Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02224/16.0BEBRG
Data do Acordão:05/03/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IVA
ISENÇÃO
ACTIVIDADE SEM FIM LUCRATIVO
ASSOCIAÇÃO
FEIRA
Sumário:Não beneficiam da isenção a que aludem os n.ºs 19 e 20 do artigo 9.º do Código do IVA as operações realizadas por uma associação no âmbito de festas concelhias que lhe compete promover e organizar se essas operações são realizadas no interesse dos participantes (não associados) ou do público em geral e não têm como contraprestação as quotas dos associados.
Nº Convencional:JSTA00071719
Nº do Documento:SA22023050302224/16
Data de Entrada:10/20/2021
Recorrente:ASSOCIAÇÃO CONCELHIA ...
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. ASSOCIAÇÃO CONCELHIA ..., com o número de identificação fiscal e de pessoa coletiva ... e com sede indicada na Praça ..., ... Ponte de Lima, recorreu da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa dos atos tributários de liquidação adicional de imposto sobre o valor acrescentado e juros compensatórios que identifica, referentes aos períodos de tributação de 2008 a 2010, no valor global de € 151.177,49.

Com a interposição do recurso apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões: «(...)

1. Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida no processo n.º 2227/16.0BEBRG, U.O. 3, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que julgou totalmente improcedente o pedido formulado pela Alegante que aí pugnava pela anulação dos actos de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios referentes aos períodos de tributação de 2008, 2009 e 2010 no valor global de 151.177,49 Euros.

2. Nos presentes autos, discute-se essencialmente duas questões, que por consequência definem a estrutura das presentes alegações:

a) Saber se as actividades in casu desenvolvidas pela Alegante estão isentas de IVA ao abrigo do disposto no n.º 20 do artigo 9.º do Código do IVA, dado estarem em causa transmissões de bens e serviços efectuadas por uma entidade cuja actividade habitual se encontra isenta ao abrigo do n.º 19º do artigo 9.º do Código do IVA.

b) Saber ainda se o despacho Normativo n.º 118/85 e mais concretamente o seu número 4 invocado pela Autoridade Tributária e Aduaneira como fundamento das liquidações adicionais sub judice é inconstitucional por estabelecer limites ao âmbito da aplicação da isenção consagradas no n.º 20 do artigo 9.º do Código do IVA, em violação do princípio da reserva de lei.

3. Como demonstraremos, uma correcta ponderação da factualidade vertida nos autos evidencia uma conclusão distinta daquela a que chegou o Tribunal a quo pelo que se demonstrará, ao longo destas alegações a patente ilegalidade no raciocínio do Mmo. Juiz a quo que incorreu num claro erro de direito.

4. Assim, e pelas razões que infra se alinharão, deverá ser alterada a Sentença em crise e substituída por outra que determine a procedência total da presente impugnação judicial dos actos de liquidação de juros compensatórios.

SENÃO VEJAMOS,

POR UM LADO

5. cumpre salientar que o normativo legal in casu [n.º 19 do artigo 9° do Código do IVA] procede, em traços gerais, da transposição para o ordenamento jurídico nacional da alínea 1) do n.º 1 do artigo 132° da Directiva do IVA.

6. As regras supra têm a sua génese nos artigos 132.º e 133.º, da Directiva IVA, relativos às isenções em benefício de certas atividades de interesse económico geral e como tal devem ser lidas e interpretadas em harmonização com estes.

7. Isto posto, importa salientar que não se pode confundir a classificação civilística da Requerente enquanto associação sem fins lucrativos, da classificação autónoma e para efeitos de IVA da Requerente enquanto “organismo sem fins lucrativos”.

8. De facto, o conceito “organismo sem fins lucrativos” é um conceito autónomo do sistema do IVA e, como tal, deve ser interpretado de forma harmonizada, dentro da sistemática deste imposto.

9. Resulta da jurisprudência do TJUE que a referida norma de isenção se pretende apenas aplicar a organismos que, diferentemente de uma empresa comercial, não têm por objectivo gerar lucros para os seus membros.

10. Da aplicação dos critérios estabelecidos pela jurisprudência comunitária ao caso concreto, facilmente podemos concluir que a Alegante logrou passar o crivo das condições que se devem verificar para beneficiar de isenção de IVA nos termos do artigo 9.º n.º 19 do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado

CONCRETIZANDO,

11. De acordo com a sentença a quo se nem a AT nem o próprio Tribunal a quo questionam a qualificação da Recorrente enquanto entidade sem fins lucrativos, vejamos então o respectivo enquadramento nas restantes condições de forma a aferir se a mesma beneficia da isenção de IVA nos termos exposto.

12. Quanto à condição de os serviços serem prestados no interesse colectivo dos associados, tem sido entendimento da doutrina que "a condição de que os serviços sejam prestados no interesse colectivo dos associados remete para categorias de prestações de serviços que assegurem a prossecução das finalidades dos organismos, ponderadas as circunstâncias que levaram à criação e os motivos que, em termos médios e objectivamente considerados, levou o conjunto dos destinatários dos serviços a associar-se ou a tomar‐se membro de um dado organismo" (cf. Laires, Rui in Isenções do IVA nas Actividades Culturais, Educativas Recreativas desportivas e de Assistência Médica e Social, IDEFF, pag. 330).

13. De acordo com os estatutos a Câmara Municipal de Ponte de Lima e a Associação Empresarial e Comercial de Ponte de Lima constituíram a associação ora Recorrente com vista à "organização e promoção de festas e outros eventos culturais e recreativos, nomeadamente na organização e realização das festas concelhias, tradicionalmente denominadas " ..."”.

14. Por outras palavras, a associação ora Recorrente tem como objectivo último a organização das festas concelhias com vista à dinamização do comércio e turismo do concelho de Ponte de Lima com vista ao beneficio colectivo dos seus associados – a Câmara Municipal de Ponte de Lima e os seus munícipes e a Associação Empresarial e Comercial de Ponte de Lima e os comerciantes e os industriais seus associados.

15. A dinamização do comércio e do turismo de Ponte de Lima realizada pela Recorrente consubstancia, em última faccie, uma prestação de serviços e transmissão de bens conexas realizada "no interesse colectivo dos associados".

16. Considerar que as festas constituem operações que são efectuadas no interesse do público em geral demonstra um raciocínio tacanho e com pouca aderência com as realidades concelhias nem com as associações criadas com vista à dinamização das tradições culturais prima faccie e o desenvolvimento do comércio concelhio.

17. Pelo que também por esta razão a Sentença a quo padece de erro de julgamento porquanto fez um errado enquadramento dos factos ao normativo aplicável.

18. Por último, e relativamente à terceira condição - única contraprestação ser uma quota fixada nos termos dos estatutos - o entendimento plasmado na sentença a quo resulta de uma análise perniciosa e falaciosa da doutrina cujo autor não consente.

19. De facto, o Dr. Rui Laires na obra supra citada refere que "no sentido de apreciar a natureza das contraprestações a que se reporta a alínea 19 do n.º 9 do CIVA não deve deixar de se tomar em consideração a circunstância de a alínea l) do n.º 1 do artigo 132º da Directiva do IVA, que serve de base àquela disposição interna, se referir a "quotização" e não apenas a "uma quota".",

20. Pelo que, conclui que "a acepção mais consentânea com o âmbito da alínea 19) do artigo 9° do CIVA comporta algum paralelismo com a defendida no parecer n.º 173/92, de 25 de Janeiro de 1993, do CEF, de harmonia com o qual a condição aí prevista de que a única contraprestação seja uma quota fixada nos termos dos estatutos deve ser interpretada no sentido da existência de uma contribuição periódica do sócio para fazer face a encargos matérias da associação, e não necessariamente um valor monetário expresso nos estatutos.",

21. sendo que também por esta razão padece a Sentença a quo num claro erro de julgamento,

22. porquanto estamos, contrariamente ao defendido pelo Tribunal a quo, perante transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas por uma entidade cuja actividade habitual se encontra isenta nos termos do n.º 19 e 20 do artigo 9° do Código do IVA.

23. ADICIONALMENTE,

24. Contrariamente ao que vem referenciado na Sentença a quo a actuação da AT na não aplicação da isenção de IVA prevista na alínea 20 do artigo 9° do Código do IVA fundou-se de forma evidente e clara na aplicação do Despacho normativo n.º 118/85, de 31 de Dezembro retirando do entendimento nele plasmado consequência no caso em apreço.

25. Nesta medida, o n.º 4 do despacho normativo sub judice padece de vício de violação do princípio da reserva de lei formal e uma clara violação de lei e dos limites dos poderes regulamentares constitucionalmente consagrados, pelo que o mesmo é inconstitucional.

26. E sendo o mesmo inconstitucional não poderia constituir fundamentação para os actos de liquidação adicional in casu.

27. Em face do exposto não poderia o Tribunal a quo vir alegar que a AT não havia retirado qualquer consequência do referido despacho normativo pelo que também por esta razão a Sentença a quo padece de claro erro de julgamento

POR TUDO QUANTO SE DISSE

SEMPRE SE CONCLUIRÁ

28. A sentença a quo procedeu a uma incorrecta aplicação do direito á factualidade apurada, violando o disposto nos números 19 e 20 do artigo 9º do Código do IVA,

29. Bem como o disposto no artigo 165° da CRP sob a epígrafe reserva relativa de competência legislativa.».

Pediu fosse dado provimento ao presente recurso, fosse revogada a sentença recorrida e fosse a mesma substituída por outra que se revelasse consentânea com o quadro jurídico vigente.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Remetidos os autos a este tribunal, foi aberta vista ao Ministério Público.

A Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta lavrou douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Foram dispensados os vistos legais, pelo que cumpre decidir em conferência.


***

2. Ao abrigo do disposto no artigo 663.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 679.º do mesmo Código, dão-se aqui por reproduzidos os factos dados como provados em primeira instância.

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3. O presente recurso tem por objeto uma sentença que julgou improcedente a pretensão de anulação da decisão administrativa que indeferiu o pedido de revisão de liquidações de IVA e dos correspondentes juros compensatórios.

A Recorrente não se conforma com o assim decidido por entender que, ao contrário do que foi concluído na sentença, «estão verificadas as condições cumulativas para a verificação da isenção de IVA nos termos do número 19 e 20 do artigo 9º do Código do IVA» [pág. 5 das doutas alegações de recurso, último parágrafo].

E por entender que, ao contrário do que foi concluído na sentença, «a Autoridade tributária e aduaneira aplicou e fundamentou as liquidações sub judice com recurso ao Despacho Normativo n.º 118/85, de 31 de dezembro» [pág. 6 das doutas alegações de recurso, primeiro parágrafo].

Despacho esse que, adiante, considera inconstitucional (e, por conseguinte, ilegal a decisão que nele se apoiou).

Assim, para a Recorrente, a decisão administrativa tem um duplo fundamento: apoia-se na inobservância dos requisitos substantivos previstos nos n.ºs 19 e 20 do artigo 9.º do Código do IVA e na inobservância do requisito procedimental a que alude o n.º 4 daquele Despacho.

E, para a Recorrente, a sentença errou ao concluir que não estavam reunidos os requisitos substantivos da isenção a que aludem aqueles dispositivos.

E errou ao concluir que a decisão administrativa não se apoiou na inobservância do requisito procedimental a que alude o n.º 4 daquele Despacho. E, por isso, ao não decidir pela ilegalidade da decisão administrativa, também nesta parte.

Pelo que a Recorrente suscita duas questões: a de saber se o tribunal de primeira instância incorreu em erro de julgamento ao concluir que não estavam reunidos os requisitos da isenção previstos naquele dispositivo; a de saber se o tribunal de primeira instância incorreu em erro de julgamento ao concluir que a administração não aplicou o n.º 4 do Despacho Normativo 118/95 e que, por conseguinte, não aplicou uma regra inconstitucional.

Analisemos a primeira questão.

4. Em boa verdade – e embora considere que o tribunal de primeira instância errou ao concluir que as operações identificadas no relatório de inspeção não se encontravam isentas – a Recorrente não põe em causa que não estavam reunidos os requisitos da isenção a que alude no n.º 20 do artigo 9.º do Código do IVA.

Com efeito, o tribunal de primeira instância concluiu que não estavam preenchidos os requisitos ali previstos porque a «atividade habitual» da ora Recorrente não se encontrava isenta. E porque, de qualquer modo, as operações realizadas não enquadravam em «manifestações ocasionais» para efeitos desse normativo.

E a Recorrente não contesta que as operações em causa estavam relacionadas com a realização das festas concelhias e que estas festas não constituem eventos que possam subsumir-se ao conceito de «manifestações ocasionais» para os efeitos deste normativo.

Assim sendo, e não estando também em causa que este seria um requisito necessário para que pudesse beneficiar da isenção do n.º 20 citado, podemos também concluir que a Recorrente não põe em causa, afinal, que não estavam preenchidos os requisitos substantivos dessa isenção.

O que a Recorrente põe em causa é que as ditas operações não estejam isentas, apesar disso.

Porque, no entendimento da Recorrente, essas operações sempre beneficiariam da isenção a que alude o seu n.º 19.

Pelo que o que aqui está em causa verdadeiramente não saber se estão reunidos os requisitos do n.º 20, mas os do n.º 19 daquele dispositivo legal.

A Recorrente alude, globalmente, à isenção prevista nos n.ºs 19 e 20 do artigo 9.º do Código do IVA apenas porque considera que a isenção prevista no n.º 20 é uma subespécie de outras isenções, previstas noutros números do mesmo artigo. Designadamente, no n.º 19.

Recentrada a questão, verificamos que o tribunal de primeira instância também concluiu que a «atividade habitual» da Recorrente não se encontrava isenta nos termos daquele n.º 19.

De um lado, porque só estão isentas por ali as operações realizadas no interesse coletivo dos seus associados. Sendo que os destinatários das prestações em causa não eram os associados, mas os participantes e os visitantes das feiras.

De outro lado, porque só estão isentas por ali as prestações que sejam unicamente cobertas pelas quotas dos seus associados. Sendo que as operações em causa não tinham como única contraprestação as quotas dos seus associados.

Ora, a Recorrente também não põe em causa a conclusão segundo a qual as prestações de serviços e transmissões de bens relacionadas com as referidas festas não eram efetuadas aos associados, mas ao público em geral.

E nem o tribunal de recurso podia sindicar essa conclusão, porque não se trata de uma conclusão de direito. Saber se as operações foram destinadas aos associados ou ao público é uma questão que não se resolve sem o recurso a deduções de facto.

Aparentemente, o que a Recorrente vem defender é que, quando estão em causa associações criadas com vista à dinamização de tradições culturais e o desenvolvimento do comércio concelhio, o interesse coletivo dos associados funde-se com o interesse do público em geral.

Trata-se de uma interpretação que não acolhemos, porque implicaria que o interesse coletivo dos seus associados deixasse de funcionar como um requisito operativo para o funcionamento da isenção.

Se o interesse dos associados se pudesse diluir nos múltiplos interesses dos participantes ou do público em geral, todos os interesses poderiam, de uma forma ou de outra, aderir aos interesses dos seus associados.

Parece-nos evidente, que o objetivo do legislador não foi isentar às operações enquadradas em atividades culturais, educativas e recreativas em geral, mas aquelas que fossem dirigidas especificamente aos interesses dos associados, o que já pressupõe que estes sejam distinguíveis do interesse dos destinatários dessas atividades.

Pelo que nunca se poderia acompanhar a interpretação que a Recorrente parece fazer do segmento em causa deste dispositivo legal.

Quanto ao outro requisito, a objeção que a Recorrente coloca não releva para o caso dos autos.

O Tribunal de primeira instância entendeu que as operações em causa não beneficiavam da isenção porque, além do mais, não tinham como única contraprestação as quotas dos associados.

E o que a Recorrente agora contrapõe é que a contraprestação não tem que ser necessariamente um valor monetário expresso nos estatutos.

Só que o que está em causa não é onde a contraprestação se encontra prevista: é o facto de esses serviços não serem prestados aos associados e, por conseguinte, não se poder tratar de serviços a que se acede através dessas quotas.

Assim, e não estando em causa que as ditas operações não tinham como única contrapartida as quotas dos associados, a douta sentença recorrida também não pode ser censurada na parte em que concluiu que as operações em causa não beneficiavam da isenção prevista no n.º 19 do artigo 9.º do Código do IVA.

5. Quanto à outra questão suscitada no recurso, fica prejudicado o seu conhecimento.

Na verdade, não importa aferir se o ato impugnado se sustenta num Despacho Normativo inconstitucional se não está em causa que a inobservância desse Despacho Normativo não constitui o único fundamento do ato impugnado e os demais fundamentos suportam, por si só, a legalidade da decisão administrativa.

De todo o exposto deriva que o recurso não merece provimento.


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6. Conclusão

Não beneficiam da isenção a que aludem os n.ºs 19 e 20 do artigo 9.º do Código do IVA as operações realizadas por uma associação no âmbito de festas concelhias que lhe compete promover e organizar se essas operações são realizadas no interesse dos participantes (não associados) ou do público em geral e não têm como contraprestação as quotas dos associados.


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7. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 3 de maio de 2023. - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Isabel Cristina Mota Marques da Silva.