Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01770/18.5BELSB
Data do Acordão:12/17/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA LOBO
Descritores:PEDIDO DE ASILO
DIREITO DE AUDIÇÃO
PEDIDO
Sumário:I - O Tribunal de Justiça sempre afirmou a importância do direito de ser ouvido e o seu alcance muito lato na ordem jurídica da União, ao considerar que este direito deve ser aplicado a qualquer processo que possa ter como resultado um acto lesivo.
II - Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o respeito do referido direito impõese mesmo quando a regulamentação aplicável não preveja expressamente essa formalidade.
III - O direito de ser ouvido garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer, de maneira útil e efectiva, o seu ponto de vista no decurso do procedimento administrativo e antes da adopção de qualquer decisão susceptível de afectar desfavoravelmente os seus interesses.
(Sumário elaborado nos termos do disposto no artº 663º, nº 7 do Código de Processo Civil).
Nº Convencional:JSTA000P25372
Nº do Documento:SA12019121701770/18
Data de Entrada:10/18/2019
Recorrente:A...........
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA/SEF
Votação:MAIORIA COM 1 DEC VOT E 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral:
RECURSO JURISDICIONAL
DECISÃO RECORRIDA – Tribunal Central Administrativo Sul
. de 09 de Maio de 2019


Revogou a sentença recorrida, com a consequente improcedência da acção.

Acordam nesta Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


A…………., veio interpor o presente recurso de revista do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul supra referenciado, que negou provimento ao recurso que interpusera da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que havia julgado a acção improcedente, mantendo a decisão do Director Nacional Adjunto do SEF de 13.08.2018 que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional apresentado pelo A., ora Recorrente, determinando a sua transferência para a Itália, tendo, para esse efeito formulado, a final da sua alegação, as seguintes conclusões:
I. o douto Acórdão recorrido ao afirmar que “não há lugar ao direito de audiência prévia dos interessados”, sem para tanto, indicar princípio, regra ou norma que fundamente a desconsideração de formalidades essenciais, incorre em nulidade por não especificação dos fundamentos de direito, o que se invoca nos termos e para os efeitos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4 do CPC, ex vi do artigo 1.º do CPTA, ainda mais tendo em conta o art.º 17º, nº 1 da Lei nº 27/2008, de 30/6, os art.ºs 121º e 122º do CPA, o art.º 89-A do CPTA, o art. 41º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 20.º da CRP, os artigos 8.º, n.º 4, 267.º n.º 5 e 268.º, n.º 4, da CRP, todos eles impondo a audição do interessado e/ou de testemunha e/ou declarações de parte.

II. O Recorrente pediu e tem direito a uma Tutela Jurisdicional Efectiva, nos termos consagrado no artigo 20.º da CRP, cuja violação se invoca, para todos os devidos e legais efeitos, incorrendo o Tribunal a quo em erro de julgamento.

III. O Recorrente pediu e tem direito a um tratamento em juízo, justo, equitativo e não discriminatório.

IV. Perante a questão central sub judice – o requerente do pedido de protecção internacional tem direito a ser ouvido sobre as informações essenciais ao seu pedido, constantes de um relatório escrito que as indique, assim se assegurando a audiência do interessado – estão verificados os requisitos da admissibilidade de recurso de revista previstos no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, porquanto se trata de uma questão que pela sua relevância jurídica ou social se reveste de importância fundamental, pois que não apreciando o Tribunal a quo as questões relacionadas com a preterição de formalidades essenciais, atirou o recorrente para a impossibilidade de ter a única defesa, qual seja, a de relatar a sua versão dos factos de uma forma leal, o que constitui uma entorse clara à concretização do direito constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º da CRP e concretizado, no contencioso administrativo, no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.

V. Por outro lado, o art. 17º, nº 1 da Lei nº 27/2008, de 30/6, prevê expressamente que após a realização das diligências cabíveis, no caso houve lugar às declarações previstas no art. 16º, o SEF elabora um relatório escrito do qual constam as informações essenciais ao processo, sendo sobre este relatório que ao requerente é facultada a possibilidade de se pronunciar, no prazo de 5 dias, sendo ainda esse relatório comunicado ao representante do ACNUR e ao CRP (nºs 2 e 3) e a falta da elaboração desse relatório, tem que ser considerada como preterição de uma formalidade essencial que a lei prescreve, e que determina, consequentemente, que não tenha sido possível à requerente pronunciar-se nos termos do nº 2 do referido art. 17º, havendo, como tal, preterição da audição do interessado.

VI. Significa que o requerente do pedido de protecção internacional tem direito a ser ouvido sobre as informações essenciais ao seu pedido (que no caso concreto não podiam deixar de ser a inadmissibilidade do pedido e o subsequente procedimento especial que teve lugar), constantes de um relatório escrito que as indique, assim se assegurando a audiência do interessado.

VII. Do procedimento administrativo seguido (e que se encontra descrito nos factos provados), verifica-se que não foi elaborado o relatório contemplado no art. 17º, nº 1 da Lei 27/2008, sobre o qual o requerente se pudesse ter pronunciado, não podendo considerar-se como “relatório”, as declarações do próprio requerente.

VIII. A falta da elaboração desse relatório, tem que ser considerada como preterição de uma formalidade essencial que a lei prescreve, e que determina, consequentemente, que não tenha sido possível ao requerente pronunciar-se nos termos do nº 2 do referido art. 17º.

IX. A preterição da audição do interessado, que conduz à anulação do acto impugnado. Ou, para o caso de assim não se entender, sempre se dirá, por aplicação dos arts. 121º e 122º do CPA, o que conduz à anulação do acto impugnado. Por cautela no patrocínio, invoca-se, novamente a violação do art. 41º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e inconstitucionalidades por violação dos arts. 8º, nº 4 e 267º, nº 5 da CRP.

X. Além do mais, verifica-se também o pressuposto da necessidade clara de admissão do recurso para uma melhor aplicação do direito, atenta a injustiça flagrante no caso concreto, mas também pelos usos ou formas de interpretar a lei ou de a aplicar que conduzem, in casu, a indefesa dos direitos ou a deficiências de tutela efectiva e também por estarmos perante um erro grave de interpretação e aplicação do direito em prejuízo da prossecução do interesse público, ainda mais face ao que tem vindo a ser entendimento deste Supremo Tribunal Administrativo (cfr. douto Acórdão do STA, de 28.06.2012, processo nº 0672/12, disponível em www.dgsi.pt).

XI. A invocação por parte da administração de estar perante um acto vinculado, não pode ser o meio para a preterição de formalidades essenciais.

XII. O Recorrente foi sujeito de um acto administrativo que directamente o afecta (tomada a cargo para a Itália), sem que tenha tido a oportunidade de ser ouvido, de exercer o contraditório, ou seja, o acto praticado pelo SEF é vinculado ao ponto de violar descaradamente o direito de audição prévia, ou até, de ver prejudicada a produção de prova por declaração de parte ou testemunhal, em qualquer instância, sucessivamente, seja ela administrativa ou judicial.

XIII. Não apreciando o Tribunal a quo as questões relacionadas com a preterição de formalidades essenciais, atiraram o recorrente para a impossibilidade de ter a única defesa, qual seja, a de relatar a sua versão dos factos de uma forma leal, o que constitui uma entorse clara à concretização do direito constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º da CRP e concretizado, no contencioso administrativo, no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.

XIV. O art. 17º, nº 1 da Lei nº 27/2008, de 30/6, prevê expressamente que após a realização das diligências cabíveis, no caso houve lugar às declarações previstas no art. 16º, o SEF elabora um relatório escrito do qual constam as informações essenciais ao processo, sendo sobre este relatório que ao requerente é facultada a possibilidade de se pronunciar, no prazo de 5 dias, sendo ainda esse relatório comunicado ao representante do ACNUR e ao CPR (nºs 2 e 3).

XV. A falta da elaboração desse relatório, tem que ser considerada como preterição de uma formalidade essencial que a lei prescreve, e que determina, consequentemente, que não tenha sido possível ao requerente pronunciar-se nos termos do nº 2 do referido art. 17º, havendo, como tal, preterição da audição do interessado.

XVI. O requerente do pedido de protecção internacional tem direito a ser ouvido sobre as informações essenciais ao seu pedido (que no caso concreto não podiam deixar de ser a inadmissibilidade do pedido e o subsequente procedimento especial que teve lugar), constantes de um relatório escrito que as indique, assim se assegurando a audiência do interessado.

XVII. Do procedimento administrativo seguido (e que se encontra descrito nos factos provados), verifica-se que não foi elaborado o relatório contemplado no art. 17º, nº 1 da Lei 27/2008, sobre o qual o requerente se pudesse ter pronunciado, não podendo considerar-se como “relatório”, as declarações do próprio requerente.

XVIII. A falta da elaboração desse relatório, tem que ser considerada como preterição de uma formalidade essencial que a lei prescreve, e que determina, consequentemente, que não tenha sido possível ao requerente pronunciar-se nos termos do nº 2 do referido art. 17º.

XIX. Há preterição da audição do interessado, que conduz à anulação do acto impugnado. Ou, para o caso de assim não se entender, sempre se dirá, por aplicação dos arts. 121º e 122º do CPA e/ou art. 89-A do CPTA, o que conduz à anulação do acto impugnado. Por cautela no patrocínio, invoca-se, novamente a violação do art. 41º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e inconstitucionalidades por violação dos arts. 8º, nº 4 e 267º, nº 5 da CRP.

XX. O douto Acórdão recorrido não se referiu a nenhum fundamento de direito (princípio, regra ou norma), tirando a conclusão de que sendo um acto vinculado pode preterir formalidades essenciais como sejam as acabadas de referir supra, não podendo, assim, deixar de consubstanciar interpretações inconstitucionais do art.º 17º, nº 1 da Lei nº 27/2008, de 30/6, dos art.ºs 121º e 122º do CPA, do art.º 89-A do CPTA, do art. 41º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º da CRP e concretizado, no contencioso administrativo, no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição e inconstitucionalidades por violação dos arts. 8º, nº 4 e 267º, nº 5 da CRP, o que desde já se invoca para os devidos e legais efeitos.

Termos em que, admitido nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 150.º do CPTA, ao recurso deve ser dado provimento, com as legais consequências, com que V. EX.CIAS, Venerandos Conselheiros, FARÃO JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso de revista foi admitido por acórdão de 27 de Setembro de 2019.
O Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do presente recurso jurisdicional.


Preparada a deliberação, impõe-se o conhecimento do recurso interposto.
As instâncias consideraram provados, os seguintes factos com relevo para a decisão do presente recurso:
a) O ora A. é nacional da Guiné-Bissau, onde nasceu em 20/01/1995, saiu do seu país de origem em 27/02/2016 e, antes de chegar a Portugal, indocumentado, passou pelos seguintes países: Senegal, Mali, Burkina Faso, Niger, Líbia, Itália, França e Espanha (vide processo administrativo – PA – integrado nos presentes autos, a fls. 62 e segs. do SITAF – Processo de Asilo n.º 612/18, v.g. fls. 27, e Processo de Tomada a Cargo n.º 1271/18PT, e por acordo das partes).

b) Em 17 de Julho de 2018, o A. formulou pedido de protecção internacional junto das autoridades portuguesas e, nessa data, foi-lhe feito um “Inquérito Preliminar”, onde o A. referiu já ter apresentado um pedido de asilo anteriormente, tendo-lhe sido dado a conhecer, na língua FULA, os seus direitos e deveres (cfr. Doc. de fls. 4 e segs. do PA).

c) Na sequência da recolha de impressões digitais do A., as autoridades portuguesas verificaram um registo no sistema EURODAC, correspondente a um pedido de asilo apresentado pelo A. em Itália, em 16/05/2016 (cfr. fls. 2-3 do PA e por acordo das partes).

d) O Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF efectuou, em 27/07/2018, um pedido de retoma a cargo do Autor às autoridades italianas, ao abrigo do art.º 18.º n.º 1, al. b), do Regulamento (UE) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho – Processo n.º 1271/18PT (cfr. fls. 16 e segs. do PA, e por acordo das partes).

e) Em 06/08/2018, foi o A. entrevistado, tendo prestado declarações quanto aos motivos do seu pedido de protecção, na presença de um intérprete da língua FULA, que compreende (idem – cfr. Doc. de fls. 23-29 do PA, e Doc. 2 junto com a p.i.,), como segue: «(…) X. Porque motivo solicita protecção internacional? / Saí porque sou homossexual, amigos meus que não são homossexuais, descobriram que eu tinha uma relação com outro homem, apanharam-me numa situação intima com o outro homem e foram contar ao Íman, esse Íman mandou prender o meu companheiro e desapareceram com ele. / Contei à minha mãe que disse ao meu pai, eu contei a verdade e começaram ambos a bater-me, saí de casa e decidi sair da Guiné Bissau. / Eu nunca quis pedir asilo em Itália, pedi porque quando cheguei a Itália estava doente, preferi pedir asilo em Portugal por causa da língua. / XI. Pretende acrescentar alguma informação? / Como não tinha notícia do meu companheiro, fiquei assustado e decidi sair da Guiné Bissau.».

f) Após o que foi elaborado Relatório, notificado ao A. na língua Fula, e que sobre ele se pronunciou, como segue (cfr. fls. 30-31 do PA,): «(…) Apresentou pedido de protecção noutro país da União Europeia Itália (REGULAMENTO (UE) N.º 604/2013 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de Junho de 2013 que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de protecção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida – Artigo 18.º, n.º1). / Perante a presente informação, tem algo mais a declarar? / Eu não quero ir para Itália, só pedi asilo em Itália porque estava doente, também prefiro Portugal por causa da língua, também me recusaram o meu pedido e a família de um amigo meu que também estava no centro, ajudou-me a vir para Portugal. / Se a decisão for de me transferir, vou recorrer para o tribunal. / E mais não disse, nem lhe foi perguntado, pelo que, lidas as declarações em língua Fula, língua que compreende e na qual se expressa, as achou conforme, ratifica e vai assinar juntamente com todos os intervenientes, pelas 15 horas e 45 minutos, hora a que findou este acto» -, seguindo-se as assinaturas do Inspector do SEF, do Intérprete e do ora A.

g) Em 13/08/2018, as autoridades italianas foram informadas pelo GAR/SEF de que tinham duas semanas para se pronunciar sobre o pedido de retoma a cargo do A., ao abrigo do art.º 25.º n.º 1, do vulgo Regulamento de Dublin e que, como o não tinham feito, Portugal considerava o pedido aceite, nos termos do n. º 2 do referido art.º 25.º (cfr. fls. 32-33 do PA).

h) Pelo Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF foi prestada a Informação n.º 1164/GAR/2018, datada de 13/08/2018, na qual se propôs o seguinte: «(…) Com base na presente informação e à consideração superior para decisão, propõe-se que, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19º - A, da Lei n.º 27/08, de 30 de Junho, alterada pela Lei nº 26/2014 de 05 de maio, o pedido de protecção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a Itália do (a) cidadão (ã) acima identificado (a), nos termos do artigo 25º, Nº 2 do Regulamento (UE) N.º 604/2013 do Conselho, de 26 de Junho.» (cfr. Doc. de fls. 35-36 do PA, e Doc. 5 junto com a p.i.).

i) Por decisão do Director Nacional Adjunto do SEF, datada de 13 de Agosto de 2018, com base na Informação n.º 1164/GAR/2018 do Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, foi determinada a transferência do ora A. para a Itália, por se ter considerado o seu pedido de protecção internacional inadmissível, de acordo com os art.ºs 19.º-A/1, a) e 37.º/2, ambos da Lei de Asilo (cfr. Doc. de fls. 37 do PA, Doc. 4 junto com a p.i).

j) O A. foi notificado da decisão supra referenciada em 16/08/2018, a qual lhe foi lida na língua Fula e entregue duplicado, bem como cópia da decisão e da Informação n.º 1164/GAR/2018, o qual, após solicitar acompanhamento junto do Conselho Português para os Refugiados (CPR), veio propor a presente acção, em 01/10/2018, tendo requerido o benefício de apoio judiciário (cfr. Docs. juntos com a p.i., fls. 41 e segs. do PA, e respectiva acção registada no SITAF).

k) O Conselho Português para os Refugiados (CPR) foi notificado em 25/07/2018, do pedido de protecção do A., em 07/08/2018 das declarações prestadas pelo ora A. e, em 16/08/2018, da decisão de transferência do A. para a Itália, e não emitiu parecer no caso em apreço (cfr. fls. 15, 22 e 40 do PA e por acordo das partes).

l) O A. apresentou pedido de asilo em Itália, em 16/05/2016, do qual aguarda decisão, país onde permaneceu os últimos 5 meses anteriores ao pedido de protecção (por confissão – cfr. declarações do A. aquando da sua entrevista em 06/08/2018- vide fls. 28 do PA – e registo EURODAC, fls. 3).

m) O ora A. encontra-se a residir no Centro de Acolhimento do Conselho Português para os Refugiados (CPR), na Bobadela (cfr. Doc. 1 da p.i. e por acordo das partes).


Questões a decidir:
1- Nulidade do acórdão por falta de fundamentação de direito
2- Preterição de formalidades essenciais – Direito de audição antes da decisão final
1. Nulidade do acórdão por falta de fundamentação de direito


O recorrente considera que o acórdão recorrido enferma de nulidade por não apresentar fundamento de direito para a decisão proferida. Todavia não lhe assiste razão uma vez que a decisão se funda no Regulamento n° 604/2013, de 26.6.2013, e na Lei 27/2008 considerando não estar previsto em nenhum dos referidos diplomas a obrigatoriedade de ouvir o requerente de protecção internacional quando está em causa apenas a determinação do Estado-Membro competente para apreciar o pedido já formulado perante um outro Estado-Membro.
A discordância com a decisão não faz com que possam desaparecer os fundamentos jurídicos nela invocados.
Improcede, pois, manifestamente este fundamento de recurso.

2- Preterição de formalidades essenciais – Direito de audição antes da decisão final

Idêntica questão jurídica foi recentemente apreciada pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão proferido no processo 02095/18.1BELSB, em 03/10/2018, publicado em www.dgsi.pt, em termos que inteiramente subscrevemos pelo que, por economia de meios passamos a reproduzir a parte mais significativa do referido acórdão:
“(…) a questão da conformação da audiência de interessados no caso de procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional - regulado nos artigos 36º a 40º [capítulo IV] da Lei nº27/2008, de 30.06, na redacção da Lei nº26/2014, de 05.05 - não é nova na jurisprudência deste STA, e não tem permanecido constante, antes revelando uma «evolução» no sentido da procura do «melhor direito».
A situação destes autos, e de alguns dos arestos já proferidos, reporta-se a um pedido de protecção internacional - dirigido ao Estado Português - cuja tramitação incluiu o procedimento especial e incidental de determinação do Estado responsável pela análise desse pedido, e que terminou através da decisão do SEF que considerou o pedido inadmissível, após a aceitação tácita da retoma pela Itália - tudo ao abrigo dos artigos 19º-A, nº1 alínea a), e 37º, nº2, da Lei nº27/08, de 30.06, alterada pela Lei nº26/2014, de 05.05 - versão a que nos referimos sempre que citarmos aquela lei.
Acontece que, tanto nestes autos, como noutros similares, já decididos por este STA, a decisão de inadmissibilidade do pedido de protecção internacional, face à aceitação da retoma por outro Estado membro, foi proferida sem prévia audiência do requerente sobre esse assunto.
Posta a «questão» da necessidade e conformação dessa audiência prévia, já se decidiu que ela se traduz numa formalidade essencial que a lei exige no artigo 17º, nº2, da Lei nº27/08, de 30.06, e que a sua não observância, em caso com os ditos contornos, conduz à anulação da decisão de inadmissibilidade do pedido de protecção internacional e respectiva transferência do requerente - ver AC STA de 18.05.2017 [0306/17]; AC STA de 04.10.2018 [01727/17]; e AC STA de 28.03.2019 [01143/18] -, mas também já se decidiu que essa formalidade - prevista no dito artigo 17º - é aplicável no âmbito do próprio procedimento especial regulado no capítulo IV da lei em referência - ver AC STA de 20.12.2018 [0275/18] - e ainda que, neste procedimento se impõe confrontar o requerente com o projecto de decisão de inadmissibilidade do seu pedido e sua transferência para o Estado aceitante da retoma - ver AC STA de 30.05.2019 [0970/18].

3. A Lei nº27/08, de 30.06, regula - além do mais - as «condições e procedimentos de concessão de protecção internacional», em ordem à concessão do «estatuto de refugiado» e do «estatuto de protecção subsidiária» - transpondo para a ordem jurídico um conjunto de directivas comunitárias enumeradas no seu artigo 1º.
Quanto ao procedimento, constatamos, como marcos estruturais, que ele inclui uma fase inicial, que culmina com a decisão da sua admissão ou inadmissão [artigos 10º, 19º-A, 20º e 27º, da Lei 27/08], da competência do director nacional do SEF [artigos 20º e 27º, da Lei 27/08], e, no caso de decisão positiva, uma fase de instrução [artigos 21º, 27º e 28º da Lei 27/08], que culmina com a elaboração, pelo SEF, de proposta fundamentada de concessão ou recusa de protecção internacional, sobre a qual o requerente é ouvido e pode pronunciar-se [artigo 29º da Lei 27/08]. A decisão final, de concessão ou recusa compete ao membro do Governo responsável pela administração interna [artigo 20º, nº5, da Lei nº27/08].
O «procedimento especial» de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional, quando se imponha, enxerta-se na «fase inicial» do procedimento, suspende o respectivo prazo de decisão [artigo 39º da Lei 27/08], e, uma vez aceite a retoma a cargo pelo Estado requerido, conduz à prolação de decisão de inadmissibilidade do pedido e transferência do interessado [artigos 37º, nº2, e 19º-A, nº1 alínea a), da Lei 27/08].
Nessa fase inicial o procedimento comum prevê ainda a existência de «relatório», após a prestação de «declarações» pelo requerente, do qual devem constar «as informações essenciais relativas ao pedido», e sobre ele se pode pronunciar o requerente após ter sido notificado para o efeito [artigos 16º e 17º da Lei 27/08].
Ressuma pois, que o dito procedimento especial surge com natureza incidental e, a aceitação da retoma - expressa ou tácita - por parte do Estado requerido, constitui fundamento para a decisão, do director nacional do SEF, de inadmissibilidade do pedido de protecção internacional.
E o procedimento fica-se por aí, prescindindo-se da «análise das condições» do deferimento do pedido de protecção internacional formulado, e competindo ao SEF assegurar a execução da transferência do requerente [artigos 19º-A, nº2, e 38º, da Lei 27/08].
4. Não há dúvida de que o procedimento - globalmente considerado - comporta duas oportunidades de satisfação do direito de audiência do requerido, uma na fase dita inicial [artigo 17º da Lei 27/08] e outra no termo da instrução visando a decisão de mérito [artigo 29º da Lei nº27/08], mas nada prevê expressamente, a esse respeito, no âmbito específico do procedimento especial e incidental do capítulo IV [artigos 36º a 40º da Lei nº27/08].
E em boa verdade nem tal é necessário, pois que, integrando-se o procedimento especial na fase a que chamamos inicial do procedimento comum, é suposto que também nos casos em que a ele haja lugar sejam cumpridas as ditas disposições comuns do procedimento, e entre elas os artigos 16º e 17º da lei em referência.
Assim, tenha o SEF obtido conhecimento de situação que imponha a instauração do procedimento especial oficialmente ou através das declarações do requerente, a verdade é que deve ouvir este último sobre a possibilidade do seu pedido ser inadmissível e ter de ser transferido para outro Estado-membro, por retoma - artigo 16º da Lei nº27/08 -, e de seguida elaborar relatório e dar oportunidade ao requerente para sobre ele se pronunciar nos termos do artigo 17º da Lei nº27/08, de 30.06.
É isto que resulta da interpretação - textual e contextual - dos pertinentes artigos da lei em análise, e é isso que acaba por dar resposta às exigências impostas pelo «regulamento europeu» a que o procedimento especial de determinação do Estado responsável também está sujeito - Regulamento [UE] nº604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06 - e que estabelece «critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de pedido de protecção internacional apresentado num dos Estados-Membros por nacional de país terceiro ou por apátrida».
Efectivamente, no capítulo II - sobre princípios gerais e garantias -, e mais concretamente no seu artigo 5º, manda tal «Regulamento» que o Estado-membro que procede à determinação do Estado-membro responsável realize uma entrevista pessoal com o requerente a fim de facilitar o processo de determinação do Estado responsável e, acrescenta, essa «entrevista pessoal» deve realizar-se em tempo útil e, de qualquer forma, antes de ser adoptada qualquer decisão de transferência do requerente para o Estado-membro responsável [artigo 5º, nºs 1 e 3, do Regulamento].
A acrescer a isto, importará ainda sublinhar que, no plano interno, o «princípio da audiência» é havido como estruturante de cada procedimento administrativo [artigos 121º a 125º do CPA], se assume como uma dimensão qualificada do princípio da participação [artigo 12º do CPA], e surge na sequência e em cumprimento de directriz constitucional [artigo 267º, nºs 1 e 5, da CRP], e, no plano do direito da União Europeia, o respeito pelo direito de defesa constitui princípio geral e fundamental [artigos 41º, e 48º-49º, CDFUE], que é aplicável sempre que a Administração se proponha adoptar, relativamente a uma pessoa, um acto lesivo dos seus legítimos interesses. E, como vem explicitando a jurisprudência do «Tribunal de Justiça», esta obrigação incumbe às administrações dos Estados-membros sempre que tomem decisões que entram no âmbito de aplicação do direito da União, e mesmo que a legislação aplicável, da União, não preveja expressamente essa formalidade - ver os acórdãos do TJUE referidos no AC STA de 30.05.2019, in processo 0970/18.2BELSB.
5. Ora, consultada toda factualidade provada, constata-se que nem o requerente foi ouvido, em sede de «declarações» [artigo 16º], sobre a inadmissibilidade do seu pedido e a possibilidade de ser transferido para Itália, e tão pouco foi elaborado o relatório e cumprida a audiência do artigo 17º da Lei nº 27/08, de 30.06.”.
Analisada a matéria de facto verifica-se que o recorrente teve uma entrevista inicial em 06/08/2018, onde referiu o percurso efectuado desde a sua terra de origem – Guiné - até Portugal, indicando ter entrado no território da EU em Itália, onde apresentou um pedido de protecção internacional, no seu dizer, porque se encontrava doente, ainda que a sua intenção fosse apresentar esse pedido em Portugal onde tem apoio familiar para ele tido por relevante. Desde logo disse não querer voltar para Itália. Nas suas declarações iniciais há contradição entre ter dito não ter apresentado qualquer pedido de protecção internacional e afirmado que o seu pedido foi recusado, o que pode ter ficado a dever-se à circunstância de tais respostas não terem sido transcritas textualmente, mas apenas assinalando um quadrado de escolha múltipla com as variáveis possíveis, sendo fácil assinalar, por lapso, com uma cruz, a hipótese errada.
Na sequência de tal entrevista, sem que haja nos autos indício de qualquer diligência levada a cabo pelo Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, foi produzido o relatório, também em 06/08/2018 a que se refere a matéria provada na alínea f).
As autoridades italianas foram informadas pelo Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, em 13/08/2019 de que tinham duas semanas para se pronunciar sobre o pedido de retoma a cargo do A., ao abrigo do art.º 25.º n.º 1, do Regulamento de Dublin III. Na ausência de qualquer resposta das autoridades italianas, Portugal considerou aceite o pedido de retoma a cargo, nos termos do n.º 2 do referido art.º 25.º.
Sem qualquer contacto com o recorrente relativo ao resultado das diligências encetadas com as autoridades italianas o Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF propôs que (…) Com base na presente informação e à consideração superior para decisão, propõe-se que, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19º - A, da Lei n.º 27/08, de 30 de Junho, alterada pela Lei nº 26/2014 de 05 de maio, o pedido de protecção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a Itália do (a) cidadão (ã) acima identificado (a), nos termos do artigo 25º, Nº 2 do Regulamento (UE) N.º 604/2013 do Conselho, de 26 de Junho.
O Director Nacional Adjunto do SEF, em 13 de Agosto de 2018, com base na proposta de decisão do Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, mencionada no parágrafo anterior, determinou a transferência do recorrente para a Itália, por ter considerado o seu pedido de protecção internacional inadmissível, o que foi notificado ao recorrente que dessa decisão interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo.
Em 13/08/2018, foi desencadeado o procedimento especial e incidental de determinação do Estado responsável pela análise desse pedido, - as autoridades italianas foram informadas pelo GAR/SEF de que tinham duas semanas para se pronunciar sobre o pedido de retoma a cargo do A., ao abrigo do art.º 25.º n.º 1, do vulgo Regulamento de Dublin e que, como o não tinham feito, Portugal considerava o pedido aceite, nos termos do n.º2 do referido art.º 25.º - e que terminou através da decisão do SEF que considerou o pedido inadmissível, após a aceitação tácita da retoma pela Itália - tudo ao abrigo dos artigos 19º-A, nº1 alínea a), e 37º, nº2, da Lei nº27/08, de 30.06, alterada pela Lei nº26/2014, de 05.05.
Ora, a referência do recorrente nas declarações iniciais de que tinha apresentado pedido de apoio internacional na Itália, mas que nem queria voltar para lá, nem queria que essa protecção lhe fosse conferida pela Itália, ou que interporia recurso da decisão que ordenasse a sua transferência para Itália, antes de desencadeado o procedimento de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido não pode ser tido como exercício de direito de audição em termos bastantes para assegurar os seus direitos, mesmo em face do Regulamento Dublin III quanto à decisão de transferência para Itália. Tal só poderia ocorrer se, sem qualquer margem para dúvida e sem necessidade de mais diligências o Estado Português pudesse transferir o recorrente para Itália suportado nas suas declarações iniciais de que havia anteriormente apresentado o pedido de protecção internacional em Itália. Mas não é assim. Verificada essa circunstância declarativa, seguramente apoiada na existência no sistema Eurodac das impressões digitais do recorrente, a entidade administrativa dirigiu-se às autoridades italianas para saber se aceitavam a retoma da análise do pedido de protecção internacional formulado pelo recorrido e, considerou aceite tacitamente a responsabilidade dessa análise, por partes das autoridades italianas dada a ausência de qualquer resposta. Mas poderiam aquelas entidades ter recusado tal pedido.
A decisão de transferência e não conhecimento do mérito do pedido de protecção internacional, sendo incidental e prevista para ser meio célere para apreciação desse pedido, o que é tido pelo Regulamento Dublin III como da maior importância para garantia dos direitos do refugiado, pode converter-se num obstáculo à realização desses direitos, como tem vindo a ser verificado quer pelo TEDH, quer pelo TJUE. Não se trata de um mero meandro processual para o qual basta sabermos que não agrada ao recorrente, porque já o manifestou nas declarações iniciais. Há variadas circunstâncias que podem obstar quer à decisão, quer à execução da decisão de transferência, ainda que proferida em absoluta conformidade com o Regulamento Dublin III, como sejam o estado de saúde do recorrente e a invocação de falhas sistémicas no estado para que está ordenada a transferência.
A possibilidade de se pronunciar e aduzir argumentos e circunstâncias de facto que fundamentem quer o accionamento da cláusula de soberania quer a protelação no tempo da execução da transferência por parte do Estado Membro onde se encontra o refugiado só tem efectividade perante uma fundamentada e quase decidida transferência, depois de desencadeado o procedimento especial de determinação do estado responsável por apreciação do pedido de protecção internacional, e não antes dele ter sido iniciado, como aqui acontece. Não basta saber-se desde o primeiro momento que o recorrente não quer ir para Itália, isso poderia deduzir-se da circunstância de tendo passado pela Itália, seu ponto de entrada no território da EU, e ter vindo para Portugal. Importa que lhe seja dada oportunidade de apresentar as suas razões de facto que eventualmente possam levar a que a transferência não seja determinada, ou não seja executada de imediato e só o recorrente está em condições de aduzir as suas razões, se as houver, se tiver oportunidade de as expor face a um projecto de decisão de o transferir na sequência dos dados obtidos pelo desencadeado procedimento de determinação do estado responsável pela apreciação do pedido de protecção internacional.
A possibilidade de poder recorrer da decisão que ordena a transferência não é bastante para acautelar os direitos do recorrente uma vez que ele não teve possibilidade de aduzir as suas razões, os factos que as suportam para assim permitir que o Tribunal tenha condições para confirmar ou anular a decisão de transferência.
A decisão de inadmissibilidade do pedido de protecção internacional formulado em Portugal, acompanhada da decisão de transferência para um outro Estado-Membro configura um acto administrativo que afecta os direitos e interesses do recorrente podendo lesá-los.
Para além das normas de direito interno relativas ao exercício do direito de audição e tutela jurisdicional efectiva com assento constitucional e na lei ordinária já mencionados no ac. do Supremo Tribunal Administrativo que inicial e parcialmente transcrevemos, importa considerar a jurisprudência do TJUE, tanto mais que estamos face a normas comunitárias transpostas para o direito interno, cuja interpretação e aplicação se pretendem uniformes. O TJUE tem reafirmado quanto ao exercício do direito de audição em matéria de protecção internacional de refugiados, constante, entre outros do acórdão de 22 de Novembro de 2012, C-277/11, EU:C:2012:744, acessível em http://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?num=C-277/11&language=PT, que:
“81 (…) importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o respeito dos direitos de defesa constitui um princípio fundamental do direito da União (v., nomeadamente, acórdãos de 28 de marco de 2000, Krombach, C-7/98, Colet., p. I-1935, n.° 42, e de 18 de Dezembro de 2008, Sopropé, C-349/07, Colet., p. I-10369, n.° 36).

82 No presente caso, mais concretamente, o direito de ser ouvido em todos os procedimentos, que faz parte integrante do referido princípio fundamental (v., neste sentido, nomeadamente, acórdãos de 9 de Novembro de 1983, Nederlandsche Banden-Industrie-Michelin/Comissão, 322/81, Recueil, p. 3461, n.° 7, e de 18 de Outubro de 1989, Orkem/Comissão, 374/87, Colet., p. 3283, n.° 32), está hoje consagrado não só nos artigos 47.° e 48.° da Carta, que garantem o respeito dos direitos de defesa e o direito a um processo equitativo no âmbito de qualquer processo jurisdicional, como também no seu artigo 41.°, que assegura o direito a uma boa administração.

83 O n.° 2 do referido artigo 41.° prevê que este direito a uma boa administração compreende, nomeadamente, o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente, o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito pelos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial, bem como a obrigação, por parte da Administração, de fundamentar as suas decisões.

84 Há que referir que, como resulta da sua própria letra, esta disposição é de aplicação geral.

85 Por isso, o Tribunal de Justiça sempre afirmou a importância do direito de ser ouvido e o seu alcance muito lato na ordem jurídica da União, ao considerar que este direito deve ser aplicado a qualquer processo que possa ter como resultado um acto lesivo (v., nomeadamente, acórdão de 23 de Outubro de 1974, Transocean Marine Paint Association/Comissão, 17/74, Recueil, p. 1063, n.° 15, Colet., p. 463; e acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 42, e Sopropé, n.° 36).

86 Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o respeito do referido direito impõe-se mesmo quando a regulamentação aplicável não preveja expressamente essa formalidade (v. acórdão Sopropé, já referido, n.° 38).

87 O direito de ser ouvido garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer, de maneira útil e efectiva, o seu ponto de vista no decurso do procedimento administrativo e antes da adopção de qualquer decisão susceptível de afectar desfavoravelmente os seus interesses (v., nomeadamente, acórdão de 9 de Junho de 2005, Espanha/Comissão, C-287/02, Colet., p. I-5093, n.° 37 e jurisprudência referida; acórdão Sopropé, já referido, n.° 37; e acórdãos de 1 de Outubro de 2009, Foshan Shunde Yongjian Housewares & Hardware/Conselho, C-141/08 P, Colet., p. I-9147, n.° 83, e de 21 de Dezembro de 2011, França/People’s Mojahedin Organization of Iran, C-27/09 P, Colet., p. I-13427, n.ºs 64 e 65).

88 O referido direito implica igualmente que a Administração preste toda a atenção necessária às observações assim submetidas pelo interessado, examinando, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto e fundamentando a sua decisão de forma circunstanciada (v. acórdão de 21 de Novembro de 1991, Technische Universität München, C-269/90, Colet., p. I-5469, n.° 14, e acórdão Sopropé, já referido, n.° 50), e o dever de fundamentar uma decisão de forma suficientemente específica e concreta, para permitir que o interessado possa compreender as razões da recusa oposta ao seu pedido, constitui assim o corolário do princípio do respeito dos direitos de defesa.

89 Decorre das considerações que precedem que o direito, assim concebido, do requerente de asilo de ser ouvido se deve aplicar plenamente ao procedimento de apreciação de um pedido de concessão de protecção internacional conduzido pela autoridade competente nos termos das regras adoptadas no âmbito do sistema europeu comum de asilo.

90 A este respeito, não pode ser admitida a tese defendida pelo órgão jurisdicional de reenvio e pela Ireland, segundo a qual, como acontece neste Estado-Membro, no caso de o pedido de protecção subsidiária ser objecto de um procedimento distinto que dá necessariamente seguimento ao indeferimento de um pedido de asilo adoptado no termo de uma instrução que compreendeu uma audição do interessado, não é necessário proceder a uma nova audição deste último para efeitos da apreciação do pedido de protecção subsidiária, porque esta formalidade seria, de certa forma, uma repetição da formalidade de que o estrangeiro já beneficiou num contexto amplamente comparável.

91 Pelo contrário, quando um Estado-Membro tenha optado por instituir dois procedimentos distintos e sucessivos para a apreciação do pedido de asilo e do pedido de protecção subsidiária, importa que o direito do interessado de ser ouvido, tendo em conta o carácter fundamental que reveste, seja plenamente garantido no âmbito de cada um desses dois procedimentos.

93 Importa acrescentar que, segundo jurisprudência bem assente do Tribunal de Justiça, incumbe aos Estados-Membros não só interpretar o seu direito nacional em conformidade com o direito da União mas também procurar não se basear numa interpretação susceptível de entrar em conflito com os direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica da União ou com os outros princípios gerais do direito da União (v. acórdão de 21 de Dezembro de 2011, N. S. e o., C-411/10 e C-493/10, Colet., p. I-13905, n.° 77).

94 É tendo em conta estes elementos interpretativos do direito da União que compete ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar a conformidade, com as exigências do referido direito, do procedimento estabelecido no âmbito da apreciação do pedido de protecção subsidiária apresentado por M. M. e, caso verifique uma violação do direito deste último de ser ouvido, retirar todas as consequências daí decorrentes.

95 Atendendo ao conjunto das considerações precedentes, há que responder à questão submetida que:

(…)
¾ todavia, tratandose de um sistema como o instituído pela regulamentação nacional em causa no processo principal, caracterizado pela existência de dois procedimentos distintos e sucessivos para efeitos da apreciação, respectivamente, do pedido de obtenção do estatuto de refugiado e do pedido de protecção subsidiária, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio assegurar o respeito, no âmbito de cada um desses procedimentos, dos direitos fundamentais do requerente, mais concretamente, do direito de ser ouvido, no sentido de que ele deve poder dar a conhecer utilmente as suas observações, antes da adopção de qualquer decisão que não conceda o benefício da protecção requerida. Em tal sistema, a circunstância de o interessado já ter sido utilmente ouvido no momento da instrução do seu pedido de concessão do estatuto de refugiado não implica que essa formalidade possa ser dispensada no âmbito do procedimento relativo ao pedido de protecção subsidiária.

Em conclusão, no caso concreto não se mostra suficientemente acautelado o direito de defesa do recorrente no procedimento de determinação do estado responsável pela apreciação do seu pedido de protecção internacional por omissão da possibilidade de exercer o seu direito de audição sobre todos os elementos constantes do processo, bem como da possibilidade de acrescentar outros dados que entenda convenientes à salvaguarda dos seus direitos quando a autoridade administrativa considera reunidos os pressupostos de facto e de direito para considerar inadmissível a apreciação do seu pedido e pretende determinar a sua transferência para outro Estado membro, que os dados recolhidos na entrevista inicial não se mostram suficientes para suprimir.


Deliberação

Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido, e, anular o acto impugnado por omissão do relatório aludido no artigo 17º da Lei nº27/2008, de 30.06, e por preterição de audiência do interessado prévia à decisão final do procedimento.

Sem custas - artigo 84º da Lei nº27/2008, de 30.06.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2019. – Ana Paula da Fonseca Lobo (relatora) – José Augusto de Araújo Veloso (junto declaração de voto) – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (voto de vencida). Entendo que resulta da al. g) da matéria de facto que foi elaborado o relatório a que alude o art. 17º do diploma supra citado e aqui em causa e que o interessado se pronunciou sobre o mesmo, nomeadamente sobre a transferência para Itália.



Declaração de voto:
Voto a decisão do acórdão mas não, pelo menos inteiramente, a sua fundamentação.
Adiro à doutrina do acórdão deste Supremo Tribunal de 03.10.2018 [Rº 02095/18.1BELSB], parcialmente citado no presente aresto, e, na sequência dela, entendo que o SEF deve, nas presentes circunstâncias, ouvir o requerente sobre a possibilidade do seu pedido ser inadmissível e ter de ser transferido para outro Estado-membro, por retoma, e de seguida elaborar relatório e dar oportunidade ao requerente de se pronunciar sobre ele nos termos do artigo 17º da Lei nº27/08 de 30.06.

O cumprimento desse dever de audiência deve transparecer na factualidade provada, o que «no caso não acontece», pois que dela não se retira que o requerente tenha sido efectivamente confrontado com a possibilidade de retoma pela Itália, da consequente inadmissibilidade do seu pedido e respectiva transferência, assim permitindo que o SEF, perante as «declarações prestadas e a resposta ao relatório» possa dispor de todos os elementos necessários à avaliação da situação, e a ACNUR e Conselho Português para os Refugiados fiquem cientes do caso na sua real dimensão.
As referências feitas nas declarações e relatório - pontos e) e f) do provado - não configuram o cumprimento desse dever.

José Augusto de Araújo Veloso.