Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0102/10
Data do Acordão:02/24/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANTÓNIO CALHAU
Descritores:RECLAMAÇÃO DE ACTO PRATICADO PELO ÓRGÃO DA EXECUÇÃO FISCAL
SUBIDA IMEDIATA
PREJUÍZO IRREPARÁVEL
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Sumário:I - Não obstante o carácter taxativo do disposto no art.º 278.º, n.º 3 do CPPT, deve ter subida imediata, sob pena de inconstitucionalidade material do preceito, por violação do princípio da tutela judicial efectiva (art.º 268.º da CRP), a reclamação de qualquer acto do órgão de execução fiscal que cause prejuízos irreparáveis ao executado, que não sejam os inerentes a qualquer execução, ou em que, com a subida diferida, a reclamação perca toda a utilidade.
II - Só é completamente inútil a reclamação com subida diferida quando o prejuízo eventualmente decorrente daquela decisão não possa ser reparado.
III - Não preenche tal condicionalismo a reclamação do acto do Chefe do Serviço de Finanças que ordenou a instauração de processo de execução fiscal e a citação da reclamante, com fundamento na sua ilegalidade.
Nº Convencional:JSTA00066306
Nº do Documento:SA2201002240102
Data de Entrada:02/09/2010
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF VISEU PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART278 N3.
CONST97 ART268 N4.
CPC96 ART622 ART734 N2 ART819.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC589/09 DE 2009/07/29.; AC STA PROC1169/09 DE 2010/01/27.; AC STA PROC689/06 DE 2006/08/16.; AC STA PROC10/05 DE 2005/03/02.; AC STA PROC229/06 DE 2006/08/09.; AC STA PROC41/06 DE 2006/02/15.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO 4ED PAG1049 NOTA5.
JORGR DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO E COMENTADO 5ED VII PAG667.
LEBRE DE FREITAS CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO V3 PAG115 PAG116.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – A…, Lda., com sede em … , Tondela, não se conformando com a sentença do Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que decidiu pela subida diferida da reclamação que aquela sociedade apresentou do despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Tondela, datado de 29/07/2009, que ordenou a instauração de processo de execução fiscal e a citação da reclamante, ocorrida na mesma data, dela vem interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
A. A douta sentença recorrida entendeu que o caso sub judice não integra uma situação de prejuízo irreparável e, em consequência, não determinou a subida imediata, com efeito suspensivo, da presente reclamação.
B. Todavia, a A…, Lda., alegou e demonstrou factos que consubstanciam uma situação de prejuízo irreparável, nomeadamente alegou e discriminou que a relação activo/passivo da empresa apresenta um forte desequilíbrio no que respeita a valores de médio ou longo prazo, acentuando ainda mais, no que se refere a valores de curto prazo, com graves reflexos na sua tesouraria, bem como que, se as execuções que identificou no articulado de reclamação, incluindo o processo executivo sobre o qual corre a presente reclamação, derem lugar a penhoras, o desequilíbrio da relação activo/passivo aumentará, precipitando a empresa para o incumprimento imediato e generalizado das suas responsabilidades, pondo em causa a sua sobrevivência enquanto reunião de factores de produção, tendo como consequência inevitável a sua insolvência.
C. É certo que a A…, Lda., coloca a verificação do prejuízo irreparável com a concretização da penhora de bens do seu património que, mais do que uma mera suposição, consubstancia uma real e previsível consequência processual.
D. Contudo, tal facto não obsta o conhecimento imediato da presente reclamação, dado que resulta da melhor doutrina que o direito à tutela judicial efectiva não se restringe à possibilidade de reparação dos prejuízos provocados por uma actuação ilegal, exigindo antes que sejam evitados os próprios prejuízos (cfr. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, pág. 667).
E. A A…, Lda., alega que a concretização da penhora de bens lhe irá provocar prejuízos na sua actividade, tais como o previsível aumento do desequilíbrio da relação activo/passivo e na precipitação da empresa para o incumprimento imediato e generalizado das suas responsabilidades, pondo em causa a sua sobrevivência e tendo como consequência inevitável a sua insolvência.
F. Da mesma forma, caso se avance para a penhora sobre os bens comercializados pela A…, Lda. – o vinho armazenado – esta ficará impossibilitada de efectuar negócios jurídicos e a sua actividade comercial paralisará, o que conduzirá inevitavelmente à sua insolvência – um prejuízo irreparável.
G. Insolvência essa que pela sua própria natureza, como é do conhecimento comum, encerrará um prejuízo manifestamente elevado, de grau não imediatamente apreensível, que não é facilmente computável em termos monetários.
H. Pelo que, a presente reclamação é um daqueles casos de subida imediata, nos termos do artigo 278° do CPPT, sob pena de perder toda a utilidade.
Sem prescindir:
I. A douta sentença a quo faz uma aplicação da norma contida no art. 278° do CPPT na dimensão normativa segundo a qual haverá subida imediata quando, sem ela, ocorrerem prejuízos irreparáveis que não sejam os inerentes a qualquer execução, dimensão normativa essa que padece de inconstitucionalidade orgânica e material, inconstitucionalidade essa que aqui se invoca para os devidos efeitos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exmo. PGA neste Tribunal emite parecer no sentido de ser negado provimento ao presente recurso.
Com dispensa de vistos, vêm os autos à conferência.
II – Mostra-se fixada na sentença recorrida a seguinte matéria de facto:
A) No dia 16 de Julho de 2009 deu entrada no Serviço de Finanças de Tondela Certidão de dívida emitida pelo Instituto da Vinha e do Vinho acompanhada de ofício onde se solicitou a instauração de execução fiscal - cfr. fls. 4 a 7 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido o mesmo se dizendo dos demais documentos infra referidos;
B) O Chefe do Serviço de Finanças de Tondela, por despacho proferido em 29-07-2009, ordenou a citação da executada, ora Reclamante - vide fls. 9;
C) A ora Reclamante foi citada, pessoalmente, na pessoa do seu administrador B…, em 30/07/2009, para os termos da execução fiscal - cfr. fls. 11;
D) Em 10/08/2009, via postal, remeteu ao Serviço de Finanças de Tondela a reclamação que originou os presentes autos - cfr. fls. 12 a 29;
E) Não foi efectuada a penhora ou a venda de bens da Reclamante - este facto resulta dos autos pois nele está integrado o processo executivo;
F) De acordo com um balanço provisório respeitante ao mês 8 do exercício de 2008 (veja-se documento constante de fls. 26 a 28, que a Fazenda Pública não questionou), a ora reclamante tem:
F1) um activo bruto de 89.538.950,20 € e um passivo exigível de 78.868.032,87 €;
F2) um imobilizado líquido com o valor contabilístico de 1.224.767,58 €;
F3) Stocks avaliados no valor de 28.274.635,36 €;
F4) Créditos a receber, a médio e longo prazo, que totalizam o montante de 13.890.993,19 €;
F5) Créditos a receber, a curto prazo, que totalizam o montante de 38.776.765,80 €;
F6) Dívidas a terceiros, de médio e longo prazo, no total de 17.114.760,34 €, sendo 11.206.725,44 € a instituições bancárias;
F7) Dívidas a terceiros, de curto prazo, no total de 61.634.183,72 €:
a instituições de crédito no valor de 29.112.269,06 €;
saldo da conta corrente de fornecedores no montante de 7.272.704,88 €; títulos a pagar a fornecedores no montante de 114.867,77 €;
dívidas a accionistas no montante de 2.510.756,18 €;
total de imobilizados de fornecedores no montante de 134.934,10 €;
dívidas ao Estado e a outros entes públicos no montante de 13.163,32 €;
outros credores no montante de 18.401.613,47 €.
G) Para além da execução a que esta Reclamação respeita pendem no Serviço de Finanças de Tondela outras execuções, dos anos de 2002 a 2008, que no seu conjunto atingem dívidas em montante superior a 27.000.000,00 €, não se encontrando nenhuma suspensa nos termos do artigo 169° do Código de Procedimento e de Processo Tributário - veja-se certidão de fls. 112 a 116;
H) Dívidas cuja validade/regularidade é questionada em processos de impugnação, oposição e ou reclamação de actos do órgão de execução fiscal - idem anterior, observações a fls. 116.
III – Vem o presente recurso interposto da decisão do Mmo. Juiz do TAF de Viseu que entendeu que o caso sub judice não integra uma situação de prejuízo irreparável e, em consequência, não determinou a subida imediata, com efeito suspensivo, da presente reclamação.
A questão que constitui o objecto do presente recurso, e que consiste assim em saber se a reclamação apresentada deve, ou não, subir imediatamente ao tribunal para efeitos da sua decisão, e não apenas após a penhora e venda dos bens da executada, já foi apreciada em casos idênticos noutros acórdãos desta Secção do STA, como é o caso mais recente dos proferidos em 29/7/09 e 27/01/10, nos recursos n.ºs 589/09 e 1169/09, respectivamente.
A esse propósito se escreveu no último desses arestos, citando, aliás, o já dito no primeiro, que o artigo 278.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário apenas autoriza a subida imediata da reclamação, taxativamente, quando esteja em causa “prejuízo irreparável” derivado das vicissitudes da penhora e da prestação da garantia, nele elencados.
Todavia, tal interpretação literal seria inconstitucional por violação do princípio da tutela judicial efectiva constitucionalmente previsto – artigo 268.º, n.º 4 da Constituição da República.
Por modo que há que procurar uma interpretação do preceito conforme à Constituição.
O alcance da tutela judicial efectiva não se limita à possibilidade de reparação dos prejuízos provocados por uma actuação ilegal, comissiva ou omissiva, da Administração, exigindo antes que sejam evitados os próprios prejuízos, sempre que possível.
Por isso, em todos os casos em que o deferimento da apreciação jurisdicional da legalidade de um acto lesivo praticado pela Administração puder provocar para os interessados um prejuízo irreparável, não pode deixar de se admitir a possibilidade de impugnação contenciosa imediata, pois é essa a única forma de assegurar tal tutela.
Assim, a restrição aos casos previstos no n.º 3 do artigo 278.º do CPPT da possibilidade de subida imediata das reclamações que se retira do seu texto será materialmente inconstitucional, devendo admitir-se a subida imediata sempre que, sem ela, o interessado sofra prejuízo irreparável - cfr. Jorge de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado, 4.ª ed., p. 1049, nota 5.
Como assinala o mesmo autor, estando em causa a cobrança de dívidas, não haverá, em princípio, grave lesão do interesse público dada a possibilidade de a Administração Fiscal promover arresto de bens, com o mesmo efeito da penhora a nível da eficácia em relação ao processo de execução fiscal dos actos do executado (artigos 622.º e 819.º do Código de Processo Civil).
Parece mesmo dever ir-se mais longe e assegurar-se a subida imediata das reclamações sempre que, sem ela, elas percam toda a utilidade.
Pois nos casos em que a subida diferida faz perder qualquer utilidade à reclamação a imposição desse regime de subida reconduz-se à denegação da possibilidade de reclamação, pois ela não terá qualquer efeito prático, o que seria incompatível com a Lei Geral Tributária e o referido sentido da lei de autorização legislativa (Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro), devendo, então, aceitar-se, em tais casos, a subida imediata.
Dando-se aí, como exemplos, segundo o mesmo autor, a “decisão que recuse suspender o processo de execução” e “a fixação do valor base para a venda” - cfr. os acórdãos do STA de 16 de Agosto de 2006 – recurso n.º 0689/06, e de 2 de Março de 2005 – recurso n.º 010/05.».
No caso em apreço, a decisão do órgão da execução fiscal objecto da presente reclamação é o despacho que ordenou a instauração de processo de execução fiscal e citação da reclamante.
Alega a recorrente que a concretização da penhora de bens lhe irá provocar prejuízos na sua actividade, pondo em causa a sua sobrevivência e tendo como consequência inevitável a sua insolvência, integrando, por isso, uma situação de prejuízo irreparável.
Não há dúvida que, como acima se referiu, deve admitir-se a subida imediata das reclamações sempre que, sem ela, elas percam toda a utilidade.
Trata-se de fórmula equivalente à da regra consagrada no artigo 724.º, n.° 2, do Código de Processo Civil para os agravos: sobem imediatamente aqueles “cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis”.
A predita inutilidade não pode todavia deixar de se relacionar com a irreparabilidade do prejuízo.
Como refere o acórdão deste Tribunal de 9 de Agosto de 2006 - recurso n.º 0229/06, a inutilidade resultante da subida diferida da reclamação é noção a definir em presença da de prejuízo irreparável de que fala a lei.
É seguro que o legislador não quis impor a subida imediata de todas as reclamações cuja retenção pode originar prejuízos.
Não está em causa, pois, poupar o interessado a todo o prejuízo. Por isso se estabelece que as reclamações sobem imediatamente só quando a sua retenção seja susceptível de provocar um prejuízo irreparável.
Em súmula, a reclamação que não suba logo não perde todo o seu efeito útil, mesmo que não evite o prejuízo que se quer impedir, desde que seja possível repará-lo.
Ora, a jurisprudência tem interpretado de forma exigente o requisito da absoluta ou total inutilidade do recurso (reclamação), entendendo-se que a sua eventual retenção deverá ter um resultado irreversível, não bastando a mera inutilização de actos processuais, ainda que contrária ao princípio da economia processual, sem que aí se possa vislumbrar qualquer ofensa constitucional - cfr. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol. 3, pp. 115/116, e jurisprudência aí citada.
Ora, não se vê que tal seja o caso dos autos.
A subida da reclamação após a penhora não a torna totalmente inútil, pelo contrário, pois, se deferida a reclamação, o acto processual em causa - a instauração da execução -, será anulado, ficando esta sem efeito.
Claro que com os prejuízos inerentes mas, como se disse, só a respectiva irreparabilidade é fundamento da subida imediata.
A eventual ilegalidade da instauração da execução fiscal não leva, pois, necessária e automaticamente, à subida imediata da reclamação respectiva.
No sentido de que não tem subida imediata a reclamação mediante a qual se pretenda evitar a penhora em bens que o reclamante alega não responderem pela dívida exequenda e de que só é completamente inútil a reclamação com subida diferida quando o prejuízo eventualmente decorrente daquela decisão não possa ser reparado, cfr. o acórdão do STA de 15 de Fevereiro de 2006 - recurso n.° 41/06.
Por outro lado, também se não vê em como a citação só por si possa provocar à executada prejuízos necessariamente irreparáveis ou como a subida diferida duma reclamação daquela fará com que esta perca toda a sua utilidade.
Em conclusão se dirá, pois, que a interpretação correcta do regime de subida previsto no artigo 278.º, n.º 3 do CPPT será a de que só haverá subida imediata quando, sem ela, ocorrerem prejuízos irreparáveis que não sejam os inerentes a qualquer execução.
Por outro lado, no âmbito da protecção constitucional garantida pelo direito à tutela judicial efectiva não se pode incluir protecção contra os inconvenientes próprios de qualquer processo judicial executivo, pois eles são inerentes ao próprio funcionamento do regime judiciário global relativo à tutela dos direitos (Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. II, p. 667).
Sustenta, ainda, a recorrente que o entendimento supra, em termos de interpretação do artigo 278.º do CPPT - que é, afinal, o da decisão recorrida - acarretaria a inconstitucionalidade do preceito, por ofensivo da LGT nos supraditos termos.
Todavia, nos autos não está em causa o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal de todos os actos lesivos e tanto assim é que a recorrente deduziu a presente reclamação, cuja subida diferida, como se disse, não acarreta a sua inutilidade e só a afirmativa se poderia reconduzir à denegação da possibilidade prática da reclamação.
Daí que não ocorra, pois, a invocada inconstitucionalidade.
Improcedem, desta forma, as alegações de recurso, impondo-se, por isso, a confirmação da decisão recorrida que entendeu não conhecer, de imediato, do mérito da reclamação apresentada.
IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em negar provimento ao recurso, confirmando, assim, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a procuradoria em 1/6.
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2010. – António Calhau (relator) – Miranda de Pacheco – Pimenta do Vale.