Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02573/12.6BEPRT
Data do Acordão:02/28/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IMPOSTO SOBRE VEÍCULO
VEÍCULO USADO
IMPORTAÇÃO DE AUTOMÓVEIS
INTERPRETAÇÃO
DIREITO COMUNITÁRIO
Sumário:I - O TJUE já se pronunciou no sentido de que a existência de um método alternativo não afasta a discriminação no modelo adoptado para tributar os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros, pois não deve o sujeito passivo ser obrigado a requerer a avaliação pericial para poder atenuar o montante de imposto a pagar.
II - Não permitindo a factualidade fixada pela 1.ª instância saber como foi efectuada a liquidação impugnada, de ISV, nem se o montante liquidado seria diverso se se tratasse de veículo usado idêntico, não importado de outro Estado-membro, mas já matriculado no território nacional, impõe-se a anulação da sentença e a devolução dos autos à 1.ª instância, a fim de aí ser feita a pertinente indagação e proferida nova sentença.
Nº Convencional:JSTA000P31971
Nº do Documento:SA22024022802573/12
Recorrente:AA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de acção administrativa com o n.º 2573/12.6BEPRT
Recorrente: AA
Recorrida: Administração Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 O acima identificado Recorrente, inconformado com a sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou improcedente a impugnação judicial por ele deduzida, na sequência do indeferimento do pedido de revisão, contra a liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) que lhe foi efectuada relativamente à introdução de um veículo no consumo no ano de 2009, dela interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.

1.2 O Recorrente apresentou as alegações de recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A- Vem o presente recurso interposto da sentença do TAFPorto, que considerou não haver qualquer vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto ou direito do acto tributário impugnado, concluindo pela improcedência da Impugnação, porquanto foi entendido que…

B- … tendo o sujeito passivo ao seu dispor o método alternativo, não ocorre a alegada violação ao artigo 90.º do Tratado de Roma…mesmo quando… passou também a ser relevante na tributação o impacto ambiental, permanecendo intacto na ordem jurídica o n.º 3 daquele preceito legal, isto é, continuando a ser permitido ao sujeito passivo recorrer a uma avaliação alternativa e assim … não se vislumbra que haja qualquer violação ao artigo 90.º do Tratado de Roma por distinção de tratamento dos veículos.

C- Não pode conformar-se o Recorrente com a decisão proferida, porquanto não se vê convencido da contrariedade da fundamentação que apresentou em seu favor e mantém. Acresce, que sobre o específico ponto que ressalta e fundamenta no essencial a decisão recorrida, (ou seja a possibilidade de recorrer a um método alternativo de cálculo), já se pronunciou o TJUE – processo C-200/15, 16 de Junho de 2016 –, que conclui ser de rejeitar o argumento da República Portuguesa segundo o qual o sistema de tributação misto dos veículos usados, baseado numa tabela de percentagens fixas e, complementarmente, quando o sujeito passivo o pretenda, numa avaliação do veículo, está organizado de modo a excluir qualquer efeito discriminatório, pelo que é compatível com o artigo110.º TJUE. Não basta, para evitar que um sistema de tributação seja contrário a este artigo, que o sujeito passivo tenha possibilidade de requerer uma avaliação do veículo em causa.

D- A incidência suporte da liquidação do ISV, que incidiu sobre o veículo adquirido na Alemanha, pelo Recorrente, foi baseada nas disposições em vigor em Portugal, relativamente a tal imposto, as quais previam uma fórmula de cálculo que impunha tributação diferente dos automóveis similares que tenham sido matriculados pela primeira vez em Portugal.

E- O artigo 11.º do CISV, na versão trazida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, estabelece um factor ambiental no seu cálculo e na sua correlação com o valor real dos veículos, cuja legalidade tem que ser posta em equação.

F- Tal norma, ainda que para apurar as percentagens de redução do imposto em função da idade do carro, leve em conta alguns factores, olvida por completo o respeitante à emissão de CO2, limitando-se a considerar esta componente, apenas em função da cilindrada.

G- Para cálculo do ISV a pagar, quando um carro é importado e vendido em Portugal, no que concerne à tributação em função do CO2, os veículos usados são tratados, praticamente, como se de novos se tratasse, acabando por ser, naturalmente, penalizados do cálculo global final.

H- De acordo com a interpretação do direito comunitário feita pelo Tribunal de Justiça, é contrária ao primeiro parágrafo do referido artigo 90.º, (actual 110.º) do Tratado CE a legislação nacional relativa a imposto automóvel que não garanta que o montante do imposto devido pela introdução no consumo de um veículo automóvel usado, proveniente de outro Estado-membro da Comunidade, nunca é superior ao residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional.

I- O direito positivado, que baseou a liquidação, não garante, antes pelo contrário, que, efectivamente, o montante do imposto devido pela introdução no consumo de um veículo automóvel usado, proveniente de outro Estado-membro da Comunidade, nunca é superior ao residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional.

J- Da Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, resulta uma alteração da fórmula prevista na anterior redacção, nomeadamente pela introdução de um “custo de impacto ambiental”, que se traduz numa tributação cega e mais agravada face à que resultava da redacção da norma anteriormente vigente.

L- Essas alterações traduzem numa notória tributação dos veículos usados importados (com matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-membros) superior ao montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, nos termos preconizados pelo TJCE o que consubstancia uma violação ao disposto no artigo 90.º, actual 110.º do Tratado CE.

M- Tal é o entendimento propugnado pela Comissão Europeia, que decidiu instaurar contra a República Portuguesa o processo de infracção n.º 2008/4277, tendo em vista a alteração das normas que suportam a tributação referida e posteriormente avançado com o processo contra Portugal, o qual corre termos no TJUE.

N- A faculdade do contribuinte poder requerer uma avaliação equitativa do veículo não afasta a qualidade discriminatória do modelo utilizado pelo Estado Português para tributar os veículos usados provenientes de outros Estados Membros. As razões de ordem prática para a não adopção de uma tabela de tributação mais complexa são também rejeitadas pelo Tribunal, considerando-as como insuficientes para justificar imposições discriminatórias para produtos com origem em outros Estados Membros da União.

O- Ao aplicar uma lei que não respeita o direito comunitário, a Alfândega incorreu em vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, pois partiu do pressuposto que a lei nacional era válida, quando o não era, tendo em conta o princípio do primado, (e aplicabilidade direta), do direito da UE sobre o direito nacional.

P- No caso que nos ocupa, está em causa um acto tributário de liquidação enfermado de vício de violação de lei – portanto, ILEGAL – pelo que tem de ser anulado, por padecer do vício de erro nos pressupostos de direito, já que a norma de incidência, sendo inválida, não pode deixar de ser desaplicada.

Q- Verificado o erro imputável aos serviços deveria a entidade que praticou o acto proceder à sua revisão nos termos provocados e requeridos pelo contribuinte, já que para o efeito estava em prazo e era, como a Lei estipula, seu dever. Ao não fazê-lo quando proferiu o despacho impugnado, imbuiu este, do vício de violação de lei – art. 78.º da LGT, que, também, o Tribunal, acabou por sancionar ao não declarar a ilegalidade.

R- A imputabilidade do erro aos serviços impele, serem devidos juros desde a data em que ocorreu o pagamento da quantia liquidada.

S- Mal andou, por isso, o juiz [do Tribunal] a quo, ao assim não proceder e decidir, aplicando erradamente a Lei nacional e comunitária, nos termos e ao arrepio das normas citadas.

NESTES TERMOS E MELHORES DE DIREITO, com o douto suprimento de V/Ex.ªs Exmos Juízes Conselheiros, deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado e, por consequência, revogar-se a douta sentença recorrida, nos termos e fundamentos invocados, substituindo-a por outra que julgue totalmente procedente a Impugnação».

1.3 A Recorrida não contra-alegou.

1.4 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e a Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que seja ordenada a baixa dos autos ao Tribunal a quo, a fim de aí ser ampliada a matéria de facto e proferido novo julgamento.
Considerou a Procuradora-Geral-Adjunta, em síntese, que as alterações legislativas (referidas nas conclusões E a G) que o Recorrente considera em desconformidade com o art. 90.º do Tratado da Comunidade Europeia (TCE) – actual art. 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) – só entraram em vigor em data ulterior àquela em que foi efectuada a liquidação; sem prejuízo, porque as questões de eventual violação do Direito comunitário são do conhecimento oficioso, impõe-se saber como a AT efectuou a liquidação impugnada, ou seja, ao abrigo de que regras concretas; uma vez que a sentença não fixou essa factualidade, impõe-se determinar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto para esse efeito.

1.6 O Recorrente apresentou nos autos cópia do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em 2 de Setembro de 2021, no processo C-169/20, cuja junção aos autos foi deferida pelo Conselheiro relator a quem o presente recurso estava distribuído.

1.7 Cumpre apreciar e decidir se a sentença fez correcto julgamento quando julgou improcedente a impugnação judicial, o que passa por verificar se as normas ao abrigo das quais foi efectuada a liquidação violam o disposto, à data, no art. 90.º do Tratado da Comunidade Europeia (TCE), designadamente, se, como alega o Recorrente, dessas normas resulta «uma notória tributação dos veículos usados importados superior ao montante de imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional».


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

«1. AA apresentou em 1.10.2009 na Alfândega do Freixieiro Declaração Aduaneira de veículo com o n.º ...09/...12 0 relativamente à regularização fiscal de matrícula nacional do veículo automóvel, marca ... com a matrícula alemã LG ..2T – cfr. fls. 5 do processo de revisão oficiosa junto aos autos.

2. Da declaração aduaneira descrita em 1) resultou Imposto sobre os Veículos a pagar no montante de € 7.875,81 – cfr. fls. 5 do processo de revisão oficiosa junto aos autos.

3. Da liquidação de IRS a que se alude em 2) AA apresentou pedido de revisão oficiosa – cfr. fls. 2 e 3 do processo de revisão oficiosa junto aos autos.

4. A Alfândega do Freixieiro emitiu informação sobre o pedido de revisão a que se alude em 3. – cfr. fls. 8 a 12 do processo de revisão oficiosa junto aos autos.

5. Sob a informação a que se alude em 4. recaiu despacho com o seguinte teor: “Atentos os fundamentos de facto e de direito constantes da informação junta, indefiro o pedido de revisão oficiosa apresentados por AA (…)” – cfr. fls. 8 do processo de revisão oficiosa junto aos autos».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

Está em causa nos autos a legalidade da liquidação de ISV que foi efectuada ao ora Recorrente relativamente à importação de uma viatura automóvel em 2009.
O Recorrente continua a sustentar, como o tinha feito em sede de pedido de revisão e junto da 1.ª instância, que a liquidação viola o disposto no art. 90.º do TCE – a que hoje corresponde o art. 110.º do TFUE ( Norma que dispõe: «Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.
Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções») –, uma vez que com a redacção dada ao n.º 1 do art. 11.º da Lei n.º 22-A/2008 de 29 de Junho (que aprovou o CISV) pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2009), passou a verificar-se «uma notória tributação dos veículos usados importados superior ao montante de imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional».
O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, acolhendo a posição da AT, considerou que o ordenamento jurídico português, em ordem a ultrapassar as críticas dirigidas pelo então denominado Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia – designadamente, no acórdão de 22 de Fevereiro de 2001, proferido no processo C-393/98 (Acórdão disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:61998CJ0393 e que concluiu que «[o] artigo 95.º, primeiro parágrafo, do Tratado (que passou, após alteração, a artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE) só permite a um Estado-Membro aplicar aos veículos usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação em que a depreciação do valor efectivo dos referidos veículos é calculada de modo geral e abstracto, com base em critérios ou tabelas fixas determinados por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa, se esses critérios ou tabelas forem susceptíveis de garantir que o montante do Imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional».) –, passou a prever, através da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, e da Portaria n.º 1291/2001, de 16 de Novembro, um método alternativo relativamente aos veículos usados provenientes da então denominada Comunidade Europeia, sendo que a existência desse sistema misto de tributação dos veículos automóveis usados provenientes de outro Estado-membro assegura a conformidade da tributação nacional com o art. 90.º do TCE; que esse método alternativo se manteve em vigor após a redacção dada ao n.º 1 do art. 11.º da Lei n.º 22-A/2008 de 29 de Junho pela Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro, estando expressamente previsto no n.º 3 do mesmo art. 11.º do CISV, na referida redacção. Assim, concluiu que, mesmo após a referida alteração do n.º 1 do art. 11.º do CIS, «em que passou também a ser relevante na tributação o impacto ambiental, permanecendo intacto na ordem jurídica o n.º 3 daquele preceito legal, isto é, continuando a ser permitido ao sujeito passivo recorrer a uma avaliação alternativa e assim conforme com o estatuído para os veículos matriculados pela primeira vez em Portugal, não se vislumbra que haja qualquer violação ao artigo 90.º do Tratado de Roma por distinção de tratamento dos veículos».
Quanto ao argumento da sentença, que afastou a invocada inconformidade da legislação nacional com o Direito da Comunidade Europeia pela previsão do método alternativo, o Recorrente (embora, como salientou a Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal, incorrendo no lapso de considerar que, à data, estaria em vigor o art. 11.º do CISV na versão trazida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a qual só entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2011) sustenta que «[n]ão basta, para evitar que um sistema de tributação seja contrário a este artigo [leia-se, o art. 90.º do TCE, a que corresponde actualmente o art. 110.º do TFUE], que o sujeito passivo tenha possibilidade de requerer uma avaliação do veículo em causa», como salientou já o TJUE; que o que releva, em ordem a averiguar da eventual violação do então denominado Direito da Comunidade Europeia, aplicável na ordem jurídica interna por força do n.º 4 do art. 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), é que o montante do imposto devido pela introdução no consumo de um veículo automóvel usado proveniente de outro Estado-Membro não seja superior ao residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional.
Assim, a questão que cumpre apreciar e decidir é a que deixámos enunciada em 1.6: o art. 11.º do CISV, na redacção aplicável, permite que o valor de ISV liquidado aos veículos usados importados de outros Estados-membros seja superior ao montante de ISV calculado relativamente a veículos usados nacionais equivalentes, em violação do direito comunitário?

2.2.2 DA LEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO

Na tese do Recorrente, o art. 11.º do Código do ISV, na versão ao tempo dos factos, ainda que para apurar as percentagens de redução do imposto em função da idade do carro levasse em conta alguns factores, olvidava por completo o respeitante à emissão de CO2, limitando-se a considerar esta componente apenas em função da cilindrada; assim, no cálculo do ISV a pagar, quando um carro é importado e vendido em Portugal, no que concerne à tributação em função do CO2, os veículos usados são tratados, praticamente, como se de novos se tratasse, acabando por ser penalizados no cálculo global final; assim, as regras de Direito nacional em que se suportou a liquidação, não garantem, antes pelo contrário, que, efectivamente, o montante do imposto devido pela introdução no consumo de um veículo automóvel usado, proveniente de outro Estado-membro nunca é superior ao residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional, o que consubstancia uma violação do art. 90.º do TCE, actual art. 110.º do TFUE.
Para decidir como decidiu o Tribunal recorrido ponderou que os n.ºs 1 e 3 do art. 11.º da Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho (que aprovou o Código do Imposto sobre Veículos), quer na redacção original, quer na que foi introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, prevêem dois métodos de tributação, tendo o sujeito passivo ao seu alcance, por meio de recurso para o Director da Alfândega, uma avaliação ou prova pericial ao veículo por forma a aferir o valor real do mesmo tendo por referência a antiguidade, quilometragem, estado geral, o modo de propulsão, a marca ou modelo; que, em face da previsão legal desse método alternativo, «não ocorre a alegada violação ao artigo 90.º do Tratado de Roma».
No entanto, como bem salientou o Recorrente, o TJUE já se pronunciou no sentido de que a existência de um método alternativo não afasta a qualidade discriminatória do modelo utilizado pelo Estado Português para tributar os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros, designadamente, no acórdão proferido no processo C-200/15, de 16 de Junho de 2016 ( ECLI:EU:C:2016:453.), e no acórdão proferido no processo C-169/20, de 2 de Setembro de 2021 ( ECLI:EU:C:2021:679.).
Em ambos os acórdãos o TJUE entendeu que a referida faculdade de o contribuinte poder requerer uma avaliação não afasta a discriminação no modelo adoptado para tributar os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros, pois não deve o sujeito passivo ser obrigado a requerer a avaliação pericial para poder atenuar o montante de imposto a pagar. É certo que no primeiro daqueles acórdãos estava em causa a discriminação resultante do cálculo da desvalorização dos veículos que não tinha em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos; mas, no segundo, a discriminação passava pela não desvalorização da componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado-Membro, ou seja, a questão era a que ora se discute no presente recurso.
Acontece, porém, que não podemos perder de vista que a questão suscitada nos autos será a de saber se o art. 11.º do CISV, ao não prever uma redução sobre a componente ambiental do ISV no cálculo do imposto incidente sobre veículos usados adquiridos noutros Estados-membros que tenha em conta a sua desvalorização, permite que o valor de imposto em causa seja superior ao montante de ISV calculado relativo a veículos usados nacionais equivalentes.
Ora, da matéria de facto assente pelo Tribunal recorrido não resulta, por um lado, a forma como o imposto impugnado foi liquidado (apenas consta qual o imposto e o seu montante) e, por outro, se o montante da liquidação sem a alegada ilegalidade (i.e., se calculado relativamente a um veículo usado nacional idêntico) seria diferente e, na afirmativa, em que medida. De notar que o que está em causa é a discriminação na tributação dos veículos usados adquiridos noutros Estados-membros relativamente ao montante de imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, pelo que, a concluir-se pela violação do direito da União Europeia (que, dissemo-lo já, não será afastada pela existência do referido método alternativo), a anulação da liquidação será limitada a essa medida. Dito de outro modo, se a lei aplicada garantia que os veículos usados importados não estavam sujeitos a um imposto de montante superior ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado português.
Note-se que, não estando fixada a factualidade que nos permita saber como foi efectuada a liquidação e sobre a existência da eventual diferença que possa constituir o tratamento discriminatório dado aos automóveis usados similares comercializados no território nacional relativamente aos que são originários de outro Estado-membro da União Europeia, podemos até estar perante uma questão meramente académica, i.e., sem respaldo no caso concreto.
Note-se ainda que, apesar de recair sobre as partes o ónus da prova dos factos constitutivos, modificativos e/ou extintivos de direitos, o tribunal não pode dispensar-se da actividade instrutória pertinente para apurar a veracidade de tais factos e deve, atento o disposto no art. 13.º do CPPT e no art. 99.º da Lei Geral Tributária, realizar ou ordenar todas as diligências que considerar úteis ao apuramento da verdade.
Estamos, assim, perante uma situação de défice instrutório, impeditiva da fixação do regime jurídico aplicável, a determinar a baixa dos autos, com vista à ampliação da matéria de facto pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de acordo com o acima exposto, e prolação de nova sentença, ficando prejudicado o conhecimento do mérito do recurso – arts. 682.º, n.º 3, e 683.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - O TJUE já se pronunciou no sentido de que a existência de um método alternativo não afasta a discriminação no modelo adoptado para tributar os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros, pois não deve o sujeito passivo ser obrigado a requerer a avaliação pericial para poder atenuar o montante de imposto a pagar.
II - Não permitindo a factualidade fixada pela 1.ª instância saber como foi efectuada a liquidação impugnada, de ISV, nem se o montante liquidado seria diverso se se tratasse de veículo usado idêntico, não importado de outro Estado-membro, mas já matriculado no território nacional, impõe-se a anulação da sentença e a devolução dos autos à 1.ª instância, a fim de aí ser feita a pertinente indagação e proferida nova sentença.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os Juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, anular a sentença recorrida e determinar o regresso dos autos à 1.ª instância a fim de aí, após fixação da pertinente matéria de facto, ser proferida nova sentença que leve em consideração a factualidade a apurar.

Custas pela Recorrida, que ficou vencida no recurso, dispensando-se a mesma do pagamento da taxa de justiça porque não contra-alegou o recurso (cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT).


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Lisboa, 28 de Fevereiro de 2024. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) - Anabela Ferreira Alves e Russo - José Gomes Correia.