Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0312/08.5BEALM
Data do Acordão:10/29/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:PLANO DE ORDENAMENTO DO PARQUE NATURAL DA ARRÁBIDA
FRACCIONAMENTO DE PRÉDIO RÚSTICO
USURPAÇÃO DE PODER
INCOMPETÊNCIA
LICENCIAMENTO DE CONSTRUÇÃO
PARECER PRÉVIO
DEMOLIÇÃO DE OBRA
Sumário:I - Não enferma de usurpação de poderes, nem envolve violação do princípio da separação de poderes, a ordem de demolição proferida pelo Conselho Diretivo do Parque Nacional da Arrábida [PNA] dado não estarmos perante uma situação em que a Administração tenha declarado nulo ato jurídico-privado.
II - Do disposto no art. 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 conjugado com o disposto no art. 19.º, n.º 9, do RJUE não deriva a exigibilidade de um parecer favorável expresso do PNA para viabilizar as obras de construção.
III - Os pareceres emitidos pelo PNA vinculam no caso de serem negativos, caso em que o Município não poderia emitir a licença e o respetivo alvará de construção, sendo que, na ausência de parecer, não estava o mesmo dispensado da observância do quadro normativo aplicável.
IV - A Portaria n.º 26-F/80 constitui um plano especial de ordenamento do território cuja violação dita a nulidade do ato de licenciamento camarário impugnado [arts. 68.º, al. a), do RJUE e 103.º do RJIGT].
Nº Convencional:JSTA000P26626
Nº do Documento:SA1202010290312/08
Data de Entrada:01/18/2019
Recorrente:A.................
Recorrido 1:INSTITUTO DA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DAS FLORESTAS, IP E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: RELATÓRIO
1. A……………………. [doravante A.] instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada [doravante TAF/A] a presente ação administrativa especial contra INSTITUTO DA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DA BIODIVERSIDADE, IP [doravante R.], ao qual sucedeu nas atribuições o «Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, IP» [cfr. art. 14.º do DL n.º 135/2012, de 29.06, sendo a atual orgânica disciplinada pelo DL n.º 43/2019, de 29.03], e em que foi chamado à demanda como interveniente principal associado ao A. o MUNICÍPIO DE SETÚBAL [cfr. fls. 42 e 338 paginação «SITAF» - tal como as referências subsequentes, salvo expressa indicação em contrário], peticionando pelas razões insertas na petição inicial [cfr. fls. 01/42], a anulação do despacho de 29.11.2007, proferido pela Diretora do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas do Litoral de Lisboa e Oeste, que declarou a nulidade do ato camarário de licenciamento da construção e ordenou a demolição de uma moradia e de uma habitação para o caseiro, licenciadas pela Câmara Municipal de Setúbal.

2. O TAF/A por decisão de 27.02.2013 [cfr. fls. 109/112] julgou improcedente a presente ação, absolvendo o R. do pedido [cfr. fls. 851/875].

3. O A., inconformado, recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul [doravante TCA/S], o qual, por acórdão de 24.05.2018 [cfr. fls. 1249/1291], negou provimento ao recurso e manteve a decisão recorrida.

4. Invocando o disposto no art. 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [CPTA] [na redação anterior à alteração introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02.10 (cfr. art. 15.º, n.ºs 1 e 2, do referido DL) - redação a que se reportarão todas as ulteriores referências àquele Código sem expressa indicação em contrário], o A., de novo inconformado agora com o acórdão proferido pelo TCA/S, interpôs, então, o presente recurso jurisdicional de revista [cfr. fls. 1299/1367], apresentando o seguinte quadro conclusivo que se reproduz:
«...
2.ª A autorização do PNA ao fracionamento de prédios rústicos previsto no artigo 11.º, al. a), do Decreto Regulamentar 23/98, de 14 de outubro, constitui um pressuposto de validade de atos jurídicos-privados dos quais resulte ou que titulem o fracionamento da propriedade, pelo que o ato impugnado ao ter decidido da invalidade do fracionamento da propriedade que deu origem ao prédio do Recorrente, a montante do licenciamento camarário, operado por atos e negócios jurídico-privados, invadiu a esfera de matéria reservada aos tribunais e violou o princípio da separação de poderes, sendo nulo, por vício de usurpação de poderes, nos termos do artigo 133.º, n.º 2, al. a) do Código de Procedimento Administrativo (CPA), na versão em vigor à data da sua prática;
3.ª O Acórdão Recorrido ao confirmar que o ato impugnado não padece de vício de usurpação de poderes padece de erro de direito, tendo violado o disposto nos artigos 111.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1, da Constituição, bem como o artigo 133.º, n.º 2, al. a) do CPA.
4.ª A jurisdição competente para apreciar os atos jurídico-privados de fracionamento que deram origem ao prédio do Recorrente com fundamento em falta de autorização do PNA é a jurisdição comum e não a jurisdição administrativa, pelo que o Acórdão recorrido ao apreciar e declarar a nulidade de tais atos ofende, designadamente, o disposto nos artigos 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da Constituição e o artigo 1.º, n.º 1, do ETAF.
5.ª A questão da validade dos atos de fracionamento que deram origem ao prédio do Recorrente está definitivamente decidida pelos Tribunais Comuns no âmbito de ações intentadas pelo Ministério Público, na sequência da participação do PNA do fracionamento sem a sua autorização.
6.ª Ao fazer uma interpretação do artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98 num sentido que não é comportado pelo seu elemento literal “atos administrativos”, de modo a nele incluir a cominação de nulidade para atos jurídico-privados de transmissão e aquisição da propriedade dos quais resultou o fracionamento, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação dessa norma e aplicação analógica de uma norma regulamentar restritiva do direito de propriedade privada, violando o disposto nos artigos 17.º, 18.º, 62.º e 165.º, n.º 1, al. b) da Constituição.
7.ª O artigo 68.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), em qualquer das suas alíneas, apenas comina a nulidade de licenças, admissão de comunicações prévias e autorizações de utilização e apenas com fundamento em violação de plano especial ou de plano municipal de ordenamento do território, pelo que ao decidir que dessa disposição resulta a cominação de nulidade de atos jurídico-privados por violação de Decreto Regulamentar 23/98, o Tribunal fez uma errada interpretação e aplicação dessa norma, que além de tudo é restritiva do direito fundamental de propriedade, em violação dos artigos 17.º, 18.º, 62.º e 165.º, n.º 1, al. b) da Constituição.
8.ª O Acórdão recorrido ao concluir que os atos jurídico-privados desconformes com o artigo 11.º, al. a) do Decreto Regulamentar 23/98 são nulos nos termos do artigo 103.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), faz uma errada interpretação e aplicação desta norma, uma vez que aquele diploma não é um instrumento de gestão territorial, mas sim o diploma que regulava a aprovação de um instrumento de gestão territorial nos termos do respetivo artigo 18.º, incorrendo, ainda, na violação do princípio da tipicidade dos instrumentos de gestão territorial vertido nos artigos 8.º e 9.º da Lei de Bases e no artigo 2.º do RJIGT.
9.ª A norma do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar 23/98, interpretada no sentido de exigir parecer expresso favorável do PNA à realização de obras de construção, tal como decidido no Acórdão em crise, conduz à sua inconstitucionalidade, por violação dos princípios da hierarquia das normas e do primado da lei consagrados no artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, já que equivale a admitir a derrogação, por decreto regulamentar, do disposto em diploma legislativo - considere-se o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) ou o anterior Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de novembro - que prevê que a ausência de parecer no prazo estabelecido equivale a concordância.
10.ª A lei habilitante do Decreto Regulamentar 23/98 - o Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 janeiro, que estabelecia o regime da Rede Nacional de Áreas Protegidas - apenas lhe confere habilitação, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, al. b) para definir os atos e atividades condicionados ou proibidos e não para regular os efeitos do silêncio do PNA em derrogação do regime legal geral, pelo que, o artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar interpretado no sentido de excluir o parecer favorável tácito, tal como preconizado no Acórdão recorrido, é inconstitucional por violação do princípio de precedência de lei vertido no artigo 112.º, n.º 7, da Constituição.
11.ª Não existe nem nunca existiu qualquer norma na legislação aplicável no PNA a prever que a falta de resposta do PNA no prazo previsto vale como discordância, parecer desfavorável ou negativo, pelo que a interpretação do Tribunal recorrido de que existe “legislação específica” aplicável na área do PNA que afasta a regra geral de concordância tácita contida no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, viola o disposto nesta norma e, ainda, o disposto no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil por não ter o mínimo de apoio na letra da lei.
12.ª Não se pode considerar que o ato de licenciamento das obras promovido pelo Recorrente é inválido por falta de parecer expresso do PNA nos termos do disposto no artigo 12.º, al a), do Decreto Regulamentar 23/98 - que é a norma, e só essa, que determina a sujeição das obras de construção civil a parecer vinculativo do PNA -, pelo que o ato de demolição impugnado nos autos na parte em que se fundamenta na invalidade do licenciamento camarário por falta de parecer expresso favorável do PNA padece de vício de lei gerador de anulabilidade, violando designadamente o artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, e como tal deveria ter sido anulado pelo Tribunal a quo.
13.ª Termos em que, o Acórdão recorrido, ao acolher o entendimento preconizado no Acórdão da 1.ª instância de que é exigível parecer expresso favorável do PNA e confirmar a validade do ato impugnado na parte em que utiliza esse fundamento, fez uma errada interpretação e aplicação do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar 93/98 e viola o disposto no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE.
14.ª O artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98, aplicado pelo Acórdão recorrido para fundamentar a nulidade do ato de licenciamento camarário por alegada violação do disposto no artigo 12.º, al. a) do mesmo diploma, contraria o princípio de precedência de lei dos regulamentos administrativos plasmado no artigo 112.º, n.º 7, da Constituição, considerando que, nos termos do artigo 133.º, n.º 1, do CPA só são nulos os atos “para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade”, e o Decreto-Lei n.º 19/93, de 21 de janeiro, não confere qualquer habilitação ao decreto regulamentar para disciplinar o desvalor jurídico dos atos praticados em sua desconformidade.
15.ª Ainda que o ato de licenciamento camarário fosse desconforme com o artigo 12.º, al. a) do Decreto Regulamentar 23/98 seria meramente anulável nos termos do artigo 135.º do CPA vigente e não nulo como declarado pelo ato impugnado e pelo Acórdão recorrido, que assim preteriram o estabelecido no artigo 135.º e 133.º, n.º 1, do CPA.
16.ª Com o Decreto Regulamentar 23/98 a realização das obras de construção passou a estar sujeita a parecer vinculativo e não a autorização, nos termos do artigo 12.º, al. a), o qual revogou, assim, por força do disposto no artigo 20.º do Decreto Regulamentar, as normas da Portaria na parte em que exigem autorização do PNA para obras de construção, nomeadamente os artigos 12.º, n.º 3, e 14.º, n.º 2 al. a) da Portaria aplicados pelo Tribunal recorrido.
17.ª O Acórdão Recorrido, ao determinar que o ato de licenciamento camarário é nulo, por violação das normas dos artigos 12.º e 14.º, n.º 2, al. a) da Portaria n.º 26-F/80 fez uma errada aplicação de tais normas, tendo ainda ofendido o disposto nos artigos 12.º, al. a), e 20.º do Decreto Regulamentar 23/98.
18.ª O ato impugnado ao sustentar que o ato de licenciamento viola o disposto na Portaria n.º 26-F/80 sem invocar ou demonstrar uma única e concreta norma desse diploma que tenha sido preterida padece de vício de violação de lei e deveria ter sido anulado nos termos do artigo 135.º do CPA.
19.ª O Acórdão recorrido, ao decidir que a Portaria 26-F/80 é um plano especial de ordenamento do território cuja violação dita a nulidade do ato de licenciamento camarário, padece de erro de Direito, fazendo uma errada interpretação e aplicação do artigo 68.º, al. a), do RJUE e do artigo 103.º do RJIGT, violando, ainda, o disposto no artigo 34.º da Lei de Bases de Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo e nos artigos 3.º e 154.º do RJIGT.
20.ª O Tribunal a quo deveria ter anulado o ato impugnado, o qual padece de vício de violação de lei ao fundamentar a ordem de demolição na nulidade do licenciamento camarário por violação da Portaria 26-F/80, fazendo uma ilegal aplicação do artigo 68.º, al. a) do RJUE e do artigo 103.º do RJIGT e aplicando, ainda, uma norma revogada para sustentar a nulidade por violação do Plano Preliminar - o artigo 9.º, n.º 2 do DL n.º 622/76, de 28/07.
21.ª Ao aceitar acriticamente que o ato de licenciamento viola o regime da Rede Natura - de que não se convoca uma norma concreta pretensamente violada e a propósito do que não foi produzida prova nos autos - apenas porque o PNA o afirma sem qualquer concretização ou demonstração, o Acórdão Recorrido padece de erro de julgamento.
22.ª Tendo sido promovida pelo Município a consulta do PNA, serviço local do Instituto da Conservação e da Natureza (ICN), para se pronunciar sobre a operação urbanística, foi promovida a consulta ao ICN e produziu-se parecer favorável tácito pela ausência de resposta no prazo legal, pelo que o Tribunal recorrido ao não anular o ato recorrido fez uma errada interpretação do artigo 8.º, n.ºs 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de abril, que se afigura desconforme com o princípio de desconcentração administrativa acolhido pelo artigo 267.º, n.º 2, da Lei Fundamental.
23.ª O ato impugnado ao determinar que a consulta ao PNA para efeitos de regime da Rede Natura não teve lugar porque o Município tinha de referir, expressa e especificamente, que a consulta era promovida para efeitos do regime jurídico da Rede Natura, violou, ainda, o disposto no artigo 19.º, n.º 10, do RJUE, pelo que deveria ter sido anulado pelo Tribunal …».

5. Devidamente notificados apenas o R., aqui recorrido, veio produzir contra-alegações [cfr. fls. 1378/1387], concluindo nos seguintes termos:
«...
3. A natureza jurídico-privada do ato de doação ou da posterior escritura de justificação não afasta a aplicação da norma constante do art. 11.º, alínea a), do Decreto-Regulamentar n.º 23/98, de 14 de outubro, nem posterga a cominação do n.º 5 do art. 19.º do mesmo diploma.
4. Não foi a doação que foi sindicada, mas sim o fracionamento por ela contemplado, pelo que não se pode imputar ao ato impugnado nem ao Acórdão recorrido um extravasar de competências, excesso de pronúncia ou vício de usurpação de poder.
5. O fracionamento da propriedade é, logicamente, anterior às escrituras de doação e de justificação, e assentou em, pelo menos, dois atos administrativos: o deferimento do pedido de desanexação, com a subsequente inscrição matricial, e a descrição dos novos prédios no registo predial.
6. Sendo nulos e de nenhum efeito esses atos, nos termos do referido art. 19.º, n.º 5, os pedidos de licenciamento apresentados à Câmara Municipal de Setúbal são relativos a prédios sem existência jurídica.
7. Sendo impossível o objeto e o conteúdo desses atos de deferimento, os mesmos são nulos, nos termos do disposto no art. 133.º, n.º 2, alínea c), do CPA então vigente.
8. A amplitude dos poderes conferidos pelo art. 13.º do Decreto-Lei n.º 19/93, de 21 de janeiro, bem como o disposto no art. 13.º do Decreto-Lei n.º 151/95, de 24 de junho, contrariam o argumento segundo o qual o Decreto-Regulamentar n.º 23/98 carecia de habilitação para definir o desvalor jurídico dos atos praticados em desconformidade com as suas disposições.
9. Acresce que todos os referidos atos legislativos são emanados do Governo, não existindo motivo para este ficar limitado quanto àquela possibilidade.
10. Menos ainda se, por essa razão, o regime aplicável passasse a ser o da anulabilidade, totalmente inadequado a situações como a que está na origem do presente processo.
11. Os atos de deferimento dos pedidos de licenciamento apresentados à C.M. de Setúbal também são nulos à luz do art. 68.º do RJUE, pois não se vê motivo para excluir da sua aplicação quaisquer licenças, autorizações ou aprovações que sejam legalmente exigíveis e das quais dependam as previstas naquele dispositivo.
12. É pertinente a aplicação do art. 103.º do RJIGT, uma vez que a regulação resultante da conjugação do Decreto-Regulamentar n.º 23/98 e dos artigos 8.º a 16.º da Portaria 26-F/80, de 9 de janeiro, constituía, materialmente, um plano especial de ordenamento do território.
13. Ainda que, por força do disposto no n.º 4 do art. 154.º do RJIGT, o Decreto Regulamentar n.º 23/98 assumisse a natureza de plano sectorial, a violação dos seus dispositivos não deixava de ser cominada com a nulidade, nos termos do mesmo art. 103.º.
14. Não havia lugar a deferimento tácito ao abrigo do disposto no art. 19.º, n.º 9, do RJUE então vigente, porque o Decreto-Regulamentar n.º 23/98, por força do bem jurídico contemplado, constituía “legislação específica” e resulta da sua interpretação teleológica o afastamento daquela figura.
15. Acresce que a competência específica do PNA e os condicionalismos referidos no n.º 2 do art. 14.º da Portaria n.º 26-F/80 não permitem dispensar o parecer expresso.
16. Parecer esse que uma conduta mais preocupada com o cumprimento da lei e a defesa de um ambiente ecologicamente sadio não deixaria de ter exigido.
17. O disposto no art. 12.º, alínea a), do Decreto-Regulamentar n.º 23/98, não obsta à aplicação do disposto nos artigos 8.º a 16.º da Portaria n.º 26-F/80, de 9 de janeiro, e o licenciamento das construções por parte da C.M. de Setúbal violou, pelo menos, o disposto no art. 14.º, n.º 2, alíneas a) e b), daquela Portaria.
18. Pelo que, a existir erro de direito por parte do Acórdão recorrido, será unicamente na parte relativa à violação do regime jurídico da Rede Natura, por falta de consulta específica de uma entidade externa …».

6. Pelo acórdão da formação de apreciação preliminar deste Supremo Tribunal prevista no n.º 5 do art. 150.º do CPTA veio a ser admitido o recurso de revista [cfr. fls. 1399/1402].

7. A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal, notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu pronúncia no sentido da «improcedência do presente recurso de revista, devendo, contudo, a demolição ordenada ser precedida de um estudo sobre a viabilidade da legalização da obra» [cfr. fls. 1410/1418], pronúncia essa que, objeto de contraditório, apenas mereceu resposta discordante do A. [cfr. fls. 1426/1440].

8. Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.

DAS QUESTÕES A DECIDIR
9. Constituem objeto de apreciação nesta sede os assacados erros de julgamento acometidos pelo A. ao acórdão recorrido quanto ao juízo no mesmo efetuado, visto entender haver o mesmo incorrido:
i) em violação, nomeadamente, do disposto nos arts. 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa [CRP] e 01.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF], quanto à competência do Parque Natural da Arrábida [PNA] para decidir da validade do fracionamento operada por atos e negócios jurídico-privados a montante do licenciamento camarário, invadindo a esfera da matéria reservada aos tribunais - sendo a jurisdição comum a competente - e ofendendo, ainda, o princípio da separação de poderes [conclusões 02.ª), 04.ª) e 05.ª) das alegações];
ii) em violação do disposto nos arts. 111.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1, da CRP, bem como do art. 133.º, n.º 2, al. a), do Código de Procedimento Administrativo [na redação anterior à que foi introduzida pelo DL n.º 4/2015] [doravante CPA/91 - redação a que se reportarão todas as ulteriores referências àquele Código sem expressa indicação em contrário], quanto à nulidade do licenciamento camarário por ter decidido que o ato impugnado não padece de vício de usurpação de poder [conclusão 03.ª) das alegações];
iii) em violação do disposto nos arts. 17.º, 18.º, 62.º e 165.º, n.º 1, al. b), da CRP, quanto à nulidade do licenciamento camarário com fundamento na alegada invalidade do fracionamento da propriedade por aplicação do n.º 5 do art. 19.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14.10, por motivo de o fracionamento do prédio ser um ato privado e não um ato administrativo [conclusão 06.ª) das alegações];
iv) em errada interpretação e aplicação do art. 103.º do RJIGT, ao considerar que os atos desconformes com o art. 11.º, al. a) do Decreto Regulamentar n.º 23/98 são nulos nos termos do citado art. 103.º RJIGT, incorrendo, ainda, em violação do princípio da tipicidade dos instrumentos de gestão territorial vertido nos arts. 08.º e 09.º da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo [LBPOTU] e 02.º do RJIGT [conclusão 08.ª) das alegações];
v) errada interpretação do art. 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 no sentido de exigir parecer expresso favorável do PNA à realização de obras de construção e de excluir o parecer favorável tácito, por violação do art. 13.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 19/93, de 23.01, conduzindo à sua inconstitucionalidade por violação dos princípios da hierarquia das normas e do primado da lei, consagrados no art. 112.º, n.º 5, da CRP e ainda por violação do princípio de precedência de lei consignado no art. 112.º, n.º 7, da CRP [conclusões 08.ª) a 10.ª) das alegações];
vi) em violação do disposto nos arts. 19.º, n.º 9, do DL n.º 555/99, de 16.12 [diploma que veio estabelecer o regime jurídico da urbanização e da edificação - vulgo RJUE - na redação então vigente], 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, e 09.º, n.º 2, do Código Civil [CC], dada a errada consideração de que existe «legislação específica» no sentido de que a falta de resposta do PNA, no prazo previsto, vale como parecer desfavorável ou negativo [conclusões 11.ª) a 13.ª) das alegações];
vii) em violação do disposto no art. 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, do princípio de precedência de lei dos regulamentos administrativos plasmado no art. 112.º, n.º 7, da CRP, bem como do disposto no art. 133.º, n.º 1, do CPA/91, e do DL n.º 19/93, dado o erro de julgamento na interpretação e aplicação do art. 19.º, n.º 5, do mesmo Decreto Regulamentar para fundamentar a nulidade do ato de licenciamento camarário [conclusões 14.ª) e 15.ª) das alegações];
viii) em violação do disposto nas normas contidas nos arts. 12.º e 14.º, n.º 2, al. a) da Portaria n.º 26-F/80, 12.º, al. a), e 20.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, ao haver determinado e considerado que o ato de licenciamento camarário era nulo [conclusões 17.ª) e 18.ª) das alegações];
ix) em violação do disposto nos arts. 68.º, al. a), do RJUE, 03.º, 103.º e 154.º do RJIGT e 34.º LBPOTU, ao ter sido decidido que a Portaria n.º 26-F/80 é um plano especial de ordenamento do território cuja violação dita a nulidade do ato de licenciamento camarário e por aplicar, ainda, uma norma revogada para sustentar a nulidade por violação do Plano Preliminar [o art. 09.º, n.º 2, do DL n.º 622/76, de 28.07] [conclusões 19.ª) e 20.ª) das alegações];
x) em erro de julgamento ao ter aceite acriticamente que o ato de licenciamento viola o regime da «Rede Natura» - de que não se convoca uma norma concreta pretensamente violada e a propósito do que não foi produzida prova nos autos - apenas porque o PNA o afirma, sem qualquer concretização ou demonstração [conclusão 21.ª) das alegações];
xi) em violação do disposto no art. 08.º, n.ºs 1 e 3, do DL n.º 140/99, de 24.04, [diploma que procedeu à transposição no plano interno de regulamentação comunitária relativa à conservação da Natureza - «Rede Natura 2000»] e do princípio de desconcentração administrativa acolhido pelo art. 267.º, n.º 2, da CRP, por tendo sido promovida pelo Município a consulta do PNA para se pronunciar sobre a operação urbanística, não se ter determinado que se produziu parecer favorável tácito em resultado da falta de resposta no prazo legal [conclusão 22.ª) das alegações];
xii) erro de julgamento quanto à nulidade do licenciamento camarário por desconformidade do ato de licenciamento com o regime da «Rede Natura» ao ter determinado que a consulta ao PNA, para efeitos de regime jurídico da «Rede Natura», não teve lugar, porquanto o Município teria de referir, expressa e especificamente, que a consulta era promovida para efeitos daquele regime jurídico [conclusão 23.ª) das alegações] [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].

FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO
10. Resulta como assente nos autos pelas instâncias o seguinte quadro factual:
10.1) Através de escritura pública de doação, celebrada em 09.03.2001, os pais do A., proprietários do prédio rústico com a área de 435.000 m2, sito na Quinta ………, freguesia ……….., concelho de Setúbal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º 3249/19981014, inscrito na matriz sob o art. 42, da Secção H, doaram ao A. a nua propriedade do prédio rústico, sito na Quinta …………., freguesia …………, concelho de Setúbal, com a área de 182.050 m2 e, ainda, ao filho B……………., a propriedade sobre um prédio sito na Quinta ………., freguesia de ………, concelho de Setúbal, com a área de 84.080 m2 e à sua filha C……….., a propriedade de um outro prédio, com a mesma denominação e localizado na referida Quinta ………, com a mesma área de 84.080 m2. Estes prédios resultaram da desanexação do indicado prédio dos pais do A - doc. de fls. 114 do Processo Administrativo [abreviadamente «P.A.»].
10.2) Através de escritura pública de compra e venda, celebrada em 09.03.2001, os pais do A., declarando-se proprietários do prédio rústico com a área de 84.080 m2 [após desanexações], sito na Quinta ……….., freguesia ………., concelho de Setúbal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º 3249/19981014, inscrito na matriz sob o art. 42, da Secção H, venderam esse prédio à «Sociedade D………, Limitada» - cfr. doc. de fls. 107 do «P.A.».
10.3) Em 04.12.2002, a A. apresentou junto do Município um pedido de licenciamento de construção de uma moradia e de uma habitação para o caseiro a erigir no prédio descrito sob o n.º 3953, na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal - doc. n.º 05 junto com a petição inicial.
10.4) Em 31.01.2003, o Município de Setúbal enviou para o Diretor do Parque Natural da Arrábida [PNA], que o recebeu em 03.02.2003, o pedido de parecer sobre a pretensão de licenciamento de construção de uma moradia e de uma habitação para o caseiro, que o A. queria erigir na Quinta ……….., freguesia …………, concelho de Setúbal - fls. 42 do «P.A.».
10.5) Para além de tal pedido, correram ainda no PNA mais quatro processos relativos a pedidos de obras de construção de moradia e habitação de caseiro e piscina, a construir nos prédios que resultaram da desanexação do prédio original, propriedade dos pais do A. - cfr. doc. de fls. 118 do «P.A.».
10.6) Através de ofício datado de 23.07.2004, recebido no PNA em 26.07.2004, o Município de Setúbal remeteu cópia do projeto de exploração agroflorestal e enquadramento paisagístico, pedindo que fosse proferida pronuncia «... sobre o assunto» - fls. 78 do «P.A.».
10.7) Através de ofício datado de 20.08.2004, a Presidente da Comissão Diretiva do PNA, pediu ao Presidente da Câmara de Setúbal que lhe enviasse planta de condicionantes e de ordenamento do PDM de Setúbal, com a localização da propriedade e a documentação comprovativa da posse da propriedade e inscrição matricial do prédio - doc. de fls. 79 do «P.A.».
10.8) Através de ofício datado de 24.09.2004, o Município de Setúbal remeteu para o PNA as plantas de ordenamento do PDM, de localização, de condicionantes RAN e REN, que as recebeu em 28.09.2004 - doc. de fls. 89 do «P.A.».
10.9) Em 14.12.2004, a Comissão Diretiva do PNA deliberou aprovar o entendimento expresso na informação n.º 337/04, em que se comunicava que o prédio onde o A. pretendia construir a moradia e habitação para o caseiro, resultava de divisão de um outro prédio, com a área de 43,5 ha, que não tinha sido aprovada pelo PNA e considerando que se encontrava violado o art. 11.º, al. a) do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14 de outubro, verificava-se a nulidade das «aprovações dos projetos de arquitetura com parecer favorável tácito» [aprovações essas que o Município entendia terem ocorrido], nos termos do art. 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14 de outubro, do art. 103.º do regime jurídico aprovado pelo DL n.º 380/99, de 22 de setembro e do art. 68.º, al. a) do regime jurídico aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16 de dezembro. Entendeu-se também que a divisão do prédio originário traduzia-se, do ponto de vista material, numa operação de loteamento e que a nulidade do fracionamento da propriedade «prejudica e fere de nulidade (...) a operação de destaque efetuada» - cfr. doc. de fls. 118 do «P.A.».
10.10) Em 17.12.2004, foi proferido despacho por Vereador da Câmara Municipal, que aprovou o pedido de licença de construção, condicionado à apresentação do respetivo plano de aproveitamento agrícola - docs. n.ºs 06 e 07 com a petição inicial.
10.11) Em 28.03.2006, o Município comunicou ao PNA, em resposta a solicitação de 31.03.2005, que já havia sido emitido despacho de deferimento do licenciamento, embora ainda não tivesse sido emitido o respetivo alvará - fls. 131 do «P.A.».
10.12) Em 01.04.2005, o Município de Setúbal emitiu o alvará de licença de construção relativo ao pedido de licenciamento apresentado pelo A. - doc. n.º 03 junto com a petição inicial.
10.13) Em 20.12.2005, os trabalhadores da obra e, em 09.01.2006, o A., foram notificados do seguinte despacho de embargo de obras datado de 20.12.2005:
«Considerando a deteção, pelo Sr. Vigilante da Natureza ……………., no dia 31 de outubro de 2005, em Estrada ……….. - ………. - Azeitão, do início de duas obras de construção civil, sendo uma para moradia e outra para casa de caseiro, executando movimentações de terras e escavações, com a consequente alteração da morfologia do solo, para abertura de fundações e enchimento de caboucos. Encontrando-se a casa do caseiro com as fundações, pilares e placa já concluídos, para suporte do telhado.
Considerando, após consulta e análise do processo instrutor n.º 38-2003, que a propriedade em causa situa-se dentro dos limites do Parque Natural da Arrábida, em área de Paisagem Protegida (art. 12.º da Portaria n.º 26-F/80 de 09.01) e encontra-se parcialmente em área integrada na Reserva Ecológica Nacional.
Considerando, o teor do parecer interno do setor da conservação da natureza, segundo o qual existem na propriedade em causa valores naturais relevantes, para além de outros de grande sensibilidade que ficam afetados com a construção de habitações, piscinas e infraestruturas, colocando em risco o equilíbrio dos sistemas ecológicos e biofísicos presentes na área, colidindo com os objetivos de manutenção e valorização das características naturais excecionais do local.
Considerando, ainda, ter o ato de licenciamento camarário que deferiu a operação urbanística de edificação, ora objeto de auto de notícia n.º 39/2005, violado o disposto no plano de ordenamento do Parque Natural da Arrábida (plano especial de ordenamento do território, art. 2.º, n.º 2, alínea e) do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22.09), designadamente, as regras relativas à construção previstas na parte aplicável da Portaria n.º 26-F/80 de 9.01 (art. 20.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98 de 14.10) e em consequência, padecer do vício da nulidade (art. 68.º, alínea a) do RJUE) e art. 103.º do Decreto-Lei n.º 380/99 de 22.09).
Determina-se o embargo de todas as obras de construção ou trabalhos de movimentação de terras que estejam a ser realizados na propriedade de A…………, descrita na Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o n.º 3951/20010531, sita em Quinta …………., (art. 7.º, n.º 3, alínea o) do Decreto Regulamentar n.º 23/98 de 14.10) e Despacho n.º 24999/2004 (2.ª série), publicado no Diário da República - II Série, de 3.12.2004 ...» - doc. de fls. 162 e 164 do «P.A.».
10.14) Tendo o A. intentado providência cautelar, continuou a executar a construção da obra, tendo o PNA proferido novo despacho de embargo em 30.01.2006, que foi notificado aos trabalhadores da obra nessa mesma data e ao A. através de ofício remetido em 06.02.2006 - doc. de fls. 283 e 290 do «P.A.».
10.15) Em 12.06.2006, foi decretado o embargo de obras pelo PNA, tendo o A. apresentado a respetiva ação cautelar - doc. n.º 12 da petição inicial.
10.16) Em 11.12.2006, foi deliberada a prorrogação do prazo de vigência do embargo por mais seis meses, tendo o A. apresentado a respetiva ação cautelar - doc. n.º 12 da petição inicial.
10.17) Em 17.08.2007 foi celebrada uma escritura pública de «justificação, revogação e retificação de doação», em que A…………… ali se declarou possuidor da nua propriedade sobre o mesmo prédio descrito sob o n.º 3951 [desanexado do originário descrito sob o n.º 3249] desde 1987 e os pais deste, por reconhecerem que este tinha a posse desse direito desde então, acabaram por revogar a doação da nua propriedade celebrada em seu favor em 09.03.2001 - doc. n.º 19 da petição inicial.
10.18) Por sentença de 02.07.2007, foi declarada a caducidade do embargo, tendo o A. retomado os trabalhos.
10.19) Em 04.10.2007, o A. foi notificado do seguinte projeto de decisão de demolição, «nos termos do art. 7.º, nº 3, al. f) do Decreto Regulamentar n.º 23/98, 14.10 conjugado com o art. 18.º, n.º 3, al. d), do DL n.º 19/93, de 23.01», onde se dizia que:
«
1.º O arguido é o titular da nua propriedade de um prédio rústico situado em …………., freguesia ……….., concelho de Setúbal, com área de 93.350 m2 descrito sob o n.º 3.951 na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal.
2º Este prédio foi desanexado do prédio inscrito sob o n.º 3249/19981014 na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal.
3.º Estamos perante uma operação de fracionamento não autorizada pelo PNA.
4.º As construções foram realizadas sem o parecer favorável do PNA (auto de notícia n.º 39/2005).
5.º O ato de licenciamento camarário que deferiu a operação urbanística de edificação, violou o disposto no Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, plano esse especial de ordenamento do território, conforme o disposto no artigo 2.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro, designadamente, as regras relativas a construção previstas na parte aplicável da Portaria n.º 26-F/80, de 9.01 (artigo 20.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98 de 14.10) e, em consequência, padece do vício de nulidade (cfr. art. 68.º, alínea e) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e artigo 103.º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro).
6.º Na propriedade em causa existem valores naturais relevantes (cfr. Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 49/2005 de 24 de fevereiro - Rede Natura), para além de outros de grande sensibilidade que ficam afetados com a construção de habitações, piscinas e infraestruturas, colocando em risco o equilíbrio dos sistemas ecológicos e biofísicos em presença naquela área, colidindo com os objetivos de manutenção e valorização das características naturais e excecionais do local.
7.º A propriedade aqui em causa situa-se dentro dos limites do Parque Natural da Arrábida, em zona denominada área de proteção complementar 1 (arts. 18º e 19.º do POPNA), sendo que a área mínima da parcela edificável são 10 ha e uma pequena parte em área de proteção parcial do tipo II, espaço non aedificandi (arts. 16.º e 17.º do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida aprovado pela RCM n.º 141/2005, de 23.08).
Assim, face ao que antecede as construções são insuscetíveis de legalização, não restando outra solução, senão a sua demolição.
Pelo que, deverá demolir as construções efetuadas ilicitamente no prazo de 45 dias, por as mesmas violarem o disposto nos artigos 16.º, 17.º, 18.º, 19.º e 50.º, n.º 1, al. b), do POPNA (RCM n.º 141/2005, de 23/08).
Deve ainda informar-se de que esta ordem é precedida da audição do infrator, o qual dispõe de quinze dias, a contar da data da sua notificação, para se pronunciar sobre o conteúdo da mesma (art. 100.º e 101.º do CPA) ...» - cfr. docs. de fls. 76 e 77 dos autos.
10.20) O A. apresentou a respetiva resposta - fls. 82 dos autos, que se dão por reproduzidas.
10.21) Por despacho de 29.11.2007, proferido pela Diretora do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas do litoral de Lisboa e Oeste, foi ordenada a demolição da obra que o A. construiu na Estrada ………., ……….. e que lhe foi notificado através de ofício datado de 09.01.2008, nos seguintes termos:
«Notifica-se A……….. de que por despacho da senhora Diretora do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas Litoral de Lisboa e Oeste de 29/11/2007, proferido sobre a informação n.º 429/2007 e no uso de delegação de competências constante da alínea g) do n.º 1 do Despacho n.º 16/12/2007, II Série DR n.º 146, de 31 de julho, foi decidido manter a ordem de demolição constante do ofício n.º 00291, de 13.02.2007, depois da audiência prévia do Interessado (arts. 100.º e 101.º do CPA), nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. Quanto à questão da validade do fracionamento da propriedade estar pendente no Tribunal Judicial de Setúbal, tal facto não obsta à tomada de decisão final de demolição.
2. O referido fracionamento não foi precedido da autorização exigível nos termos do art. 11.º, al. a) do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14.10.
3. Tal questão não releva das relações jurídico-privadas, mas do foro administrativo, pois tal exigência deriva do regulamento que procedeu à reclassificação do Parque Natural da Arrábida (art. 1º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14.10, e arts. 13.º e 32.º do DL n.º 19/93, de 23.01).
4. Aliás, a participação efetuada pelo PNA ao Ministério Público, constituiu o cumprimento do dever de participação previsto no art. 69.º do RJUE.
5. Quanto à falta de parecer expresso do PNA, o Interessado não aponta facto diverso, isto é, a aprovação do projeto de arquitetura do Interessado, pela entidade licenciadora, não foi precedida de parecer expresso favorável, sendo as razões apontadas pelo Interessado de qualificação jurídica do facto.
6. Ou seja, segundo a tese expendida nos pontos 17 a 27 das alegações do Interessado, o silêncio do PNA significa “haver concordância daquelas entidades com a pretensão formulada se os respetivos pareceres, autorizações ou aprovações não forem recebidos dentro do prazo fixado (...)“ (art. 19.º, n.º 9 do RJUE).
7. Esta esta tese não deverá proceder, porquanto:
Na esteira do Acórdão de 20/12/2006 do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo 2133/06, o licenciamento das obras em causa, na ausência de parecer favorável expresso do Parque Natural da Arrábida, determina a sua nulidade:
“1 - Estando perante um plano de ordenamento do território, qualquer ato contrário a este plano é nulo.
2 - O licenciamento de obras dentro dos limites do Parque Natural da Arrábida, depende de parecer vinculativo da Comissão Diretiva de tal parque, visto que a lei, atentos os interesses públicos em causa, exige autorização expressa do referido licenciamento, pelo que não pode haver deferimento tácito sendo sempre obrigatório que o Parque Natural se pronuncie”.
8. A nulidade dos atos que violem o plano preliminar de ordenamento do Parque Natural é cominada pelo art. 9.º, n.º 2 do DL n.º 622/76, de 28.07, vício esse que continuou a ser cominado para os atos que não se conformem com os planos especiais de ordenamento do território (art. 103.º do RJIGT).
9. Mesmo admitindo, o que só em tese se aceita, que o plano preliminar do Parque Natural da Arrábida (Portaria n.º 26-F/80, de 9.01) deva ser reconduzido a plano sectorial, a sua violação é cominada com a nulidade (art. 103.º do RJIGT), não se convalidando na ordem jurídica por força do decurso do prazo de um ano, conforme pretende o Interessado. Pois, “São nulos os atos praticados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial aplicável” (art. 103.º do RJIGT e art. 134º do CPA).
10. Quanto à alegada emissão de parecer favorável, nos termos da Rede Natura, a verdade é que falta o pressuposto da consulta do órgão competente para a emissão de parecer (art. 9.º, n.º 2 do DL n.º 140/99, de 24.04), sem o que não se formará parecer tácito favorável.
11. E caso se formasse, seria ato tácito manifestamente ilegal por violação do DL n.º 140/99, de 24.04.
Face ao exposto, deverão ser demolidas as construções efetuadas, ilicitamente, no prazo de 45 dias, a contar da presente notificação, por as mesmas violarem o disposto nos arts. 16.º, 17.º, 18.º, 19.º e 50.º, n.º 1, al. b) do POPNA (RCM n.º 141/2005, de 23.08).
Decorrido o prazo de 45 dias, sem que a ordem de demolição se mostre cumprida, o ICNB, I.P. procederá aos trabalhos de reposição da situação anterior, por conta do Interessado (art. 25.º, n.º 3 do DL n.º 19/93, de 23.01, aplicável ex vi do art. 50.º, n.º 2 da RCM n.º 141/2005, de 23.08) …» - doc. n.º 01 junto com a petição inicial.
10.22) Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, no âmbito da ação cível instaurada pelo Ministério Público, que correu termos sob n.º 1060/15.5T8STB, no âmbito da qual foi pedida a declaração de nulidade dos negócios titulados pelas escrituras de justificação outorgadas em 17.08.2007 por cada um dos Réus, foi a ação julgada totalmente improcedente - doc. de fls. 1070/1078 dos autos.
DE DIREITO
11. Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação do recurso de revista que se nos mostra dirigido.

12. Em litígio similar ao ora sub specie este Supremo Tribunal, no seu acórdão de 15.10.2020 [Proc. n.º 01943/08.9BELSB consultável in: «www.dgsi.pt/jsta»] firmado por esta mesma formação de julgamento, teve já oportunidade de afirmar o seu entendimento quanto a idênticas questões que constituem objeto de discussão nesta sede, entendimento que, por inequivocamente transponível, aqui se acolhe e reitera/reafirma inteiramente, tanto mais que em tudo semelhantes se mostram o quadro factual, as situações jurídicas e, bem assim, as posições das partes refletidas nas peças processuais produzidas, nomeadamente as alegações em sede de revista e respetivas conclusões.

13. Assim, o citado acórdão, que manteve o juízo firmado no acórdão recorrido do TCA/S negando provimento ao recurso, assentou a sua fundamentação, em suma, na seguinte linha que, ao abrigo e considerando o disposto nos arts. 08.º, n.º 3, do CC e 663.º, n.º 5, do Código de Processo Civil [CPC] ex vi dos arts. 679.º do CPC, 01.º e 140.º do CPTA, se passa a reproduzir:
«
2.2. Considera … recorrente que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento no que respeita à questão da validade do ato de fracionamento do prédio rústico, e isto em vários planos.
Por um lado, sustenta que o ato de fracionamento é um ato jurídico-privado praticado a montante do procedimento de licenciamento camarário, razão pela qual o ato impugnado, ao ter decidido no sentido da sua invalidade, invadiu a esfera de matéria reservada aos tribunais e violou o princípio constitucional da separação dos poderes, sendo nulo por usurpação de poderes (art. 133.º, n.º 2, al. a), do CPA, com a redação em vigor à data da sua prática). O acórdão recorrido, ao confirmar que o ato impugnado não padece do vício de usurpação de poderes, incorreu em erro de direito, violando os artigos 111.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1, da CRP, e, bem assim, o artigo 133.º, n.º 2, al. a), do CPA).
Acresce a isto que … considera que a jurisdição administrativa não é a competente para apreciar a validade de atos jurídico-privados, antes o são os tribunais comuns, pelo que o acórdão recorrido terá violado os artigos 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da CRP, e o artigo 1.º, n.º 1, do ETAF.
Segundo … recorrente, o acórdão recorrido incorreu ainda em erro de julgamento ao ter aplicado o artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar n.º 23/98 no caso concreto para assim cominar com nulidade os atos jurídico-privados de transmissão e aquisição da propriedade dos quais resultou o fracionamento. Em concreto, o acórdão recorrido fez uma errada interpretação daquele preceito, na parte em que menciona os atos administrativos, e, de igual modo, fez uma errada interpretação analógica de uma norma regulamentar restritiva, violando assim os artigos 17.º, 18.º, 62.º e 165.º, n.º 1, al. b), da CRP.
Mais ainda, ao aplicar o artigo 103.º do RJIGT para cominar com a nulidade um ato jurídico-privado alegadamente em desconformidade com o artigo 11.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, o acórdão recorrido fez uma errada interpretação e aplicação daquele primeiro preceito, na medida em que … este decreto regulamentar não é um instrumento de gestão territorial, mas um diploma que regulava a aprovação de um instrumento de gestão territorial de acordo com o respetivo artigo 18.º, com isto, dá-se também a violação do princípio da tipicidade dos instrumentos de gestão territorial.
Vejamos.
Em primeiro lugar, diga-se que o fracionamento do prédio rústico em causa nos presentes autos constitui o resultado da prática de atos jurídico-privados que tiveram como objeto o prédio rústico situado na área do PNA, parque natural criado pelo DL n.º 622/76, de 28.07, com vista à promoção de valores como, entre outros, a proteção da natureza, o desenvolvimento rural e a promoção de atividades recreativas ao ar livre, estando a construção de imóveis na sua área sujeita a certos condicionalismos legais. É sabido que o direito de propriedade pode sofrer restrições com vista à proteção de valores jurídicos superiores, como aqueles relacionados com a proteção do ambiente e do ordenamento do território. Justamente por isso, ou seja, por conta da necessidade de ponderar direitos, interesses e valores constitucionais em confronto, a al. a) do artigo 11.º (Atos e atividades sujeitos a autorização) do Decreto Regulamentar n.º 23/98 veio exigir que “O fracionamento ou parcelamento de terrenos rústicos que respeite as possibilidades e os limites estabelecidos por lei para as unidades de cultura, salvo se para efeitos de emparcelamento” dependa de uma autorização prévia da Direção do PNA.
Dito isto, cumpre agora sublinhar que … ora recorrente incorre num erro que vai inquinar toda a sua argumentação quanto a esta específica questão. É que o ato impugnado em parte alguma determinou a invalidade do ato de fracionamento. Com efeito, a invalidade de que trata o ato impugnado reporta-se ao licenciamento da operação urbanística … ora recorrente, invalidade essa que assenta, entre outras coisas, na circunstância de o referido licenciamento não ter tido em consideração a necessária autorização do órgão diretivo do PNA para se levar a cabo o prévio fracionamento do prédio rústico. Ou seja, contrariamente ao que alega … e não obstante se possa ler no acórdão recorrido que o fracionamento é nulo, não estamos perante uma situação em que a Administração tenha declarado nulo um ato jurídico-privado. Por assim ser, nada há que possa ser visto como uma situação de usurpação de poderes e de violação do princípio constitucional da separação de poderes. Consequentemente, não se alcança como possa o acórdão recorrido ter incorrido em erro de julgamento ao não ter considerado verificada a alegada usurpação de poderes, a alegada violação da reserva de jurisdição e a alegada violação do princípio da separação dos poderes.
Em segundo lugar, dúvidas não há que estamos em face de um ato administrativo (a ordem de demolição), praticado por uma pessoa coletiva pública (o PNA através do seu conselho diretivo) em aplicação de uma norma de direito administrativo no âmbito do urbanismo e ordenamento do território (as normas da Portaria n.º 26-F/80 …, do Decreto Regulamentar n.º 23/98, do RJUE e do RJIGT), razão pela qual os tribunais comuns, e não os tribunais administrativos, são os tribunais competentes nos termos do artigo 4.º, n.º 1, al. c), do ETAF, para resolver o presente litígio.
Em terceiro lugar, não é verdade que o artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar n.º 23/98 tenha servido para fundar a nulidade de atos jurídico-privados de transmissão e aquisição de propriedade. Nem o ato impugnado e nem o acórdão recorrido o fizeram, antes dão conta de que o controlo judicial dos atos jurídico-privados propriamente ditos, v.g., a escritura pública de doação celebrada em 09.03.2001, foi realizado pelo Tribunal Judicial de Setúbal. O que se diz no acórdão recorrido é que o ato de licenciamento camarário, ato administrativo, é nulo porque o fracionamento do prédio rústico em questão não foi precedido por uma autorização expressa do PNA, o que é uma questão bem diferente. Em consonância, não se pode falar aqui de uma aplicação analógica do mencionado artigo 19.º, n.º 5, a atos jurídico-privados e não se podem considerar violados os preceitos convocados … para sustentar a sua alegação.
Por último, também não é verdade que o acórdão recorrido tenha julgado no sentido da aplicação do artigo 103.º do RJIGT para cominar com a nulidade um ato jurídico-privado alegadamente em desconformidade com o artigo 11.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, o que nos dispensa de analisar o fundamento desta alegação, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, aqui aplicável ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Em face de todo o exposto, devem improceder as alegações … acabadas de analisar.
2.3. Segundo … recorrente, a interpretação feita pelo acórdão recorrido do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, interpretação segundo a qual se deve exigir um parecer expresso favorável do PNA para a realização de obras de construção, é inconstitucional. Vejamos se lhe assiste razão.
A inconstitucionalidade deriva, segundo … ora recorrente, da violação dos princípios da hierarquia das normas e do primado da lei, consagrados no artigo 112.º, n.º 5, da CRP, e do princípio da precedência da lei, consagrado no artigo 112.º, n.º 7, da CRP.
De forma mais concreta, e no que toca, antes de mais, à alegada violação dos princípios da hierarquia das normas e do primado da lei, teria havido uma derrogação de um ato legislativo - o RJUE ou o anterior DL n.º 445/91, de 20.11 - por um ato regulamentar - o Decreto Regulamentar n.º 23/98, pelo facto de no primeiro diploma se consagrar que a ausência de parecer no prazo estabelecido equivale a decisão de concordância.
Começaríamos por salientar que … ora recorrente tende a confundir duas realidades distintas: uma coisa é a inconstitucionalidade de uma interpretação normativa (possível, de acordo com o n.º 3 do artigo 80.º da LOTC), outra coisa é a inconstitucionalidade da própria norma. Tendo em conta que o artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 não estabelece ele próprio, de forma explícita, a exigência de um parecer favorável expresso do PNA para a realização de obras de construção, não se pode defender que ele viola o princípio e as normas em causa.
Quanto à interpretação normativa que é feita pelo acórdão recorrido, embora … recorrente não identifique qualquer norma dos diplomas legislativos que cita que tenha sido desrespeitada, presumimos que se trata do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE (diploma que revogou, entre outros, o DL n.º 445/91 … igualmente convocado …). O raciocínio em que se baseia a sua posição é simples: não regulando o Decreto Regulamentar n.º 23/98 os efeitos jurídicos do silêncio das entidades exteriores ao município, como é o PNA, aplica-se o artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, norma de carácter geral que estabelece uma presunção de concordância relativamente a esse silêncio. Ora, ao decidir no sentido da exigência de um parecer favorável expresso, o acórdão recorrido teria incorrido em erro de julgamento em virtude da interpretação que faz do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, a qual implicará a derrogação do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, norma contida em diploma legislativo. Não cremos que seja necessariamente assim. Com efeito, não obstante o Decreto Regulamentar n.º 23/98 tenha passado a distinguir entre os atos e atividades que carecem de autorização daqueles que carecem de parecer vinculativo, e não obstante isso significar que o legislador pretendeu distinguir as duas situações, isso não implica que se deva entender que em caso de silêncio se deve aceitar a presunção de concordância. Parece-nos um grande salto lógico que o legislador tenha passado de uma proibição de todo o tipo de trabalhos, obras ou atividades sem autorização do PNA para uma solução em que a não emissão ou não emissão atempada de um parecer vinculativo relativamente a certos atos e atividades equivale à concordância daquela entidade. Solução que também não combina muito bem com a gravidade da sanção de nulidade prevista no n.º 5 do artigo 19.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, preceito este que tem como epígrafe “Autorizações e pareceres vinculativos” (“São nulos e de nenhum efeito os atos administrativos que contrariem o disposto no presente diploma”). Cabe ainda recordar que o artigo 19.º do RJUE regula de forma genérica as relações entre os municípios e as entidades a eles exteriores, podendo aplicar-se a variadas e distintas operações urbanísticas, devendo salientar-se que a construção de obras particulares dentro ou fora da área de parques naturais não deve ser tratada da mesma maneira, o que implica que deva ser feita uma análise casuística de todas e cada uma das situações. Por último, resta sublinhar que a exigência de um parecer favorável expresso não é necessariamente afastada por esta opção do legislador em distinguir, no Decreto Regulamentar n.º 23/98, entre os atos e atividades que carecem de autorização e aqueles que carecem de parecer vinculativo. Com efeito, determina o artigo 20.º (Revogações) deste decreto regulamentar que “É revogada a Portaria n.º 26-F/80, de 9 de janeiro, com exceção do disposto nos artigos 8.º a 16.º, em tudo o que não disponham em contrário ao presente diploma”. Ou seja, ainda que se entenda que o artigo 12.º da Portaria n.º 26-F/80, designadamente o seu n.º 3, foi revogado pelo artigo 12.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, porque naquele se fala em “autorização” e neste em “parecer vinculativo”, não se retira daqui de forma automática e inexorável que já não é exigível um parecer favorável expresso porque, verdadeiramente, aquele preceito da portaria nem sequer mencionava qualquer parecer vinculativo ou não. A única diferença é que antes exigia-se de forma genérica uma autorização prévia para quaisquer trabalhos, atos e atividades, agora, para certos atos e atividades devidamente identificadas, exige-se um parecer vinculativo prévio.
Em face de todo o exposto, pode concluir-se que não está afastada a solução da exigência de um parecer favorável expresso, sendo esta, segundo cremos, a solução mais acertada quando estamos em face de licenciamento de construções em áreas de parques naturais, como é o PNA, ou, dito de outro modo, é a solução mais consentânea com a necessidade de proteção dos bens constitucionais em jogo, que se impõem ao interesse dos particulares e ao seu direito de propriedade, sem, contudo, eliminar este último.
No que se refere à alegada violação do princípio da precedência da lei, argumenta a ora recorrente que o DL n.º 19/93 … (diploma que estabelece a disciplina jurídica da Rede Nacional de Áreas Protegidas), lei habilitante do decreto regulamentar em apreço, “apenas lhe confere habilitação, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, al. b), para definir os atos e atividades condicionados ou proibidos e não para regular os efeitos do silêncio do PNA”. Assim sendo, a interpretação do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 “no sentido de excluir o parecer favorável tácito, tal como preconizado no Acórdão recorrido, é inconstitucional por violação do princípio de precedência de lei vertido no artigo 112.º, n.º 7, da Constituição”. Uma vez mais, será apreciada a interpretação do acórdão recorrido e não a norma propriamente dita. E, desde logo, chamaríamos a atenção para a circunstância de que o DL n.º 19/93 … não é propriamente uma lei de autorização que tenha de definir o objeto, sentido e extensão da autorização. Mais ainda, o Decreto Regulamentar n.º 23/98 não é um regulamento de execução, antes configura um regulamento independente emanado pelo Governo (cfr. art. 112.º, n.º 6, in fine). Ora, em termos de relação entre os regulamentos independentes e as respetivas leis habilitantes - e deixando de parte a posição minoritária na doutrina nacional segundo a qual este tipo de regulamentos independentes não carece de lei habilitante, constituindo os artigos 112.º, n.º 6, e 199.º al. g) da CRP a sua habilitação direta e suficiente -, o que temos é que, os regulamentos independentes “não visam executar, complementar ou aplicar uma lei específica (não têm como objeto uma determinada lei), mas, sim, dinamizar a ordem jurídica em geral (em regra, um conjunto de leis), disciplinando ‘inicialmente’ certas relações sociais, seja no exercício de poderes próprios de produção normativa primária pelas comunidades autoadministradas (regulamentos autónomos), seja no exercício de competência universal do Governo em matéria administrativa (regulamentos independentes governamentais), seja no exercício de poderes normativos genéricos concedidos por lei a autoridades reguladoras (regulação independente)”. Relativamente aos regulamentos independentes governamentais, como é o caso do Decreto Regulamentar n.º 23/98, para a sua emissão basta, nos termos dos artigos 112.º, n.º 7, da CRP, e 136.º, n.º 2, do CPA, uma lei habilitante que defina a competência objetiva (matéria específica) e subjetiva (órgão competente) - cfr. J.C. VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 2015, pp. 143 a 146 - “sem necessidade de definição do conteúdo dos comandos normativos a emitir pelo regulamento (liberdade de definição do conteúdo normativo. (…) Tais regulamentos não vêm, assim, complementar qualquer lei anterior, eventualmente carecida de regulamentação por via administrativa: a sua missão é, antes, estabelecer autonomamente a disciplina jurídica que há de pautar a realização das atribuições específicas cometidas pelo legislador às entidades consideradas” (cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2016, Coimbra, pp. 152-3). Em face desta compreensão dos regulamentos independentes, e tendo em consideração a concreta argumentação utilizada pela ora recorrente, constata-se que a mesma não é de molde a fundar a alegada violação do princípio da precedência da lei por parte da interpretação normativa adotada pelo acórdão recorrido.
2.4. Alega igualmente … recorrente que houve uma errada interpretação e aplicação do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98. No entender … recorrente, ao acolher o entendimento preconizado pela sentença da 1.ª instância, segundo o qual é exigível um parecer favorável expresso do PNA para viabilizar as obras de construção, o acórdão recorrido incorreu em errada interpretação e aplicação do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 conjugado com o disposto no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE. Mais ainda, erra igualmente quando afirma que existe legislação específica aplicável na área da PNA que afasta a regra geral da concordância tácita consagrada no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, violando não apenas esta disposição, mas, de igual modo, o artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil (CC). Vejamos se tem razão.
O acórdão recorrido, efetivamente, acompanha o raciocínio da decisão da 1.ª instância quanto à necessidade de um parecer favorável expresso, devendo afastar-se, in casu, a aplicação da presunção de concordância que consta do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE nos casos de inércia da Administração ou da emissão fora do prazo do necessário parecer. No seu entender, este último preceito encerra uma regra geral que não se aplica em face da especificidade da proteção dos bens existentes no PNA, especificidade que se comprova com a convocação de vários preceitos que regularam e que regulam ainda hoje este parque natural. Admitindo que o artigo 12.º, al. a), não menciona qualquer parecer favorável expresso, retira essa exigência de outros preceitos como o artigo 17.º da Portaria n.º 26-F/80 e os artigos 15.º, n.º 1, e 19.º, n.º 5, Decreto Regulamentar n.º 23/98. Deixando de parte o mencionado artigo 17.º da portaria, revogado pelo decreto regulamentar em apreço (e, portanto, não aplicável ao caso dos autos), temos que o acórdão recorrido estima que o decreto regulamentar que reclassificou o PNA estabelece ele próprio a solução para os casos de silêncio da Administração ao determinar que constitui contraordenação a construção de imóveis sem as autorizações e os pareceres vinculativos nos artigos 11.º e 12.º (art. 15.º, n.º 1) e ao cominar com a nulidade os atos administrativos que contrariem o disposto no decreto regulamentar em apreço (art. 19.º, n.º 5). Vale isto por dizer que são estes os preceitos que consubstanciarão a legislação específica que afasta a aplicação do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE. Sublinha ainda o acórdão recorrido que não é visível na disciplina vigente relativa ao PNA que o legislador tenha alterado, no sentido de atenuar, a proteção dos bens existentes no Parque. Esta argumentação que extraímos da fundamentação da decisão contida no acórdão recorrido vai ao encontro do que foi já dito supra quando se analisou da alegada inconstitucionalidade da interpretação que foi feita pelo acórdão recorrido do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, reiterando-se agora, de forma sintética, que a interpretação feita é uma interpretação possível, enquadrável na teleologia de várias normas do Decreto Regulamentar n.º 23/98 e a que melhor vai ao encontro das preocupações e objetivos do legislador em torno da necessidade de proteger os bens existentes no PNA. Acrescentaríamos apenas, para reforçar esta ideia da estrita conexão entre a exigência de um parecer favorável expresso e a importância dos bens a proteger, a circunstância de ser exigido um parecer vinculativo do PNA, sabendo-se que a regra na nossa ordem jurídico-administrativa é a da não vinculatividade dos pareceres. E, quanto aos primeiros, “quando as conclusões do parecer têm necessariamente de ser seguidas pelo órgão competente para decidir, na realidade a entidade que emite o parecer também decide. Aliás, esta é que será a verdadeira decisão: a decisão da segunda entidade é apenas a formalização de algo que já estava pré-determinado no parecer. Neste último caso, sempre que o parecer seja vinculativo, do que se trata é do ato administrativo ter dois autores: um é o órgão consultivo ou o especialista que emite o parecer vinculativo, e o outro é o órgão com competência para tomar a decisão definitiva, mas que é obrigado a seguir as conclusões do parecer” (cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2016, Coimbra, pp. 251-2). Ainda a este propósito, retenha-se que o CPA, na versão atualmente vigente, possibilita a emissão de decisão final no procedimento mesmo sem o parecer obrigatório facultativo, desde que tenha havido uma prévia interpelação do órgão a consultar por parte do responsável pela direção do procedimento (“6 - No caso de o parecer obrigatório ser vinculativo, a decisão final só pode ser proferida sem a prévia emissão daquele desde que o responsável pela direção do procedimento tenha interpelado, no prazo de 10 dias, o órgão competente para o emitir, sem que este o tenha feito no prazo de 20 dias a contar dessa interpelação”). Solução que não existia na versão vigente à data da prática do ato impugnado, quando o então artigo 99.º do CPA apenas se referia aos pareceres não vinculativos (“3 - Quando um parecer obrigatório e não vinculativo não for emitido dentro dos prazos previstos no número anterior, pode o procedimento prosseguir e vir a ser decidido sem o parecer, salvo disposição legal expressa em contrário”). Como facilmente se pode concluir, o sentido e alcance da previsão de um parecer vinculativo não se compadece muito bem com a tese de que o 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 não pode ser interpretado no sentido de exigir um parecer favorável expresso. Nessa medida, e tendo em conta todos os aspetos em concreto apreciados, não se pode dar por verificado o erro de julgamento relativo à interpretação do artigo 12.º, al. a), e nem a violação do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE.
2.5. Imputa ainda … recorrente ao acórdão recorrido nova violação do princípio da precedência da lei (art. 112.º, n.º 5, da CRP) ao defender que o n.º 5 do artigo 19.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, aplicado pelo acórdão recorrido como fundamento da nulidade do ato de licenciamento camarário o n.º 5 do artigo 19.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, viola o princípio da precedência da lei sobre os atos regulamentares. As leis desrespeitadas são o CPA - mais concretamente, o seu artigo 133.º, n.º 1 (segundo o qual “só são nulos os atos ‘para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade’” – e o DL n.º 19/93 … que “não confere qualquer habilitação ao decreto regulamentar para disciplinar o desvalor jurídico dos atos praticados em sua desconformidade”. Como se verá de seguida, não lhe assiste razão.
No que concerne à relação do Decreto Regulamentar n.º 23/98 com o DL n.º 19/93 … remetemos para o que já foi dito no ponto 2.3. Cumpre apenas acrescentar, deste modo, que o artigo 68.º do RJUE, a partir da sua segunda versão introduzida pelo DL n.º 177/2001, de 04.06, passou a prever a nulidade das licenças quando não tenham sido precedidas de consulta das entidades cujos pareceres são legalmente exigíveis. Como visto supra, de nada vale argumentar que foi solicitado ao PNA o devido parecer. Assim sendo, também não procede a alegação da ora recorrente de que o desrespeito do artigo 12.º, al. a), apenas geraria a mera anulabilidade nos termos do artigo 135.º do CPA, pelo que o acórdão recorrido, e antes dele o ato impugnado, teriam violado esse preceito e, bem assim, o artigo 133.º, n.º 1, do CPA.
2.6. … ora recorrente chama também a atenção para a circunstância de que o Decreto Regulamentar n.º 23/98 revogou parcialmente a Portaria n.º 26-F/80, tendo, por força do seu artigo 20.º, revogado os artigos 12.º, n.º 3, e 14.º, n.º 2, al. a), com isso passando a realização das obras de construção dentro da área do PNA a estar sujeita a prévio parecer vinculativo e não a autorização (art. 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98). Errou, desta forma, o acórdão recorrido ao julgar aplicáveis aqueles preceitos revogados da portaria em questão para fundar a nulidade do ato de licenciamento camarário, em violação dos artigos 12.º, al. a), e 20.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98. Vejamos.
Na parte final do ponto 3. do acórdão recorrido pode ler-se o seguinte:
O ato de licenciamento da construção emitido pelo Município de Setúbal não se conforma com o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, em face do disposto nos artigos 12.º e 14.º, n.º 2, al. a) da Portaria n.º 26-F/89, de 09/10 e do artigo 20.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14/10, enfermando de nulidade os atos praticados em sua violação, em face do que dispõe o n.º 5 do artigo 19.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14/10, o qual sendo um plano especial de ordenamento do território convoca a aplicação do disposto no artigo 68.º do RJUE e dos artigos 2.º, n.º 2, al. c) e 103.º do D.L. n.º 380/99, de 22/09”.
Antes deste remate final, explicava-se no acórdão recorrido, que aqui acompanha a sentença da 1.ª instância, que o ato impugnado considerou que não deveria ter sido concedido a licença camarária para a construção peticionada porque, entre outras coisas, não havia o necessário parecer favorável expresso, tal como exigido pelo artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98. Reconhecendo que uma tal exigência não está disposta de forma explícita nessa norma, procura arranjar sustentação jurídica para esta sua orientação. Entre os normativos que convoca para alicerçá-la estão, como se viu, os artigos 12.º, n.º 3, e 14.º, n.º 2, al. a), da Portaria n.º 26-F/80. Entende a ora recorrente que estes preceitos não poderiam ser aplicados porque revogados por força do artigo 20.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, com a epígrafe “Revogações”. Na realidade, o que este preceito estabelece é que “É revogada a Portaria n.º 26-F/80, de 9 de janeiro, com exceção do disposto nos artigos 8.º a 16.º, em tudo o que não disponham em contrário ao presente diploma”. Ora, o que … recorrente diz é que o artigo 12.º da portaria previa genericamente a necessidade de autorização para levar a cabo trabalhos, atos e atividades e que com o decreto regulamentar passou a distinguir-se entre os atos e atividades que carecem de autorização (11.º) e os que carecem de parecer vinculativo (art. 12.º), com isto sendo claro que o legislador pretendeu estabelecer uma distinção de situações, consoante se entenda que é necessária uma autorização ou um parecer vinculativo. Quanto a isso, não temos dúvidas, mas o que o acórdão recorrido pretendeu demonstrar foi que essa proibição de trabalhos, atos e atividades na ausência de autorização significa que estava em causa a necessidade de uma autorização expressa. Defender que esta solução não vale para aquelas situações em que agora apenas se exige um parecer vinculativo como condição para o licenciamento de novas construções não é uma decorrência lógica das alterações legislativas em causa. Das duas uma: ou o n.º 3 do artigo 12.º da portaria foi, pura e simplesmente revogado, e a verdade é que a recorrente não demonstra em que medida a sua manutenção em vigor dispõe em contrário “ao presente diploma”, pois apenas diz que não é aplicável naquelas situações em que agora se exige um parecer vinculativo; ou, como parece ser a posição … ora recorrente, só é revogado em relação a estas últimas situações. Sucede que esta tese não convence. Além de que seria uma duvidosa revogação seletiva, sempre se poderá contra-argumentar que se era essa a intenção do legislador ele deveria ter transposto este segmento para o novo artigo 11.º do decreto regulamentar, o que não fez. Significa isto que, extraindo o acórdão recorrido do n.º 3 do artigo 12.º da Portaria n.º 26-F/80 a ideia de que é necessário um parecer favorável expresso, e na medida em que essa conclusão não disponha contra o Decreto Regulamentar n.º 23/98, o que … recorrente não chega a demonstrar de forma cabal, não se pode afirmar que tenha havido revogação deste preceito na parte em que, de forma implícita, é certo, requer uma “autorização” expressa. Tal como não se pode afirmar que esta exigência apenas vale para aquelas situações para as quais se exige atualmente uma autorização e não para aquelas em que se exige agora um parecer vinculativo. Defender esta posição não significa convolar autorizações em pareceres vinculativos. Significa apenas que uma regra genérica que valia para determinadas situações continuou a ser genérica, não obstante essas situações tenham disso realojadas em dois preceitos distintos. Com isto, o que temos, é que tanto as autorizações como os pareceres vinculativos prévios têm de ser expressos, sob pena de invalidade do ato de licenciamento. Como visto antes, no que se refere aos pareceres obrigatórios vinculativos, como é aquele exigido pelo artigo 12.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, esta solução apresenta-se plena de sentido. Resta dizer que foi com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 141/2005, de 23.08 que finalmente foram revogados os artigos 12.º a 16.º da Portaria n.º 26-F/80. Em face de todo o exposto deve improceder mais esta alegação (…).
Ainda a este propósito, sustenta … ora recorrente que o ato impugnado nem sequer invoca qualquer norma da portaria em apreço que tenha sido preterida, razão pela qual padece de vício de violação da lei e deveria ter sido anulado de acordo com o artigo 135.º do CPA. Na medida em que … recorrente nada assaca ao acórdão recorrido quanto a este específico aspeto, nada há que apreciar.
2.7. Sublinha … ora recorrente a circunstância de que o acórdão recorrido “ao decidir que a Portaria 26-F/80 é um plano especial de ordenamento do território cuja violação dita a nulidade do ato de licenciamento camarário, padece de erro de Direito, fazendo uma errada interpretação e aplicação do artigo 68.º, al. a), do RJUE e do artigo 103.º do RJIGT, violando, ainda, o disposto no artigo 34.º da Lei de Bases de Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo e nos artigos 3.º e 154.º do RJIGT” (…). Como se pode constatar, a recorrente parece não concordar com a “decisão” do acórdão recorrido no sentido de qualificar a Portaria n.º 26-F/80 como um plano especial do ordenamento do território, “decisão” essa que terá feito o acórdão recorrido incorrer em outros erros de julgamento. Comecemos por apreciar a primeira parte da alegação … recorrente.
O DL n.º 622/76 … criou o Parque Natural da Arrábida (PNA); a Portaria n.º 26-F/80 aprovou o regulamento do Parque Natural da Arrábida e com ele o respetivo plano de ordenamento preliminar; o Decreto Regulamentar n.º 23/98 estabeleceu a reclassificação do Parque Natural da Arrábida. Ou seja, estamos perante um “parque natural”, uma categoria de área protegida de âmbito nacional nos termos do artigo 2.º, n.º 3, al. c), do DL n.º 19/93 …. Por sua vez, o artigo 1.º, n.º 3, do DL n. 151/95, estabelece que “Os tipos de planos especiais de ordenamento do território, para os efeitos do presente diploma, são os previstos no seu anexo, que dele faz parte integrante”. No mencionado anexo vêm mencionadas, no seu n.º 5, os “Planos de ordenamento de áreas protegidas”.
O Plano de Ordenamento do Parque Nacional da Arrábida apenas foi criado em 2005, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 141/2005 …, depois dos atos jurídico-privados que deram lugar ao fracionamento e transmissão do imóvel rústico, ao pedido de parecer do município de Setúbal ao PNA e ao despacho do Vereador da Câmara Municipal de Setúbal que emitiu a licença de construção. Até a essa data, vigorou o plano de planeamento preliminar publicado com a Portaria n.º 26-F/80 a que faz referência o n.º 3 do artigo 18.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98 (“Até à aprovação do plano de ordenamento referido no n.º 1, aplica-se o plano de ordenamento preliminar e o regulamento publicados pela Portaria n.º 26-F/80, de 9 de janeiro, incluindo as interdições e condicionamentos nele previstos, em tudo o que não seja contrário ao disposto no presente diploma”).
Em conclusão, e perante os normativos acabados de convocar, o plano de ordenamento preliminar do PNA deve ser considerado um plano especial de ordenamento do território (PEOT). A esta conclusão não obsta o disposto no artigo 154.º do DL n.º 380/99 …. Este preceito deve ser interpretado de acordo com aquela que era a intenção do legislador, a qual ficou bem expressa na lei de bases de 2008 (Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e do Urbanismo/LBPOTU - Lei n.º 48/98, de 11.08), sob pena de se desrespeitar a parametricidade material das leis de bases sobre os diplomas legislativos que as desenvolvem. Vejamos, então, como entender o mencionado artigo 154.º a partir do que estava pré-determinado na lei de bases.
Das disposições finais e transitórias da LBPOTU constavam os artigos 31.º (Planos regionais de ordenamento do território), 32.º (Planos municipais de ordenamento do território), 33.º (Planos especiais de ordenamento do território) - aí definidos como “Os planos especiais de ordenamento do território são os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas e os planos de ordenamento da orla costeira” - e o artigo 34.º (Outros planos) que assim dispunha:
1 - Todos os instrumentos de natureza legal ou regulamentar com incidência territorial atualmente existentes deverão ser reconduzidos, no âmbito do sistema de planeamento estabelecido pela presente lei, ao tipo de instrumento de gestão territorial que se revele adequado à sua vocação específica.
2 - O disposto no número anterior deverá considerar que:
a) A produção de quaisquer efeitos jurídicos externos pelos instrumentos com incidência territorial a integrar no sistema de planeamento territorial dependerá sempre, nos termos do artigo 11.º, n.º 2, da presente lei, da possibilidade de converter aqueles instrumentos em planos municipais de ordenamento do território ou em planos especiais de ordenamento do território;
b) Além de determinar o alcance dos efeitos jurídicos a produzir, a integração em qualquer das categorias de instrumentos de gestão territorial legalmente previstas impõe o cumprimento das regras relativas à respetiva elaboração, aprovação e entrada em vigor;
c) A integração nas categorias previstas no sistema de gestão territorial deverá fazer-se no prazo de dois anos a contar da entrada em vigor da presente lei, findo o qual deixam de vincular os particulares todos os instrumentos de natureza legal ou regulamentar com incidência territorial que não se enquadrem no elenco típico legalmente estabelecido.
3 - No prazo máximo de 180 dias, o Governo definirá em diploma próprio o procedimento a adotar”.
A melhor interpretação a dar a este último preceito, porque a mais lógica, é a de que a recondução a que se refere o n.º 1 é para aqueles “outros planos” que não se enquadravam em nenhum dos instrumentos com incidência territorial do “sistema de planeamento estabelecido pela presente lei, ao tipo de instrumento de gestão territorial que se revele adequado à sua vocação específica”. Ora, o plano do ordenamento preliminar do PNA, enquanto plano de ordenamento de áreas protegidas, já era juridicamente considerado um plano especial de ordenamento do território, categoria igualmente acolhida na LBPOTU, que o definia no seu artigo 33.º como “os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas e os planos de ordenamento da orla costeira”. Era naqueles “outros planos” que era necessário identificar a produção de efeitos jurídicos externos, sendo certo que os planos especiais de ordenamento do território, enquanto planos plurisubjetivos, produzem efeitos externos. A al. a) do n.º 2 do artigo 154.º é a expressão acabada disso: “a) A produção de quaisquer efeitos jurídicos externos pelos instrumentos com incidência territorial a integrar no sistema de planeamento territorial dependerá sempre, nos termos do artigo 11.º, n.º 2, da presente lei, da possibilidade de converter aqueles instrumentos em planos municipais de ordenamento do território ou em planos especiais de ordenamento do território” [negritos nossos].
O DL n.º 380/99 …, que desenvolveu as bases da LBPOTU, alterou a sistematização da lei de bases, e nas suas disposições finais e transitórias apenas manteve, para o que agora nos interessa, o artigo 153.º, relativo aos planos regionais de ordenamento do território, e o artigo 154.º dedicado aos outros planos, com o conteúdo que seguidamente se reproduz:
1 - Todos os instrumentos de natureza legal ou regulamentar com incidência territorial atualmente existentes continuam em vigor até à respetiva adequação ao sistema de gestão territorial estabelecido neste diploma, nos termos previstos nos números seguintes.
2 - Compete às comissões de coordenação e desenvolvimento regional a identificação no prazo de um ano das normas diretamente vinculativas dos particulares a integrar em plano especial ou em plano municipal de ordenamento do território.
3 - O Governo e as câmaras municipais devem promover, nos 180 dias subsequentes à identificação referida no número anterior, a correspondente alteração dos planos especiais e dos planos municipais de ordenamento do território.
4 - Os instrumentos com incidência territorial não abrangidos pelo disposto nos n.ºs 2 e 3 continuarão em vigor com a natureza de planos sectoriais”.
Os planos especiais de ordenamento do território vêm definidos no n.º 3 do artigo 42.º como “Os planos especiais de ordenamento do território são os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas e os planos de ordenamento da orla costeira” [negrito nosso].
Em face de tudo isto, pretender, como o faz … recorrente, que o plano de ordenamento preliminar do PNA é um plano sectorial nos termos do n.º 4 do artigo 154.º é, além do mais, e como se viu, uma interpretação inconstitucional do preceito em questão, na medida em que implicaria que esse preceito contraria as bases da LBPOTU, lei com valor reforçado nos termos do artigo 112.º, n.º 3, da CRP (“Têm valor reforçado (…) as leis que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis”, como é manifestamente o caso das leis de bases relativamente aos decretos-leis que as desenvolvem). Aliás, como igualmente não poderia deixar de ser, o artigo 157.º (Regime transitório) não refere a necessidade da recondução/adequação dos planos especiais com a aprovação em curso aquando da entrada em vigor do RJIGT porque, obviamente, já estavam a ser criados como planos especiais. Finalmente, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 141/2005 …, que aprova o plano de ordenamento territorial do PNA toma-o como um plano especial de ordenamento do território.
Passemos, agora, à segunda parte da alegação … recorrente.
O artigo 68.º, n.º 1, al. a), do RJUE estabelecia o seguinte: “São nulas as licenças, a admissão de comunicações prévias ou as autorizações de utilização previstas no presente diploma que: a) Violem o disposto em plano municipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território, medidas preventivas ou licença de loteamento em vigor”.
O artigo 2.º (Sistemas de gestão territorial), n.º 2, do RJIGT dispunha do seguinte modo: “O âmbito nacional é concretizado através dos seguintes instrumentos: (…) c) Os planos especiais de ordenamento do território, compreendendo os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas, os planos de ordenamento da orla costeira e os planos de ordenamento dos estuários”.
Por sua vez, o n.º 2 do artigo 3.º (Vinculação jurídica) do mesmo diploma determina que “Os planos municipais de ordenamento do território e os planos especiais de ordenamento do território vinculam as entidades públicas e ainda direta e imediatamente os particulares”.
No seu artigo 103.º (Invalidade dos atos) pode ler-se: “São nulos os atos praticados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial aplicável”.
Tendo em conta que o plano de ordenamento preliminar é/era um plano especial de ordenamento do território e, ainda, o teor dos preceitos acabados de mencionar, que se aplicam ao PNA, não se vê como tenha errado o acórdão recorrido quando afirma que a sua violação por ato de licenciamento camarário gera uma situação de nulidade (não sendo despiciendo lembrar que, com o RJUE, a nulidade passou a ser a regra no âmbito do direito do urbanismo, em contracorrente com o direito administrativo geral) ou quando afirma que, enquanto plano daquele tipo, vincula também os particulares.
Cabe, ainda, salientar que não tem razão … recorrente quando afirma que o acórdão recorrido aplicou uma norma revogada, mais concretamente o artigo 9.º, n.º 2, do DL n.º 622/76 … para fundar a nulidade do licenciamento camarário. Com efeito, essa norma é mencionada no âmbito de um apanhado histórico da disciplina jurídica do PNA, não decorrendo daqui que o acórdão funde nela a nulidade do ato de licenciamento camarário.
2.8. Por último, segundo afirma … ora recorrente, o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao entender que o ato de licenciamento da construção violou o regime jurídico da Rede Natura, e isto, por várias razões.
Por um lado, porque não foi convocada nenhuma norma específica desse regime e não foi produzida qualquer prova nos autos, apenas tendo o PNA invocado essa suposta violação.
Por outro lado, porque “foi promovida pelo Município a consulta do PNA, serviço local do Instituto da Conservação e da Natureza (ICN), para se pronunciar sobre a operação urbanística, foi promovida a consulta ao ICN para efeitos do regime Rede Natura e produziu-se parecer favorável tácito pela ausência de resposta no prazo legal”. Por assim ser, “o Tribunal recorrido ao não anular o ato recorrido fez uma errada interpretação do artigo 8.º, n.ºs 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de abril, que se afigura desconforme com o princípio de desconcentração administrativa acolhido pelo artigo 267.º, n.º 2, da Lei Fundamental” (…). No entender … ora recorrente, “O ato impugnado ao determinar que a consulta ao PNA para efeitos de regime da Rede Natura não teve lugar porque o Município tinha de referir, expressa e especificamente, que a consulta era promovida para efeitos do regime jurídico da Rede Natura, violou, ainda, o disposto no artigo 19.º, n.º 10, do RJUE, pelo que deveria ter sido anulado pelo Tribunal” (…).
Vejamos se lhe assiste razão.
O n.º 1 do artigo 8.º do DL n.º 140/99 … determinava que “Nos casos previstos no n.º 8 do artigo anterior, ficam sujeitos a parecer do ICN ou da direção regional de ambiente territorialmente competente os seguintes atos e atividades: a) A realização de obras de construção civil fora dos perímetros urbanos, com exceção das obras de reconstrução, ampliação, demolição e conservação”. O n.º 3 deste dispositivo dispunha do seguinte modo: “A ausência de parecer no prazo previsto no número anterior equivale à emissão de parecer favorável”. Comecemos pelo n.º 1. Parece-nos claro que quando se fala de parecer do ICN ou da direção regional de ambiente territorialmente competente (na redação introduzida pelo DL n.º 49/2005, de 24.02, passou a ser “ICN ou [d]a comissão de coordenação e desenvolvimento regional competente”) a referência diz respeito a parecer a ser emitido por órgãos próprios do ICN (atualmente ICNP) ou dessas outras entidades. O facto de o PNA, enquanto parque natural, ser gerido pelo ICN(P) (ou, como afirma a recorrente, ser “serviço local do Instituto da Conservação e da Natureza”) não significa que o parecer a ser pedido ao ICN possa ser transmutado em parecer a ser pedido ao CD do PNA. E por que razão ao CD e não ao seu Conselho Consultivo? Acresce a isso que o n.º 1 do artigo 8.º do DL n.º 140/99 exige a emissão de parecer, nada mencionando quando à sua vinculatividade, e o n.º 3 estabelece de forma explícita que a ausência de pronúncia equivale a parecer favorável, o que reforça a ideia de que o parecer exigido certamente que não é o mesmo que deve ser requerido aos órgãos próprios dos parques naturais. Seja como for, e como bem assinala o acórdão recorrido, o ato impugnado concluiu no sentido da nulidade do ato de licenciamento camarário com vários fundamentos que não apenas a falta de parecer nos termos do artigo 8.º, n.º 1 (relembre-se, a nulidade do ato de fracionamento e a ausência de parecer favorável expresso do CD do PNA, questões já apreciadas). Cumpre, por último, mencionar que, se não foi convocada nenhuma norma específica do regime jurídico da Rede Natura, a verdade é que a ora recorrente não teve dúvidas de que o que estava em causa era a ausência do parecer exigido pelo art. 8.º, n.º 1…».

14. Daí que, em face do explicitado, improcedem in toto as críticas acometidas pelo recorrente ao acórdão recorrido e, nessa medida, importa negar provimento ao presente recurso com a consequente manutenção da decisão objeto de impugnação.
DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar provimento ao recurso jurisdicional sub specie, e, em consequência, manter o acórdão recorrido.
Custas a cargo do recorrente.
D.N..
Lisboa, 29 de outubro de 2020.
[O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Conselheiros Maria Benedita Malaquias Pires Urbano e Jorge Artur Madeira dos Santos]
Carlos Luís Medeiros de Carvalho