Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:03/21.1BEBRG
Data do Acordão:04/21/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
CRITÉRIO DE ADJUDICAÇÃO
EXCLUSÃO DE PROPOSTAS
PREÇO PARCELAR
PREÇO GLOBAL
Sumário:I – Num procedimento para a formação de contrato de aquisição de serviços em que o critério de adjudicação utilizado era o da proposta economicamente mais vantajosa na modalidade de avaliação do preço enquanto único aspeto de execução do contrato a celebrar, nos termos do art. 74º nº 1 b) do CCP (na versão aplicável, conferida pelo DL nº 111-B/2017, de 31/8), todos os restantes elementos de execução do contrato têm que estar pré-definidos nas peças do procedimento (como resulta imposto pelo nº 3 do mesmo art. 74º).
II – Podendo, nessas circunstâncias, as peças do procedimento vincular as propostas a especificações técnicas ou a termos ou condições, desde que pré-fixados, não podem, porém, tais especificações ou termos ou condições ser deixados à modelação por parte dos concorrentes nas propostas, por a tal se opor o disposto no aludido nº 3 do art. 74º.
III – Para efeitos de ponderação de exclusão de proposta com fundamento na alínea f) do nº 2 do art. 70º do CCP (“cuja análise revele que o contrato a celebrar implicaria a violação de quaisquer vinculações legais ou regulamentares aplicáveis”) – tal como na alínea e) (“cuja análise revele um preço ou custo anormalmente baixo”) - não relevam preços parcelares relativos a partes de execução do contrato, em si mesmo considerados, sem prejuízo de estes poderem servir de elementos indiciários de tais violações ou da anomalia do preço global, designadamente quando corresponderem a partes com peso significativo na execução do contrato, afetando a sua coerência e a do preço global (cfr. Ac. TJUE de 28/1/2016, proc. T-570/13, “Agroconsulting”).
Nº Convencional:JSTA00071443
Nº do Documento:SA12022042103/21
Data de Entrada:03/06/2022
Recorrente:A........, LDA
Recorrido 1:B.......PORTUGAL, S.A. E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO TCA NORTE
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
Legislação Nacional:Arts. 70º nº 2 e) e f), 74º nºs 1 b) e 3 do Código dos Contratos Públicos (redação do DL nº 111-B/2017, de 31/8)
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. “A…………., LDA.” Intentou, em 4/1/2021, contra o “MUNICÍPIO DE VILA NOVA DE FAMALICÃO”, indicando como Contrainteressada “B……… Portugal, S.A.”, ação de contencioso pré-contratual, entendendo, a final, dever o tribunal (cfr. p.i. a fls. 1 e segs. SITAF):

«a) ANULAR O ACTO DE ADMISSÃO DA PROPOSTA DA CONTRA-INTERESSADA E/ EM CONSEQUÊNCIA,
ANULAR O ACTO DE ADJUDICAÇÃO PROFERIDO NO PRESENTE PROCEDIMENTO;
b) ANULAR O CONTRATO CELEBRADO COM A ADJUDICATÁRIA/ CASO O MESMO TENHA SIDO
ENTRETANTO CELEBRADO;
c) CONDENAR A ENTIDADE ADJUDICANTE A EXCLUIR A REFERIDA PROPOSTA;
d) CONDENAR A ENTIDADE ADJUDICANTE A ADJUDICAR O PRESENTE PROCEDIMENTO À AUTORA».

Em 20/1/2021, a Autora ampliou o pedido à declaração de nulidade do contrato entretanto celebrado, em 13/1/2021 (cfr. fls. 163 e segs. SITAF).

2. Por sentença do TAF do Porto - Juízo de Contratos Públicos (TAF/Porto/JCP) de 16/9/2021 (cfr. fls. 452 e segs. SITAF) foi a ação julgada totalmente improcedente.

3. Inconformada com esta sentença, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), o qual, por Acórdão de 17/12/2021 (cfr. fls. 589 e segs. SITAF), negando provimento ao recurso, confirmou a decisão de 1ª instância recorrida.

4. Mantendo-se inconformada com este julgamento do TCAN, veio a Autora interpor o presente recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 633 e segs. SITAF):

«I – ENQUADRAMENTO
1. O presente recurso tem por objecto o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Norte a 17 de Dezembro de 2020, que negou provimento ao recurso jurisdicional interposto pela aqui Recorrente e manteve a sentença recorrida.
2. Nos presentes autos está em causa a licitude do acto de adjudicação de uma proposta que apresentou como preço para a execução de uma das duas fases de execução de um contrato (fase essa que estendia por 11 semanas e que envolvia a afectação de uma equipa de recursos humanos composto por diversos profissionais altamente qualificados e com vasta experiência) o valor de 1€!!
3. O critério de adjudicação do referido procedimento era o do preço mais baixo, pelo que o único atributo das propostas a avaliar era o seu preço global. No entanto, a Entidade Adjudicante exigiu que os concorrentes decompusessem aquele preço em dois diferentes preços, um para cada uma das fases do contrato.
4. Pese embora tenha sido confrontada com o preço de um 1€ para a execução das diversas prestações contratuais compreendidas na 1.ª fase (que, recorde-se, envolvia diversos técnicos altamente qualificados, exigia deslocações dos mesmos e se estendia por 11 semanas), a Entidade Adjudicante nada estranhou, e ignorando o teor dos artigos 70.º, n.º 2, al. f), do CCP (ou mesmo o n.º 2 do artigo 71.º do CCP).
5. Inconformada com aquela decisão, a Autora impugnou a validade daquele acto, desde logo pela evidente violação da al. f) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP.
6. O Tribunal Administrativo do Porto considerou, na douta sentença que proferiu, que “…se revela como um juízo de evidência, não carecido, por isso de demonstração probatória, à luz do conhecimento comum quanto ao valor do salário mínimo nacional, que tal valor de € 1,00 é clara e manifestamente insuficiente para cobrir, no que se reporta à parte dos recursos humanos necessários à execução contratual como definida pelo CE, os “custos de instalação, disponibilização da plataforma, parametrização, formação e importação da informação existente no sistema atualmente em utilização. De resto, nem a ED, nem a CI, o contradizem, limitando-se esta última a indicar que a decomposição do preço se insere na sua liberdade empresarial dos concorrentes.
7. Entendeu, no entanto, que tal conclusão “…não é suficiente para que possamos concluir que a proposta da CI revela que o contrato a celebrar implicaria a violação de quaisquer vinculações legais ou regulamentares aplicáveis, sejam as que emergem dos aspetos da execução do contrato não submetidos à concorrência, sejam os que resultam do bloco de juridicidade, designadamente ao nível de normas laborais”, dado que “…quando o que está em causa é aferir da conformação entre a proposta e os custos obrigatórios emergentes de normas legais ou regulamentares vinculativas para o concorrente, naturalmente que se terá que considerar o preço global proposto e não a decomposição que dele faz o concorrente”.
8. Inconformada, a Autora interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo do Norte, imputando àquela douta sentença um erro de julgamento.
9. No douto, embora surpreendente, Acórdão proferido, este Tribunal julgou improcedente aquele recurso. Na sua fundamentação, entendeu o Tribunal que “inexistindo, no caso dos autos, preços base unitários, mas apenas e só um preço base global é apenas este que tem relevância para se aferir, ainda que casuisticamente, da apresentação de um preço global anormalmente baixo, sendo certo que a exclusão pela apresentação do preço anormalmente baixo, inexistindo nos elementos do concurso essa indicação expressa – o que implica, desde logo, que as propostas o explicitem – depende da alegação que a proponente dessa proposta apresente em justificação desse preço”, e também “…que se mostra irrelevante […] que o preço referente ao factor custos de instalação, disponibilização da plataforma, parametrização, formação e importação da informação existente no sistema atualmente em utilização tenha sido apenas computado no valor de 1€”.
10. No sumário do referido Acórdão, foi destacado que “o instituto do preço anormalmente baixo tem o escopo de conciliar, por um lado, o interesse público financeiro imediato da adjudicação da proposta de mais baixo preço --- o valor do contrato será menor ---, conjugado com o direito à livre iniciativa económico empresarial, e por outro lado, o interesse público da tutela do risco de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato”, e que, “sendo o critério de adjudicação o do mais baixo preço, tal significa que, nestas circunstâncias, a Administração deve apresentar um caderno de encargos que “defina todos os restantes aspectos da execução do contrato a celebrar, submetendo apenas à concorrência o preço a pagar pela entidade adjudicante pela execução de todas as prestações que constituem o objecto daquele”.

II – A ADMISSIBILIDADE DO PRESENTE RECURSO

11. São dois os pressupostos, alternativos, que justificam a admissão do presente recurso (cfr. artigo 150.º, n.º 1, do Código do Processo nos Tribunais Administrativos): i) por um lado, o recurso poderá ser admitido quando “…esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental”; ii) por outro, o recurso pode também ser admitido quando “…a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
12. No presente caso, ambos os pressupostos se encontram verificados.

a) A necessidade da admissão do presente recurso para uma melhor aplicação do direito
13. Desde logo, a admissão do presente recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, dado que o Acórdão de que agora se recorre não só chegou a conclusões que são hoje insustentáveis, como não deu o devido tratamento à questão que lhe tinha sido colocada em sede de recurso.
14. Com efeito, não se pode hoje aceitar que se continue a afirmar que o “…instituto do preço anormalmente baixo o escopo de conciliar, por um lado, o interesse público financeiro imediato da adjudicação da proposta de mais baixo preço --- o valor do contrato será menor ---, conjugado com o direito à livre iniciativa económico empresarial, e por outro lado, o interesse público da tutela do risco de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato”.
15. Na verdade, como tem sido por diversas sublinhado na jurisprudência dos órgãos jurisprudenciais da União Europeia e tem sido sublinhado por parte substancial da doutrina, são dois os principais objectivos daquele instituto: i) evitar o risco de incumprimento ante preços que não garantam a cobertura de todos os custos” e (ii) assegurar uma concorrência leal e efetiva nos mercados da contratação pública. Assim se compreende, de resto, que, como tem sublinhado a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, recaia sobre as Entidades Adjudicantes um poder dever de pedir esclarecimentos justificativos aos proponentes de propostas cujos preços indiciem a insustentabilidade económica das suas propostas.
16. O entendimento segundo o qual não constitui uma das finalidades o instituto do preço anormalmente baixo a protecção de uma concorrência sã e efectiva, bem como o entendimento segundo o qual as Entidades Adjudicantes não se encontram obrigadas a pedir esclarecimentos quando confrontadas com propostas com valor anormalmente baixos ou a excluir propostas, ou partes de propostas, que contenham termos que evidenciem o desrespeito pela aplicação de regras salariais põe flagrantemente em causa o direito europeu (mais concretamente, viola a norma resultante da aplicação conjugada do 2.º parágrafo do n.º 3 do artigo 69.º conjugado com o n.º 2 do artigo 18.º, ambos da Directiva 2014/24, do Tratado de Funcionamento da União Europeia), como poderá este Venerando Tribunal confirmar caso, como é seu dever, proceda ao reenvio prejudicial destas questões ao Tribunal de Justiça da União Europeia (cfr. artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia).
17. A isso acresce que o que se encontrava em causa não era saber se a proposta apresentada era, ou não, uma proposta com um preço anormalmente baixo (obrigando desse modo a Entidade Adjudicante a solicitar esclarecimentos justificativos da viabilidade daquele preço), mas antes saber se o facto, ostensivo e notório, de uma das duas componentes do preço apresentado pela Contra-Interessada em resposta a uma exigência expressa formulada pela Entidade Adjudicante ser revelador da impossibilidade de executar as prestações contratuais ali compreendidas exigiria a exclusão da proposta por violação do artigo 70.º, n.º 2, al. f), do Código dos Contratos Públicos,
18. ou se aquele juízo só pode ser formulado com base numa análise da globalidade da proposta apresentada, como tinha defendido a douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
19. Ora, não tendo sido dada resposta à concreta questão que era necessário esclarecer, torna-se agora necessário admitir o presente recurso para a resolver.
20. A isso acresce que o entendimento que, sendo o único atributo da proposta o preço global, são irrelevantes os preços parciais, apresentados a pedido expresso da Entidade Adjudicante (como foi entendido pelo douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte), indicia uma “confusão” entre a fase de análise das propostas e a fase da respetiva avaliação que não poderá deixar de ser esclarecida por este Venerando Tribunal.

SEM PREJUÍZO,
b) A admissibilidade do presente recurso por estar em causa uma questão que se revela de importância fundamental

21. O presente recurso deverá ainda ser admitido pelo facto de o mesmo envolver a apreciação jurídica de uma questão fundamental.
22. Não restam dúvidas que a apresentação de propostas com preços muito abaixo dos seus custos e de propostas com termos e condições reveladoras de um patente desrespeito por diversas normas do ordenamento jurídico nacional é um dos problemas do mercado dos concursos públicos.
23. Assim, é de fundamental importância conhecer quais as circunstâncias em que as Entidades Adjudicantes podem (rectius, devem) solicitar esclarecimentos justificativos aos concorrentes que apresentem propostas economicamente inviáveis.
24. Bem como é matéria fulcral saber as situações em que as Entidades Adjudicantes devem excluir propostas à luz da alínea f) do n.º 2 do artigo 70.º do Código dos Contratos Públicos.
25. Com efeito, será que uma Entidade Adjudicante apenas pode excluir uma proposta à luz daquele preceito quando a análise global da mesma lhe dê certezas de que a mesma viola flagrantemente normas legais e regulamentares é que a Entidade Adjudicante pode excluir uma proposta com aquele fundamento, como decidiu a douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto?
26. Ou será que, como entende a Recorrente (e como tem sido defendido por alguma doutrina), sendo evidente que não será possível executar determinadas prestações contratuais observando as regras legais e regulamentares aplicáveis – e recorde-se que a douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou evidente e inquestionável que nunca as prestações contratuais compreendidas na primeira fase de execução do contrato poderiam ser executadas nos termos constantes daquela proposta respeitando as regras laborais vigentes, desde logo as regras salariais –, outra solução não resta à Entidade Adjudicante que não a de determinar a exclusão da referida proposta por força da alínea f) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP?
27. Como bem se compreende, a atento: i) o peso que os mercados públicos têm na economia nacional, ii) a multiplicidade de casos em que este tipo de problemas se coloca e iii) ainda a importância que uma concorrência justa e efectiva tem para o fortalecimento do nosso tecido económico nacional, dúvidas não restam que as questões que aqui se colocam têm uma relevância fundamental.

III – A PROCEDÊNCIA DO PRESENTE RECURSO E A ANULABILIDADE DO ACTO ADJUDICAÇÃO IMPUGNADO NOS PRESENTES AUTOS

28. Como a douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo do Porto evidenciou, o preço proposto pela Contra-Interessada, em resposta a uma expressa exigência formulada pela Entidade Adjudicante, para executar a primeira fase do contrato aqui em causa nunca seria possível caso fossem observadas as regras salariais vigentes no nosso ordenamento jurídico.
29. Com efeito, o pagamento de 1€ como contrapartida pela execução de inúmeras prestações contratuais que exigem a afectação de uma equipa composta por uma vasta equipa de recursos humanos composta por diversos técnicos experientes e qualificados por um período de 11 semanas é prova suficiente de que o contrato, resultante da conjugação do caderno de encargos com a proposta apresentada, não poderá ser executado sem pôr flagrantemente em causa o bloco de juridicidade vigente.
30. Assim, a proposta teria sempre de ser excluída por força da alínea f) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP.
31. Não se diga em contrário que, estando em causa a execução de um contrato e sendo o único factor de avaliação das propostas o seu preço global, são irrelevantes os “preços parciais” constantes da proposta apresentadas pelo Adjudicatário.
32. Com efeito, e pese embora só pretendesse avaliar o preço global das propostas, foi a própria Entidade Adjudicante que exigiu que o preço global fosse decomposto em dois diferentes preços, determinando que ambos teriam se der apresentados em separados – o que demonstra como era importante para a sua análise das propostas, ainda que não para a sua avaliação, o conhecimento de cada um daqueles preços.
33. Ora, resultando inequivocamente da análise daquela componente da proposta que o contrato só poderia ser executado naqueles termos caso não fossem observadas as regras legais e laborais (pois a execução daquelas prestações contratuais nunca poderia ser executada por aquele preço), nenhuma outra solução restaria à Entidade Adjudicante que não determinar a exclusão da proposta co fundamento na alínea f) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP (interpretado em conjugação com o n.º 1 do artigo 1.º-A do Código dos Contratos Públicos).
34. Na verdade, e ao contrário do que referiu a douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto indicia que para apurar se o contrato a celebrar a violação de quaisquer violações legais ou regulamentares aplicáveis seja necessário ter em conta a globalidade da proposta apresentada.
35. Assim, se a análise de uma parte da proposta, respeitante a uma das duas fases em que se decompõe o contrato, evidencia que a mesma nunca poderá ser executada nos moldes propostos sem violar o bloco de juridicidade vigente (nomeadamente as regras salariais aplicáveis), nunca a Entidade Adjudicante poderá admitir a referida proposta, sob pena de violação da alínea f) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP.
36. Ao perfilhar entendimento diverso, tanto a douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto como o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte incorreram em erro de julgamento.

TERMOS EM QUE SE REQUER:
A) A ADMISSÃO DO PRESENTE RECURSO, POR SE ENCONTRAREM PREENCHIDOS OS REQUISITOS LEGALMENTE PREVISTOS PARA O EFEITO;
B) QUE AS ALEGAÇÕES DE RECURSO SEJAM JULGADAS TOTALMENTE PROCEDENTES E, CONSEQUENTEMENTE, JULGADOS PROCEDENTES TODOS OS PEDIDOS FORMULADOS NA PRESENTE ACÇÃO».

5. O Réu/Recorrido “Município de Vila Nova de Famalicão” apresentou contra-alegações, concluindo-as da seguinte forma (cfr. fls. 674 e segs. SITAF):

«A. A intervenção do STA só se justifica, em sede de recurso de revista, se estivermos perante matérias de assinalável relevância e complexidade, ou quando haja manifesta necessidade de uma melhor aplicação do direito, sob pena de se generalizar este recurso, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os objectivos da Lei.
B. No caso dos autos, a justificação apresentada pela Autora/Recorrente não consegue demonstrar nem a complexidade da matéria, nem a necessidade de uma melhor aplicação do Direito.
C. Na medida em que as questões suscitadas nas doutas alegações de recurso contendem com a aplicabilidade do regime do preço anormalmente baixo e da exclusão das propostas por manifesta insuficiência em cobrir com os custos laborais, nos termos do art.º 70.º, n.º 2, alínea f) do CCP.
D. Como oportunamente se demonstrou, existe uma vastíssima jurisprudência, por parte dos tribunais nacionais, que se têm pronunciado sobre estas questões, todas num sentido coincidente; demonstrando a desnecessidade da douta intervenção deste Supremo Tribunal para uma melhor aplicação do Direito.
E. Acresce que, sendo esta matéria de extrema relevância, já não o é de extrema complexidade, porquanto, a par da jurisprudência citada, também a doutrina tem convergido na sua apreciação.
F. Daí que não nos parece merecer admissibilidade a presente revista.
G. Já no que concerne ao objecto do recurso, conclui-se que o Acórdão recorrendo decidiu com extrema precisão.
H. Reiterando-se aqui a perspetiva de PEDRO FERNANDEZ SANCHEZ já transcrita, o que está em causa é a incompatibilidade – objetivamente demonstrada – do preço proposto com o somatório dos custos obrigatórios emergentes de normas legais ou regulamentares vinculativas para o concorrente.
I. Ou seja, quando o que está em causa é aferir da conformação entre a proposta e os custos obrigatórios emergentes de normas legais ou regulamentares vinculativas para o concorrente, naturalmente que se terá que considerar o preço global proposto e não a decomposição que dele faz o concorrente.
J. Não se pode recorrer apenas a uma das parcelas do preço, ainda que o mesmo assim tenha sido decomposto pelo concorrente, para daí extrair que se mostra comprovado que o contrato a celebrar seria executado em violação, conforme o caso, de disposições legais ou regulamentares aplicáveis.
L. Essa impossibilidade de cumprimento do contrato em conformidade com o bloco de juridicidade deve ser avaliada em função do conjunto de informações que constam da proposta, pois só assim se obtém a necessária objetividade na demonstração de ser juridicamente impossível que o clausulado proposto satisfaça as normas legais ou regulamentares vinculativas para ela própria ou para o proponente – por exemplo, por se verificar ser matematicamente impossível que o preço proposto cubra custos laborais, ou outras, cuja satisfação é juridicamente obrigatória.
M. Pelo que tal entendimento se encontra justificado pela suficiência do preço global da proposta, que se mostra capaz de suportar eventuais desvios no cumprimento de obrigações contratuais.
N. Assim, torna-se irrelevante, pelo menos na fase de avaliação das propostas apresentadas, que um dos preços parcelares relativo a um elemento exigível nas propostas se mostre individualmente inferior ao esperado.
O. Em suma, o critério de adjudicação escolhido e implementado foi o critério da proposta economicamente mais vantajosa, na modalidade da Avaliação do Preço, pelo que, em última análise, e em fase concursal, é apenas relevante para efeitos de adjudicação, a suficiência do preço global no tocante ao futuro cumprimento contratual.
P. Este entendimento vai de encontro ao sufragado pelo Município, na medida em que o critério de adjudicação do mais baixo preço configura um sistema de adjudicação automática, que não implica por parte do júri nenhum juízo de avaliação, porquanto resulta da verificação comparativa do preço apresentado em cada proposta admitida ao procedimento (PEDRO COSTA GONÇALVES, Direito dos Contratos Públicos, Vol. I, 2.ª Edição pp.787-788).

TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER LIMINARMENTE REJEITADO.
SEM PRESCINDIR, DEVE O MESMO RECURSO SER JULGADO COMO NÃO PROVADO E IMPROCEDENTE, MANTENDO-SE O DOUTO ACÓRDÃO RECORRENDO.
E ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!».

6. A Contrainteressada “B………… Portugal, S.A.” também apresentou contra-alegações, concluindo-as da seguinte forma (cfr. fls. 710 e segs. SITAF):

«A) O presente recurso foi interposto pela A………., LDA. do Acórdão de 17.12.2021 do TCAN, que confirmou na íntegra o teor da Sentença proferida pelo TAF do Porto, que considerou que a circunstância de a Contra-Interessada ter proposto o preço de € 1,00 para as tarefas iniciais de instalação, não permitia julgar verificada a causa de exclusão prevista no artigo 70.º/2 al. f) do CCP, uma vez que a aptidão do preço para cobrir os custos da sua execução deve ser aferida por relação ao preço global.
B) O Acórdão recorrido aditou ainda aos fundamentos constantes da Sentença proferida em primeira instância um outro fundamento, ao concluir que o preço constante da proposta não era anormalmente baixo, porquanto, inexistindo preços base unitários, apenas relevava para esta apreciação o preço global proposto, o qual foi de 72% do preço base.
C) A Recorrente B……… pretende que este douto Supremo Tribunal se pronuncie sobre a necessidade de exclusão de uma proposta que indique um preço parcelar para execução de uma de várias tarefas, que alega ser inferior ao custo da correspondente actividade, ao abrigo do artigo 70.º/2 al. f) do CCP.
D) Sucede, porém, que não se verificam os pressupostos de que depende a admissão do recurso interposto, que não deve, consequentemente, ser admitido.
E) Desde logo, o presente recurso não é necessário para uma melhor aplicação do Direito porque o Acórdão recorrido não se limitou a analisar os autos sob o prisma do instituto do preço anormalmente baixo, mas antes (i) confirmou na íntegra o teor da Sentença inicialmente proferida e (ii) reiterou que uma proposta de preço simbólico para uma das tarefas iniciais não implica a violação de quaisquer vinculações legais ou regulamentares aplicáveis quando o preço contratual cubra todos os custos do contrato, como sucede no caso dos autos.
F) Acresce que a questão suscitada no presente recurso também não se reveste de importância fundamental, que justifique a intervenção deste Supremo Tribunal, uma vez que não põe em crise as diversas pronúncias que este Supremo Tribunal já emitiu sobre a interpretação do disposto no artigo 70.º/2 al. f) do CCP, no sentido de que a aptidão do preço da proposta para cobrir todos os custos decorrentes de normas legais ou vinculativas a tal contrato, deve aferir-se por relação ao preço global, pois que é neste que, ao lado da margem de lucro, se englobam e imputam os custos que emergem para o adjudicatário dessa execução (v.g. Processos n.º 0579/16, de 14.12.2016 e 817/16, de 19.01.2017).
G) A Sentença e o Acórdão recorrido traduzem uma correcta interpretação e aplicação do artigo 70.º/2 al. f) do CCP, porquanto, encontrando-se cobertos todos os custos pelo preço contratual, a celebração do contrato não faz o Município de Vila Nova de Famalicão ou a Contra-Interessada incorrer na violação de qualquer vinculação legal ou regulamentar, nomeadamente, com os encargos sociais.
H) Como decorre das decisões recorridas e tem sido sustentado pela doutrina, a aferição da conformação entre a proposta e os custos obrigatórios emergentes de normas legais ou regulamentares vinculativas para o concorrente, deve ser feita por relação ao preço global proposto e não pela decomposição que dele fez o concorrente, já que só com base na análise da contrapartida global a pagar ao adjudicatário é possível aferir se a mesma permite satisfazer as normas legais ou regulamentares vinculativas para a entidade adjudicante e para o concorrente/adjudicatário.
I) O Acórdão recorrido também não merece qualquer reparo na parte em que nele se conclui que a proposta da Contra-Interessada também não consiste numa proposta de preço anormalmente baixo, uma vez que, não tendo sido fixados preços base unitários e tendo sido erigido como critério de adjudicação o do mais baixo preço, só o preço global poderia relevar, e neste caso o preço proposto representava cerca de 72% do preço base.
J) Não se afigura necessário o reenvio de qualquer questão discutida nestes autos para o Tribunal de Justiça da União Europeia, e logo, não está cumprido o pressuposto previsto no artigo 267.º §1 do Tratado de Funcionamento da União Europeia, uma vez que existem já diversas pronúncias judiciais e doutrinárias que sustentam que a apreciação sobre se uma proposta implicará a violação das vinculações legais ou regulamentares, prevista no artigo 70.º/2 al. f) do CCP, deverá ser feita necessariamente por comparação entre a totalidade dos custos obrigatórios à execução do contrato e o preço total da sua proposta.

TERMOS EM QUE,
Deve o recurso interposto ser rejeitado, por não se encontrarem verificados os requisitos de que depende a respectiva admissão; ou, no caso de assim não se entender,
Deve o recurso interposto ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra o douto Acórdão recorrido».

7. O presente recurso de revista foi admitido pelo Acórdão de 24/2/2022 (cfr. fls. 739 e segs. SITAF) proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 6 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«(…) 6. O TAF/PRT-JCP julgou não verificada a ilegalidade acometida ao ato impugnado considerando insubsistente a ofensa do disposto no art. 70º, nº 2, al. f), do CCP, pelo que julgou a ação totalmente improcedente [cfr. fls. 452/482], juízo mantido pelo TCA/N.
(…) 8. Se presente e considerando aquilo que constitui o fundamento de ilegalidade delimitador do concreto objeto de impugnação na ação “sub specie” a questão relativa ao «preço ou custo anormalmente baixo» [art. 70º, nº 2, al. e), do CCPJ não se assume, nem se evidencia, como dotada de relevância para aquilo que especificamente e para a economia dos autos constitui o efetivo objeto e dever de pronúncia do tribunal, temos, ao invés, que quanto à outra questão a mesma goza de relevância jurídica fundamental.
9. Com efeito, pese embora quanto à solução dada à mesma os juízos das instâncias se apresentarem consonantes quanto à ausência de verificação, à luz da realidade apurada, da ilegalidade em discussão relativa à delimitação/interpretação e concreta aplicação do fundamento de exclusão em crise quanto ao sentido e alcance do conceito do preço que ali deve ser atendido [cfr. art. 70°, n° 2, al. f), do CCP) [quando, à luz de regras procedimentais, na apresentação da proposta se exija para além da apresentação do preço global a apresentação discriminada e decomposta de cada um dos preços para execução das várias prestações contratuais pretendidas em termos do objeto/fim do procedimento], temos, todavia, que ela se mostra de inequívoco interesse no seio da contratação pública, onde a matéria da análise/exclusão das propostas assume elevado interesse para a comunidade jurídica e para as entidades adjudicantes, reclamando e envolvendo a sua dilucidação o cotejo e articulação de variado quadro normativo e principiológico, aqui ora reforçado também pelo facto de estarem colocadas em face de redação que foi introduzida pelo DL n.º 111-B/2017, o que justifica o revisitar da matéria à luz do novo enquadramento por parte deste Supremo Tribunal, cientes de que, também, por repetível, está dotada de capacidade de expansão da controvérsia (…)».

8. O Ministério Público junto deste STA, conquanto para tanto notificado, nos termos do art. 146º nº 1 do CPTA (cfr. fls. 1976), não se pronunciou.

9. Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, mas com prévia divulgação do projeto do acórdão pelos Srs. Juízes Conselheiros Adjuntos, o processo vem submetido à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

10. Constitui objeto do presente recurso de revista, saber se o Ac.TCAN recorrido procedeu a um correto julgamento do recurso de apelação interposto, em face dos erros de julgamento que lhe são apontados pela ora Recorrente, cumprindo decidir se, como ali julgado, em confirmação do antes decidido em 1ª instância, não podia/devia a proposta da Adjudicatária/Contrainteressada ser excluída com fundamento no disposto na alínea f) do nº 2 do art. 70º do CCP (na redação aplicável, conferida pelo DL nº 111-B/2017, de 31/8).


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III - FUNDAMENTAÇÃO
III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

11. Dão-se aqui por integralmente reproduzidos os factos dados como provados nas instâncias – arts. 663º nº 6 e 679º do CPC, aplicáveis “ex vi” do disposto nos arts. 1º e 140º nº 3 do CPTA.


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III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

12. Como decorre do teor do Acórdão TCAN ora recorrido e das alegações da Recorrente/Autora “A……….”, designadamente das respetivas conclusões (que delimitam o objeto do presente recurso de revista), está em causa apreciar se o aresto recorrido julgou acertadamente ao negar razão à Recorrente/Autora que ali pugnava – e ora continua a pugnar - pela exclusão da proposta da Adjudicatária/Contrainteressada “B…….” com alegado fundamento no disposto no art. 70º nº 2 f) do CCP, “ex vi” do art. 146º nº 2 o) do mesmo.

Defende a Recorrente/Autora que, não obstante o critério de adjudicação do procedimento ser o do preço mais baixo, a Entidade Adjudicante exigiu que os concorrentes decompusessem o preço global em dois diferentes preços, um para cada uma das fases do contrato.

E, pese, embora a proposta vencedora tenha indicado o preço de 1€ (um euro) para a execução da primeira fase (“instalação, disponibilização da plataforma, parametrização, formação e importação da informação existente no sistema atualmente em utilização”), as instâncias entenderam que tal era irrelevante em termos de apreciação da eventual exclusão dessa proposta face ao disposto na alínea f) do nº 2 do art. 70º do CCP – que «o contrato a celebrar implicaria a violação de quaisquer vinculações legais ou regulamentares aplicáveis» - ou mesmo (como adicionalmente julgou o Ac.TCAN recorrido), face ao disposto na antecedente alínea e) – se for patente o oferecimento de «um preço anormalmente baixo».

Alega, pois, a Recorrente/Autora que, não obstante o único critério de adjudicação seja o do preço mais baixo, o preço indicado pela concorrente adjudicatária quanto a uma das partes da execução do contrato (no caso, de 1€) não é irrelevante – contrariamente ao entendido pelas instâncias – pois que tendo sido a resposta fornecida pela Adjudicatária/Contrainteressada a uma exigência da Entidade Adjudicante, corresponde a um “termo ou condição”, sujeito a análise, tornando-se, enquanto tal, vinculativa (ainda que não relevante para avaliação), integrando o sequente contrato.

O TAF/Porto-JCP, no seguimento das posições assumidas na ação quer pela Entidade Adjudicante/Réu (Município) quer pela Adjudicatária/Contrainteressada (B……..), julgou que a Autora não tinha razão pois que, tratando-se de um procedimento concursal em que o único aspeto da execução do contrato a avaliar, como critério de adjudicação (isto é, como atributo da proposta), era o do preço (mais baixo) - entendido este como o do “preço global” da proposta -, a indicação de um preço relativo a uma das partes da execução do contrato irrelevava para a apreciação de eventuais violações legais ou regulamentares aplicáveis, o que só pode ser considerado relativamente ao “preço global” oferecido, o qual, no caso, não oferece quaisquer dúvidas a esse respeito, nem a Autora sequer as levanta; consequentemente, a indicação de tal preço parcial poderá servir meramente como indicativo ou como justificativo (como uma mera “nota justificativa do preço”), mas sem relevância para a aludida finalidade.

O Ac.TCAN recorrido, para além de ter sufragado o assim decidido em 1ª instância, julgou, ademais, que a aludida indicação de preço parcial, referente a parte da execução do contrato, também irrelevava para a apreciação de eventual exclusão com fundamento em “preço anormalmente baixo”, com base no disposto na alínea e) do nº 2 do art. 70º do CCP, o que só poderia apreciar-se relativamente ao “preço global” oferecido. Tendo sido, nesta parte, alvo de crítica pela ora Recorrente, que clarifica que não é a causa de exclusão prevista naquela alínea e) – mas sim a prevista na alínea f) - que está em questão, pelo que o Ac.TCAN recorrido se terá desviado do tema do recurso de apelação por si interposto da sentença de 1ª instância. Mas o certo é que o Ac.TCAN recorrido não deixou de expressamente confirmar o julgamento de 1ª instância - “não vemos que outra pudesse ser a solução (…) impõe-se, deste modo, a manutenção da decisão recorrida”.

13. Desde já se adianta que a Recorrente/Autora não tem razão neste seu recurso de revista – e por mais de uma razão, como se dirá -, pelo que será de confirmar a conclusão de improcedência da ação a que chegaram ambas as instâncias.

Vejamos.

13.1. A (ir)relevância do preço parcial indicado

Como vimos, a Recorrente/Autora defende a relevância do preço parcial (no caso, de 1€) indicado pela Adjudicatária/Contrainteressada na sua proposta relativamente a uma primeira parte da execução do contrato (instalação, disponibilização da plataforma, parametrização, formação e importação da informação existente no sistema atualmente em utilização).

Tenha-se presente que se trata de um contrato de aquisição de serviços (“Aquisição de serviços de faturação e gestão integrada dos Serviços de Abastecimento de Água, Tratamento de águas residuais e resíduos sólidos”), lançado em Setembro de 2020.

O procedimento concursal previa que o critério de adjudicação seria o “critério da proposta economicamente mais vantajosa, na modalidade da Avaliação do Preço” (art. 14º nº 1 do Programa do Concurso).

A Recorrente, referindo embora que “o único atributo das propostas a avaliar era o seu preço global”, nota que “a Entidade Adjudicante exigiu que os concorrentes decompusessem aquele preço em dois diferentes preços, um para cada uma das fases do contrato”. Diga-se, apenas por rigor, que não era pedida a decomposição do “preço global” nas parcelas que o formariam, mas, diferentemente, apenas a indicação, para além do “preço global”, de duas parcelas isoladas que, juntas, não formariam a globalidade do “preço global” (veja-se que a própria Recorrente apresentou um preço global de 250.140€, enquanto que indicou as quantias de 82.980€ e de 1.200€ para os dois preços parciais solicitados; tendo a Adjudicatária/Contrainteressada apresentado um preço global de 237.313€, e indicado as quantias de 79.104€ e de 1€ para os dois preços parciais solicitados). Pelo que não estamos perante uma solicitação de decomposição do preço global nas parcelas que o formam (como refere erradamente a Recorrente), mas perante uma solicitação de indicação, para além do preço global, de duas parcelas isoladas desse preço – no caso da proposta da Recorrente, os preços parcelares por si indicados, de 82.980€ e de 1.200€, não perfazem, somados, o preço global (237.313€) da proposta. E o mesmo quanto à outra proposta, da Contrainteressada.

Seja como for, argumenta a Recorrente que a indicação desses preços parciais corresponderam a uma exigência da Entidade Adjudicante, pelo que as respostas dadas – aqueles dois preços parciais apresentados pelos concorrentes nas suas propostas – “são, assim, termos e condições da sua proposta – embora não sejam, isoladamente considerados, um atributo da mesma (“atributo” é apenas o preço global)”. E sendo “termos ou condições”, relevam para efeitos do contrato a celebrar, pelo que a constatação, indisputada nos autos, de que o preço de 1€ indicado na proposta da Adjudicatária/Contrainteressada é insuficiente para garantir qualquer dos custos exigidos pela execução do contrato, na parte condizente, nomeadamente os custos inerentes às remunerações do pessoal aí envolvido, teria que levar à exclusão da proposta, por imposição da alínea f) do nº 2 do art. 70º do CCP.

Mas não se afigura que a Recorrente tenha razão nesta parte da sua argumentação.

Não obstante o critério de adjudicação aplicável no caso ser o da “proposta economicamente mais vantajosa para a entidade adjudicante”, na modalidade da “avaliação do preço enquanto único aspeto da execução do contrato a celebrar” – nos termos do art. 74º nº 1 b) do CCP, na redação aplicável ao caso dos presentes autos, conferida pelo DL nº 111-B/2017, de 31/8 (correspondente à modalidade “monofator, densificado pelo preço, como único aspeto da execução do contrato a celebrar”, na redação atualmente em vigor, conferida pela posterior Lei nº 30/21, de 21/5), é verdade que, também nos casos de utilização deste critério “monofator”, os concorrentes podem ver-se vinculados a “termos e condições” que, embora não relevantes para a avaliação das propostas, imponham a sua exclusão se, na sequência da sua análise, for de concluir pelo seu desrespeito – cfr. art. 70º nº 2 a) e b) do CCP, por reporte ao art. 57º nº 1 c).

Aliás, nos casos de utilização do critério “monofator” do “preço mais baixo” é frequente, pela sua conveniência, as Entidades Adjudicantes pretenderem que os concorrentes se vinculem, desde logo, a “termos ou condições” relativos a aspetos da execução do contrato não submetidos à concorrência, com o fim de que, assegurada desse modo (e também através de eventuais exigências no que respeita a especificações técnicas) a qualidade mínima das propostas, poder restar apenas o preço como único atributo em disputa na fase da avaliação das propostas.

Sucede, porém, que, nos termos impositivos do nº 3 do art. 74º do CCP (na redação aplicável), «a utilização da modalidade prevista na alínea b) do n.º 1 só é permitida quando as peças do procedimento definam todos os restantes elementos da execução do contrato a celebrar».

Ora, isto significa que, nesta modalidade de critério de adjudicação, utilizada no procedimento concursal em causa nos presentes autos, todos os elementos da execução do contrato a celebrar, para além do “preço global” oferecido por cada proposta, têm que estar pré-fixados nas peças do procedimento, não sendo, pois, permitido aos concorrentes “modelar”, nas suas próprias propostas, outros elementos da execução do contrato.

Sendo assim, não é possível, no presente caso, ter como relevante a indicação de preços parciais indicados nas propostas, ainda que a solicitação da Entidade Adjudicante, ao contrário do argumentado pelo Recorrente/Autor, pois que o seu entendimento de que tais preços parciais vinculariam os concorrentes em termos da posterior execução do contrato chocaria com o disposto no citado nº 3 do art. 74º do CCP, e, na realidade, com a própria natureza do critério único de adjudicação do preço global mais baixo previsto na alínea b) do nº 1 desse art. 74º.

Repete-se: as Entidades Adjudicantes podem, mesmo nestes casos, vincular os concorrentes a termos e condições pré-fixadas; não podem é pedir que sejam os concorrentes a definir, ou modelar, quaisquer aspetos de execução dos contratos, para além do “preço global” que ofereçam, pois aqueles têm que estar, todos, pré-definidos nas peças do procedimento.

Nestes termos, no presente caso, a definição, pelos próprios concorrentes, de preços parcelares para a execução do contrato (ou para partes dessa execução), não era admissível, pelo que – tal como as instâncias julgaram, e contrariamente ao entendimento defendido pela Recorrente/Autora, aquelas indicações não podem ser consideradas vinculativas. E assim, logicamente, não podem fundamentar, em consequência, um juízo prognóstico de violação de vinculações legais ou regulamentares aplicáveis (nem um juízo, mesmo que indiciário, de “preço anormalmente baixo”).

Esta circunstância bastaria, só por si, para negar provimento ao presente recurso de revista, confirmando-se o julgamento de improcedência da ação alcançado pelas instâncias.

Mas há (cumulativamente) mais.

14. A impossibilidade, no presente caso, de fundamentar, nos preços parcelares indicados, uma exclusão baseada na alínea f) do nº 2 do art. 70º do CCP (ou na alínea e).

14.1. Independentemente da questão antecedente – ou a acrescer à questão antecedente (da irrelevância vinculativa, “in casu”, dos preços parcelares indicados), os mesmos não poderiam, no presente caso, contrariamente ao defendido pela Recorrente/Autora, fundamentar uma exclusão baseada no disposto na alínea f) – ou na alínea e) – do nº 2 do art.70º do CCP.

E isto porque, ainda que tais preços parciais tivessem relevância vinculativa (que já vimos não poderem ter), apenas poderiam servir como instrumentos indiciários de um juízo de provável violação de vinculações legais ou regulamentares aplicáveis, o qual – também contrariamente ao defendido pela Recorrente/Autora -, só poderia ter como objeto o “preço global”, e não esses preços parcelares.

Ou seja, ainda que esses preços parcelares fossem vinculativos (que, no caso, não podem ser), poderiam servir apenas de indícios de um “preço global” anómalo, no sentido das referidas alíneas e) ou f), mas não poderiam servir, eles próprias como objeto direto de um tal juízo.

Ora, no presente caso, a acusação feita pela Recorrente/Autora reporta-se apenas, e diretamente, ao preço parcial (de 1€) indicado na proposta da Adjudicatária/Contrainteressada para a fase inicial de preparação da execução do contrato, e não ao preço (global) dessa proposta, cuja quantia (de 237.313€) – aliás, não distante da quantia do preço (global) apresentado na proposta da própria Recorrente/Autora – nunca suscitou dúvidas quanto à sua normalidade, quer à Entidade Adjudicante quer à própria Recorrente/Autora.

14.2. E que isto é assim, ou seja, que aqueles juízos de eventual anormalidade se deverão reportar ao preço global, e não a preços parciais, ainda que estes possam servir como elementos indiciários daquele juízo, diz-nos a própria jurisprudência europeia, do TJUE, nomeadamente no Acórdão citado pela Recorrente/Autora nas suas alegações: o Acórdão de 28/1/2016 (“Agroconsulting”), proc. T-570/13.

Neste Acórdão, invocado pela própria Recorrente/Autora, relativo a um procedimento pré-contratual para aquisição de serviços por parte da Comissão Europeia, em que o critério de adjudicação era “multifator”, da proposta mais vantajosa, na modalidade de melhor relação qualidade-preço (correspondente ao previsto na alínea a) do nº 2 do art. 74º do nosso CCP, na redação aqui aplicável), estava em discussão um juízo de “preço global anormalmente baixo” de uma proposta, que o TJUE confirmou, fundamentado em diversos preços parcelares apresentados, referentes a diversas “missões” (principais e adicionais), que não cobririam os inerentes custos. E como a própria Recorrente/Autora admite, quanto a este Acórdão do TJUE, “podendo também ser tido em conta, pelos mesmíssimos motivos, para evidenciar se os mesmos são suficientes para garantir o cumprimento dos encargos laborais, sociais ou ambientais”. Ora, o TJUE julgou (sublinhados nossos):

«(…) 56. No caso vertente, resulta da carta da Comissão de 25 de março de 2013 e do relatório de avaliação final que a comissão de avaliação considerou, à luz das explicações fornecidas pela demandante, que os custos não estavam cobertos pelo preço proposto para certas missões adicionais (n.ºs 1 a 6 e 18 a 20, nomeadamente). A comissão de avaliação também realçou as incoerências dos custos para as missões adicionais n.ºs 14 e 15. Por último, constatou a existência de uma utilização cruzada do pessoal para as principais missões adicionais (n.ºs 6 a 17, n.° 21 e n.° 25). Concluiu pelo caráter anormalmente baixo da proposta relativamente às missões adicionais n.ºs 1 a 16 e 18 a 20. Precisou que as missões adicionais n.ºs 1 a 6 e 18 a 20 foram propostas com prejuízo, só com base nos custos do trabalho, e que as missões adicionais n.ºs 1 a 16 e 18 a 20 foram propostas com prejuízo se fossem tomados em consideração os custos adicionais. Acrescentou que a utilização cruzada do pessoal tornava a proposta incompatível com as exigências do caderno de encargos no que se refere ao requisito mínimo de “equivalência a horário completo”.

57. Assim, é exato dizerse que as anomalias mencionadas que levaram a comissão de avaliação a concluir pelo caráter anormalmente baixo da proposta da demandante dizem mais concretamente respeito a determinadas missões adicionais.

58. Porém, a importância económica e financeira das missões adicionais relativamente às missões principais decorre claramente dos elementos do processo. Concretamente, o caderno de encargos prevê um total de 36 missões, das quais 27 constituem missões adicionais. Além disso, o mesmo caderno de encargos prevê para as missões adicionais um orçamento máximo ligeiramente superior (1 500 000 euros) ao previsto para as missões principais (1 400 000 euros). A importância das missões adicionais na globalidade do contrato não levanta nenhuma dúvida.

59. Ora, das 27 missões adicionais previstas, 19 padeciam das anomalias indicadas pela comissão de avaliação.

60. Por consequência, mesmo que as anomalias indicadas só dissessem respeito às missões adicionais, não se referiam a um aspeto menor ou isolado da proposta e eram, assim, suscetíveis de afetar a coerência do preço global proposto e, consequentemente, da proposta no seu conjunto.

61. Além disso, o facto de as anomalias indicadas só dizerem respeito às missões adicionais não significa que a proposta não tenha sido avaliada no seu conjunto. A este respeito, foi o preço global da proposta da demandante que foi considerado anormalmente baixo, inclusivamente no que se refere ao orçamento previsto pela Comissão para a totalidade do contrato e relativamente ao preço total proposto pelo adjudicatário.

62. Daqui resulta que a comissão de avaliação efetuou a sua apreciação atendendo à composição da proposta e à prestação em causa tendo tido em conta os elementos pertinentes a respeito dessa prestação. Importa assim rejeitar a crítica da demandante de que a comissão de avaliação concluiu pelo caráter anormalmente baixo da proposta em contradição com os princípios aplicáveis na matéria.

(…) 81. No caso vertente, importa recordar que o orçamento máximo global previsto para o contrato em causa era de 2 500 000 euros por ano. A demandante apresentou uma proposta por um preço total no montante de 1 320 112,63 euros, ao passo que a C………., como adjudicatária, apresentou uma proposta global no montante de 2 316 124,83 euros.

82. Por consequência, como sublinha a Comissão, a oferta financeira da C…….., calculada com base na fórmula prevista no ponto 9.3.2. do caderno de encargos, relativa ao critério do preço, é ligeiramente inferior ao valor máximo do orçamento previsto pelo referido caderno de encargos para a execução do contrato e mais elevada, em cerca de um milhão de euros, do que a da demandante. Daqui resulta que, contrariamente à demandante, a C……. não está numa situação de oferta anormalmente baixa relativamente ao orçamento global previsto para o contrato em causa.

83. Uma vez que as proponentes não estavam na mesma situação, a Comissão podia, sem violar o princípio da igualdade de tratamento, decidir verificar o caráter anormalmente baixo da proposta da demandante, sem aplicar o mesmo tratamento à C……...

84. Nestas circunstâncias, a simulação apresentada pela demandante é desprovida de pertinência.

85. Daqui resulta que a acusação relativa à violação do princípio da igualdade de tratamento deve ser julgada improcedente.

86. Resulta do exposto que há que julgar improcedentes todas as acusações da demandante, destinadas a estabelecer a existência de uma ilegalidade relativa à apreciação do caráter anormalmente baixo da sua proposta. O seu pedido de indemnização deve, assim, ser julgado improcedente a este respeito sem que seja necessário analisar os requisitos relativos à existência de um dano e de um nexo de causalidade. (…)».

Retira-se, assim, da fundamentação de direito contida neste Acórdão do TJUE – e particularmente das passagens que sublinhámos – que o objeto do juízo do preço anómalo, por anormalmente baixo (como também no caso de fazer prever violações de vinculações legais e regulamentares aplicáveis) é o preço global da proposta, e não os preços parciais, ainda que estes assumam relevância vinculativa, e sem embargo de estes preços parciais poderem servir de elementos indiciários – como serviram no caso a que se referia este Acórdão do TJUE – da anomalia do “preço global”.

Note-se, porém, que, muito diferentemente, no caso em discussão nos presentes autos, o preço parcial em questão (de 1€) não se reporta a parte maioritária ou substancial da execução do contrato, pois que, como estabelecido, o preço parcial correspondente apresentado pela própria Recorrente/Autora, na quantia de 1.200€, representava apenas 2% do preço global por si apresentado.

Estamos, pois, longe de também poder afirmar, tal como no caso do Acórdão do TJUE, que “a importância da parte da execução do contrato” a que se refere o preço parcial em questão “na globalidade do contrato não levanta nenhuma dúvida” ou que “não se referia a um aspeto menor ou isolado da proposta e era, assim, suscetível de afetar a coerência do preço global proposto e, consequentemente, da proposta no seu conjunto”. Pelo contrário, no caso dos autos, a parte de execução do contrato a que se refere o preço parcial em questão é, indubitavelmente, de escassa importância na globalidade do contrato, referindo-se a um aspeto menor e isolado da proposta (no máximo, de importância relativa a 2% da globalidade do valor do contrato).

Mas o mais decisivo é que, sendo o objeto da ponderação da anomalia o “preço global”, o TJUE confirmou, no caso que apreciou, a anomalia do preço global da proposta ali em questão, ao passo que, no caso dos presentes autos, nenhuma dúvida é levantada, seja por quem for, quanto à normalidade do “preço global” da proposta da Adjudicatária/Contrainteressada. O aludido preço parcial não é, pois, no caso dos autos, “suscetível de afetar a coerência do preço global proposto e, consequentemente, da proposta no seu conjunto”.

Diga-se, por fim, que, seguindo-se, como se viu, a jurisprudência do TJUE na matéria, de acordo com o seu Acórdão supra citado e transcrito, perde pertinência um eventual “reenvio prejudicial” dirigido ao mesmo TJUE, como alvitrado pela Recorrente/Autora nas suas alegações do presente recurso de revista. Tanto mais que, atenta a cumulação de razões supra referida, sempre a ação teria de improceder.

15. Por tudo o que fica acima cumulativamente exposto (pontos 13 e 14 supra), é de negar provimento ao presente recurso de revista, confirmando-se, assim, a improcedência da ação julgada pelas instâncias.

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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

Negar provimento ao presente recurso de revista interposto pela Recorrente/Autora “A………., Lda.”, confirmando-se, assim, o Acórdão do TCAN recorrido.

Custas a cargo da Recorrente/Autora.

D.N.

Lisboa, 21 de abril de 2022 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) - José Augusto Araújo Veloso – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.