Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02011/18.0BALSB
Data do Acordão:10/23/2019
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ALTERAÇÃO
EFICÁCIA RETROACTIVA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE
Sumário:I - Apesar de haver uma oposição relevante de dois acórdãos sobre a mesma questão de direito à face da legislação em vigor à data em que foi interposto recurso para fixação de jurisprudência, existe uma inutilidade superveniente da lide se, entretanto, a controvérsia foi decidida por uma alteração legislativa com efeitos retroactivos.
II - Nesse caso, as custas devem ser repartidas igualmente pelo recorrente e pelo recorrido, atento o disposto no art. 536.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do CPC
Nº Convencional:JSTA000P25064
Nº do Documento:SAP2019102302011/18
Data de Entrada:12/21/2018
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A....... - ........... SA
Votação:UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral: Recurso para uniformização de jurisprudência da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD no processo n.º 64/2016-T

1. RELATÓRIO

1.1 A AT veio, ao abrigo do disposto no art. 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), tendo apresentado alegações do seguinte teor:

«A) Constitui objecto do presente recurso o segmento decisório identificado na alínea b) da decisão arbitral final [condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios], proferida em 16-11-2016, pelo Tribunal Arbitral Singular em matéria tributária, constituídos sob a égide do CAAD, na sequência de pedido de pronúncia arbitral apresentado ao abrigo do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas RJAT) e que correu termos sob o n.º 64/2016-T.

B) Tendo o Tribunal julgado procedente o pedido de pronúncia arbitral considerando que as liquidações controvertidas, referentes a IMT e Imposto do Selo, se encontram feridas de ilegalidade com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do art. 103.º n.º 3 da CRP, foi apresentado pela AT recurso para o Tribunal Constitucional, no âmbito do qual foi proferido acórdão, em 09-10-2018, que julgou improcedente o recurso interposto e confirmou a decisão arbitral no que respeita à questão de inconstitucionalidade suscitada.

C) Tendo este acórdão sido notificado a 22-10-2018, transitou em julgado em 03-11-2018, pelo que, atenta a interrupção da contagem dos prazos prevista no artigo 75.º da LTC bem como o disposto no artigo 25.º do RJAT, o presente recurso é tempestivo.

D) Defende a Recorrente que a decisão arbitral recorrida incorreu em erro de julgamento por errónea interpretação do artigo 43.º da LGT, colidindo frontalmente com o acórdão do STA prolatado no processo n.º 01529/14, em 03/04/2015, já transitado em julgado, pelo que considera-se inteiramente justificado o recurso à presente via processual para uniformização de jurisprudência, com a consequente anulação da decisão arbitral na parte recorrida e substituição por outra que julgue improcedente o pedido de juros indemnizatórios, uma vez que, estando a AT sujeita ao princípio da legalidade, não podia recusar a aplicação de uma norma legal vigente no ordenamento jurídico com o argumento de que a considera inconstitucional, inexistindo, assim, erro imputável aos serviços para os efeitos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

E) Ambas decisões versam sobre situações fácticas substancialmente idênticas, uma vez que em cada um dos respectivos litígios estão em causa actos tributários de liquidação declarados ilegais com fundamento em inconstitucionalidade e, em que, subsequentemente foi apreciado o pedido de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, isto é, sabendo se houve, ou não erro imputável aos serviços – cf. arts. 22.º e 23.º supra.

F) Também nas duas decisões há pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito, qual seja o direito a juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, quando a anulação da liquidação impugnada foi por inconstitucionalidade da norma legal aplicável, apurando-se se houve, ou não, erro imputável aos serviços da AT – cf. arts. 28.º e 29.º supra.

G) E, quanto a esta mesma questão, as decisões chegaram a soluções opostas.

H) Na decisão recorrida, o Tribunal Arbitral, não obstante ter anulado as liquidações impugnadas com fundamento em inconstitucionalidade, condenou a AT ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT.

I) Enquanto o Acórdão fundamento pronunciou-se em sentido totalmente oposto, ao concluir, na mesma situação que, atenta a circunstância da administração tributária não poder deixar de decidir, como decidiu, porque não pode desaplicar normas com fundamento em inconstitucionalidade, então nenhum erro pode ser assacado aos seus serviços, não se verificando assim os pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar que encontra previsão no artigo 43.º da LGT.

J) Demonstrada que está uma evidente contradição entra a decisão recorrida e o Acórdão fundamento, no estrito cumprimento do artigo 152.º do CPTA, cumpre assinalar que a infracção em causa consiste num erro de julgamento expresso na decisão recorrida, na medida em que o Tribunal Arbitral adoptou uma interpretação do artigo 43.º da LGT em patente desconformidade com o quadro jurídico vigente.

K) Decidindo deste modo, ficou devidamente demonstrado que a decisão adoptada pelo colectivo de árbitros do Tribunal Arbitral é ilegal, uma vez que em conformidade com o entendimento vertido no Acórdão fundamento, o pedido de juros indemnizatórios devia ter sido julgado improcedente, por inexistir erro imputável aos serviços.

Termos em que deve o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência ser aceite e posteriormente julgado procedente, por provado, sendo, em consequência, nos termos e com os fundamentos acima indicados, revogada parcialmente a decisão arbitral recorrida e substituída por outro Acórdão consentâneo com o quadro jurídico vigente».

1.2 O recurso foi admitido.

1.3 A Recorrida contra-alegou nos seguintes termos:

«§ 1 Em conformidade com o disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, e recentemente aditado pela Lei n.º 9/2019, de 1 de Fevereiro, são devidos juros indemnizatórios «em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respectiva devolução» (cfr. artigo 43.º, n.º 3, al. d) da LGT).

§ 2 O referido aditamento, posterior às ilustres alegações da Recorrente, é «aplicável também a decisões judiciais de inconstitucionalidade ou ilegalidade anteriores à sua entrada em vigor, sendo devidos juros relativos a prestações tributárias que tenham sido liquidados após 1 de Janeiro de 2011» (cfr. artigo 3.º da Lei n.º 9/2019, de 1 de Fevereiro), tal como no caso em apreço.

§ 3 Perante esta recente alteração legislativa, parece-nos não restarem dúvidas quanto à questão fundamental de direito a que se refere a Recorrente,

Termos em que deve o recurso para uniformização de jurisprudência, caso seja admitido, confirmar plenamente a decisão arbitral recorrida».

1.4 Dada vista ao Ministério Público, a Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que seja julgada verificada a oposição e uniformizada a jurisprudência no sentido da posição que foi adoptada pela decisão arbitral recorrida. Isto, após elencar os requisitos de admissibilidade do recurso, com a seguinte fundamentação:

«[…] a questão fundamental de direito aqui em apreço prende-se com o direito ou não a juros indemnizatórios devidos nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, quando houver pagamento indevido de prestações tributárias fundado em normas declaradas judicialmente inconstitucionais ou ilegais.
De facto, constata-se que quer na decisão recorrida quer no acórdão fundamento a questão fundamental em apreço – o direito a juros indemnizatórios nos termos atrás citados – obteve tratamento diverso. Sendo que, a orientação perfilhada pela primeira está em desconformidade com a jurisprudência mais recente deste STA.
O acórdão fundamento mostra-se transitado em julgado.
Mostram-se, pois, verificados os requisitos decorrentes do artigo 152.º do CPTA.
Prevê o artigo 43.º da LGT, na redacção original e com o aditamento decorrente da Lei n.º 64-B/2011, de 30.12, que, quando há pagamento indevido da prestação tributária, são devidos juros indemnizatórios, enumerando as situações em que tal ocorre, definindo o termo dos prazos e as taxas aplicáveis.
Porém, a recente Lei n.º 9/2019, de 01.02, que entrou em vigor a 02.02, veio no seu artigo 1.º clarificar, “(…) com natureza retroactiva, o dever das entidades públicas de pagar juros indemnizatórios pelo pagamento de prestações tributárias que sejam indevidos por a sua cobrança se ter fundado em normas declaradas judicialmente como inconstitucionais ou ilegais”. E,
No seu artigo 2.º estatui:
Aditamento à Lei Geral Tributária
O artigo 43º da LGT passa a ter a seguinte redacção:
«Artigo 43.º
[…]
1- …
2- …
3- …
a)…
b)…
c)…
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respectiva devolução.
4- …
5- …»
Artigo 3.º
Aplicação no tempo
A redacção da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, introduzida pela presente lei, aplica-se também a decisões judiciais de inconstitucionalidade ou ilegalidade anteriores à sua entrada em vigor, sendo devidos juros relativos a prestações tributárias que tenham sido liquidadas após 1 de Janeiro de 2011.

[…] Ora, a questão em controvérsia nos presentes autos é perfeitamente subsumível à actual redacção do artigo 43.º da LGT e acima citado.
E, assim, sem mais delongas, já que a citada alínea d) aditada ao artigo 43.º da LGT resolve a questão controvertida, emite-se parecer no sentido de ser uniformizada jurisprudência devendo aderir-se à posição assumida no acórdão recorrido que se mostra em consonância com este dispositivo legal».

1.5 Cumpre apreciar e decidir em conferência no Pleno desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.


* * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

2.1.1 A decisão arbitral recorrida estabeleceu a seguinte factualidade:

«1. A Requerida procedeu, em 30.12.2015, às seguintes liquidações, tendo como sujeito passivo a Requerente:
a) Liquidação de IMT, no valor de € 26.402,75, a que corresponde o documento n.º 160.815.302.172.038.
B) Liquidações de imposto de Selo, no valor de € 3.743,80 a que corresponde o documento n.º 163.615.147.138.188.

2. A fracção “..” do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …. da Freguesia de ……. e ………, a que se referem os actos tributários em causa integrava o património da Requerente à data da entrada em vigor da Lei n.º 83-C/20133, de 31 de Dezembro, por ter sido adquirido a título oneroso em data anterior.

3. As isenções de IMT e de imposto de Selo, constantes, respectivamente, dos números 7, alínea a), e 8 do art. 8.º do Regime Tributário dos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional, haviam sido reconhecidas a requerimento do Requerente nos termos do art. 10º do Código do IMT, em momento anterior ao do ingresso da fracção em causa no Fundo A…… Arrendamento, como Fundo de investimento imobiliário para arrendamento habitacional.

4. Da liquidação de IMT em causa consta o seguinte:

5. Da liquidação de imposto de selo em causa consta o seguinte:

6. As obrigações tributárias a que se referem as liquidações foram pagas em 30 de Dezembro de 2015».

2.1.2 No acórdão fundamento, consideraram-se os seguintes factos:

«A) No exercício de 2008 a ora Impugnante, B……. - …………, S.A. contabilizou despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros no valor total de € 1.027.810,90 - Cfr. documentos 1 e 3, juntos com a p.i., acordo;

B) Em 30 de Junho de 2009, a Impugnante entregou a declaração modelo 22 de IRC, relativa ao exercício de 2008, nela fazendo constar no campo 365 do quadro 10 - cálculo do imposto - o montante de € 104.486,07, que inclui € 102.781,09 correspondente à tributação autónoma aplicada sobre os encargos referidos na alínea antecedente - Cfr. idem;

C) A Impugnante ao apurar o valor que inscreveu no campo 365 do quadro 10, referido na alínea antecedente, aplicou as taxas de tributação autónoma previstas na Lei n.º 64/2008 de 5 de Dezembro - Cfr. idem;

D) Em 15 de Fevereiro de 2011 a Impugnante deduziu Reclamação Graciosa do acto tributário de autoliquidação de IRC, relativo ao exercício de 2008 - Cfr. carimbo aposto a fls. 4 do PAT, apenso;

E) Em 27 de Julho de 2011 foi proferido despacho, pelo Chefe de Divisão de Justiça Administrativa, por delegação, indeferindo a Reclamação Graciosa a que se refere a alínea antecedente, com os fundamentos constantes do projecto de decisão e da informação da Divisão de Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de Lisboa proferida no processo 837 - Cfr. documento constante do PAT, a fls. 283 a 286, o qual se dá, aqui, por integralmente reproduzido».


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

A AT veio, ao abrigo do disposto no art. 25.º, n.º 2, do RJAT, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral proferida pelo CAAD em 16 de Novembro de 2016 no processo n.º 64/2016-T ( Disponível em

https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=64%2F2016&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=2215.)invocando ontradição entre essa decisão e o acórdão (fundamento) da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Março de 2015, proferido no processo n.º 1529/14 ( Disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/34af21b03b79ed3380257e03003b403a.), relativamente à questão de saber se são devidos juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) quando a liquidação que esteve na origem do pagamento do tributo foi anulada com fundamento em inconstitucionalidade.

Nos termos do n.º 2 do referido art. 25.º do RJAT, «[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é […] susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo»; dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que a esse recurso «é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no art. 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral».
Assim, o regime de interposição do recurso da decisão arbitral para o Supremo Tribunal Administrativo difere do regime do recurso previsto no art. 152.º do CPTA, na medida em que aquele tem de ser apresentado no prazo de 30 dias contado da notificação da decisão arbitral, enquanto neste o prazo se conta do trânsito em julgado do acórdão recorrido, como decorre da alínea a) do n.º 2 do referido art. 152.º ( Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, pág. 230. ).
Já quanto ao acórdão fundamento, o recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe o seu trânsito em julgado, como tem vindo a afirmar este Supremo Tribunal Administrativo, condição verificada no caso sub judice.
Assim, e não havendo dúvidas quanto aos demais requisitos formais (legitimidade da Recorrente e tempestividade do recurso), há que passar a averiguar se estão verificados os requisitos substanciais da admissibilidade do recurso.
Só depois, se for caso disso, passaremos a conhecer do mérito do recurso.

2.2.2 DOS REQUISITOS SUBSTANCIAIS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

2.2.2.1 Nos termos do referido art. 25.º, n.º 2, do RJAT, que remete, com as devidas adaptações, para o art. 152.º do CPTA, os requisitos de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral que tenha conhecido do mérito da pretensão deduzida para uniformização de jurisprudência são os seguintes: i) que exista contradição entre essa decisão e um acórdão proferido por algum dos tribunais centrais administrativos ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, relativamente à mesma questão fundamental de direito, ii) que a orientação perfilhada pelo acórdão impugnado não esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
No que ao primeiro requisito respeita, como tem sido inúmeras vezes explicitado pelo Pleno desta Secção relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deve existir contradição de julgados, devem adoptar-se os critérios já firmados no domínio do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) de 1984 e da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, para detectar a existência de uma contradição, quais sejam:

i. identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, o que pressupõe uma identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais;
ii. que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica, a qual se verifica sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica;
iii. que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta e esta oposição decorra de decisões expressas, não bastando a simples oposição entre razões ou argumentos enformadores das decisões finais ou a invocação de decisões implícitas ou a pronúncia implícita ou consideração colateral tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

2.2.2.2 Começaremos por apreciar se estão verificados os requisitos da alegada contradição de julgados à luz dos supra referidos princípios, já que a sua inexistência obstará, lógica e necessariamente, ao conhecimento do mérito do recurso.
Vejamos, pois, o que decidiram as decisões em confronto.

2.2.2.2.1 A sociedade ora Recorrida apresentou no CAAD pedido de anulação das liquidações ( Apesar de no pedido de pronúncia arbitral o pedido ser de declaração de ilegalidade do acto (cf. art. 2.º do RJAT) e não de anulação do mesmo, a diferença é mais de terminologia do que de conteúdo, uma vez que a declaração de ilegalidade da liquidação por parte do CAAD terá, necessariamente, que comportar efeitos anulatórios, como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit, págs. 110/116.) de IMT e Imposto de Selo, que foi deferido com fundamento na ilegalidade daqueles actos «designadamente pela desaplicação do n.º 2 do art. 236.º da Lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em conjugação com o n.º 16 do art. 8.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, na redacção da Lei 83-C/2013, com fundamento na sua inconstitucionalidade, como impõe o art. 204.º da Constituição da República Portuguesa» (cf. ponto 22 da decisão recorrida). Porque tinha já efectuado o pagamento dos impostos, a sociedade pediu também a restituição dos montantes pagos e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, pedido que foi também deferido.
No que ora nos interessa considerar, ou seja, quanto à condenação em juros indemnizatórios, a decisão recorrida, depois de justificar a possibilidade de o respectivo direito ser reconhecido em processo arbitral, justificou a sua exigência ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 43.º da LGT nos seguintes termos:
«No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o n.º 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Sufragamos o entendimento de Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa que sustentam que “O erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação judicial dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte” (LEI GERAL TRIBUTÁRIA, Anotada e Comentada, encontros da escrita, 4.ª Edição, 2012, pág. 342).
No caso “sub judice”, não sendo o erro que deu origem às liquidações, ora anuladas, imputável ao Requerente, não poderá deixar de proceder o pedido de condenação da Requerida quanto aos juros indemnizatórios.
Assim, deverá a Autoridade Tributária e Aduaneira dar execução à presente decisão, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, restituindo as importâncias pagas pela Requerente relativamente às liquidações anuladas, com juros indemnizatórios, à taxa legal.
Os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT)».
Ou seja, o Tribunal arbitral, após anulação das liquidações com fundamento em inconstitucionalidade da norma que suportou aqueles actos, considerou que, porque tinha sido efectuado o pagamento, a exigência dos juros indemnizatórios à luz do disposto no n.º 1 do art. 43.º da LGT se bastava com a demonstração, resultante dessa decisão anulatória, de que o erro que deu origem às liquidações não era imputável à Requerente, ora Recorrida.

2.2.2.2.2 Por sua vez, no acórdão fundamento, a questão apreciada foi a de saber se a AT está ou não obrigada ao pagamento de juros indemnizatórios quando, como sucedia no caso, a ilegalidade que tinha determinada a anulação judicial do acto tributário era a inconstitucionalidade da norma em que o acto se sustentou.
Em resumo, como consta do sumário doutrinal do acórdão, neste entendeu-se que, «[e]stando a AT sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT), não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP)» e, por isso, para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não podia imputar-se aos serviços da AT o erro que o n.º 1 do art. 43.º da LGT impunha como condição para a atribuição daqueles juros.
Ou seja, entendeu o acórdão ora invocado como fundamento do recurso que, não podendo o erro por aplicação da norma que veio ulteriormente a ser declarada inconstitucional ser atribuído a um actuação ilegal da AT, não podia o mesmo legitimar a condenação nos juros indemnizatórios pedidos ao abrigo do art. 43.º da LGT, por não se verificar o «erro imputável aos serviços» que o n.º 1 daquele preceito legal erige em facto constitutivo do respectivo direito.

2.2.2.2.3 Do que deixámos já dito, afigura-se-nos patente a oposição entre o decidido na decisão arbitral recorrida e no acórdão deste Supremo Tribunal invocado como fundamento do recurso. Na verdade, em ambos se discutia, no âmbito da mesma redacção do art. 43.º da LGT – a que lhe foi dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro – o direito do sujeito passivo a juros indemnizatórios na sequência da anulação de liquidação por inconstitucionalidade da norma que a suportou. Ora, enquanto naquela se considerou que bastava que o erro não pudesse ser imputado ao sujeito passivo para que houvesse de considerar-se verificado o «erro imputável aos serviços» e, assim, constituído o direito aos juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT, neste entendeu-se que não se podia considerar verificado o «erro imputável aos serviços» por a AT, que está sujeita ao princípio da legalidade, não poder desaplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que houvesse já sido declarada judicialmente com força obrigatória geral ou que estivesse em causa a violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias.
Assim, como alegou a Recorrente e reconhece a Recorrida, bem como sustentou a Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, existe uma contradição de decisões sobre a mesma questão fundamental de direito, que justificaria (no ponto seguinte se verá a razão de utilizarmos o condicional) a prossecução do recurso, em ordem à uniformização de jurisprudência.

2.2.3 DA INUTLIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE

A divergência a dirimir seria em torno da questão de saber se a anulação da liquidação baseada na inconstitucionalidade da norma legal em que se fundou aquele acto tributário implica a existência de «erro imputável aos serviços» de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, a determinar o direito a juros indemnizatórios nos termos do n.º 1 do art. 43.º da LGT.
Sucede, porém e como procuraremos demonstrar, que se verifica a inutilidade superveniente da lide [cf. art. 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil (CPC)] em consequência de alteração legislativa ulterior à interposição do recurso e que, em razão do efeito retroactivo que lhe foi conferido, retirou sentido útil à pretendida uniformização da jurisprudência.
Na verdade, a resposta à questão que foi decidida em sentido divergente à luz do n.º 1 do art. 43.º da LGT está, hoje, legislativamente condicionada pela introdução no n.º 3 daquele artigo – «São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias» – de uma alínea d), com o seguinte teor: «Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respectiva devolução».
É certo que a introdução desta alínea no n.º 3 do art. 43.º da LGT foi efectuada pela Lei n.º 9/2019, de 1 de Fevereiro, ou seja, ulteriormente à prolação das decisões em confronto. No entanto, nos termos do art. 1.º da referida Lei, a mesma «altera a Lei Geral Tributária, clarificando, com natureza retroactiva, o dever das entidades públicas de pagar juros indemnizatórios pelo pagamento de prestações tributárias que sejam indevidos por a sua cobrança se ter fundado em normas declaradas judicialmente como inconstitucionais ou ilegais» e, de acordo com o art. 3.º, «A redacção da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, introduzida pela presente lei, aplica-se também a decisões judiciais de inconstitucionalidade ou ilegalidade anteriores à sua entrada em vigor, sendo devidos juros relativos a prestações tributárias que tenham sido liquidadas após 1 de Janeiro de 2011».
Ou seja, a Lei n.º 9/2019 determina, com natureza retroactiva, o dever das entidades públicas, designadamente a AT, de pagar juros indemnizatórios em caso de pagamento indevido de prestações tributárias fundado em normas declaradas judicialmente como inconstitucionais ou ilegais, acrescentando a alínea d) ao n.º 3 do art.p 43.º da LGT; e mais, a mesma Lei determina que esta nova alínea se aplica também a decisões judiciais de inconstitucionalidade ou ilegalidade anteriores à sua entrega em vigor (2 de Fevereiro de 2019, de acordo com o respectivo art. 4.º), sendo devidos juros relativos a prestações tributárias que tenham sido liquidadas após 1 de Janeiro de 2011.
Em face dos preceitos legais transcritos, é hoje inquestionável que, em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respectiva devolução, são devidos juros indemnizatórios; e, por força do efeito retroactivo conferido àquela alteração legislativa, deixou de ter sentido útil a pretendida uniformização de jurisprudência: sempre se imporia a alteração da jurisprudência deste Supremo Tribunal (pelo menos relativamente a prestações tributárias liquidadas após 1 de Janeiro de 2011), em que se inclui o acórdão fundamento, se não por força de um diferente resultado hermenêutico, em virtude do efeito retroactivo que foi conferido à nova legislação.
Assim, julgaremos no sentido da extinção da instância por inutilidade superveniente da pretendida harmonização de jurisprudência.

2.2.4 DAS CUSTAS

Resta indagar sobre quem devem recair as custas do recurso, uma vez que a inutilidade superveniente resulta do efeito retroactivo conferido à alteração legislativa ocorrida após a interposição do recurso.
Afigura-se-nos que a resposta a esta questão é dada pelo art. 536.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do CPC ( «1- Quando a demanda do autor ou requerente ou a oposição do réu ou requerido eram fundadas no momento em que foram intentadas ou deduzidas e deixaram de o ser por circunstâncias supervenientes a estes não imputáveis, as custas são repartidas entre aqueles em partes iguais.
2- Considera-se que ocorreu uma alteração das circunstâncias não imputável às partes quando:
a) A pretensão do autor ou requerido ou oposição do réu ou requerente se houverem fundado em disposição legal entretanto alterada ou revogada; […]».): devem ser repartidas as custas entre as partes com fundamento na alteração das circunstâncias não imputável às partes, uma vez que a pretensão do autor se fundou em interpretação jurisprudencial de uma disposição legal que foi, entretanto, alterada e à qual foi conferido efeito retroactivo.


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3. DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

Custas pela Recorrente e pela Recorrida, em igual medida (cf. 2.2.3 supra).

Após o trânsito, comunique ao CAAD.


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Lisboa, 23 de Outubro de 2019. – Francisco António pedrosa de Areal Rothes (relator) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia – José Gomes Correia – José Manuel de Carvalho Neves Leitão – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva – Joaquim Manuel Charneca Condesso (conheceria a oposição e julgaria a mesma improcedente com custas a cargo da recorrente) – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Paulo José Rodrigues Antunes (conheceria a oposição e julgaria a mesma improcedente com custas a cargo da A.T.) – Isabel Cristina Mota Marques da Silva.