Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0324/11.1BEALM
Data do Acordão:07/13/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:TAXA
ISENÇÃO
DOMÍNIO PÚBLICO MUNICIPAL
Sumário:I – Alicerçando-se a sentença de 1ª instância na procedência de vários vícios assacados ao acto tributário impugnado, o recurso jurisdicional só será eficaz se o Recorrente nele questionar todos os vícios que, individualmente considerados, sejam aptos a sustentar a anulação.
II – Questionando o Recorrente apenas um dos fundamentos pelos quais a sentença julgou procedente a Impugnação judicial, a saber, a manutenção na ordem jurídica, na data da liquidação (2006), do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de Abril de 1940, que consagrava a isenção de taxa no caso sub judicie, e delimitando as conclusões do recurso o objecto deste, a reapreciação desta questão pelo tribunal ad quem seria inútil porque os efeitos do julgado, na parte não recorrida (anulação com fundamento em violação de audição prévia do contribuinte) não podem ser prejudicados pela decisão do recurso (artigo 635.º, n.ºs 2, 3 e 5 do CPC).
Nº Convencional:JSTA000P29708
Nº do Documento:SA2202207130324/11
Data de Entrada:04/01/2022
Recorrente:MUNICÍPIO DO SEIXAL
Recorrido 1:REN- REDE ELÉCTRICA NACIONAL, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. O Município do Seixal, inconformado com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou procedente a Impugnação Judicial, deduzida pela “REN – Rede Elétrica Nacional, S.A.” contra o acto de indeferimento expresso da reclamação graciosa relativa a taxa liquidada nos termos do art.º 18.º do Regulamento de Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 197, de 27-08-2003, com as alterações subsequentes), e contra o próprio ato de liquidação desse tributo, relativo ao ano de 2006, no valor global de € 287.139,00, interpôs recurso para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

«1- Nos presentes autos, a ora recorrida impugnou a liquidação da taxa devida pela ocupação de espaço público do Município do Seixal com as suas infra-estruturas, relativa ao ano 2006.

2- Para além dos demais vícios invocados, a recorrida reclama para si uma isenção fiscal da supra aludida taxa de ocupação do espaço público municipal.

3- Conhecendo verificado o invocado vício material, o Tribunal a quo julgou procedente a impugnação e a consequente anulação do acto de liquidação sub judice.

4- Para tanto, entendendo que a norma de isenção de taxas prevista no Decreto da Junta de Electrificação Nacional de 1940 (art.º 4º do Decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de Abril de 1940) está em vigor.

5- Para fundamentar a douta decisão, o Mm.º Juiz a quo entendeu existir similitude entre a situação sub judice e aquela sobre a qual o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se acerca de uma isenção de taxas, a favor da “PT Comunicações”, considerando tratar-se de uma isenção de natureza equivalente, o que não sucede, como adiante se procurará demonstrar.

6- Porém, o que o Tribunal a quo não diz, mas não poder desconhecer, é que a isenção das taxas de ocupação de espaço público municipais de que a “PT Comunicações, S.A.” beneficiava, foi revogada (art.º 29 al. e) do D.L. n.º 40/95, de 15 de Fevereiro) e substituída por uma Taxa, a TMDP.

7- O que sucedeu, porque a manutenção da mesma era ilegal e o Estado Português foi advertido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia para a necessidade de revogar tal isenção a favor da “PT Comunicações”, sob pena de condenação por violação do princípio constitucional da igualdade e do princípio supra constitucional, da livre concorrência e igualdade entre empresas.

8- A manutenção da referida isenção para além de inconstitucional violava direito comunitário pelo que foi revogada pelo D.L. 31/2003, de 17 de Fevereiro que no seu art.º 14º exclui dos direitos da concessionária a isenção de taxas municipais pelo uso do solo, subsolo e espaço aéreo municipais.

9- Paralelamente a este regime foi aprovado o regime legal que institui a denominada Taxa Municipal sobre Direitos de Passagem (abreviadamente, conhecida como, TMDP) que mais não é que a compensação devida a cada um dos Municípios pelo uso que as empresas de telecomunicações fazem do espaço público municipal.

10- Como é do conhecimento comum, o regime da “TMPD” foi aprovado pela Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro que aprovou a denominada “Lei das Comunicações Electrónicas”, transpondo para o ordenamento jurídico português uma Directiva Comunitária que em matéria de telecomunicações estabeleceu um regime tão semelhante quanto possível em todo o espaço comunitário.

11- Se, por absurdo, fosse hoje aprovada semelhante isenção a favor da concessionária do serviço público de telecomunicações, a mesma não resistiria hoje, arriscaríamos dizer, ao crivo do Tribunal Constitucional.

12- Hoje, as empresas de telecomunicações, concessionárias ou não, pagam uma taxa municipal pelo direito de passagem (TMDP) no espaço público municipal, facto que não pode ser ignorado, desde logo porque do mesmo emerge, sem qualquer margem para dúvidas, que o uso do espaço público municipal, repete-se, não é gratuito.

13- Concluindo, a identidade de razões que o Tribunal a quo viu entre as duas situações, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se verifica.

14- Acresce que, as entidades em presença, não são sequer semelhantes já que, à época da Lei n.º 40/95 de 15 de Fevereiro a “PT Comunicações” era uma sociedade de capitais exclusivamente públicos, dominada pelo Estado, ao passo que a REN, S.A. é hoje, uma sociedade comercial, cujo escopo é o desenvolvimento de uma actividade comercial lucrativa.

15- Da mesma forma que não existe identidade de razões, entre uma decisão que julgou em vigor uma isenção fiscal, anterior à Constituição da República Portuguesa de 1976, a favor da “Santa Casa da Misericórdia” e aquela que se discute no caso sub judice.

16- O estatuto da recorrida não se confunde com o do Santa Casa da Misericórdia, a quem o Tribunal Constitucional reconheceu que beneficiasse de isenções, mercê do seu estatuto benemérito, da reconhecida utilidade social e dos óbvios fins não lucrativos e de solidariedade social.

17- Não existe, obviamente, qualquer semelhança entre a isenção conferida à Santa Casa da Misericórdia ou a qualquer outra entidade de natureza jurídica semelhante e aquela que infundadamente a REN, S.A. reclama para si.

18- É aliás, por isso, que, na própria decisão judicial em que se reconhece isenção de taxas municipais à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, se justifica a manutenção da mesma, dada a natureza jurídica daquela entidade, que em nada, mas absolutamente nada se confunde com a da REN, S.A.

19- Não nos deixemos iludir quanto a este aspecto essencial porque o facto da REN, S.A. ser concessionária do transporte da energia em média, alta e muito alta tensão, não a distingue de outras entidades, em tudo idênticas, como demonstraremos, que não fazem um uso gratuito do espaço público municipal, desde logo não a distingue das concessionárias da actividade de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, que como veremos e é sabido, pagam uma renda como contrapartida pelo uso do espaço público.

20- O uso do domino público municipal é em regra oneroso e a recorrida, ao fazer uso do mesmo não está isenta da taxa municipal devida por essa mesma utilização.

21- A decisão do Tribunal a quo, ao considerar que a REN, S.A. beneficia de uma isenção e, por consequência pode usar gratuitamente o espaço público municipal, cometeu um erro de julgamento, porquanto, s.m.o., aplicou uma norma inconstitucional, o art.º 4º do Decreto-lei 30349, na medida em que uma tal isenção, sem que tenham sido devidamente sopesados os interesses em presença (já que o diploma é anterior à Constituição de 1976) ofende o núcleo essencial do princípio constitucional do Autonomia Local, na sua dimensão de Autonomia financeira local (claramente prevista e consagrada na Revisão Constitucional de 1997), enquanto princípios fundacionais da Constituição da República Portuguesa de 1976, (cft art.ºs 6º, art.º 235 e 238 n.ºs 1 e 3, da CRP).

22- Com efeito, a isenção prevista no referido art.º 4º do Decreto-lei de 1940, foi aprovada num quadro constitucional completamente distinto do actual, no qual não se caminhava para a descentralização administrativa, no qual a autonomia local, a autonomia financeira local e a autonomia tributária pura e simplesmente não existiam e jamais se sobreporiam aos interesses do Estado Central, motivo pelo qual, o próprio texto constitucional de 1976 revogou à contrário sensu, todo o direito ordinário anterior à sua entrada em vigor, contrários à Constituição ou aos princípios nela consignados (cft. art.º 290º n.º 2 da CRP).

23- Apesar de ter sido alegado que no actual quadro constitucional, a isenção de taxas locais pressupõe a previsão legal de uma compensação a favor das autarquias, sob pena de inconstitucionalidade de uma tal norma de isenção, por violação dos citados princípios constitucionais da autonomia local, nomeadamente, na sua vertente de autonomia financeira (cft. art.º 293º da CRP, na versão de 1976, art.º 238º e ss. da CRP), já que o seu núcleo essencial sai irremediavelmente ferido, como adiante melhor veremos.

24- A REN, S.A., ora recorrida e toda e qualquer concessionária de serviço público, deve pagar pelo uso que faz desse mesmo espaço público.

25- A recorrida não beneficia de nenhuma “posição jurídica legitimada”. O estatuto de concessionária de serviço público, em regime de exclusividade, resulta da lei e do contrato de concessão, nos termos dos quais a recorrida, pelo facto de ser concessionária, como tantas outras empresas concessionárias de serviço público, tem direitos e obrigações e algumas prorrogativas que resultam do facto de desempenhar as suas funções em regime de serviço público (cft. D.L. 29/2006 de 15 de Fevereiro de 2006). Todavia, o direito a utilizar o domínio público municipal para instalação da rede, resulta da lei concretiza-se nos termos da lei (cft. D.L. 172/2006 de 23/8), da qual não resulta que a mesma possa usar gratuitamente esse mesmo domínio público municipal, mas antes e sempre nos termos da lei.

26- A circunstância da recorrida ser concessionária de um serviço público não obsta à qualificação do tributo como taxa, pois para além da satisfação do interesse público, a sua actividade proporciona-lhe a satisfação dos seus interesses enquanto empresa comercial privada, conforme emana, nomeadamente do Acórdão do Pleno do STA de 13/04/2011, Proc.º 0951.

27- Por isso, é absolutamente irrelevante que a recorrida se dedique única e exclusivamente à actividade de transporte de energia, o que aliás resulta de uma imposição das normas comunitárias aplicáveis em matéria de concorrência que separaram a actividade de comercialização da energia, aberta ao mercado concorrencial, da actividade de transporte de energia, desenvolvida unicamente pela recorrida, que assim fica obrigada pela lei a assegurar o transporte de energia em condições de igualdade para todas as entidades que a queiram comercializar e, para tanto têm, de utilizar as redes instaladas.

28- A recorrida fá-lo em regime de concessão porque foi essa a opção do Estado português que, concessionou a uma empresa privada a actividade de transporte de energia. Mas a concessão a que nos referimos é remunerada pelo Estado, ou seja, por todos nós.

29- A solução legislativa, por exemplo no sector do gás, em que se manteve a obrigação das concessionárias pagarem as taxas devidas pela ocupação de espaço público municipal, é diferente da solução consagrada para as concessionárias da actividade de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão em que foi criada uma renda, como forma de compensar esse mesmo uso. Diferente é também a solução legislativa plasmada da Lei das Comunicações Electrónicas (Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, na sua versão actualizada) em que as taxas de ocupação de subsolo inicialmente devidas por estas empresas deram lugar a uma única Taxa Municipal sobre Direitos de Passagem, vulgarmente conhecida como TMDP.

30- Pese emboras as soluções legislativas serem diferentes, nos diversos sectores em que operam as empresas concessionárias, todas elas têm um traço comum, a consagração de contrapartidas pelo uso do espaço público municipal, o que significa que em nenhum sector existe uma isenção tout cout do uso do espaço público municipal, mormente, no sector eléctrico, em que, atento o facto de se cruzarem interesses locais e interesses de âmbito nacional, tudo devidamente ponderado, foi criada uma renda paga aos municípios expressamente devida pela concessão, mas também, como expressamente resulta da redacção da norma supra indicada, como contrapartida pelo uso do espaço público municipal, inclusivamente para além do âmbito estrita da Baixa tensão.

31- Neste particular, importa não confundir o estatuto de concessionária de serviço público em regime de exclusividade, actividade a que se reconhece utilidade pública, com o estatuto que, obviamente a recorrida não tem, de pessoa colectiva de utilidade pública, sem fins lucrativos e solidariedade social, a que efectivamente estão associados compreensíveis benefícios fiscais. Ora, o Tribunal a quo não atendeu s.m.o., a esta distinção e, por esse motivo considerou que a situação sub judice é alegadamente semelhante àquelas que foram tratadas pelo douto Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 285/2006, onde se conclui, que as isenções concedidas em benefício de um serviço público essencial, não constituem uma violação do princípio da autonomia local.

32- O uso do domino público municipal é em regra oneroso e a recorrida, ao fazer uso do mesmo não está isenta da taxa municipal devida por essa dessa mesma utilização.

33- No actual quadro legislativo e contratual, a recorrida tem o direito de usar o domínio público municipal nos termos mesmo contrato de concessão, (cft. cláusulas 33º e 34º), já que no actual quadro constitucional, o Governo não poderia dispor do domínio público autárquico e a norma do art.º 4º do Decreto-lei 30:349 é inconstitucional.

34- Por consequência, a faculdade de uso do domínio público municipal foi conferido à concessionária no âmbito e nos termos do contrato de concessão e da lei (sublinhado nosso) e não gratuitamente.

35- Do referido contrato de concessão não resulta qualquer direito ao uso gratuito do domínio público municipal porque as partes não quiseram nem podiam prevê-lo.

36- Por isso, não assiste à recorrida qualquer direito ao uso gratuito do espaço público municipal, em razão da utilidade pública da sua actividade ou do interesse da mesma.

37- Por isso, hoje, nenhuma concessionária no sector da distribuição de energia está isenta do pagamento de taxas pela ocupação do espaço público municipal, quer ao abrigo do respectivo contrato de concessão, quer de qualquer normativo legal, nomeadamente do Decreto Lei n.º 30.349, de 2 de Abril de 1940.

38- Aliás, em nenhum diploma legal se consagra um direito ao uso gratuito do domínio público municipal, sob pena de óbvia inconstitucionalidade material por violação do princípio da Autonomia Local e do princípio da Onerosidade da ocupação do domínio público.

39- O Decreto Lei n.º 30.349, de 2 de Abril de 1940 foi revogado pela Constituição da República Portuguesa (art.º 290º n.º 1 da CRP) na medida em que é incompatível com os já invocados princípios da autonomia local, mas também pelas sucessivas Leis das Finanças Locais, pelo Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, leis com valor reforçado e, por fim, só se assim não se entendesse, revogado globalmente pelos diplomas que regularam o Sector Eléctrico Nacional (o D.L. 182/95, de 27 de Julho e posteriormente, o D.L. 29/2006 de 15 de Fevereiro que “Estabelece as bases gerais da Organização e Funcionamento do Sistema Eléctrico Nacional”, o D.L. 172/2006, de 23 de Agosto, diploma em que se estabeleceu o “Regime jurídico aplicável às actividades de produção, transporte, distribuição e comercialização de electricidade.

40- Não oferece hoje quaisquer dúvidas a existência de um património local que às autarquias incumbe administrar de forma autónoma em relação ao Estado, que está impedido de ali se imiscuir, salvo nos termos da lei, nomeadamente, nos termos do art.º 238º da CRP, art.º 15º e 16º da Lei das Finanças Locais, Lei 73/2013, de 3 de Setembro e art.ºs 6º e 8º da RGTAL.

41- Constitui, aliás, um limite material à própria revisão constitucional o regime das autarquias locais (al. n) do art.º 288º da CRP).

42- A revisão constitucional de 1997 consagrou de forma alargada o princípio da autonomia financeira das autarquias locais, do qual dimana como expressão última, o princípio da autonomia tributária.

43- Como concretização desta mesma Autonomia, a partir da terceira Lei das Finanças Locais Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto, que aos municípios foi reconhecido o direito inalienável e exclusivo de cobrar taxas, nomeadamente pelo uso do seu domínio público e privado, no qual se inclui o espaço aéreo (cfr. as sucessivas leis das Finanças Locais, Lei n.º 1/79, de 2/1, Lei n.º 98/84, de 29 de Março , Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro, Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto, Lei 2/2007, de 15 de Janeiro, Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro e mais recentemente o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, Lei 53-E/2006, de 29 de Dezembro).

44- Não sem que antes, logo na primeira Lei das Finanças Locais, a Lei n.º 1/79 de 2 de Janeiro se tenha previsto no al. d) no n.º 3 do seu art.º 1º, o seguinte, sob a epígrafe: “Autonomia Financeira dos Municípios”: “O regime de autonomia financeira das autarquias locais assenta, designadamente, nos seguintes poderes dos órgãos autárquicos: d) Gerir o património autárquico. Na mesma lei prevê-se no n.º 1 al l) do art.º 13º que os municípios podem cobrar taxas pelo aproveitamento do domínio público sob administração do município.

45- Mas nesta primeira Lei das Finanças Locais, no seu art.º 27º sob a epígrafe: “Norma Revogatória” previu-se, o seguinte: É revogada toda a legislação geral e especial que contrarie as disposições da presente lei, nomeadamente (...), donde não resultam quaisquer dúvidas que foi intenção do legislador revogar toda e qualquer legislação geral e especial e, por maioria de razão, se acaso não se devesse já considerar revogada pelo art.º 293º da Constituição, foi revogada a norma em que se previa uma isenção fiscal que contendia com o poder autárquico de gerir o seu património, limitando a possibilidade dos municípios poderem cobrar taxas pelo aproveitamento do seu domínio público, expressamente afirmado por aquela primeira Lei das Finanças Locais.

46- As Leis supra aludidas, todas elas Leis de valor reforçado, preveem não só o direito a cobrar taxas pelo uso do espaço público municipal, mas também o direito inalienável de isentar e criar benefícios fiscais, quando está em causa, a administração do seu património, logo os referidos diplomas de valor reforçado revogaram a isenção de taxas prevista no Decreto de 1940 (art.º 4º do Decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de Abril de 1940), incompatível com este regime legal, actualmente, em vigor.

47- As Leis das Finanças Locais supra aludidas e o Regime geral das Taxas das Autarquias Locais (Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro) constituem as leis habilitantes dos Regulamentos Municipais respectivos, a quem estes devem obediência. Nas referidas leis das Finanças Locais e no RGTAL prevê-se expressamente um regime próprio de compensação sempre que esteja em causa um projecto de âmbito ou interesse nacional que, nos termos da lei, justifique criar uma isenção ou benefício fiscal sobre território cuja administração não lhe pertença.

48- É esta mesma necessidade de adequação e proporcionalidade previstas no RGTAL que, segundo a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, tem de se verificar sempre que seja possível constitucionalmente comprimir o princípio da Autonomia Local.

49- E, foi precisamente essa ponderação que não foi feita quando foi aprovada a isenção de taxas pela ocupação do espaço público (no art.º 4º do Decreto Lei 30:349, de 2 de Abril de 1940). A recorrida está incumbida de uma função de interesse nacional, ocupa o espaço público municipal gratuitamente em benefício da sua rede, e não paga qualquer contrapartida, o que, nesta exacta medida, constitui uma violação do princípio constitucional da autonomia local, na vertente de autonomia financeira.

50- Não restam dúvidas que a consagração do princípio da autonomia financeira das autarquias locais com a amplitude com que foi consagrado pela Revisão constitucional de 1997, da qual dimanam as normas contidas nas subsequentes e já referidas Leis das Finanças Locais e Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, derrogou a norma a legal de 1940 onde se previa uma isenção pela ocupação de espaço público municipal contrário ao actual regime legal e ao que nele se dispõe, sob pena de inconstitucionalidade material, por violação do art.º 238º n.ºs 1 e 3 da CRP.

51- Os princípios constitucionais da autonomia local, de que decorrem a existência de território e finanças próprios, assim bem como o reconhecimento de um domínio público autárquico, cuja administração compete exclusivamente às respectivas autarquias locais, é incompatível com a intromissão do Estado nesta matéria, sem que sejam devidamente sopesados os interesses em presença e previstas as devidas contrapartidas.

52- É atentatório do princípio da autonomia local, do princípio da onerosidade do uso dos bens públicos e do princípio da igualdade admitir que uma norma legal concedesse à recorrida a possibilidade de usar gratuitamente o património local em benefício exclusivo de uma empresa, quando todos os outros, ainda que concessionários de serviços públicos, pagam uma contrapartida pelo uso que fazem do património municipal.

53- O Município do Seixal aprovou ao abrigo da Constituição e da Lei, a que deve obediência, um Regulamento Municipal, no qual se prevêem taxas pela ocupação do espaço público do município, mas também as isenções e benefícios fiscais, ao abrigo da autonomia tributária que a Constituição e a Lei lhe reconhecem.

54- Por isso, a norma contida no art.º 4º do Decreto de 1940 não está em vigor por ser contrária à Constituição da República Portuguesa, mas também às Leis de valor reforçado que aprovaram o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, à Lei das Finanças Locais e ao Regulamento de ocupação do espaço público do Município do Seixal.

55- O art.º 4º do Decreto Lei 30:349, de 2 de Abril de 1940 encontra-se em contradição com o estatuto constitucional das autarquias locais, nomeadamente com o princípio da autonomia local. A autonomia local é um dos pilares fundamentais em que assenta a organização territorial da República Portuguesa, tal como resulta do artigo 6.º, n.º 1, da Constituição.

56- O artigo 235.º da Constituição estabelece que a «organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais», que são «pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas».

57- Esta norma constitucional garante e impõe a existência de autarquias locais em todo o país e «tem um sentido de garantia institucional, assegurando a existência de administração local autárquica autónoma. As autarquias locais são mais que «mera administração autónoma do Estado», uma vez que concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado.

58- As autarquias locais têm como objetivo constitucionalmente traçado a prossecução de interesses próprios das populações respetivas (artigo 235.º, n.º 2).

59- A garantia institucional da autonomia local, «na fórmula consagrada pelo Tribunal Constitucional federal alemão», é «uma garantia institucional de todas as atribuições enraizadas na comunidade local ou a ela especificamente referidas e que a mesma seja capaz de levar a cabo de forma autónoma e sob a sua responsabilidade própria»

60- O espaço incomprimível da autonomia é, pois, o dos assuntos próprios do círculo local, e "assuntos próprios do círculo local são apenas aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria e no mesmo sentido.

61- Mas isso não implica que as autarquias não possam ou não devam ser chamadas a uma atuação concorrente com a do Estado na realização daquelas tarefas.

62- A prossecução dos interesses próprios das populações locais pelas autarquias tem que ser conjugada com a prossecução do interesse nacional pelo Estado. De facto, como o Tribunal Constitucional já afirmou, «como as autarquias locais integram a administração autónoma, existe entre elas e o Estado uma pura relação de supraordenação-infraordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (os interesses nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia subordinação que fosse dirigida à realização de um único e mesmo interesse - o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais».

63- Quando «a autonomia municipal postula interesses próprios e quando se fala na concorrência da dimensão nacional com a dimensão local, isso não corresponde a uma sobreposição de atribuições. De outro modo, seria preterida a esfera de interesses próprios (artigo 235.º, n.º 2)».

64- Sendo certo que «as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei» (artigo 237.º, n.º 1, da Constituição), é nesse contexto que o legislador deve balancear a prossecução de interesses locais e do interesse nacional ou supralocal, gozando de uma vasta margem de autonomia.

65- No entanto, ao desempenhar essa tarefa, «o legislador não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem antes que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer os interesses próprios (privativos) das respetivas comunidades locais».

66- Assim, a autonomia do poder local vem sendo essencialmente concebida como uma garantia organizativa e de competências, reconhecendo-se as autarquias locais como uma estrutura do poder político democrático e com um círculo de interesses próprios que elas devem gerir sob a sua própria responsabilidade só podendo a restrição legal desses interesses ser feita com o fim da prossecução de um interesse geral, que ao legislador compete definir, não podendo, de todo o modo, ser atingido o núcleo essencial da garantia da administração autónoma.

67- É fundamental salientar que «nos âmbitos que considera abertos à concorrência do Estado e das autarquias vem ainda o Tribunal Constitucional entendendo [...] que são constitucionalmente legítimas compressões da autonomia local, não deixando, contudo, de fazer passar as medidas legislativas ou regulamentares em causa pelo crivo da adequação e da proporcionalidade»¹³

¹³ (ob. cit., pp. 656-657).

68- O condicionamento ou compressão da autonomia local (nomeadamente dos seus elementos) pode apenas decorrer da lei, quando um interesse público nacional ou supralocal o justificar, e sempre com a ressalva do seu núcleo incomprimível.

69- É neste contexto que deve ser entendida a autonomia local em termos de existência de «um património e receitas próprias obrigatoriamente provenientes da gestão do seu património» (artigo 238.º, n.º 3), Trata-se de um elemento da autonomia, constitucionalmente protegido, relacionado com o poder de auto-governação.

70- A garantia de um património e finanças próprias, não dependentes da administração do Estado é instrumental face à execução das atribuições das autarquias visando a prossecução dos interesses próprios das respetivas populações. Só dessa forma se garante o caráter autónomo da administração local, consagrado na Constituição.

71- Decorre, portanto, da garantia de autonomia local que as autarquias tenham receitas próprias provenientes da gestão do seu património, autónomas face ao Estado, receitas essas que fazem parte do conteúdo inderrogável das receitas municipais.

72- A autonomia local, nos seus vários elementos, só pode ser limitada por vinculações legais que o justifiquem, sob pena de não se poder falar em responsabilidade própria. A criação de uma isenção de uma receita proveniente da gestão do património local, em benefício de uma empresa privada, ainda que concessionária de um serviço público com reconhecida utilidade pública, sem que ao respectivo município seja assegurada qualquer compartida pelo uso do seu património, traduz uma restrição da autonomia do poder local, injustificada pelos interesses públicos em presença, violando, de modo frontal, o princípio da autonomia local previsto no artigo 6.º, n.º 1 concretizado no art.º 235º n.º 2 e art.º 238º n.ºs 1 e 3 da Constituição.

73- Sem dúvida que nesta matéria, militam interesses de âmbito nacional, todavia, a criação de uma isenção de taxas pelo uso de espaço público municipal tem de passar pelo crivo da adequação e proporcionalidade, o que efectivamente não sucedeu, pelo que a isenção sub judice é inconstitucional.

74- É sabido que em todos os demais casos de empresas concessionárias de serviços públicos foram legalmente criadas contrapartidas para compensar os municípios pelo uso do espaço público com as infra estruturas dessas mesmas empresas concessionária, no interesse dessas mesmas empresas e no interesse geral da comunidade.

75- Por isso, a conclusão é a de que uma medida legislativa como aquela que representa a criação de uma isenção fiscal, como aquela que previu no art.º 4º do Decreto-lei 30:349 de 2 de Abril de 1940, com clara implicação e relevância nos interesses locais, teria de passar pelo crivo legislativo da adequação e da proporcionalidade, o que manifestamente não sucedeu, já que o mesmo imporia a criação de uma compensação para o respectivo município, pela ocupação do seu espaço público, logo é inconstitucional.

76- Dito isto, deve, sempre s.m.o., ser declarado inconstitucional o art.º 4º do Decreto-lei n.º 30:349, de 2 de Abril de 1940, na interpretação segundo a qual está em vigor uma isenção de taxas pela ocupação do espaço público municipal, sem a consagração legal da respectiva compensação económica, a favor do município afectado, sob pena de violação do Princípio da Autonomia Local na sua vertente financeira, consubstanciada nos art.ºs 6º, 235º, 237º e 238º, n.ºs 1 e 3 da CRP, já que não foram devidamente sopesados os interesses em presença pela aplicação dos princípios da adequação e proporcionalidade que a Constituição impõe a Jurisprudência do Tribunal Constitucional consolidou.

77- Dito isto impor-se-ia que o Tribunal a quo considerasse inconstitucional o art.º 4º do Decreto-lei n.º 30:349, de 2 de Abril de 1940, na interpretação segundo a qual está em vigor uma isenção de taxas pela ocupação do espaço público municipal, sem a consagração legal da respectiva compensação económica, a favor do município, sob pena de violação do Princípio da Autonomia Local na sua vertente financeira, consubstanciada nos art.ºs 6º, 235º, 237º e 238, n.ºs 1 e 3 da CRP, já que não foram devidamente sopesados os interesses em presença, pela aplicação dos princípios da adequação e proporcionalidade que a Constituição impõe e a Jurisprudência do Tribunal Constitucional consolidou.

78- Aliás, a mais recente jurisprudência do Tribunal Constitucional nomeadamente, os doutos Acórdãos n.º 739/2021 e n.º 363/2021 dão eco do entendimento jurisprudencial segundo o qual existe um interesse público supramunicipal relevante que justifica, em determinadas circunstâncias, a atribuição de benefícios fiscais pela administração central, sem que se possa falar em violação do Princípio da Autonomia Local.

79- Conforme se deixou dito, o problema reside em saber que circunstâncias é possível comprimir o Princípio Constitucional da Autonomia Local e os doutos Acórdãos respondem claramente à questão de saber em que circunstâncias se considera não estar violado o Princípio da Autonomia Local, no sentido defendido pelo recorrente.

80- Nos citados Acórdãos, o Tribunal Constitucional esclarece que não se trata de conceder uma isenção, de tal forma que a EDP, S.A. faça um uso gratuito do domínio público municipal. A EDP, S.A. paga uma renda a cada município por esse mesmo uso e, é por isso, que é admissível que no D.L. 230/2008, de 27 de Novembro se tenha criado uma isenção das taxas municipais de ocupação de espaço público. O Tribunal Constitucional explica ainda que a criação da renda se justifica pelo facto de se tratar de um sector fortemente regulado (...) sujeito a apertado controlo de entidade administrativa independente (ERSE), tendo em vista assegurar interesses que em muito transcendem o plano Municipal. Justifica-se, por isso, que haja uma solução legislativa uniformizada, aplicável, tendencialmente a todo o território nacional, no âmbito da qual os Municípios são compensados pelo uso do seu espaço público através do pagamento de uma renda.

81- O D.L. 230/2008, de 27 de Novembro, procedeu também à revisão do valor das rendas pagas pela EDP, S.A. aos municípios, actualizando e, por consequência actualizando o valor das mesmas, já que aquele diploma pôs fim ao entendimento de que a EDP, S.A. pagava pelo uso do espaço público nos respectivos municípios.

82- Os Senhores Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional concluem, assim, o seguinte: (...) a circunstância de a isenção em causa ser indissociável da renda suportada, num inequívoco efeito de compensação. Trata-se de uma cumutação que impede que se perspective a isenção como imposição de uso gratuito – ela é onerosa, simplesmente na renda vai já incluída a parcela que, em outras hipóteses, corresponderia a taxas – e não perde a sua relevância face à sua repercussão sobre o consumidor final que é questão alheia à esfera de interesses do município, que não deixa de receber a renda devida.

83- O que vale por dizer, à contrario sensu, que o Tribunal Constitucional não aceita que seja imposto um uso gratuito do espaço público municipal.

84- Todavia, a recorrente pretende fazer uso gratuito do espaço público municipal ao pugnar pela isenção prevista no art.º 4º do Decreto- Lei 30349, de 2 de Abril de 1940.

85- É bom de ver que qualquer solução nesta matéria pressupõe uma compensação para os Municípios porque o uso é necessariamente oneroso.

86- Dito isto, a solução legislativa na qual não se contemplou uma compensação (renda ou outra) pelo uso do espaço público, que redunde num uso gratuito daquele espaço público, não é conforme à Constituição e às sucessivas Leis com Valor reforçado, nomeadamente as Leis das Finanças Locais e o regime geral das taxas das autarquias locais.

87- Se nesta matéria se justifica uma solução legislativa equivalente aquela que foi criada no citado D.L. 230/2008, de 27 de Novembro, que afastou as taxas locais de ocupação de espaço público e uniformizou o custo associado a esse mesmo uso, sob a forma de uma renda devida aos municípios, é uma tarefa e uma decisão que cabe ao legislador tomar, não aos Tribunais, a quem compete julgar.

88- No citado Aresto do Tribunal Constitucional pode ler-se o seguinte: O mesmo se diga mutatis mutandis, das violações da autonomia financeira das autarquias e da garantia de obtenção de receitas a partir do seu património, perante a prossecução de uma indiscutível finalidade pública, que transcende largamente o âmbito de atuação das autarquias locais, impondo-se a conclusão de que a norma não afeta o conteúdo o núcleo essencial da autonomia local, tanto mais que incide apenas sobre uma hipótese muito específica e claramente limitada da utilização dos bens evidentemente conexionada com o âmbito do exercício da concessão e o município não fica, sequer, absolutamente privado de receita nesse quadro referencial, visto que recebe uma renda pela parte da concessão em baixa tensão (...)

89- Entendimento jurisprudencial que, aliás o STA já havia perfilhado no mesmo sentido no douto Acórdão de 7/4/2021 no Processo 01956/13.9BEBRG quando aí se afirma: o legislador determinou de forma inequívoca através do decreto-lei 230/2008, de 27 de novembro que a utilização dos bens do domínio Público municipal por parte das concessionárias da atividade de distribuição de energia elétrica, com infraestruturas e outros equipamentos de alta média e baixa tensão é comutada pela renda anual paga nos termos do contrato de concessão de distribuição de energia elétrica em baixa tensão, com total isenção do pagamento de taxas pela utilização desses bens.

90- Por isso, se por auxílio de raciocínio, o Tribunal considerasse que a norma do art.º 4º do Decreto de 1940 está em vigor, reconheceria a primeira e única situação em que uma concessionária faria uso gratuito do espaço público municipal, ao arrepio daquele que é o entendimento do Tribunal Constitucional que, só admite que haja compressão ao Princípio do Autonomia Local, na sua vertente financeira, quando o é comutado pelo pagamento de uma renda ou qualquer outra compensação aos Municípios.

1.3. Contra-alegou a Recorrida tendo concluído: (i) que é inútil apreciar o recurso ora em apreço por, independentemente do mérito da decisão, um dos vícios apontados na sentença, julgado procedente e constituindo fundamento da decisão, não está impugnado nesta sede; (ii) que deve ser mantida a decisão recorrida, confirmando-se a ilegalidade do tributo de que foi alvo por violação do Decreto n.º 30.349, de 2 de Abril de 1940 e, subsidiariamente (iii) requer a ampliação do âmbito do recurso, tudo com os seguintes fundamentos:

«§ 1. Cumpre deixar claro que o recurso apresentado pelo Município do Seixal assume natureza meramente parcial, uma vez que, analisadas as respetivas conclusões, considerando que o recurso é limitado pelas mesmas — v. artigo 635.º do CPC — este não contempla a decisão contida na sentença que determina a anulação da liquidação em crise por vício procedimental de preterição indevida de audição prévia, prevista no artigo 60.º da LGT.

§ 2. A decisão quanto à anulação da liquidação por vício procedimental encontra-se assente e transitou em julgado, sendo que a Lei é clara no sentido de que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo — cfr. artigo 635.º, n.º 5, do CPC.

§ 3. Estando em causa a liquidação de uma taxa respeitante ao ano de 2006, na presente data, volvidos mais de 15 anos, já não será possível voltar a praticar o ato de liquidação anulado, expurgando-o do vício procedimental julgado verificado pela sentença a quo, na medida em que há muito se encontra esgotado o prazo de caducidade do direito à liquidação, de quatro anos, conforme dispõe o artigo 45.º, n.º 1, da LGT.

§ 4. Não tendo a Recorrente impugnado a sentença nesta parte, permitindo que se consolidasse na ordem jurídica a verificação de preterição de formalidade essencial com efeitos invalidantes da liquidação impugnada, sempre haverá que concluir pela inutilidade da apreciação do presente recurso, na medida em que a sentença recorrida transitou em julgado quanto à procedência daquele vício.

§ 5. Ainda que assim não se entenda, bem andou a sentença recorrida ao julgar verificado o vício de violação do Decreto n.º 30.349, de 2 de abril de 1940.

§ 6. Nem a Constituição da República Portuguesa, nem qualquer dos diplomas legais invocados nas alegações de recurso do Município do Seixal impõem conclusão diversa.

§ 7. O Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais e as sucessivas Leis das Finanças Locais não têm qualquer pretensão de conter uma regulação das isenções aplicáveis às taxas, pelo que, naturalmente, não se pode retirar dos mesmos qualquer conclusão sobre a vigência da isenção sob análise, datada de 1940.

§ 8. A autonomia financeira das autarquias locais, com a correspondente consagração constitucional do direito à arrecadação e disposição de receitas próprias, não pode prevalecer, sem mais e em termos plenos, em qualquer circunstância, o mesmo se diga, naturalmente quanto à previsão, reflexo daquela autonomia, nas ‘Leis das Finanças Locais’ da possibilidade de liquidar taxas pela ocupação e aproveitamento do domínio municipal.

§ 9. Em particular, como refere o Tribunal Constitucional, da autonomia financeira e da disposição de património próprio das autarquias locais não pode resultar: «uma garantia de todas e quaisquer posições patrimoniais contra a fixação, pelo Estado e na prossecução das suas incumbências próprias, do regime de utilização de bens como as vias públicas, tal como não pode resultar dessas garantias uma reserva de competência para todo o regime das taxas municipais. Ponto é que o conteúdo ou núcleo essencial da autonomia local não seja afectado» — cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 288/2004, de 27 de Abril de 2004.

§ 10. Concluindo o Tribunal Constitucional naquele aresto que o conteúdo ou núcleo da autonomia local são preservados face a isenção que apenas «afecta as autarquias na obtenção de receitas a partir de uma determinada utilização de certos objectos patrimoniais específicos: pela passagem de instalações […] pela via pública, mas “permanece em geral intocada a possibilidade de fruição económica do património da autarquia quanto a tudo o resto”, sem se afectar a “constituição financeira das autarquias”» — cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 288/2004, de 27 de abril de 2004.

§ 11. Ainda no aresto citado, o Tribunal Constitucional salienta que a isenção governamental que procura atender a interesses públicos constitucionais ultrapassa o âmbito das autarquias locais e, nesta medida, a dimensão da sua autonomia.

§ 12. Não só a isenção prevista no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de abril de 1940 não implica uma qualquer violação do princípio da autonomia local, não pondo em causa direitos consagrados na Constituição ou na Lei, como ainda esta isenção tutela interesses públicos constitucionais que transcendem mesmo o âmbito constitucional das autarquias locais.

§ 13. «A criação de condições para a existência de um [serviço público de transporte de electricidade] constitui uma forma e prossecução de objectivos com relevância constitucional» — cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 288/2004, de 27 de abril de 2004.

§ 14. Está, assim, em causa uma finalidade pública — assegurar a existência de um serviço público de transporte de electricidade, que assume clara relevância constitucional e que tem de ser prosseguido a nível nacional.

§ 15. Faz todo o sentido que o legislador pretenda isentar de determinados ónus uma entidade, como a ora Recorrida, que desempenha, de modo exclusivo, actividade de primordial importância para a colectividade nacional e que teria, na sua falta, de ser assumida pelo próprio Estado.

§ 16. A esta luz, a existência da isenção em causa ultrapassa a dimensão das autarquias locais e da sua autonomia, então, não pode, em caso algum, considerar-se revogada pela consagração constitucional posterior do mesmo princípio e muito menos pelo facto de as Leis que regulam as finanças locais permitirem, em geral, a liquidação de taxas pela ocupação e aproveitamento do domínio público.

§ 17. A isenção ora analisada mostra-se limitada a certo objecto patrimonial, pelo que, mantém-se em geral intocada a possibilidade de fruição económica do património do Município do Seixal quanto a tudo o resto, não se contendendo, como tal, com o conteúdo ou núcleo essencial do princípio da autonomia local ou do direito de liquidação de taxas dele decorrente.

§ 18. Vale assim dizer que a situação da Recorrida era, em 2006 (e é hoje), em tudo semelhante àquela da concessionária de serviço público de telecomunicações no período sobre o qual versou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 288/2004, de 27 de abril de 2004, não tendo no âmbito do transporte de energia eléctrica ocorrido quaisquer das mudanças que transformaram o sector das telecomunicações.

§ 19. Em suma, a isenção do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de abril de 1940 é materialmente conforme à Constituição da República Portuguesa e às Leis que, ao longo dos anos, têm regulado as Finanças Locais, com base no enquadramento constitucional acabado de formular.

§ 20. Pelo que, nesta parte deve a sentença recorrida manter-se inalterada, sendo negado provimento ao recurso do Município do Seixal e reconhecido que a liquidação em crise viola o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de abril de 1940, na medida em que desconsidera a sua aplicação.

§ 21. Decisão que foi, de resto, já tomada por este STA em Acórdão proferido em 28 de outubro de 2020, no âmbito do processo n.º 902/13.4BEALM, no âmbito do qual se Recorrente e Recorrida discutiram precisamente a mesma questão, com os mesmos contornos dos presentes Autos, com referência ao ano de 2012.

§ 22. Caso se entenda que o ato tributário em crise nos Autos não padece deste vício — por mera hipótese e sem conceder —, importa, subsidiariamente e à cautela, nos termos do artigo 636.º do CPC, aplicável ‘ex vi’ o disposto no artigo 281.º do CPPT, ampliar o âmbito do recurso interposto, como se requer, no sentido de ser reapreciado o vício de falta de fundamentação considerado improcedente pelo Tribunal a quo.

§ 23. O ofício de liquidação em crise é extremamente parco nos seus termos, limitando-se a invocar o «Regulamento de Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal» e a indicar o montante total da taxa apurada pelo Município.

§ 24. A notificação da liquidação impugnada contem elementos incongruentes no que respeita aos fundamentos de direito que, supostamente, possibilitariam a determinação do montante liquidado: a liquidação é fundamentada na aplicação do artigo 18.º do «Regulamento de Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal» à situação concreta das linhas da RNT, preceito que prevê as condições de licenciamento da instalação das ditas linhas, designadamente com referência às condições das quais depende a ocupação do espaço aéreo municipal pelas mesmas.

§ 25. As linhas de transporte exploradas pela Impugnante não são objeto de licenciamento municipal, considerando o regime especial previsto no Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de junho de 1936, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 446/76, de 5 de junho, e a ocupação do domínio público do Estado e dos Municípios é imediatamente permitida, quer seja nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 fevereiro, e restante legislação aplicável, quer seja ao abrigo do que ficou plasmado no Contrato de Concessão.

§ 26. Do pouco que se pode retirar da notificação da liquidação em apreço, em particular do documento em anexo àquela intitulado como «Medições» — cfr. doc. n.º 3 em anexo à p.i. — tendo em conta os documentos juntos aos Autos, cedo se constata que o Município do Seixal na determinação do espaço (alegadamente) ocupado pelas linhas áreas da RNT levou em linha de consideração não só o domínio público, mas também a propriedade privada.

§ 27. Ora, o Município não pode ignorar, por um lado, a inexistência de autorização legal para a cobrança de «taxas» pela ocupação de domínio que não lhe pertence e, por outro lado, que a Recorrida indemnizou, nos casos em que tal lhe era legalmente exigível, os particulares pelo atravessamento dos respetivos prédios localizados no Município do Seixal com linhas da RNT. Afinal o que pretende o Município tributar e a que título?

Não se percebe e o Município não explica.

§ 28. E mais, como vimos nos Factos, o Município do Seixal incluiu na liquidação em crise uma linha (LFFMTC) de que nem sequer se encontrava, em 2006, a ser explorada pela Recorrida… e se esta linha não era explorada pela Impugnante, então porque é que o Município do Seixal liquidou à Impugnante o tributo em crise?

§ 29. Mas não nos ficamos por aqui, o Município do Seixal, depois de ter fixado o espaço atravessado pelas linhas da RNT, procedeu à sua multiplicação por quatro, cinco, seis, sete ou oito, números esses que correspondem, segundo o Município, ao «número de partes».

§ 30. Todavia, quanto à razão daquela multiplicação o Município nada diz e nada esclarece na notificação da liquidação em apreço.

§ 31. Ademais, como se deu como provado no ponto 16 da matéria de Facto assente na sentença recorrida, as linhas da RNT, inclusive as localizadas no Município do Seixal, são sempre trifásicas, ou seja têm três cabos condutores e dois de guarda, i.e., um mínimo de cinco cabos, sendo que, as linhas duplas terão seis cabos condutores e dois de guarda, i.e., um mínimo de oito cabos…

§ 32. A esta luz, a Recorrida desconhece, porque o Município não esclarece, qual a razão para que este tenha optado por multiplicar a extensão (total, relembremos) das linhas da RNT no Município do Seixal (mesmo que não em espaço do município) por quatro, ou por seis ou por sete.

§ 33. Nesta matéria, o caso dos Autos é em tudo semelhante ao que foi julgado por este Tribunal no processo n.º 986/06.1BEALM, tendo naquele processo afirmado o Tribunal que: «não é possível aferir a forma como os serviços da Câmara Municipal efetuaram a medição, assim como não é possível perceber quais são as características das linhas de alta tensão, de forma a concluir, o que foi tido em consideração. Não se consegue apurar como foram determinados aqueles metros lineares e não outros quaisquer. Mais não se consegue entender se são considerados metros lineares tendo em consideração que cada cabo é constituído por várias linhas, nem apenas foi tido em causa o espaço área municipal ou foi incluído espaço aéreo estadual ou privado porque não se conhece com base em que elementos foram calculados os metros lineares tributados» — cfr. p. 29 da sentença (cit.).

§ 34. A fundamentação em falta seria imprescindível para que a Recorrida compreendesse o modo como o Município do Seixal quantificou o tributo liquidado, tanto que in casu não houve qualquer audição prévia à liquidação, e a Recorrida contestou o valor liquidado invocando ter ocorrido uma errónea quantificação do tributo.

§ 35. A fundamentação exigida por lei, ainda que sintética, tem que ser, forçosamente, completa e inteligível, nomeadamente contendo a indicação da forma como se determina o montante do tributo a liquidar.

§ 36. Carecendo a notificação da liquidação de fundamentação factual e de direito suficiente, o ato tributário que esta incorpora são igualmente infundamentados, pelo que violam o disposto nos artigos 268.º n.º 3 da CRP e 77.º da LGT, devendo ser anulados.

§ 37. Também o ato de indeferimento da reclamação impugnado carece de fundamentação, violando de modo crasso os aludidos artigos 268.º n.º 3 da CRP e 77.º da LGT, devendo aquele ser anulado.

§ 38. A fundamentação em falta é, como se constatou ao longo do processo, in totum inexistente e não apenas não comunicada.

§ 39. Se no caso concreto a Recorrida não conhece, porque o Município do Seixal não o explica, pelo menos de forma clara e perceptível, quais os pressupostos de facto e de direito da aplicação da taxa em causa e de que modo foi efectuado o cálculo da mesma, nomeadamente no que respeita ao espaço tido em concreto em consideração ou à razão da multiplicação por 6 que é feita depois de se ter apurado aquele espaço, não se pode concluir que à Recorrida seja possível apreender porque o Município actuou como actuou e não de outra maneira.

§ 40. Donde se constata que a liquidação do tributo em crise permanece — e mesmo quanto à incidência, aspecto nuclear da relação jurídico-tributária — obscuro para o respectivo destinatário (i.e., pela ora Recorrida), pelo que é positivamente incompreensível, inaceitável e ilegal que o mesmo Tribunal entenda que a liquidação se mostra legalmente fundamentada e que a Recorrida a apreendeu perfeitamente.

§ 41. Ao contrário do que parece entender o Tribunal a quo, o facto de a Recorrida ter reclamado da liquidação e ter apresentado a impugnação dos Autos não é, e não pode ser, suficiente para concluir que aquele acto se encontra devidamente fundamentado.

§ 42. Tanto mais que a Recorrida se viu forçada, para que aquela impugnação fosse possível, a proceder a uma série de presunções, recorrendo aos dotes de adivinhação que a relação com o Município do Seixal a tem levado a desenvolver e a ora Recorrida invocou não lhe ter sido possível apreender o itinerário cognoscitivo que terá levado o Município do Seixal a tomar as opções que tomou e a actuar como actuou no que tange à emissão da liquidação em apreço.

§ 43. Só a adequada e clara fundamentação do acto de liquidação em apreço teria permitido de modo completo perceber e compreender a razão de ser e a quantificação do tributo que foi liquidado à Recorrida e avaliar se o Município do Seixal também percebeu e compreendeu de forma correcta e avisada os critérios expressos no Regulamento Municipal a que acima se fez referência e no RGTAL.

§ 44. Ante o que fica acima plasmado, a liquidação impugnada carece de fundamentação factual e de direito suficiente e deve ser anulada, uma vez que viola o disposto nos artigos 268.º, n.º 3, da CRP e 77.º da LGT, e verifica-se ter ocorrido um vício grave do procedimento de liquidação do tributo em causa, procedimento este assente numa sucessão de actos dirigidos à declaração de direitos tributários — cfr. artigo 54.º n.º 1 da LGT.

§ 45. Posto isto, decorre do exposto que a sentença dos Autos decidiu erroneamente, violando na sua interpretação designadamente os artigos 77.º, n.º 1, da LGT e 268.º, n.º 3, Constituição, devendo ser revogada e substituída por decisão que considere verificado o vício de falta de fundamentação em apreço.

§ 46. Caso não seja imediatamente negado provimento ao presente recurso e não seja dado provimento à ampliação do objecto do recurso subsidiariamente solicitada, então devem os presentes Autos devem descer à primeira instância para que sejam fixados os restantes factos relevantes e apreciados os demais vícios, ou, pelo menos e no limite, devem as partes de ser notificadas, nos termos do artigo 665.º, n.º 3, do CPC, para se pronunciarem sobre os factos e o direito que não foram objecto de pronúncia pelo Tribunal a quo, sob pena de nulidade.

1.4. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo, após cuidadosa análise do quadro jurídico veio a emitir douto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, salientando, também, a jurisprudência emergente do acórdão desta Secção e Tribunal, exarada no processo n.º 730/13.7BELRA, de 18 de Novembro de 2020.

1.5. Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a questão da inutilidade de apreciação do recurso jurisdicional suscitada nas contra-alegações, apenas o recorrente o fez, sublinhando, em resumo nosso, que o seu recurso só versa sobre o vício material apreciado, o qual impede a renovação do acto e que, não sendo apreciado o fundamento do recurso invocado, pode repetir o acto e este ser de novo impugnado, o que trará consequências a evitar do ponto de vista da economia processual.

1.6. Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, submetem-se agora os autos à Conferência para julgamento.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é o teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), desta forma impedindo que voltem a ser reapreciadas por este Tribunal de recurso. Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. Atento quadro delimitador exposto e devidamente analisadas as conclusões e contra-alegações, as questões principais a dirimir são as seguintes:

- O presente recurso está votado ao insucesso por nele apenas ter sido impugnado um dos fundamentos aduzidos pelo Tribunal a quo para justificar a anulação, mais concretamente, por não constituir objecto de recurso o julgamento de procedência do vício de violação de audição prévia previsto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT)?

- Em caso negativo, deve a pretensão revogatória do Município do Seixal ser julgada procedente porque o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de Abril, já não estava em vigor na ordem jurídica na data em que o tributo foi exigido e porque, mesmo que estivesse em vigor, devia ter sido julgado inconstitucional por violação do princípio da Autonomia Local, na vertente ou dimensão financeira, prevista nos artigos 6.º, 235.º e 238.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP)?

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

3.1.1. Na sentença recorrida foi declarada provada a seguinte factualidade:

1. A Impugnante tem como actividade o transporte de electricidade, é concessionária em regime de serviço público da Rede Nacional de Transporte de Electricidade (RNT) (cf. contrato de concessão a fls. 33 a fls. 89 dos autos).

2. Em 6/9/2000, foi celebrado entre a Impugnante e o Estado Português o “CONTRATO DE CONCESSÃO” que abrange todo o território do continente, constante de fls. 126 a fls. 150 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo se dá por reproduzido.

3. Em 25/8/2003, foi publicado em Diário da República, 2.ªSérie – N.º 197, o Regulamento Municipal sobre Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido (cf. Regulamento constante a fls. 268 a fls. 343 dos autos).

4. Em 3/5/2003, foi publicado em Diário da República, 2.ªSérie – n.º 103, um aditamento à “Tabela de taxas” do Regulamento Municipal sobre Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido (cf. aditamento ao Regulamento constante a fls. 344 dos autos).

5. Em 13/4/2005, foi publicada em Diário da República, 2.ªSérie – n.º 72, a alteração do Regulamento Municipal sobre Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido (cf. Regulamento constante a fls. 268 a fls. 343 dos autos).

6. Em 15/12/2005, a Câmara Municipal do Seixal aprovou a actualização ao Regulamento Municipal de Ocupação do Espaço Público, edital n.º 285/2005, no qual foi fixada, para 2006, a taxa de ocupação do espaço público em EUR 1,50, por metro²/linear ou fracção (cf. Edital constante de fls. 372 dos autos).

7. A Impugnante negociou a constituição de servidões sobre alguns imóveis de particulares sitos no concelho do Seixal e pagou indemnizações pela ocupação do espaço necessário à colocação das linhas da Rede Nacional de Transporte de Eletricidade (Cf. doc. constantes de fls. 173 a fls. 267 dos autos, depoimento da testemunha A…….. e B…………).

8. Em 3/12/2007, o Eng.º ………., da Direção Geral de Energia e Geologia remeteu o seguinte telefax à Impugnante:

“(…)

Assunto: Licença Provisória de Exploração

Nos termos da n°. 7 do art°. 43° do Regulamento de Licenças para Instalações Eléctricas, aprovado pelo Decreto-Lei n° 26852, de 30 de Julho de 1936, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n° 446/76, de 5 de Junho, venho comunicar que foi concedida licença provisória de exploração para:

Troço final da linha aérea a ISO kV, Fernão Ferro - Trafaria 1, constituída por dois circuitos em apoios comuns, do apoio n°36 à subestação da Trafaria, na extensão de 836m, sendo desfeita a ligação em “T” existente, no apoio referido da linha aérea 2160/47, Piedade - EPAL, ficando constituída a linha aérea a ISO kV, Fernão Ferro - Trafaria 1, na extensão de 13 558 m.

Esta licença é dada com a condição implícita do cumprimento integral das disposições regulamentares. de segurança aplicáveis e em vigor, com especial relevo para a matéria relativa à segurança das pessoas.

Mais se informa que, esta licença produz efeitos a partir de 3 de Dezembro de 2007, sendo a respectiva vistoria efectuada em data a comunicar oportunamente.

(…)”

9. Em 19/10/2007, o Departamento de Saneamento e Infraestruturas e Transportes da Câmara Municipal do Seixal enviou à Impugnante, via faxe o ofício constante de fls. 7 do Processo Administrativo Tributário (de ora em diante designado abreviadamente de PAT) no qual solicita: «o cadastro das vossas infraestruras no Concelho do Seixal em suporte digital».

10. Em 11/11/2010, a Impugnante recepcionou o aviso de recepção que acompanhou o envio postal registado do ofício emitido pela Câmara Municipal do seixal, constante de fls. 30 e 31 do PAT, cujo conteúdo se dá por reproduzido, com o assunto “Ocupação do espaço público com tubos, cabos condutores e outros similares – Ano 2006» do qual consta o seguinte:

“(…)

Nos termos da alínea e) do n° 2, do art°53°, da Lei n° 169/99, de 18 de Setembro, com a redacção actualizada pela Lei n° 5-A/2002, de 11 de Janeiro, e de acordo com art°18° do Regulamento de Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal, publicado no Diário da República n° 72, de 13 de Abril de 2005, Apêndice n° 49, II Série, e de acordo com o Edital n° 285/2005, de 16 de Dezembro de 2005, venho comunicar a V. Exa. que, até ao próximo dia 25 de Novembro de 2010, deve proceder ao pagamento da taxa referente ao ano de 2006, no valor de 287.139,00 € (Duzentos e oitenta e sete mil, cento e trinta e nove euros, zero cêntimos) da utilização do espaço aéreo, por cabos condutores e similares, de acordo com as medições efectuadas pelos serviços municipais e com base no cadastro de 2004.

Se existir alguma divergência nas medições efectuadas, devem V. Exas. enviarem-nos as medições exactas, e pronunciar-se até ao dia 15 de Novembro de 2010, para dizer o que tiver por conveniente.

Para efectuar o pagamento deve dirigir-se ao BUA (Balcão Único de Atendimento) dos Serviços Centrais do Município do Seixal, sito em Alameda dos Bombeiros Voluntários, n° 45, Seixal, 2844- 001, Seixal, para levantar a respetiva Guia de Pagamento ou enviar por via postal através de remessa de cheque à ordem do Município do Seixal.

(…)”

11. Em 2/12/2010, o Município do Seixal emitiu a “Certidão de Divida” n.º 035800/2010, constante de fls. 49 do PAT, cujo conteúdo se dá por reproduzido, da qual consta o seguinte:

“(…)

Certifico que REN - Rede Elétrica Nacional, SA., contribuinte fiscal n.º 507 866 673, com domicílio/sede em Avenida dos Estados Unidos da América, n° 55, Lisboa, 1749- 061 Lisboa é devedor ao Município do Seixal, da importância de 287.139,00 (Duzentos e oitenta e sete mil, cento e trinta e nove euros, zero cêntimos), proveniente de utilização do espaço aéreo com cabos condutores e similares, referente ao ano 2006.

O Prazo de pagamento voluntário terminou em 2010/11/25.

Ao valor da dívida acrescem juros de mora, porque não foi cumprido o prazo de pagamento voluntário.

A presente certidão é extraída nos termos e para os efeitos do artigo 163° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, a qual vai por mim, Coordenador Técnico, assinada.

(…)”

12. Em 26/11/2010, a Impugnante enviou ao Município do Seixal o requerimento constante fls. 50 do PAT, cujo conteúdo se dá por reproduzido, no qual manifesta a intenção de apresentar meio gracioso para discussão da legalidade e exigibilidade da divida exequenda e requerer a indicação do valor da garantia bancária a prestar, para a suspensão do processo de execução fiscal decorrente do não pagamento da liquidação da taxa para o ano de 2006, identificada no ponto 10 que antecede.

13. Em 23/11/2010, o Município do Seixal enviou à impugnante o ofício constante de fls. 55 do PAT, cujo conteúdo se dá por reproduzido, do qual consta o seguinte:

“(…)

a) Recebemos o V/Ofício, sem número, datado de 23-11-2010 e de acordo com o solicitado, anexa-se os duplicados devidamente registados, referentes à cobrança das taxas dos anos de 2006, 2007, 2008 e 2009 de ocupação do espaço público com cabos condutores e similares.

b) Nos termos e para os efeitos do disposto no art°. 169° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, fica V. Exa. notificada, na qualidade de mandatária da REN REDE ELÉCTRICA NACIONAL, S.A., executada no processo de execução fiscal acima identificado, para no prazo de 30 dias, a contar da notificação, e em face da intenção de apresentação de meio gracioso contra a liquidação da taxa de ocupação de espaço aéreo com cabos condutores e similares referente aos anos de 2006, 2007, 2008 e 2009, apresentar garantia, no montante de € 615.589,20 (seiscentos e quinze mil quinhentos e oitenta e nove euros e vinte cêntimos), a prestar por qualquer dos meios previstos no art°. 199.

(…)”

14. Em 30/11/2010, a Impugnante enviou ao Município do Seixal a reclamação graciosa da liquidação da taxa de ocupação de espaço aéreo com cabos condutores e similares referente aos anos de 2006, constante de fls.57 a fls. 63 do PAT, cujo conteúdo se dá por reproduzido.

15. Em 2/3/2011, a Impugnante recepcionou o aviso de recepção que acompanhou o envio postal registado do ofício n.º 8196, emitido pelo Município do Seixal, com o assunto «Reclamação da liquidação relativa à ocupação do espaço público do Município do Seixal, com tubos, condutas, cabos condutores e similares referente ao ano de 2006» constante de fls. 78 e 79 do PAT, cujo conteúdo se dá por reproduzido, do qual consta o seguinte:

“(…)

Face à reclamação apresentada informamos que não assiste razão, pelo que consideramos indeferidas com os seguintes fundamentos:

a) A contrapartida das taxas liquidadas é a utilização do domínio público municipal. Na utilização de um bem do domínio público não há um serviço, mas um acto de utilização que dá origem à obrigação de pagar a taxa, nos termos do Regulamento de Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal, publicado no DR n° 72, II Série, Apêndice n° 49, Suplemento de 13/04/2005, com as alterações do Regulamento 479/2010, publicado no DR 99, II Série de 21 de maio de 2010.

b) O aludido Decreto-Lei n° 30.349, de 2 de Abril de 1940, sob pena de inconstitucionalidade orgânica e material, não prevê uma isenção fiscal, por se tratar de matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (cft. art° 165° n° 1 al. i) e q) da Constituição da República Portuguesa). O Decreto Lei n° 30.349, de 2 de Abril de 1940 foi aprovado no âmbito da Constituição de 1933, época em que não se reconhecia a existência de um domínio público municipal (cfr. art°s 49°, 50° e 51° da Constituição de 1933), devendo por isso, considerar-se revogadas as regras incompatíveis com a actual versão da Constituição da República Portuguesa (que, após a revisão constitucional de 1989 previu expressamente a existência e um domínio público municipal).

c) além disso, vem V. Exa. Reclamar que houve um erro de quantificação da taxa em causa. O cálculo dos metros lineares de cabos instalados foi feito, tendo por base o cadastro fornecido pela reclamante no ano 2004, já que, apesar de V. Exa., ter sido notificado não apresentou o cadastro no ano 2006, conforme documento que anexo.

(…)”

16. Cada linha de transporte da RNTE é formada, no mínimo, por três cabos condutores e dois de segurança, sendo a faixa de protecção da linha de 22,5 metros para cada lado independentemente do número de cabos condutores (Cf. depoimento das testemunhas ………..).

17. Existem linhas de transporte de energia eléctrica no Município do Seixal incluídas na RNTE que incidem sobre parcelas de propriedade pertencentes a particulares (Cf. depoimento da testemunha A…….. e B……..).

3.2. No mesmo julgamento ficou exarado, a título de “Factos não provados”

A. O Município do Seixal tem custos acrescidos decorrentes da criação e manutenção de sistemas de gestão de informações susceptíveis de inventariar o património instalado pela Impugnante no espaço aéreo. (Não foi realizada prova demonstrativa)

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. Como se constata da leitura das alegações e conclusões do presente recurso, pretende a Recorrente, no essencial, que este Supremo Tribunal Administrativo decida se a REN – REDE ELÉCTRICA NACIONAL, SA., está ou não isenta do pagamento de taxas municipais pela ocupação do espaço aéreo municipal com as linhas de transporte de energia eléctrica, da sua responsabilidade.

3.2.2. Para o Município do Seixal a resposta a essa questão tem, forçosamente, que ser negativa, e daí o pedido de revogação da sentença. Alega, por um lado, alega, que a norma que consagra a isenção da taxa em questão, que o Tribunal a quo aplicou e em que fundou a anulação do acto tributário, já não está em vigor; por outro, porque mesmo que essa isenção ou norma estivesse em vigor nunca podia ou devia ser aplicada por violar o princípio da autonomia do poder local (inconstitucionalidade) e por violar as regras do direito europeu.

3.2.3.Sendo, indiscutivelmente, esta a única questão e argumentos invocados pelo Recorrente – como reconhece na pronúncia que exerceu acerca da questão da inutilidade de apreciação do mérito do recurso – a primeira questão que, todavia, nos cumpre decidir, a título prévio, é a de saber se este Supremo Tribunal Administrativo deve ou não este conhecer do objecto do presente recurso jurisdicional.

3.2.4. Avançamos desde já que não deve. Efectivamente, conforme resulta da leitura da sentença recorrida, o Tribunal a quo, após elaborar um sucinto relatório, identificou todos os vícios de cuja procedência resultaria, isoladamente, a anulação do acto tributário impugnado (“I) Vício de forma por incongruente e contraditória fundamentação dos atos de liquidação e de indeferimento da reclamação; II) Violação de formalidades legais essenciais: da ausência de audição prévia à liquidação; III) Vício de violação de lei por violação do art.° 4.° do Decreto-Lei n.° 30.349, de 2 de abril de 1940; IV) Vício de violação de lei constitucional por violação das regras da hierarquia e da preeminência dos atos legislativos; V) Inexistência de uma utilização individualizável no transporte de eletricidade e da inexistência de contraprestação do Município; VI) Violação do edital n.° 014/2013 e da ilegal aplicação retroativa da taxa; e VII) Violação dos princípios da equivalência e da proporcionalidade na determinação do valor do tributo” fls. 11 da sentença, com negrito de nossa autoria).

3.2.5. Para o que ora nos importa, decidiu-se na sentença recorrida o seguinte:

«A Impugnante invoca ainda a omissão de audição prévia à liquidação.

Sustenta a impugnante a este propósito que por um lado, nunca foi ouvida anteriormente à liquidação, quando se perfilha evidente a necessidade de exercer o seu direito à audição e por outro, a notificação, simultânea com a liquidação, para que procedesse ao envio das medições exatas em caso de divergência com as realizadas, não é legalmente passível de ser considerada como a concessão do direito de audição prévia à liquidação porque é contemporânea da mesma e porque não é respeitado o prazo para a audição previsto no art. 60.°, n.° 6 da Lei Geral Tributária.

Impunha-se à entidade ora impugnada o cumprimento do artigo 5.° do Código de Processo e Procedimento Tributário que concretiza o princípio do contraditório e do artigo 60.° da LGT, ou seja, a audição dos contribuintes antes de um acto tributário, quando o mesmo não se baseia nas declarações do próprio contribuinte.

Por sua vez, o Município do Seixal alega não ter havido lugar a audição prévia por a liquidação em apreço decorrer da declaração do contribuinte, ainda que realizada no ano de 2004, nos termos do disposto no art. 60.°, n.° 2 da LGT, alega ainda que a impugnante não apresentou cadastro atualizado das respetivas instalações como lhe competia nos termos do art. 18.° do Regulamento de Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal, e que ao pretender agora prevalecer-se dessa falta, constitui um claro abuso de direito. Referindo ainda que, de qualquer modo, a impugnante não teria possibilidade de apresentar elementos novos e que se pronunciou, na reclamação graciosa, sobre todas as questões que haveria de suscitar em audiência prévia, devendo, pois, a liquidação ser aproveitada.

Segundo o art. 18.°, n.° 5 do Regulamento de Ocupação do Espaço Público do Município do Seixal, referente às condições gerais de licenciamento da ocupação do domínio público com tubos e cabos condutores ou similares:

“5. Até 31 de janeiro de cada ano civil, os detentores das instalações previstas nesta secção devem apresentar à Câmara Municipal cadastro atualizado, em suporte informático compatível, para fins de contabilização do espaço ocupado e respetiva cobrança das taxas de ocupação previstas neste Regulamento”.

O Município do Seixal alega que, sendo a liquidação legalmente realizada com base na declaração do contribuinte por força da aplicação deste preceito, estaria dispensada a audição prévia à liquidação nos termos do disposto no art. 60.°, n.° 2 da Lei Geral Tributária.

Contudo, esta declaração do contribuinte não ocorreu como consta desde logo do "mapa resumo” que foi enviado à impugnante juntamente com a liquidação, onde se lê em nota aposta em tal mapa: “O cadastro de 2006 foi solicitado, mas não foi entregue até à presente data”.

A dispensa da audiência prévia quando a liquidação oficiosa é realizada com base em valores objetivos previstos na lei, atentos os demais pressupostos previstos no artigo 60°, n° 2, al. b) da LGT, funda-se na ideia de que, nestes casos, a participação possível do contribuinte é desnecessária e que, por isso, convidar o contribuinte a pronunciar-se sobre tais elementos, redundaria num acto inútil.

No presente caso, os dados não podem ser tidos como "objetivos” na aceção de que são invariáveis. Com efeito, se correspondessem a elementos invariáveis sendo inútil a participação do contribuinte a respeito dos mesmos, como refere a ilustre Procuradora junto deste Tribunal, se assim fosse, a lei não imporia a atualização anual do cadastro a ele referentes como sucede no citado art. 18.°, n.° 5 do Regulamento do Município do Seixal e não teria o Município do Seixal sentido a necessidade de na notificação da liquidação que efetuou, colocar a possibilidade de inexatidão das medições, notificando a impugnante para se pronunciar acerca das mesmas.

Consequentemente, não se verificando as situações de dispensa da audição prévia legalmente previstas, impunha-se tal audição. Não podendo ter-se por respeitado tal direito na notificação para pronúncia sobre as medições contemporânea à notificação da liquidação, na qual foi concedido um prazo de cinco dias. Quando o prazo legal para audição, em consonância com o n.° 6 do art. 60.° da Lei Geral Tributária na redação aplicável, não podia ser inferior a 8 dias e deveria ser prévio à emissão do ato de liquidação.

É, pois, de concluir ter sido preterida a notificação para o exercício do direito de audição, vício procedimental invalidante do ato impugnado, no qual a entidade impugnada incorreu no ato de liquidação e no procedimento gracioso de reclamação graciosa.

Acresce que a Impugnante suscita, a violação do art.° 4.° do Decreto-Lei n.° 30.349, de 2 de abril de 1940.

Este diploma começa por estipular que o licenciamento das linhas de energia eléctrica de alta tensão abrangidas pelo artigo 1.° do regulamento aprovado pelo Decreto Lei n.° 26.852, de 30 de julho de 1936, será feito exclusivamente pela Repartição dos Serviços Elétricos.

No que concerne especificamente à matéria em discussão nos presentes autos, o art.° 4.° dispõe o seguinte: "As linhas aéreas, linhas subterrâneas, baixadas e postes para transporte e distribuição de energia eléctrica ficam isentos do pagamento de taxas, rendas ou quaisquer emolumentos pela ocupação de domínios públicos ou municipais”. Resulta claro que esta norma isenta expressamente a Impugnante do pagamento de taxas pela ocupação de "domínios públicos ou municipais”, no qual se inclui, necessariamente, a taxa em apreciação.

A questão que se coloca é saber se essa norma ainda está em vigor, como afirma a Impugnante. Ou, como defende o Município, se se encontra revogada pela Constituição da República Portuguesa de 1976 ou, em alternativa, carece de ser interpretada em conformidade com o princípio constitucional da autonomia local.

A conformidade com a Constituição de isenção de natureza equivalente à aqui em apreço já foi conhecida e decidida por unanimidade pelo Tribunal Constitucional, no caso dos serviços de telecomunicações no acórdão n.° 288/2004 do Plenário do Tribunal Constitucional de 27-04-2004, proc. n.° 803/2003, no qual se decidiu, por unanimidade, não julgar inconstitucional a norma do artigo 29°, alínea e), do Decreto Lei n.° 40/95, de 15 de fevereiro.

A motivação aplicada pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.° 288/2004, aplica-se, por igualdade de razões, à Impugnante, atenta a sua qualidade de concessionária, em regime de serviço público, da construção e exploração da Rede Nacional de Transporte de Eletricidade.

A criação de condições para a existência de um serviço público de distribuição de eletricidade constitui um modo de prosseguir objetivos com relevância constitucional, faz todo o sentido que o legislador pretenda isentar de determinados ónus as entidades que desempenham, ainda que em regime de concessão, uma atividade de primordial importância para a coletividade e que teria, na sua falta, de ser assumida pelo próprio Estado.

De facto, a finalidade de utilidade pública prosseguida pela Impugnante não se encontra, seguramente, diminuída face àquela prestada pela concessionária do serviço público de telecomunicações. Razão pela qual, afigura-se que o Tribunal Constitucional, com base na argumentação citada, se pronunciaria pela conformidade do art.° 4.° do Decreto-Lei n.° 30.349, de 2 de abril de 1940, com o regime jurídico da Constituição de 1976, designadamente aquele em vigor no ano de 2006.

Na realidade, como decidido no aresto citado, a proclamação constitucional do princípio da autonomia local e a expressa referência à existência de um domínio público municipal não obstam a que a concessionária da RNTE fique legalmente isenta de pagamento de taxas pela ocupação do domínio público municipal.

A existência da norma de isenção em apreço continua, portanto, a ser uma opção legítima do legislador ordinário. Não tendo sido expressamente revogado o art.° 4.° do Decreto-Lei n.° 30.349, tal isenção de tributação aplicável à atividade concessionada da Impugnante mantém-se válida e eficazmente no ordenamento jurídico.

Consequentemente, o art.° 18.° do Regulamento municipal carece de ser interpretado em conjugação com eventuais isenções legais de tributação aplicáveis, como seja a analisada nos presentes autos.

Nestes termos, o ato de liquidação impugnado, assim como o indeferimento da reclamação apresentada, violam a norma de isenção de tributação prevista no art.° 4.° do Decreto-Lei n.° 30.349, de 2 de abril de 1940, sendo, portanto, inválidos.

De acordo com o disposto no n.° 2 do art.° 608.° do CPC, aplicável por via da al. e) do art.° 2.° do CPPT, a procedência do vício material assinalado prejudica claramente o conhecimento dos demais vícios materiais alegados pela Impugnante. Na realidade, estando a Impugnante legalmente isenta do pagamento da taxa municipal em apreço, não pode o Município vir renovar o ato, nem se coloca a questão do erro no cálculo do tributo ou da violação dos princípios da equivalência e da proporcionalidade no apuramento do montante liquidado.

Pelo exposto, julga-se totalmente procedente a presente impugnação judicial.» (negrito igualmente nosso).

3.2.6. Em suma, ressalta claramente da sentença que a anulação do acto de liquidação se estribou, primeiramente, no julgamento de procedência do vício formal de violação de audição prévia e, ainda, cumulativamente, no julgamento do vício material de violação do artigo 4.º do decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de Abril de 1940. E resulta das conclusões de recurso que o julgamento de procedência do vício de audição prévia, susceptível, per se, de sustentar a anulação da liquidação, não foi atacado pelo Recorrente.

3.2.7. De acordo com o disposto no artigo 635.º n.ºs 3 e 4 do CPC, pode o Recorrente, expressa ou tacitamente, conformar-se com parte das decisões de mérito proferidas, desta forma impedindo que voltem a ser reapreciadas pelo Tribunal de recurso. Significa, pois, que as conclusões das alegações são decisivas para delimitar o âmbito do recurso, sendo que, como também resulta imposto pelo n.º 5 do mesmo preceito e diploma legal, se na sentença recorrida tiverem sido apreciadas questões jurídicas distintas e não sendo impugnado o julgamento sobre alguma delas, a decisão, nessa parte, transita em julgado e os efeitos do julgado não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.

3.2.8. Ou seja, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar definitivamente decididas e arrumadas não podendo delas conhecer-se em recurso (neste sentido, de resto, vide, entre outros, o nosso acórdão de 13-11-2013, proferido o processo n.º 1020/13, apoiado na doutrina e jurisprudência aí citadas, designadamente, José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol 3, pág. 33 e C. Abílio Neto, Código de Processo Civil anotado, 16ª edição, página 968, integralmente isponivel em www.dgsi.pt).

3.2.9. Em conclusão: no caso em apreço, para impugnar eficazmente em recurso jurisdicional a decisão em que se entendeu que estava verificado o vício de violação de audição prévia, o Recorrente tinha de ter atacado a decisão recorrida quanto a este fundamento, que por si só justifica a decisão que julgou procedente a Impugnação Judicial e anulou a liquidação. Não o tendo feito, não pode agora este Tribunal de recurso alterar aquela decisão quanto ao nela decidido sobre tal matéria, o que significa que, independentemente de se vir a concluir que o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de Abril não estava em vigor, ou mesmo que tal normativo é inconstitucional, em nada fica afectado o julgamento do vício de violação de audição prévia que na mesma sentença foi julgado verificado.

3.2.10. Pelo que, transitada em julgado, por carência de impugnação, este segmento da decisão recorrida, fica impossibilitada a alteração do decidido nesta via de recurso, não resultando qualquer efeito útil no conhecimento dos fundamentos do recurso invocados pelo Recorrente, pois, mesmo que se lhe reconhecesse razão na sua totalidade - o que não seria o caso, uma vez que em situações de facto e de direito exactamente idênticas e em que é parte o ora Recorrente, Município do Seixal, que dessas decisões foi directo destinatário e, consequentemente, conhece bem, já este Supremo Tribunal Administrativo, por mais de uma vez, firmou o entendimento de que o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 30.349, de 2 de Abril estava em vigor e que essa vigência ou manutenção na ordem jurídica não violava o princípio constitucional da Autonomia Local, incluindo na vertente financeira, nem o Direito da União Europeia, como pode ler-se, particularmente, no acórdão proferido no processo n.º 730/13.7BELRA, de 18-11-2020 – permaneceria intacta na ordem jurídica a anulação da liquidação por violação do artigo 60.º da LGT.

3.2.11. Donde, tendo em consideração o preceituado no artigo 137.º do CPC, isto é, que não é permitido aos Tribunais praticar nos processos actos inúteis, há que decidir sem mais que o presente recurso terá necessariamente de improceder.

3.2.12. As custas serão suportadas pelo Município do Seixal, ora Recorrente, por ter ficado integralmente vencido (artigo 627.º do CPC, aplicável ex vi artigo 280.º do CPPT).

IV – DECISÃO

Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, negar provimento ao presente recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 13 de Julho de 2022. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – José Gomes Correia – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.