivamente, escreveu-se a este propósito no citado Ac. de 21/2/2019:

“(…).

65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.
66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão nº. 730/95 [consultável in: www.tribunalconstitucional.pt/tcacordaos] e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos artºs. 03.° a 06.º do DL n.º 270/89, de 18/8 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.° do Regulamento Disciplinar da FPF, temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) – condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e in formando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que [n]ão é, pois (...) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».
67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associadas ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.

68. Na verdade, não estamos in casu, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos artºs. 17.°, 19.°, 20.°, 127.°, 187.°, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os art°s. 06.°, al. g,), e 09.º, al. m), RPV/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.
69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar (cfr. artºs. 212.° e segs., 225.° e segs., do RD/LPFP-2017) que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».
70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passa no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorrectos.
(…)”.

Procede, pois, o recurso principal, ficando prejudicado o conhecimento do recurso subordinado que foi interposto para a hipótese de este STA manter definitivamente o acórdão do TAD, o que não sucede.

4. Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso principal, revogando o acórdão recorrido e ordenando a baixa dos autos ao TCA-Sul para os fins que ficaram referidos.

Sem custas.

Lisboa, 3 de Outubro de 2019. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Ana Paula da Fonseca Lobo.