Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0716/10
Data do Acordão:03/10/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:SENTENÇA
ANULAÇÃO
Sumário:O tribunal de 1ª Instância deve determinar a matéria de facto que considera provada e não provada em ordem à solução de direito que considera aplicável, e se o não fizer justifica-se a anulação oficiosa da sentença pelo Supremo Tribunal Administrativo ao abrigo da norma contida no n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil.
Nº Convencional:JSTA000P12695
Nº do Documento:SA2201103100716
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A…, com os demais sinais dos autos, recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, em 2 de Junho de 2010, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra o acto de liquidação de IRC respeitante ao ano de 2006, no montante de 9.249,15 €.
As alegações do recurso mostram-se rematadas com as seguintes conclusões (formuladas após convite dirigido à Recorrente no sentido de completar e aperfeiçoar as que havia inicialmente apresentado):
• A sentença recorrida não apreciou nenhuma das ilegalidades invocadas na impugnação:
No caso da credenciação dos agentes da inspecção tributária, porque:
· A apreciação do tribunal se fixou, e ficou, pela eficácia do respectivo acto administrativo - e mesmo assim, de forma errónea, e até supérflua porque, nos termos do art. 47.° do RCPIT, a falta de oposição aos actos de inspecção por parte dos inspeccionandos só sana a ineficácia no caso de se verificar a falta de credenciação, e não já quando a credenciação exista (mesmo sendo ilegal);
· Ignorando, assim, a questão realmente levantada na impugnação - ou seja, a da invalidade do acto administrativo, não controlável por parte da impugnante no acto de inspecção, e originada quer pela falta de indicação da entidade que o praticou, e no uso de que competência o fez, mas também, e sobretudo, por a sua prática não se mostrar reportada a esse outro, necessário mas inexistente, acto administrativo anterior e hierarquicamente superior que, tendo ordenado a acção de inspecção, o fundamentasse e legitimasse, traduzindo-se a omissão de apreciação da ilegalidade subsistente na violação, quer do art. 11.º do RCPIT e do art. 99.°, alínea d), do CPPT, que a enquadram como fundamento da impugnação judicial do acto tributário, quer do art. 205.°, n.º 1 da CRP e do art. 158.° do CPC, que impunham ao tribunal recorrido o dever de fundamentar a sua decisão (tendo em conta que se tratava, nada mais nada menos, que da mesmíssima causa de pedir).
No caso da extensão dos efeitos anulatórios da sentença judicial que anulou o primeiro acto tributário (no lugar do qual veio a ser praticado o acto agora impugnado), porque se limita a acolher a convicção da Fazenda Pública de que ela teria abrangido os actos administrativos a ele anteriores, e:
· Como a Fazenda Pública, lavrando no erro de identificar esses actos com os praticados no âmbito do procedimento de inspecção, quando do que se trata é dos actos praticados no âmbito do procedimento de revisão - e por isso, não de actos aproveitáveis, mas de actos que teriam de ser prévia e necessariamente revogados, para no seu lugar poderem ser praticados os novos actos do novo procedimento de revisão;
· E, ainda como a Fazenda Pública, sem fundamentar a convicção adquirida, e sem contraditar as razões de direito invocadas na impugnação que apontam no sentido da impossibilidade legal de essa extensão se verificar, e de o Director de Finanças estar em tempo de substituir os seus actos anteriores, traduzindo-se o erro na identificação dos actos e a omissão de fundamentação na violação das já citadas normas do art. 99.º, al. d) do CPPT, art. 205.°, n.º 1 da CRP e art. 158.° do CPC;
Quanto à invocação genérica da convalidação dos actos ilegais em actos legais com o decurso do prazo de três meses do n.º 1 do artigo 59.° do CPTA, porque a mesma prejudicou essa apreciação, quando é certo que:
· O artigo 86.°, nºs 3 e 4 da LGT impede que essa convalidação se tenha verificado (como, em relação aos actos inspectivos, o art. 11.0 do RCPIT o teria impedido);
· E que é o processo de impugnação o lugar próprio para invocar as ilegalidades de que tais actos padecem, na exacta medida em que se reflictam na legalidade do acto tributário, mostrando-se assim violada aquela norma da LGT, violação que se traduz na errónea fundamentação da sentença recorrida.
Termos em que, nos melhores de Direito e com o suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a sentença recorrida, e apreciada toda a matéria invocada na impugnação que, com fundamento nela, deverá ser julgada procedente.
1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.3. O Exm.º Magistrado do Ministério emitiu douto parecer no sentido de ser anulada a sentença recorrida por carência de fundamentação, com a seguinte argumentação:
«Tanto quanto se apura das conclusões das alegações de recurso, que, pese embora reformuladas, continuam a não primar pela clareza, podemos concluir que a mesma imputa à decisão recorrida a violação do disposto nos arts. 99. al. d) do Código de Procedimento e Processo Tributário, 205, n.º 1 da Constituição da República e 158 do Código de Processo Civil.
O artº 99 al. d) do Código de Procedimento e Processo Tributário refere-se a um dos fundamentos de impugnação dos actos tributários (de liquidação, fixação da matéria tributável, etc.), mais concretamente a preterição de formalidades legais.
O artº 205º, n.º 1, da Constituição da República consagra o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente.
E o artº 158º do Código de Processo Civil refere-se ao dever de fundamentação das decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido.
Pode pois concluir-se das referências normativas em que fundamenta o seu recurso que a recorrente imputa à sentença recorrida o vício de falta de fundamentação.
E, nessa medida, o recurso merecerá provimento, pese embora não por toda a sua argumentação, na sua grande parte direccionada para os vícios do procedimento tributário (artº 99º, al. d) do Código de Procedimento e Processo Tributário).
É que, analisada a decisão recorrida (fls. 43 a 45), parece manifesto que a mesma padece de nulidade por falta de fundamentação de direito e de facto.
Com efeito dispõem os arts. 125º do CPPT e 668º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
No que concerne à matéria de facto, esta nulidade abrange a falta de discriminação dos factos provados e não provados, exigida pelo art. 123.° nº 2 do CPPT.
Decorre daquele normativo que o juiz discriminará também a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões.
Pode até dizer-se, quanto à fundamentação da matéria de facto, que a exigência constitucional de fundamentação racionaliza o princípio, vigente no direito processual português, da livre apreciação da prova, excluindo o carácter voluntarístico ou subjectivo da sentença - cf. neste sentido Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, pág. 71.
Ora no caso, pese embora o Tribunal recorrido tenha feito uma referência aos factos alegados pela recorrente, o certo é que não fez qualquer explicitação dos factos que se devam ter de considerar como relevantes e provados.
Verifica-se, pois, omissão absoluta da discriminação da matéria de facto necessária para basear a decisão de direito
Por outro lado ocorre também a nulidade da sentença por falta de fundamentação de direito.
Como se refere no Código de Procedimento e Processo Tributário anotado de Jorge Lopes de Sousa, 4ª edição, pág. 564, «a fundamentação de direito em regra, será feita por indicação da norma ou normas legais em que se baseia, mas poderá também ser constituída por mera indicação dos princípios jurídicos ou doutrina jurídica em que se baseia (...).
Para além disso, de harmonia com o preceituado no n.º 2 do art. 158.° do C.P.C., não pode considerar-se como fundamentação a simples adesão aos fundamentos alegados pelas partes Sublinhado nosso. No caso de a sentença conter mais que uma decisão, sobre questões distintas, essa omissão absoluta de fundamentação reporta-se a cada uma das questões autónomas que dela são objecto, pois em relação a cada uma delas valem as razões de evitar a arbitrariedade no exercício da função jurisdicional e de elucidação das partes e do tribunal de recurso que justificam a exigência de motivação»
No caso subjudice a sentença recorrida pronunciou-se sobre algumas das questões alegadas pela impugnante em forma de adesão genérica a uma contestação da Administração Fiscal, sem a adequada fundamentação de direito, pelo que incorreu também na nulidade prevista no art. l25º, nº 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário
Assim será de atender a arguição de nulidade da sentença por falta de fundamentação, pelo que deverá proceder nesta parte o recurso, anulando-se a decisão recorrida.».
1.4. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir.
2. Antes de entrar na apreciação do mérito do recurso convém tomar posição sobre uma outra questão, prévia em relação à decisão de fundo, e que tem a ver com a eventual nulidade da sentença impugnada por total carência de julgamento da matéria de facto em que assentou a decisão de improcedência dos vícios imputados ao acto de liquidação impugnado e que eram os seguintes:
não constar do despacho de 20 de Dezembro de 2006, que desencadeou o procedimento inspectivo externo, a identificação do seu autor, o que ofende o disposto no artigo 123°, nº 2, al. a), do Código de Procedimento Administrativo;
o mesmo suceder com o acto administrativo que ordenou a primeira acção de inspecção, proferido a 2 de Fevereiro de 2007, o qual, além disso, padece de vício de falta de fundamentação, ofendendo o disposto no artigo 46°, nº 5, do RCPIT;
falta de notificação prévia da primeira acção de inspecção, nos termos do artigo 49° do RCPIT, sem que fosse expressamente invocado fundamento para a sua dispensa nos termos do artigo 50° do mesmo diploma legal;
nulidade da notificação da segunda acção de inspecção, por estar assinada por alguém que não demonstra ter a necessária competência delegada para o fazer;
ausência de despacho a ordenar os actos praticados na segunda inspecção, autorizando a alteração da primeira acção ou o desencadeamento de nova acção;
ilegalidade da ordem de serviço de 5 de Setembro, que credenciaria os agentes da inspecção para a segunda acção, porque não foi reportada a despacho anterior do Director de Finanças que a legitimasse e por não conter a indicação da entidade que o proferiu e no uso de que competência o fez;
ilegalidade dos actos praticados pelo Director de Finanças no âmbito do procedimento de revisão da matéria tributável após as decisões judiciais que anularam actos tributários resultantes de procedimento anterior com o mesmo objecto, porque não foram formalmente praticados, porque a revogação e substituição de actos anteriores não se mostra baseada no único fundamento legalmente admitido, e porque essas revogação e substituição não foram feitas no prazo em que legalmente o podiam ser.
Na verdade, da leitura da decisão recorrida resulta que ela não contém qualquer probatório ou especificação dos factos provados e não provados, tendo-se omitido completamente a selecção da factualidade julgada provada e não provada, isto é, tendo-se preterido por completo a operação de julgamento da matéria de facto essencial para a apreciação das questões analisadas e decididas.
Como bem nota o Exm.º Procurador-Geral Adjunto, no parecer acima citado, verifica-se uma omissão absoluta da discriminação da matéria de facto necessária para basear a decisão de direito.
Ora, essa total ausência de julgamento da matéria de facto em ordem à subsunção da respectiva solução de direito, impede este Tribunal de recurso de levar a cabo a sua actividade jurisdicional, comprometendo a possibilidade de revisão da decisão impugnada, sabido que a actividade do Supremo Tribunal Administrativo em processos julgados inicialmente pelos tribunais tributários de 1ª instância se limita à aplicação do direito aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (artigo 729.º, n.°s 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Ou seja, o tribunal de 1ª Instância tem, necessariamente, de determinar a matéria de facto que considera provada e não provada em ordem à respectiva solução de direito que considera aplicável, e se o não fizer justifica-se a anulação oficiosa da sentença ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 729.º do CPC, com a consequente devolução dos autos a esse tribunal para que nele se proceda ao julgamento e fixação de base factual suficiente para a decisão de direito.
3. Termos em que acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em anular a sentença recorrida, devendo o Tribunal de 1ª instância proferir nova decisão com especificação dos factos que considera provados e não provados.
Sem custas
Lisboa, 10 de Março de 2011. – Dulce Neto (relatora) - António Calhau - Valente Torrão.