Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01000/11.0BEALM 01103/17
Data do Acordão:07/01/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IRS
REGIME SIMPLIFICADO DE TRIBUTAÇÃO
RECURSO HIERÁRQUICO
INTEMPESTIVIDADE
Sumário:I - O objeto da impugnação judicial é delimitado pelo pedido e pelos seus fundamentos;
II - A decisão do recurso hierárquico não integra o objeto da impugnação judicial, se esta não tem por fundamento vícios àquela imputados e se a final não se pede a sua anulação.
III - À data dos factos, o prazo para impugnar a decisão de indeferimento da reclamação graciosa era de quinze dias após a sua notificação – artigo 102.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, antes da sua revogação pela alínea d) do artigo 16.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31/12.
IV - É intempestiva a impugnação da decisão da reclamação graciosa interposta depois de decorrido o prazo a que alude o n.º anterior se, tendo o recurso hierárquico desta decisão sido indeferido também por intempestividade, o impugnante não impugnou também esta decisão.
Nº Convencional:JSTA000P26146
Nº do Documento:SA22020070101000/11
Data de Entrada:10/18/2017
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. Relatório

1.1. O REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA interpôs recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que julgou procedente a impugnação judicial da decisão da Diretora de Serviços do IRS que, por subdelegação de poderes, negou provimento ao recurso hierárquico da decisão do Chefe de Divisão de Justiça Tributária que, por delegação de competências, indeferiu a reclamação graciosa do ato de liquidação de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares do ano de 2009, a que foi atribuído o n.º 2011 5000049165, no valor de € 40.910,87.

Impugnação esta que tinha sido deduzida por A………….., contribuinte fiscal n.º ………., com domicílio indicado na Praceta ……….., 2955-…… Pinhal Novo.

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Notificado da sua admissão, o Recorrente apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões: «(…)

A. O Recurso Hierárquico que o Impugnante interpôs da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º 2208201104000390 foi indeferido por intempestividade, por ter sido apresentado para além do termo do prazo de trinta dias previsto no n.º 2 do art. 66.º do CPPT;

B. Por força da intempestividade do Recurso hierárquico, a decisão da Reclamação Graciosa (bem como o enquadramento em regime simplificado e a liquidação de IRS de 2009 que constituem o seu objeto mediato) consolidou-se na ordem jurídica, tornando-se definitiva e insuscetível de ser sindicada contenciosamente;

C. Como ensina Jorge Lopes de Sousa, in “Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado”, Áreas Editora, Lisboa, 6.ª edição, Volume I, pág. 601, em nota de pé de página n.º 1026: "A extemporaneidade do recurso hierárquico não determina, actualmente, a intempestividade do subsequente recurso contencioso, como se previa no § 3.º do art . 52.º do RSTA, tacitamente revogado pelo art. 34.º da LPTA.

Porem, a intempestividade do recurso hierárquico conduzirá à formação de caso decidido ou resolvido, que obstará à interposição de recurso contencioso com fundamento em vícios geradores de anulabilidade.”;

D. Essa é, também a doutrina que decorre dos Acórdãos do STA de 02.04.2009, proferido no Processo n.º 0125/09; de 10.05.2017, no Processo n.º 01490/15 e de 31.05.2017, proferido no Processo n.º 01609/13 que é perfeitamente aplicável aos presentes autos;

E. Ainda que a Impugnação tenha sido tempestivamente apresentada, como decidido na douta sentença ora sob recurso, estava vedado ao Tribunal apreciar do mérito da causa, em face da formação de caso decidido ou resolvido;

F. Ao apreciar da legalidade do enquadramento do Impugnante em regime simplificado e da legalidade da liquidação de IRS de 2009, que anulou, o Tribunal “a quo” violou o n.º 2 do art. 66.º do CPPT, incorrendo em erro de julgamento por errada aplicação do direito.».

Pediu fosse concedido provimento ao recurso, fosse revogada a sentença recorrida e a mesma fosse substituída por acórdão que julgasse a impugnação improcedente.

O Recorrido não apresentou contra-alegações.

1.2. Remetidos os autos a este tribunal, foi ordenada a abertura de vista ao Ministério Público.

O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer, onde concluiu que a questão da «errada determinação do rendimento tributável com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado (...) se mostra definitivamente resolvida pela decisão proferida em sede de reclamação graciosa, que não foi, atempadamente objeto de sindicância graciosa ou contenciosa».

Em consequência, concluiu que deve dar-se provimento ao recurso, deve revogar-se a sentença recorrida e deve, em substituição, absolver-se a Fazenda Pública da instância, «face à verificação do caso decidido ou resolvido e consequente inimpugnabilidade do ato de liquidação sindicado».

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


*

2. Dos fundamentos de facto

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos: «(...)


A. Em 15/10/2008, o ora Impugnante, apresentou declaração de início de atividade, constando da mesma, entre o mais, o seguinte:

“(…)
09 DADOS RELATIVOS À ACTIVIDADE ESPERADA
Data o início de actividade ……………..2008/10/15
PARA ENQUADRAMENTO EM IVA:
(…)
Volume de negócios (vendas + prestações de serviços) ……… 40.000,00 €
(…)
PARA ENQUADRAMENTO EM IR:
Valor total anual dos proveitos estimado (IRC) 160.000,00€
Volume de vendas anual estimado (IRS)
(…)
16 INFORMAÇÕES RELATIVAS À CONTABILIDADE

Possui contabilidade organizada? X Sim ------ Por opção X ---- Tipo de contabilidade Informatizada X--- Local da Centralização da Contabilidade: Sede X --- Número de identificação fiscal do técnico oficial de contas: ……….. --- Número de inscrição na CTOC: ….. (…)”

(cfr. fls. 92-95 do processo administrativo em apenso).

B. Até ao fim de março de 2009, o Impugnante não efetuou qualquer comunicação à Autoridade Tributária a solicitar a alteração do respetivo enquadramento fiscal, para efeitos da atividade referida na alínea antecedente (facto admitido por acordo das partes).

C. Foi registado no sistema informático de IRS que, em 16/06/2009, o ora Impugnante, apresentou a declaração modelo 3 de IRS do exercício de 2008, acompanhada dos anexos “A”, “C” e “H” (cfr. fls. 97 do processo administrativo em apenso).

D. Foi registado no sistema informático de IRS que o Impugnante, com referência ao exercício de 2008, declarou no anexo I da declaração anual, o total de proveitos de € 26.220,85 (cfr. fls. 97 verso do processo administrativo em apenso).

E. Foi registado no sistema informático de IRS que, em 22/01/2011, foi efetuada a declaração oficiosa – F0045-88, respeitante ao exercício de 2009, contendo, entre o mais, o seguinte:

“(…)
3 Sujeito Passivo A – A………..
(…)
4 MOTIVO DO PREENCHIMENTO
(…) x Faltosos (Art.º 76.º, n.º 1, al.b) e c)]
(…)
8 ANEXOS
(…)
Anexo B -------- 1
(…)
ANEXO B
(…)
4 RENDIMENTOS BRUTOS (OBTIDOS EM TERRITÓRIO PORTUGUÊS)
A RENDIMENTOS PROFISSIONAIS, COMERCIAIS E INDUSTRIAIS

(…)

Outras prestações de serviços e outros rendimentos (inclui Mais-Valias) --------------- 403 ----- 160.712,61
(…)
11 TOTAL DAS VENDAS / PRESTAÇÕES DE SERVIÇOS E OUTROS RENDIMENTOS
(…)

Prestações de serviços e outros rendimentos ---- 160.712,61 (…)”.

(cfr. fls. 8 a 10 do processo administrativo em apenso).

F. Em 26/01/2011, foi efetuada a liquidação n.º 2011 5000049165, relativa aos rendimentos do ano de 2009 do Impugnante, entre o mais, com o seguinte conteúdo:
Ano dos rendimentos Data Compensação N.º Liquidação Data Liquidação
2009 2011-01-28 2011 5000049165 2011-01-26
1 Rendimento global € 112.498,83
2 Deduções específicas € 0,00
3 Perdas a recuperar € 0,00
4 Abatimentos € 0,00
5 Deduções ao rendimento € 0,00
6 Rendimento colectável (1-(2+3+4+5)) € 112.498,83
7 Quociente rendimentos anos anteriores € 0,00
8 Rendimentos isentos englobados para determinação da taxa € 0,00
9 Total do rendimento para determinação da taxa (6+8-7) € 112.498,83
10 Coeficiente conjugal 0,00; taxa 42,00%
11 Importância apurada (9:coef.x taxa) € 47.249,51
12 Parcela a abater € 7.135,31
13 Imposto correspondente a rendimentos anos anteriores € 0,00
14 Imposto correspondente a rendimentos isentos € 0,00
15 Valor apurado ((11-12) x (1ou 2) +13-14) € 40.114,20
16 Imposto relativo a tributações autónomas € 0,00
17 Colecta total (15+16) € 40.114,20
18 Deduções à colecta € 247,50
19 Benefício municipal (0,00% da colecta) € 0,00
20 Acréscimos à colecta € 0,00
21 Colecta líquida (17-18-19(>=0)+20) € 39.866,70
22 Pagamentos por conta € 0,00
23 Retenções na fonte € 0,00
24 Imposto apurado (21-(22+23)) € 39.866,70
25 Juros de retenção-poupança € 0,00
26 Sobretaxa - resultado € 0,00
27 Juros compensatórios € 1.044,17
28 Juros indemnizatórios € 0,00
VALOR A PAGAR
€ 40.910,87
(…)”

(cfr. fls. 5 do processo administrativo em apenso).

G. Em 07/02/2011, o Impugnante apresentou junto do Serviço de Finanças de Palmela, requerimento, com o seguinte teor:

“(…)

A………….., NIF/NIPC ……….., residente/sede em Praceta (…) vem nos termos do artº 68º do C.P.P.T., reclamar a nota de liquidação n.º 2115000049165 com os seguintes fundamentos:

A nota de liquidação oficiosa tem o rendimento global, baseada em prestação de serviços e a actividade é de vendas de produtos. (…)”.

(cfr. fls. 4 do processo administrativo em apenso).

H. Em 17/02/2011, pela Divisão de Justiça Tributária, da Direção de Finanças de Setúbal, foi elaborada Informação, entre o mais, com o seguinte teor:

“Assunto: RECLAMAÇÃO GRACIOSA N.º 2208 …………….
RECLAMANTE – A………………..
NIF – …………..
IMPOSTO – IRS de 2009
(…)
(…), a reclamação é tempestiva, uma vez que o contribuinte foi notificado para efectuar o pagamento em 2011/02/06 e apresentou a p.i. da reclamação em 2011/02/07.
(…)
FACTOS
O sujeito passivo não entregou atempadamente a declaração de IRS do ano de 2009, de forma a dar cumprimento ao disposto no art. 57º e 60º do CIRS.
Porque não foi entregue a declaração em tempo, a Direcção Geral dos Impostos, procedeu à liquidação oficiosa (…), a qual constitui o objecto da presente reclamação.
(…)
PARECER
Quando o sujeito passivo não entrega a declaração de rendimentos a que está obrigado por lei, a Administração Tributária emite uma liquidação oficiosa (…).
Porém antes da emissão de qualquer liquidação oficiosa, por falta de entrega da declaração, os contribuintes são notificados, para proceder à sua entrega, dentro de um prazo fixado. O incumprimento desta obrigação no limite temporal definido na notificação, impõe a liquidação oficiosa (…)

A alínea b) do n.º 1 do art. 76º do CIRS refere, “não tendo sido apresentada declaração a liquidação tem por base os elementos de que a Direcção Geral disponha”.

Assim, o rendimento bruto da cat “B” considerado para efeito da liquidação, foi de 160 712,61€, volume de negócios declarado para efeito de IVA).
O n.º 2 do mesmo artigo dispõe “na situação referida na alínea b) anterior, o rendimento líquido da cat B determina-se em conformidade com o regime simplificado de tributação, com a aplicação do coeficiente mais elevado prevista no n.º 2 do art 31º”
Assim, o rendimento líquido cat “B” considerado foi de 112 498,83€ (160 712,61*0.7).
O ofício-circulado nº 20 142 03-12-2009 do Ministério das Finanças, em anexo, veio divulgar o despacho do Sr. Director Geral dos Impostos, com os procedimentos a adoptar, na análise e decisão das reclamações graciosas, das liquidações oficiosas efectuadas por falta de entrega da declaração.
Assim nos termos ofício referido a revisão da liquidação através do mecanismo da reclamação graciosa, só poderão ser objecto de correcção:
• O estado civil do sujeito passivo
• O rendimento bruto e correspondente dedução específica (com excepção dos rendimentos de cat B, aos quais se aplica sempre o coeficiente mais elevado previsto no nº 2 do art 31º)
• Retenção na fonte

Face ao exposto no n.º 2 do art 76º, o ofício citado e porque não é contestado qualquer dos elementos susceptíveis de alteração propõe-se o indeferimento do pedido. (…)”

(cfr. fls. 12 a 16 do processo administrativo em apenso).

I. Em 21/02/2011, sobre a Informação referida na alínea antecedente, recaiu o seguinte despacho:

“Considero a informação junta como PROJECTO DE DECISÃO do processo de reclamação abaixo identificado.

Notifique o reclamante para no prazo de 10 dias contados continuamente e nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art. 60º da LGT, exercer, querendo, o direito de audição, oralmente ou por escrito. (…)”.

(cfr. fls. 12 do processo administrativo em apenso).

J. Pelo ofício n.º 4139, datado de 21/02/2011, expedido sob a forma registada com aviso de receção, na mesma data, a Direção de Finanças de Setúbal, comunicou ao ora Impugnante, entre o mais, o seguinte:

“(…) Para efeitos de cumprimento do disposto no artigo 60.º, n.º 1, alínea b) da Lei Geral Tributária – exercício do direito de participação (audição) dos contribuintes no procedimento tributário, junto se envia o projecto de decisão da reclamação graciosa, acompanhado da fundamentação.

Caso pretenda pronunciar-se sobre o teor do acto notificado, deverá fazê-lo por escrito ou oralmente, no prazo de 10 dias, contados continuamente a partir da data da assinatura do aviso de recepção. (…)”

(cfr. fls. 19-20 do processo administrativo em apenso).

K. O aviso de receção referido na alínea antecedente foi assinado em 24/02/2011 (cfr. fls. 20 do processo administrativo em apenso).

L. Em 18/03/2011, foi elaborada Informação Complementar, com o seguinte teor:

“Assunto: RECLAMAÇÃO GRACIOSA n.º 2208 ………………
RECLAMANTE – A…………………….
(…)
Foi a reclamante ante identificada, notificada em 2011/02/24 pelo n/ ofício 4139, para exercer o direito de audição (…)

Embora notificado, o reclamante não veio exercer o direito, pelo que, o projecto de decisão converte-se em decisão e indefere-se o pedido, conforme proposto. (…)”

(cfr. fls. 21-22 do processo administrativo em apenso).

M. Em 21/03/2011, sobre a Informação referida na alínea antecedente, recaiu o seguinte despacho:

“Considerando a informação junta torna-se definitivo o projecto de decisão e indefere-se o pedido. Notifique-se a reclamante.”

(cfr. fls. 21 do processo administrativo em apenso).

N. Pelo ofício n.º 3620, datado de 25/03/2011, expedido sob a forma registada com aviso de receção, em 28/03/2011, a Direção de Finanças de Setúbal, comunicou ao ora Impugnante, entre o mais, o seguinte:

“(…) Fica por este meio notificado que a reclamação acima identificada foi INDEFERIDA por Despacho datado de 2011-03-21, conforme fundamentação que se junta.
Desta decisão pode:
Interpor Recurso Hierárquico, no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da presente notificação, (…) mediante requerimento dirigido ao Director-Geral dos Impostos;
ou

Deduzir impugnação judicial no prazo de 15 (quinze) dias a contar da presente notificação, (…), mediante requerimento dirigido ao MMT Juiz de Direito do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada. (…)”

(cfr. fls. 25-26 do processo administrativo em apenso).

O. O aviso de receção referido na alínea antecedente foi assinado em 01/04/2011 (cfr. fls. 26 do processo administrativo em apenso).

P. Por carta registada expedida em 09/05/2011, o ora Impugnante, através do seu Il. Mandatário, enviou para o Serviço de Finanças de Palmela, instrumento denominado “Recurso Hierárquico”, entre o mais, com o seguinte teor:

“Exmo. Senhor Ministro das Finanças e da Administração Pública
A………., (…) tendo sido notificado do despacho do Exmo. Sr. Chefe de Divisão da Justiça Tributária da DF de Setúbal, que lhe indeferiu a reclamação graciosa relativa a IRS do ano de 2009, e com ela não se conformando, por entender que a reclamação graciosa merecia deferimento, vem (…) interpor
RECURSO HIERÁRQUICO
(…)
Questão Prévia
O ora requerente discute em recurso hierárquico, a forma de determinação dos rendimentos empresariais no quadro das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 28.º, n.º 1 do CIRS sob a epígrafe “Formas de determinação dos rendimentos empresariais e profissionais”.
(…)
Dá-se aqui por integralmente reproduzido, o recurso hierárquico entregue no Serviço de Finanças de Palmela, em 28/02/2011 (doc. 1).
FUNDAMENTOS DO PRESENTE RECURSO
(…)
O recorrente exerce a actividade de “Pastelaria”, com o CAE 10712.
(…)
A Administração Tributária liquidou imposto ao recorrente no valor de € 40.910,87, efectuando a liquidação com base no artigo 76º nº 1 alínea b) do CIRS, (…)
(…)
A recorrente dispõe de contabilidade organizada, tendo apurado em 2009 o rendimento global com recurso às regras do CIRC e do POC, por remissão do artigo 32º do CIRS.
(…)
Neste contexto, foi apurado o rendimento global de € 5.470,80.
(…)
(…) a liquidação que é efectuada pelos serviços, reveste o carácter de uma liquidação oficiosa, a qual está condicionada à prévia notificação por carta registada do titular dos rendimentos para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias.
(…)

Porém, a carta registada (…) para a entrega da declaração não foi recebida pela reclamante, com vista à entrega da declaração modelo 3.

(…)
(…), no caso vertente, como a actividade do sujeito passivo é de “Pastelaria” (…) o coeficiente a aplicar será de 0,20 às vendas de mercadorias e de produtos reflectidas na contabilidade e que totalizam € 160.717,41 0,70 aos restantes rendimentos da categoria B, na importância de € 12.852,59, só assim, se tornando possível, compatibilizar os artigos 76º, nº 2, e 31º, n.º 2 do CIRS.
(…)

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, (…) anulando-se a liquidação efectuada pelos serviços em sede de IRS de 2009 (…)”.

(cfr. fls. 29 a 41 do processo administrativo em apenso).

Q. O requerimento “Recurso Hierárquico” deu entrada no Serviço de Finanças de Palmela em 11/05/2011, ao qual foi atribuído o n.º RH/DJT 97/2011 (cfr. fls. 29 e 28 do processo administrativo em apenso).

R. Em 24/05/2011, pela Divisão de Justiça Tributária, da Direção de Finanças de Setúbal, foi elaborada Informação, no âmbito do processo n.º 97/2011, contendo, entre o mais o seguinte:

(…)
O pedido é intempestivo, considerando que a petição de recurso hierárquico foi apresentada em 2011/05/11 e que a recorrente foi notificada da decisão no processo de reclamação em 2011/04/2011 – prazo de 30 dias previsto no Art. 66.º n.º 2 do CPPT.
VI – CONCLUSÃO

Assim, pelas razões retro aduzidas, afigura-se-nos que deverá ser de INDEFERIR o presente recurso hierárquico, mantendo-se o acto recorrido. (…)”

(cfr. fls. 45-46 do processo administrativo em apenso).

S. Em 26/05/2011, sobre a Informação referida na alínea antecedente, recaiu o seguinte despacho:

“Concordo. Parece-me ser de negar provimento ao recurso hierárquico, por extemporaneidade. Remeta-se à DSIRS, para apreciação e superior decisão.”

(cfr. fls. 45 do processo administrativo em apenso).

T. Em 25/06/2011, pela Divisão de Administração II, da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, foi elaborada a Informação n.º 2712/11, entre o mais, com o seguinte teor:

Categoria B – arts.º 28.º, 29.º e 30.º - Determinação do rendimento

IRS/2009

A………………

(…)

I – Dos Factos

1. Por ser um contribuinte faltoso, dado se encontrar em incumprimento face ao disposto no art.º 57º do CIRS, foi emitida em 2011.01.26, a liquidação oficiosa n.º 5350049165, correspondente ao IRS do ano de 2009 com imposto a pagar no montante de 39.866,70 € acrescido de juros no montante de 1.044,17 €.

2. O rendimento bruto identificado na liquidação contestada corresponde ao volume de negócios declarado para efeitos de IVA no ano de 2009, ao qual foi apicado o coeficiente de 0,7 em conformidade com o disposto no nº 2 do art.º 76º do CIRS (160.712,61 € x 0,7 = 112.498,83 €)

3. Apenas em 2011.01.27, após a emissão da liquidação oficiosa ora contestada, o SP enviou declaração de rendimentos Mod. 3 (I6118-49) para os serviços da administração fiscal, que viria a ser considerada “inválida”.

4. Em 2011.02.07 o contribuinte apresentou reclamação graciosa (…) contra a identificada liquidação oficiosa, alegando que a mesma tem por base um rendimento global de prestações de serviços quando a actividade que exerce é de vendas de mercadorias e produtos

5. A reclamação graciosa foi indeferida, por os serviços da administração fiscal considerarem que a emissão da liquidação contestada cumpriu com o estipulado no artº 76º do CIRS e no Ofício Circulado nº 20142 de 03.12.2009 da DSIRS.

6. Em 2011.05.11, o sujeito passivo recorre do indeferimento da reclamação graciosa.

II – Apreciação

7. O presente recurso hierárquico é legal (…)

No entanto,

8. (…) os recursos hierárquicos são interpostos no prazo de 30 dias a contar da notificação do acto recorrido.

9. O despacho recorrido foi notificado ao recorrente em 2011.04.01.

10. Nos termos conjugados do artº 57º nº 3 da LGT e do artº 20º do CPPT, os prazos são contínuos e contam-se nos termos do Código Civil (CC).

11. O artº 279º do CC estabelece que, na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr, e se o prazo terminar em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil seguinte.

12. De acordo com as regras enunciadas, o prazo de 30 dias para interposição do recurso iniciou-se em 2011.04.02 e terminou em 2011.05.02 (segunda feira, dia útil).

(…)

13. Tendo o recorrente enviado o recurso hierárquico em 2011.05.09 (carimbo dos CTTs) que apenas deu entrada nos serviços da Administração Fiscal em 2011.05.11, o mesmo foi enviado fora do prazo legal, pelo que é intempestivo.

14. Pelo que deve ser rejeitado nos termos do artº 173º, alínea a) do CPA, aplicável por força do art.º 2º, alínea d) do CPPT.

III – Conclusão

Nestes termos, pela fundamentação supra, conclui-se que deverá ser rejeitado o recurso hierárquico, interposto pelo sujeito passivo, mantendo-se a decisão da reclamação graciosa. (…)”

(cfr. fls. 48 a 50 do processo administrativo em apenso).

U. Em 06/09/2011, sobre a Informação referida na alínea antecedente, recaiu o seguinte despacho:

Concordo, pelo que com base nos fundamentos expressos nego provimento ao recurso”.

(cfr. fls. 48 do processo administrativo em apenso).

V. Pelo ofício n.º 11778, de 23/09/2011, expedido por correio registado com aviso de receção, na mesma data, o Serviço de Finanças de Palmela, comunicou ao Il. Mandatário do ora Impugnante, o seguinte:

“Assunto: NOTIFICAÇÃO – RECURSO HIERÁRQUICO

(…)

Fica notificado do despacho de INDEFERIMENTO, proferido pela Exma. Senhora Directora de Serviços do IRS (Por Subdelegação), de 2011-09-06, no processo de Recurso Hierárquico, conforme fundamentação que se junta.

Desta decisão cabe Impugnação Judicial, no prazo de 90 dias (artigo 102º do CPPT), a contar da presente notificação, (…)”.

(cfr. fls. 52-53 do processo administrativo em apenso).

W. O aviso de receção referido na alínea antecedente foi assinado em 26/09/2011 (cfr. fls. 53 do processo administrativo em apenso).

X. Em 22/12/2011 foi registada a entrega da presente impugnação judicial no Serviço de Finanças de Palmela (cfr. fls. 2 a 11 do suporte físico dos autos).».



*

3. Dos fundamentos de Direito

Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que, além do mais, julgou improcedente a exceção de caducidade do direito de ação.

Com o assim decidido não se conforma o Representante da Fazenda Pública, por entender que, por força da intempestividade do recurso hierárquico, a decisão da reclamação graciosa se consolidou na ordem jurídica, tornando-se definitiva e insuscetível de ser sindicada contenciosamente.

A questão sobre a qual este Supremo Tribunal é chamado a pronunciar-se é, assim, a de saber se o Recorrido deixou caducar o direito de ação e, por conseguinte, o direito de impugnar a liquidação.

Para responder a esta questão importa primeiro definir o objeto da presente impugnação judicial e, em especial, determinar se a impugnação judicial tinha por objeto a decisão da reclamação graciosa ou a decisão do recurso hierárquico.

Como se sabe, o objeto do processo define-se pela pretensão formulada pelo impetrante, tal como se encontra configurada no pedido e na causa de pedir.

Assim, se na impugnação se anuncia impugnar um ato mas os vícios são todos imputados a outro ato, também devidamente identificado e a final se pede a anulação este outro ato, é este último (e não o primeiro) o ato que constitui o objeto imediato da impugnação.

Foi o que sucedeu no caso: apesar de anunciar impugnar a decisão que recaiu sobre um recurso hierárquico, nenhum dos seus fundamentos se relaciona com essa decisão e, a final, não é a anulação revogatória dessa decisão que se pede, mas a anulação da própria liquidação.

Não seria relevante este facto se no recurso hierárquico se tivesse apreciado a legalidade da liquidação ou da reclamação graciosa subsequente. Porque a lei tributária permite a impugnação da decisão em último grau que comporta a apreciação da legalidade dessa liquidação [cfr. o artigo 97.º, n.º 1, alínea d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário]. Integrando, assim, no seu objeto a liquidação que constituiu o objeto da decisão dos atos de grau superior.

Mas não foi o que sucedeu no caso. Na decisão do recurso hierárquico não foi apreciada a legalidade da liquidação nem sequer a legalidade da decisão da reclamação graciosa. Porque foi ali decidido não conhecer do seu objeto. Por intempestividade do recurso hierárquico. E se, no recurso hierárquico, não se conhece da legalidade da liquidação, não pode dizer-se que a decisão respetiva comporta a apreciação da legalidade dessa liquidação.

E esta constatação é muito relevante para o caso porque, se a impugnação não tem por objeto a decisão do recurso hierárquico não pode o prazo de apresentação respetivo ser o prazo de impugnação desta decisão.

Ou seja: para aferir da caducidade do direito de impugnar não poderia a Mm.ª Juiz “a quo” regular-se pelo prazo de três meses contado da notificação daquela decisão, nos termos do artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Por outra via, devendo assumir-se que – atendendo ao pedido e aos seus fundamentos – a impugnação judicial teve por objeto o ato tributário de liquidação de IRS de 2009 e da reclamação graciosa (que apreciou a legalidade dessa liquidação), o prazo de impugnação respetivo era – ao tempo, de quinze dias após a respetiva notificação. Por força do disposto no n.º 2 do mesmo artigo 102.º.

Prazo este que já se tinha esgotado ao tempo da impugnação. Aliás, já se tinha esgotado ao tempo da interposição do próprio recurso hierárquico, como decorre das alíneas “N” e “P” dos factos provados.

E, assim, sendo, nem sequer seria necessário lembrar que este prazo também não se suspende nem interrompe com a interposição do recurso hierárquico (e que não é, por isso, aplicável no processo judicial tributário a regra inserida no artigo 59.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

É certo que, se o recurso hierárquico tivesse confirmado a legalidade da liquidação, a impugnação desta decisão poderia comportar a impugnação da legalidade da liquidação.

Mas – reafirme-se – não foi o que sucedeu no caso. A Direção dos Serviços de IRS absteve-se de a apreciar, por entender que o recurso era intempestivo.

O que o Recorrido podia ter feito – e não o fez – era interposto uma ação administrativa dessa decisão nos termos do n.º 2 do artigo 97.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (por estar em causa um ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade de nenhum ato de liquidação, mas apenas a apreciação da legalidade de um ato administrativo que julgou intempestivo um recurso hierárquico). E se tivesse ganho de causa, poderia ter obrigado a administração a decidir o mérito do seu recurso hierárquico. O que poderia também ter conduzido à apreciação contenciosa da eventual decisão que se pronunciasse sobre a legalidade da liquidação.

O que o Recorrido não podia fazer era conformar-se com a decisão que julgou intempestivo o recurso hierárquico e impugnar, no prazo da impugnação dessa decisão, a decisão administrativa que o órgão hierárquico se absteve de apreciar.

Porque, se assim não fosse, bastaria que, a qualquer momento, se interpusesse um recurso hierárquico intempestivo para reabrir o prazo de impugnação que se deixou esgotar. Contornando, desta forma, os prazos preclusivos que o legislador criou tendo em vista a consolidação das situações jurídicas respetivas.

Pelo que o recurso merece provimento.


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4. Conclusões

4.1. O objeto da impugnação judicial é delimitado pelo pedido e pelos seus fundamentos;


4.2. A decisão do recurso hierárquico não integra o objeto da impugnação judicial, se esta não tem por fundamento vícios àquela imputados e se a final não se pede a sua anulação.


4.3. À data dos factos, o prazo para impugnar a decisão de indeferimento da reclamação graciosa era de quinze dias após a sua notificação – artigo 102.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, antes da sua revogação pela alínea d) do artigo 16.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31/12.


4.4. É intempestiva a impugnação da decisão da reclamação graciosa interposta depois de decorrido o prazo a que alude o n.º anterior se, tendo o recurso hierárquico desta decisão sido indeferido também por intempestividade, o impugnante não impugnou também esta decisão.



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5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, julgar procedente a exceção de caducidade do direito exercido na presente impugnação e absolver a Fazenda Pública da instância.

Custas pelo Recorrido.

D.n.

Lisboa, 1 de Julho de 2020. – Nuno Bastos (relator) – Gustavo Lopes Courinha – Pedro Nuno Pinto Vergueiro.