Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01006/16
Data do Acordão:02/28/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
FALTA DE CITAÇÃO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário:Numa acção como a dos presentes autos em que é demandado o “Estado-Ministério da Educação” e em que apenas este último é citado, não só se verifica um caso de falta de personalidade judiciária do ME (uma vez que se estava perante um tipo de situação em que, nos termos legais, os Ministérios carecem de personalidade judiciária), como a falta de citação do único réu, o Estado, determina a anulação de todo o processado posterior à p.i. e a baixa dos autos à primeira instância para aí ser citado o R. Estado para contestar a acção.
Nº Convencional:JSTA00070570
Nº do Documento:SA12018022801006
Data de Entrada:10/17/2016
Recorrente:MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
Recorrido 1:INSTITUTO EDUCATIVO DE .......... LDA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAN
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR ADM CONT
Legislação Nacional:CPC13 ART608 ART278 ART189 ART195 ART187.
CPTA ART10.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0556/15 DE 2015/10/01.; AC STA PROC01300/14 DE 2016/02/04.; AC STA PROC0864/03 DE 2003/12/10.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. Ministério da Educação (ME), devidamente identificado nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 04.03.16 (fls. 220-229v.), que revogou a sentença do TAF de Coimbra e condenou “o Recorrido a cumprir o contrato de associação datado de 12-10-2010 (…) de acordo com a legislação nele indicada, retomando o procedimento para apuramento e pagamento à Recorrente, no prazo de 30 dias, do montante definitivo do financiamento, acrescido de juros de mora civis à taxa legal sobre o montante em dívida desde a citação até efectivo pagamento”.

Na origem do recurso interposto para o TCAN esteve, então, a sentença do TAF de Coimbra, de 17.06.13, que decidiu da seguinte forma: “Na apontada conformidade, julga-se parcialmente procedente o pedido, e em consequência, condena-se o Réu Ministério da Educação – Estado Português a pagar à Autora, o montante de € 1.330.714, 29 (um milhão, trezentas e trinta mil, setecentos e catorze euros, vinte e nove cêntimos) de acordo com o previsto na adenda ao contrato inicial, acrescidos de juros de mora, calculados à taxa legal prevista para as obrigações civis, sobre o valor de cada prestação mensal desde o dia do vencimento, até à data em que se efectuou o respectivo pagamento, absolvendo-se dos demais pedidos formulados” (cfr. fl. 158).

2. O recorrente apresentou alegações, tendo, entre outros aspectos, invocado a sua falta de personalidade judiciária, excepção dilatória nominada de conhecimento oficioso.

3. Nas suas contra-alegações o recorrido não se pronunciou sobre a excepção dilatória nominada suscitada pelo recorrente.

4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 22.09.16 (fls. 296-9), veio a ser admitida a revista.

5. O Digno Magistrado do Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não emitiu qualquer parecer ou pronúncia.

6. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:


Remete-se para a matéria de facto dada como provada nas instâncias, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.


2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar as questões suscitadas pelo ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, quais sejam, a questão da verificação da excepção dilatória da falta de personalidade judiciária do ME e a questão de mérito propriamente dita relacionada com a (i)legalidade dos cortes no financiamento estadual ao contrato de associação em questão por força da adenda imposta unilateralmente ao contraente privado.

2.1.1. Da excepção dilatória da falta de personalidade judiciária do ME

Ao abrigo do n.º 1 do artigo 608.º do CPC, aplicável ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA, cumpre, em primeiro lugar, conhecer “das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância”.

A personalidade judiciária configura um dos pressupostos processuais cuja verificação se mostra necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre a procedência ou improcedência do pedido. A falta de personalidade judiciária constitui uma excepção dilatória nominada que é de conhecimento oficioso e que conduz à absolvição do réu da instância.

Atentemos nos contornos do caso dos autos.

A presente Acção Administrativa Comum (AAC) sob a forma ordinária foi intentada contra o Ministério da Educação-Estado Português no TAF de Coimbra.

Na sua contestação, o ME não excepcionou a sua falta de personalidade judiciária e fez acompanhar a sua contestação com o devido despacho do Secretário de Estado da Educação em que se nomeia “o licenciado em Direito com funções de apoio Jurídico, ……….” para efeitos de “representação em juízo da entidade demandada” (cfr. fl. 94 dos autos).

Por sua vez, o TAF de Coimbra, no seu saneador-sentença de 17.06.13, prolatado ao abrigo da al. b) do n.º 1 do artigo 508.º-B do CPC, estabelece, no ponto “II – Pressupostos processuais” que: “1. O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. 2. O processo é o próprio e não enferma de nulidade que o invalide. 3. As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e encontram-se regularmente representadas em Juízo. 4. Inexistem nulidades, outras excepções ou questões prévias de que cumpra, desde já, conhecer, e que obstem à apreciação do mérito da causa” (cfr. fl. 138 dos autos).

O A. recorreu para o TCAN da sentença da primeira instância que não lhe foi favorável. O TCAN não apreciou oficiosamente a questão da alegada falta de personalidade judiciária do ME. Ao contrário do que este último invoca nas suas alegações de recurso para este Supremo Tribunal, o ora recorrente não suscitou esta questão da ilegitimidade passiva por falta de personalidade judiciária nas suas contra-alegações para o TCAN porque nem sequer apresentou contra-alegações!

Nas suas alegações de recurso para este Supremo Tribunal vem, então, o recorrente ME suscitar a excepção de falta de personalidade judiciária, pois entende que, estando-se, no caso dos autos, perante uma acção relativa a contratos, a acção teria de ter sido intentada contra o Estado, que deveria estar representado em juízo pelo Ministério Público (MP).

Nas suas contra-alegações o recorrido nada referiu quanto à excepção dilatória nominada suscitada pelo recorrente.

Cumpre decidir.

Comecemos por atentar no disposto nos artigos 10.º e 11.º do CPTA, considerando a redacção que vigorava aquando da propositura da acção”.


Artigo 10.º
Legitimidade passiva

1 - Cada ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.
2 - Quando a ação tenha por objeto a ação ou omissão de uma entidade pública, parte demandada é a pessoa coletiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o ato jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.
3 - Os processos que tenham por objeto atos ou omissões de entidade administrativa independente, destituída de personalidade jurídica, são intentados contra o Estado ou a outra pessoa coletiva de direito público a que essa entidade pertença.
4 - O disposto nos dois números anteriores não obsta a que se considere regularmente proposta a ação quando na petição tenha sido indicado como parte demandada o órgão que praticou o ato impugnado ou perante o qual tinha sido formulada a pretensão do interessado, considerando-se, nesse caso, a ação proposta contra a pessoa coletiva de direito público ou, no caso do Estado, contra o ministério a que o órgão pertence.
5 - Havendo cumulação de pedidos, deduzidos contra diferentes pessoas coletivas ou ministérios, devem ser demandados as pessoas coletivas ou os ministérios contra quem sejam dirigidas as pretensões formuladas.
6 - Nos processos respeitantes a litígios entre órgãos da mesma pessoa coletiva, a ação é proposta contra o órgão cuja conduta deu origem ao litígio.
7 - Podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares.
8 - Sem prejuízo da aplicação subsidiária, quando tal se justifique, do disposto na lei processual civil em matéria de intervenção de terceiros, quando a satisfação de uma ou mais pretensões deduzidas contra a Administração exija a colaboração de outra ou outras entidades, para além daquela contra a qual é dirigido o pedido principal, cabe a esta última promover a respetiva intervenção no processo”.

Artigo 11.º
Patrocínio judiciário e representação em juízo

“1 - Nos processos da competência dos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de advogado.
2 - Sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, as pessoas coletivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja atuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 - Para o efeito do disposto no número anterior, e sem prejuízo do disposto nos dois números seguintes, o poder de designar o representante em juízo da pessoa coletiva de direito público ou, no caso do Estado, do ministério compete ao auditor jurídico ou ao responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa coletiva ou do ministério.
4 - Nos processos em que esteja em causa a atuação ou omissão de uma entidade administrativa independente, ou outra que não se encontre integrada numa estrutura hierárquica, a designação do representante em juízo pode ser feita por essa entidade.
5 - Nos processos em que esteja em causa a atuação ou omissão de um órgão subordinado a poderes hierárquicos, a designação do representante em juízo pode ser feita por esse órgão, mas a existência do processo é imediatamente comunicada ao ministro ou ao órgão superior da pessoa coletiva”.

Na p.i. que apresentou, o A. peticionava, a final, o seguinte:

“Neste termos e melhores de direito, e sempre com o douto suprimento de V. Exa., deve ser julgada procedente, por provada, a presente acção e, por via da mesma:
a) Condenar-se o Réu a cumprir o contrato de associação datado de 12/10/2010, a que corresponde o documento nº 6 junto com o requerimento inicial da providência cautelar, pagando à autora, até 31/8/2011, o montante previsional de € 2.576.191,17 (dois milhões, quinhentos e setenta e seis mil, cento e noventa e um euros e vinte sete cêntimos), em prestações mensais, até ser apurado o montante definitivo do mesmo, a efectuar em liquidação de sentença, deduzido dos montantes pagos pelo réu em execução do contrato, acrescido de juros de mora comerciais sobre o montante em falta desde a data de vencimento até efectivo e integral pagamento;
b) Reconhecer-se que o réu, por sua culpa, até à presente data (14/4/2011), não pagou pontual e integralmente a contrapartida financeira/preço relativa aos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2011, e, por isso, para além do capital (€ 214 682,60/mês), deve ainda ser condenado a pagar juros moratórios sobre cada mensalidade, por aplicação das taxas de juro comercial, até efectivo e integral pagamento, contabilizando-se os vencidos até 14/4/2011 em € 6 221,09 (seis mil duzentos e onze euros e nove cêntimos);
c) Por via do apontado incumprimento, condenar o réu a pagar à autora todos os danos que causou com o não pagamento pontual e integral das apontadas mensalidades, a liquidar em sede de execução de sentença;
d) Caso não seja julgado integralmente procedente o pedido formulado sob a alínea a), condenar o Réu a reconhecer que a adenda ao contrato de associação, a que corresponde o documento nº 30 junto com o requerimento inicial da providência cautelar é ilegal, condenando-a a repor o equilíbrio financeiro do contrato, mediante o pagamento à autora, entre 1 de Janeiro e 31 de Agosto de 2011, da quantia de € 1 692 278,40 (um milhão, seiscentos e noventa e dois mil, duzentos e setenta e oito euros e quarenta cêntimos), em prestações mensais, deduzido dos montantes que o réu venha a pagar em função da decisão da providência cautelar, acrescidos dos respectivos juros de mora comerciais, desde a data do vencimento até efectivo e integral pagamento:
e) Por último, condenar-se o réu ao pagamento de custas, procuradoria condigna e tudo o mais que de lei for.

Mais requer a apensação dos autos da Providência Cautelar que corre termos no TAF de Coimbra sob o nº 165/11.6 BECBR aos presentes autos, mais requerendo a dispensa da junção de procuração forense e dos documentos referidos na presente p.i. por já serem do conhecimento do Réu” (cfr. fls. 30 e 31 dos autos).

No que respeita à qualificação jurídica da situação subjacente aos autos, quer se entenda que os cortes no financiamento operados em contratos de associação já celebrados e em execução geram responsabilidade contratual e consubstanciam incumprimento do contrato, quer se entenda que estamos perante actos de autoridade exteriores ao contrato (lícitos ou ilícitos), os quais podem ser atacados enquanto actos administrativos, em ambos os casos gera-se uma situação de responsabilidade contratual na medida em que se verifica uma violação (interna ou externa) do contrato de associação em causa. E, assim sendo, pode afirmar-se com segurança que o caso dos autos insere-se no âmbito daqueles “processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade” (sobre a questão da personalidade judiciária dos Ministérios, ver os acórdãos do STA de 01.10.15, Proc. n.º 556/15, e de 04.02.16, Proc. n.º 1300/14).

É verdade que na sentença do TAF de Coimbra, quando se procedeu ao saneamento, se afirmou que as partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária. Mas também é verdade que as questões de personalidade e de capacidade judiciárias não foram concretamente apreciadas, tendo-se o juiz da 1.ª instância limitado a empregar uma fórmula tabelar de apreciação dos pressupostos processuais. Ora, como entendem consensualmente a doutrina e a jurisprudência (cfr., v.g., o acórdão do STA de 10.12.03, rec. 864/03), o emprego de uma fórmula de conteúdo genérico e negativo sobre os pressupostos processuais não determina a formação de caso julgado relativamente aos mesmos – impeditivo da sua ulterior reapreciação –, o qual só se forma em relação àqueles pressupostos que foram concreta e efectivamente apreciados, isto é, em relação àqueles sobre os quais o juiz emite um juízo concreto e justificado. Tal não aconteceu no caso dos autos.

Em face de todo o exposto, não pode deixar de se concluir pela falta de personalidade judiciária do réu, ora recorrente, o qual deve ser absolvido da instância (art. 278.º, n.º 1, al. c), do CPC). Mas deve, ainda, extrair-se a conclusão, a partir dos termos em que a petição inicial vem articulada, de que o Estado também foi demandado na presente acção judicial e que, por isso, o mesmo é o verdadeiro réu. Ora, apesar de demandado, a verdade é que, contrariamente ao que sucedeu em outras acções idênticas a esta – uma ou outra que, inclusivamente, correram termos no TAF de Coimbra –, o Estado nunca chegou a ser citado.
Por essa razão, não houve intervenção do Estado (ou do Ministério Público, que deveria actuar como seu legal representante, nos termos do disposto nos artigos 10.º e 11.º do CPTA, lidos conjugadamente) no processo, não se podendo considerar, deste modo, que tenha havido suprimento da nulidade de falta de citação (art. 196.º do CPC 1961, actualmente, artigo 189.º). Verifica-se, pois, nos presentes autos, a falta de citação do réu, a qual consubstancia uma das situações de nulidade de citação ex vi dos artigos 198.º (Nulidade da citação) e n.º 1, al. a), do 195.º (Quando se verifica a falta de citação) do CPC 1961 (actualmente artigos 191.º e 188.º, n.º 1, al. a)).
Em virtude da verificação desta nulidade, e ao abrigo do disposto no artigo 194.º do CPC 1961 (Anulação do processado posterior à petição – actualmente, art. 187.º), cumpre anular todo o processado posterior à petição inicial.

2.1.1. Do conhecimento do mérito do recurso

Em face da verificação da nulidade da citação com a concomitante anulação de todo o processado posterior à p.i., temos que, nos termos do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, fica prejudicado o conhecimento do mérito.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em julgar procedente a excepção invocada, e, em consequência, em absolver o R. ME da instância, e em anular todo o processado posterior à p.i., ordenando a baixa dos autos à primeira instância para aí ser citado o R. Estado para contestar a acção.

Custas a cargo do recorrido.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2018. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.