Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01355/10.4BEBRG 0459/15
Data do Acordão:05/11/2023
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM
CEMITÉRIO
JAZIGO
Sumário:I – O nº 3 do art. 37º do CPTA apenas permite, em ação proposta por particulares contra outros particulares, nomeadamente concessionários, a defesa de “direitos ou interesses” dos demandantes que, alegadamente, sejam “diretamente ofendidos” pela “violação”, pelos demandados, “de vínculos jurídico-administrativos decorrentes de normas, atos administrativos ou contratos”.
II – Se o distanciamento do jazigo construído pelos demandados, confinante num dos quatro lados (norte-sul) com o jazigo dos demandantes, é superior ao distanciamento mínimo legalmente imposto (de 0,40m), estando assegurado mais de um acesso com uma largura mínima de 0,60m, respeitando também o legalmente imposto (cfr. art. 8º § 3º do Dec. 44.220, de 3/3/1962 e art. 15º § único do Dec. 48770, de 19/12/1968), não se verifica incumprimento legal no distanciamento entre os dois jazigos, não resultando, pois, violado, pelos demandados, qualquer vínculo legal suscetível de diretamente ofender direitos ou interesses dos demandantes.
Nº Convencional:JSTA00071731
Nº do Documento:SA12023051101355/10
Data de Entrada:10/29/2021
Recorrente:AA
Recorrido 1:BB E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:ARTIGO 8.º § 3.º DO DECRETO 44.220, DE 3 DE MARÇO DE 1962
ARTIGO 15.º § ÚNICO DO DECRETO 48770, DE 19 DE DEZEMBRO DE 1968
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. AA e CC, Réus na presente ação, contra si instaurada, em 30/7/2010, como “ação administrativa comum”, pelos Autores (ou seus herdeiros habilitados) DD, BB, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, SS e TT, vêm interpor o presente recurso de revista do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 31/1/2020 (cfr. fls. 1561 e segs. SITAF), que concedeu provimento ao recurso de apelação que os Autores interpuseram da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (TAF/Braga) de 14/5/2018 (cfr. fls. 1455 SITAF) - que havia julgado improcedente a ação, absolvendo os Réus e a Interveniente (Junta de Freguesia ...) do pedido -, e que, revogando esta sentença, julgou a ação procedente e condenou os Réus «a demolir a obra de construção do jazigo sito na Secção ... – Sepultura 22 e 23 – do Cemitério ..., de forma a que o jazigo concessionado ocupe apenas, e só, a área concessionada de 6,250 m2, e, ainda a realizar todas as obras necessárias para a reconstituição da situação antes existente nos espaços confinantes».

2. Os Recorrentes/Réus concluíram do seguinte modo as suas alegações do presente recurso de revista (cfr. fls. 1589 e segs. SITAF):

«A - Fundamentação da admissibilidade do Recurso de Revista Excecional

a) - No caso dos autos, está em causa a apreciação de questões de direito substantivo que pela sua relevância jurídica e social, se revestem de importância fundamental, bem como a admissão do recurso, no caso, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

1 - No caso dos autos está em causa a “questão jurídica” de se definir, por densificação normativa do Dec. 44.220, de 03-03-1962, nomeadamente quanto ao seu art. 8°, § 3°, se relativamente às sepulturas/jazigos dum Cemitério Público, as mesmas deverão ter “um acesso com a largura mínima de 0,60 centímetros"; bem como, se devem existir “intervalos entre as sepulturas” e se com “largura ... nunca inferior a 0,40 centímetros”,
1.1 - E, também, especificamente, se tais “acessos" e “intervalos” (soleiras de bordadura) integram ou não as “concessões de jazigos”, e para “uso privativo”.
Ou se. não fazendo parte da “concessão”, ou “fazendo”, todavia, em qualquer das hipóteses - o concessionário, ainda que nesses espaços (“soleiras de bordadura”) faça obras de “benfeitorização”, todavia tal não lhe atribui o “uso privativo” dessas soleiras de bordadura, que remanescem no “domínio público”.
E, se, sendo “espaço destinado a uso público”, tal área é, ou não de incluir na “área concedida” - ou se não a integra.
2 - Ora, todas essas questões de “direito substantivo, levantadas no processo, são de importante relevância social, como carecem de clarificação jurisprudencial, pois, se não, podendo causar insegurança, perplexidade e alarme social aos Cidadãos.
Na verdade, no próprio Cemitério ..., as referidas “questões” são objeto de questionalidade. Assim, na Ata n° ...7, de 19-12-2010, da Assembleia da Freguesia ... (doc. ...1, fls 4/8 junto com a Réplica).
E, se as denominadas “soleiras de bordadura” “integram” o espaço objeto da concessão, - então também dezenas de “jazigos”, no Cemitério ... estarão em “ilegalidade” - por ocuparem mais área do que a “concedida” e, por entre os jazigos, não existir superfície livre do domínio público.
3 - E, tais questões levantadas, de direito substantivo, no Recurso, (de errada aplicação, pelo Acórdão recorrido, do devido “conceito normativo” do Dec. 44.220). também postulam que a admissão do recurso, não só no caso, como muito para além dele, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito - a fim de se definir perante o Cidadão, sem incertezas e perplexidades, e sem decisões contraditórias (como da 1ª Instância e do Tribunal recorrido) -qual a “qualificação” de domínio, (público, concessionado ou privado) das denominadas “soleiras de bordadura”;

b) No caso dos autos, está em causa, também, a apreciação de questões de direito processual que pela sua relevância jurídica e social se revestem de importância fundamental. Bem como, a admissão do recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito

4 - No caso dos autos, está em causa quer a violação, pelo Acórdão recorrido, da “norma jurídica” do art. 37°, n° 3, do CPTA, quer a violação da “autoridade de caso julgado”, do Acórdão do T.C.A.N. proferido nos autos aos 05-12-2014.
Ora, quanto a tal densificação normativa, a mesma postula que a “forma processual” do presente processo só será válida, “se" o pedido dos A.A. for o referido nos itens 12 e 13 do corpo das Alegações e para condenação dos Réus nesse pedido específico, o que, aqui, se dá por reproduzido.
4.1 - E, por sua vez, no caso dos Autos, já existe Acórdão do TCAN, de 05-12-2014, que, devidamente densificado, por interpretação de tal vontade jurídica, “define” “qual” o pedido especifico relevante e a ter em conta na presente “forma” de processo, do referido art. 37°, n° 3, do C. P. T. A. e consequente “delimitação da Condenação" - e que, o Acórdão recorrido, na respetiva decisão, viola.
5 - ORA, quer a devida interpretação da “norma” do art. 37°, n° 3, do C.P.T.A., quer a valência da “autoridade de caso julgado” do dito Ac. do T.C.A.N. de 05-12-2014 - são questões do direito processual que pela sua relevância jurídica e social se revertem de importância fundamental.
Como, também, a admissão do recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, nesses aspetos jurídicos, específicos referidos (“forma de processo” e “autoridade de caso julgado”).
6 - E, são questões que extravasam o caso dos autos; não estão correntemente definidas e até podem beliscar a “defesa do prestígio dos Tribunais” (cit. A. Reis), a “igualdade do Cidadão perante a Lei” e criar “alarme social”.

B - Violação pelo Acórdão recorrido da Lei, processual e substantiva.

a) 1- Violação do Caso Julgado, do precedente Acórdão do T. C. A. Norte, proferido nos autos, aos 05-12-2014.

7 - Por Acórdão do T. C. A. Norte, proferido nos autos, aos 05-12-2014, a presente forma de processo é válida ao abrigo do art. 37°, n° 3, do CPTA, porquanto se trata, por parte dos Autores, de acionar “particulares, nomeadamente concessionários", no caso os Réus, em defesa de “direitos ou interesses (que) sejam diretamente ofendidos" por condutas indevidas dos acionados.
E para “pedir ao tribunal que condene os mesmos a adotarem ou a absterem-se de certos comportamentos, por forma a assegurar o cumprimento dos vínculos em causa" (págs. 6, in fine, e 7, do douto Acórdão).
8 - ISTO É, a forma de processo em causa é válida, mas, tão só, para obter tutela por parte dos Autores de “seus direitos difusos" - cuja violação se assaca aos Réus, ao terem condutas que violem vínculos jurídicos administrativos em que se encontrem.
9 - E, mais se escreve em tal Acórdão do TCAN, de 05-12-2014, que os AA invocam como “causa de pedir”, que os Réus “levaram a cabo obras de construção de um jazigo, tendo ocupado ilicitamente os intervalos destinados à circulação de pessoas”.
E. “assim, a construção dificulta/impede o acesso aos jazigos, nomeadamente, ao jazigo dos AA” (pág. 7, do dito Acórdão).
10 - ISTO É, o pedido dos AA, na forma deste processo, só tem cabimento e só nessa restrição deve assumir-se, se é para defesa desse “direito difuso" dos AA - de acederem e permanecerem no seu jazigo, pelas “soleiras de bordadura” que sejam de respeitar pelos Réus, quanto a tal uso. E, se se prova que os Réus obstaram a tal uso.
11 - E o Acórdão em causa do T. C. A. N., de 05-12-2014, tem necessariamente um “conteúdo normativo” que será esse o vinculativo. E este obtém-se por “interpretação jurídica”, e como “vontade normativa", e não vontade psicológica.
E, não é outra tal vontade normativa, senão a antes referida, no item 10.
E. quanto a ela se verificando a autoridade de caso julgado (ar°. 205°, n° 2, da C.R.). Aliás, o mesmo resultado interpretativo é o assumido na douta sentença recorrida.
12 - Ora, e como decide o Ac. S.T.J., 24-01-1990, “é matéria de direito a interpretação efetuada segundo o critério legal do art. 236°, n° 1, do CC.”. (AJ- 5°/90, p. 12).
E, como decidiu o Ac. S.T.J., de 04-12-1997, - será “juridicamente relevante”, o sentido que “lhe seria dado”, por um declaratário, “suposto como sendo pessoa medianamente instruída, diligente e sagaz, quer no tocante à pesquisa das circunstâncias atendíveis, quer relativamente ao critério a utilizar na sua apreciação” (SASTJ, 15/16, 250).
13 - ORA, assim sendo, é indubitável que o “conceito normativo” do referido Ac. T.C.A.N. de 05-12-2014. é o referido supra (n° 10).
E nem se vê que possa ser outro.
Mas se o é - que se explicite qual seja e qual o fundamento - a fim de se respeitar o principio legal da “suficiência substantiva do decidido" (art. 2º da C.R.).
14 - Mas então, o Acórdão recorrido violou o “conteúdo normativo” do citado Ac. T.C.A.Norte, de 05-12-2014 e, como tal, deve revogar-se por ofensa do “caso julgado”, e da respetiva autoridade nestes autos (art. 205°, n° 3, da C.R.).
15 - Pois que, o “pedido” dos A.A. a avaliar e a eventualmente proceder nestes autos só poderia ter sido o de se ajuizar se as obras do dito jazigo (22-23), levadas a cabo pelos Réus, prejudicavam o “direito difuso” de acesso e circulação de pessoas ao jazigo dos AA, por não existir, livre e desocupada, uma área, em volta os jazigos. E, consequentemente, a condenação só poderia ser a preservação desse espaço de “soleira de bordadura”, se tal violação, in caso, ocorresse.
16 - ORA, tal não se provou nos autos - e o ónus da prova cabe aos AA, (art. 342° do C.C.).
Na verdade, conforme item 22, do Acórdão recorrido da “fundamentação de facto", do Acórdão recorrido, “são as seguintes as distâncias a partir da sepultura dos Réus:
a) Do lado Norte com a sepultura n° 20/21, a distância é de 0,46 centímetros.
16.1 - E, por sua vez, o Perito quanto às respostas que deu e que foram a fonte da assunção da referida matéria factual esclareceu o seguinte, a 08-01-2018:
“pontos 4 e 5 - É opinião do perito que as soleiras de bordadura não fazem parte integrante dos jazigos e destinam-se ao acesso e permanência. Se assim não fosse, os jazigos centrais não possuiriam acessos”.
17 - Consequentemente, o Acórdão recorrido ao dar, na sua essência, procedência ao pedido dos AA., formulado na P.I., e ao condenar os R.R. “a demolir a obra de construção do jazigo sito na seção ... - Sepultura 22 e 23 - do Cemitério ..., de forma a que o jazigo concessionado ocupe apenas, e só, a área concessionada de 6.25 mts2, e, ainda, a realizar todas as obras necessárias para a reconstituição da situação existente nos espaços confinantes - ofendeu a referida “autoridade de caso julgado”, do referido Acórdão, de 5-12-2014, proferido nos autos e transitado.
18 - E, como tal, deve o Acórdão recorrido ser revogado.
Mantendo-se a decisão recorrida, como determinam os arts. 2º, 20°, n° 4, 205°, n° 3 da C.R. e arts. 577°, i), 578° e 580°, n° 2, do C. Pr, C. e, por analogia, o art. 88° do CPTA - dada a “autoridade de caso julgado" referido.

b) - Violação, pelo Acórdão recorrido, da “norma” do art. 37°, n° 3, do CPTA.

19 - Mas, e sem prescindir, independentemente do referido Acórdão precedente, sempre e em si, o Acórdão recorrido viola o art. 37°, n° 3 do CPTA - no seu “sentido normativo". E, assim, deve proceder o Recurso e revogar-se o Acórdão recorrido. E, uma “lei" é violada não só, pela positiva, se aplica mal; como, pela negativa se deixa de aplicar-se - como realça Antunes Varela - a "obediência à Lei" - consubstancia-se "nessa exclusiva subordinação à norma aplicável ao caso concreto - à norma, não à Lei e nem sequer ao Direito" (os juízos de Valor da Lei a C.J., XX, 1995, T. V, 14).
20 - Pois, a presente forma processual, permitida pelo art. 37°, n° 3, só será válida se o pedido dos A.A. for atendido como referido supra no n° 7, e aqui dado por reproduzido e se a condenação for nesse pedido específico.
Ora tal não se provou nos autos.
E, para defesa do “domínio público”, em si, e a forma devida é a de “ação popular”.
E o direito de “aceder a juízo” deve ser através da “ação adequada" (art. 2º, 2, do C.Pr.C.).

c) - Falta de fundamentação legal, no Acórdão recorrido, na decisão de que as “soleiras de bordadura” são juridicamente partes integrantes da “concessão” do terreno para jazigo.

21 – O conteúdo normativo duma “decisão judicial”, determina-se e abrange não só a parte expressa, como o que, no respetivo decorrer lógico, foi seu pressuposto. Como postula o art. 236° do C. Civil.
22 - Ora, a parte dispositiva da condenação do Acórdão recorrido, tem como pressuposto lógico ter assumido, ter julgado, ter decidido que as faixas, à superfície, de circulação e manutenção-peatonal, ao redor de sepulturas/jazigos e benfeitorizadas pelo concessionário - as comummente designadas “soleiras de bordadura” - são partes integrantes da concessão de terrenos das respetivas sepulturas/jazigos confinantes, e pois em uso privativo, e respetivo, dos mesmos, e a “incluir" na “área da concessão”.
23 - TODAVIA tal “qualificação” é manifesta “assunção de direito", de “qualificação jurídica”, de tal “categoria” (soleiras de bordadura) - Ora, tal “assunção jurídica” não é fundamentada, pelo Acórdão recorrido, em qualquer disposição legal ou contratual.
E, carece de sê-lo, como dispõem os arts. 2º, 20°, n° 4 e 205° da C.R. (postulando o principio da suficiência substantiva de fundamentação do decidido) e o art. 154° do C.Pr. Civil.
E, também, tal “assunção jurídica”, aliás, não tem, in casu, fundamento legal.
24 - Pois, desde logo (os terrenos), dos Cemitérios de Freguesias pertencem ao “património da Freguesia”, de carácter público; cabendo à respetiva Junta “administrá-los e conservá-los”; e, podendo “conceder terrenos ... para jazigos, mausoléus e sepulturas" (arts. 1° e 30°, n°1, e), n°4, c) e n° 6, d), da Lei 5-A-2002, de 11-01-2002.
24.1 - Então, antes de mais, as faixas de terreno, ao redor de sepulturas (bordaduras), que estão no uso público-peatonal (soleiras) são de “domínio público”.
Quer porque assim são, de “génese”, quer porque “a afetação de uma coisa à utilidade pública é uma forma de lhe atribuir carácter dominial” (Ac. S.T.Ad., de 26-06-2014, Proc. 01174/12).
25 - Por sua vez, também não resulta dos autos que na “concessão do terreno” aos Réus, pela Junta de Freguesia, para o jazigo em causa (22-23, Seção ...) fosse incluída a cedência do referido “espaço”, de “soleira de bordadura”, entre esse talhão (22-23) e o talhão próximo dos AA (20-21), e para “uso privativo”.
25.1 - E, até, o contrário é afirmado pela própria Junta de Freguesia (art. 5º do seu articulado). Bem como, pelo Perito (nos referidos esclarecimentos que prestou - em que excluiu do Projeto apresentado, tal área adjacente).
26 - E, a “benfeitorização” de tal espaço, pelo concessionário também não é “fonte legal” de aquisição da “privacidade do uso”. E, também, no caso não é chamada à colação, a “acessão" (art. 1340° do C. Civil).
27 - MAS, então, a decisão, pelo Acórdão recorrido, referida supra (n° 22), e que é antecedente lógico da decisão final - não pode assumir-se e deve revogar-se, dado que não vem exarada com fundamentação bastante. E, nem existe, para tanto fundamento legal.
E, como tal, viola a Lei e deve revogar-se - como determinam as “normas jurídicas”, densificadas devidamente, dos arts. 2º, 20°, n° 4 e 205° da C.R. e 6º da C.E.D.H. e art. 154° do C. Pr. Civil.
28 - E, jurídica e verdadeiramente, se a referida faixa de terreno, à superfície, entre os jazigos dos referidos talhões 22/23 e 20/21, eram e são do “cemitério”; “estão afetos à utilização pública”, de permanecer e aceder aos jazigos, e não são “objeto de concessão de uso privado”, aos Réus, nem estes as mantêm em “uso privado” e “impeditivo” de outrem - então, tais “áreas”, tais “soleiras de bordadura”, não integram o jazigo dos Réus, nem a sua área privada e estão na disponibilidade de uso dos cidadãos - e assim nenhuma norma legal é violada pelos Réus.
29 - Diga-se, até, que constituírem as “soleiras de bordadura”, nos Cemitérios, uma área de terreno, afeta ao uso público, e que não integra “o uso privativo" dos concessionários de jazigos adjacentes - é uma avaliação PÚBLICA e NOTÓRIA, do COMUM dos CIDADÃOS. E, de acordo com a “unidade do sistema jurídico” - e, como realça Batista Machado - "há que salvaguardar e respeitar uma coerência intrínseca da unidade jurídica". (Introdução ao Direito 13ª ed., 2002, p. 183). Como postula o art. 9º do C. Civil.

d) - Errada assunção e aplicação, pelo Acórdão recorrido da “norma” do art. 8º, § 3º, do Dec. 44.220, de 3-03-1962, ao caso dos autos.

30 - ORA, assim sendo, também não corresponde à realidade, e à juriscidade existente no dito Cemitério - e por todos conhecida e também afirmada pela Interveniente Junta de Freguesia - e de acordo com os “juízos de valor legais”, do Dec. 44.220, de 03-03-1962, que os A.A. tenham de “galgar ambos os jazigos, … para poderem velar os seus entes queridos”. Como se afirma no Acórdão recorrido, pág. 16.
31 - Bem pelo contrário, o que resulta da realidade conhecida por todos os Habitantes de ..., ... e pelos A.A., e como resulta da matéria dada como provada nos autos e constante do referido Relatório Pericial e ditos Esclarecimentos, é que:
- Entre o jazigo dos A.A. (29/21) e o dos Réus (22/23), existe um espaço, à superfície (chão, solo), aberto e disponível à permanência e circulação peatonal de pessoas, que queiram visitar os jazigos do Cemitério ...;
- Espaço esse, como “soleira de bordadura”, com 0,46 centímetros de largo;
- Que não está “impedido” por qualquer “uso privativo” dos Réus.
- E que assim era e permanece no “domínio público".
32 – ORA, assim sendo, o Acórdão recorrido fez incorreta assunção e aplicação ao caso dos autos, do disposto no cit. art. 8°, § 3, do Dec. 44.220. E, como tal deve ser revogado, e mantida a sentença de 1ª Instância.
E, uma Lei tanto se viola pela positiva; como se, pela negativa, não é aplicada no seu “devido sentido normativo”, e deveria sê-lo (art. 205° da C.R.).
33 - Pois que, o jazigo dos A.A. tem “um acesso”, com 0,60 centímetros. E, na confluência com o jazigo dos Réus, existe também uma “soleira de bordadura”, de acesso peatonal aberto ao público, de 0,46 centímetros.
E, por força do cit. Dec. 44.220 até bastariam 0,40 centímetros.
34 - E, assim, não é violado o cit. Dec. 44.220, nem nenhuma outra disposição legal ou regulamentar com base em não estar respeitada uma certa distância entre jazigos, sem apropriação exclusiva do concessionário e antes destinada a uso peatonal público - consubstanciando a colação do Dec. 44.220, art. 8º, § 3, por parte do Acórdão, para sustentar a sua expressa decisão, uma ínsita violação do “conceito normativo” de tal “norma”. E. como tal, deve revogar-se o Acórdão recorrido.

e) - Violação da norma Constitucional da “proibição de excesso”.

35 - Decorre do art. 2º da C.R., o princípio normativo constitucional da “proibição do Excesso”, ínsito no Estado de Direito (Ac. T.C., 612, de 13-12-2011).
36 - ORA, no caso dos autos, o “direito difuso” cuja proteção os Autores podem peticionar em juízo (art. 20°, n° 4, da C.R. e art. 2º, 2, do C. Pr. C.) e na forma de processo dos presentes autos, é o de disporem duma “soleira de bordadura”, ao nível do seu jazigo, que lhes permita acederem e permanecerem na bordadura do jazigo, e com as dimensões legais ou regulamentares.
37 - ASSIM, o Acórdão recorrido ao chamar à colação e avaliar e aplicar o citado § 3º do art. 8º do D. 44.220, como “norma legal” a sustentar a referida condenação dos Réus - só o poderia ser à demolição das obras de construção do (dito jazigo), na medida do “necessário, adequado e proporcional”, à salvaguarda do direito difuso dos A.A. de terem à disposição, rodeando o jazigo deles, uma área, à superfície, de permanência e circulação peatonal, livre e desocupada, aberta ao público, num mínimo de 0,40 centímetros.
Pelo que, a “condenação” decidida pelo Acórdão recorrido, indo além, viola o citado princípio constitucional da “proibição de excesso”.
38 - Mas condenação essa que, in casu, nem nessa medida podem ser os RR. condenados, dado que os A.A. não provaram que tal área não exista: e, bem pelo contrário, até nos autos resulta provado o contrário.

f) - Violação da norma constitucional da igualdade dos Cidadãos perante a Lei - Alarme Público.

39 - Conforme determina o art. 13° da C.R. “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei".
40 - ORA, no Cemitério ..., inúmeras sepulturas/jazigos, com tal inclusão das “soleiras de bordadura” na área concessionada, então ocupariam (privativamente), não só áreas superiores às concessionadas, como entre si não respeitariam a existência de qualquer área de terreno, à superfície, do “domínio público” para acesso e permanência aos jazigos/sepulturas, e poderem os cidadãos velar os seus entes queridos.
41 - Mas, “assim sendo”, tais jazigos/sepulturas - e centenas de outros que similarmente existem por Portugal inteiro - estão em situação ilegal - lesando a “dominialidade pública".
E, como tal, qualquer cidadão, nomeadamente da freguesia ..., pode instaurar ações populares para demolição das referidas sepulturas/jazigos e defender o domínio público.
42 - ORA, tal assunção de tal norma, referida supra no n° 22, por um Acórdão dum Tribunal - não pode deixar de causar forte alarme social, no Comum dos Cidadãos: que, assim, se sentirão ingressos em manifestas ilegalidades, de, não só ocuparem mais área do que a concessionada, como, ainda, não deixarem entre os jazigos (com tal inclusão) área do “domínio público”, de acesso e em redor das sepulturas/jazigos.
43 - E, consequentemente, poderem ser réus - até em ações populares" em que se peticione a demolição de tais jazigos.
44 - Pelo que, também por avaliação do Acórdão recorrido, nesta dimensão, o mesmo deve revogar-se e manter-se o decidido na Sentença da 1ª Instância.

Termos em que, e no muito que será suprido deve admitir-se o Recurso de Revista Excecional e, dando-se procedência ao mesmo, revogar-se o Acórdão recorrido, mantendo-se o decidido na sentença da 1ª instância, julgando-se improcedente a presente ação e absolvendo-se os Réus e a Interveniente do pedido, com custas a cargo dos Autores».

3. Não foram apresentadas contra-alegações, em sede do presente recurso de revista, quer pelos Recorridos/Autores quer pela Interveniente (Junta de Freguesia ...), conquanto para tal notificados (cfr. fls. 1640 e 1641 SITAF).

4. O presente recurso de revista foi admitido pelo Acórdão de 7/10/2021 (cfr. fls. 2281 e segs. SITAF) proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 6 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«(…) 9. A ação administrativa sob apreciação foi proposta pelos AA. contra os RR. peticionando a demolição da obra de construção do jazigo sito na secção ... - sepultura 22 e 23 - do Cemitério Paroquial concessionado aos RR., por inobservância da largura instituída entre talhões e de forma a que o jazigo concessionado ocupasse apenas e só a área de 6,250m2, assim como, a condenação daqueles a realizarem todas as obras necessárias para a reconstituição da situação existente nos espaços confinantes.
10. O TAF/BRG julgou totalmente improcedente a ação administrativa sub specie por considerar, nomeadamente, que «não se verifica haver qualquer ilegalidade em torno das
distâncias entre sepulturas/jazigos» [cfr. fls. 1455/1465], juízo que o TCA/N revogou, extraindo-se, em suma, da sua linha fundamentadora, que as «zonas públicas de acesso/passagem/permanência de um cemitério são um bem do domínio público não concessionado, insuscetível de aquisição, cujas dimensões mínimas estão definidas na lei - §3 artigo 8º decreto 44220 de 03-03-1962 - e que são, tão só, afetas à circulação e à permanência de pessoas No caso concreto os Réus apropriaram-se de uma área do domínio público destinada a zona pública de passagem e construíram e edificaram o seu jazigo/sepultura para além da área que lhes foi concessionada, que é de 6,250m2 (facto provado nº 15)… O jazigo/sepultura dos RR. ocupa agora uma área de 10,28m2 (facto provado nº 19)… Regressemos agora ao teor do §3º do artigo 8º do decreto 44220, de 3 de março de 1962. Nele se diz que a “largura do intervalo entre as sepulturas nunca poderá ser inferior 0,40m”. E “deverá cada sepultura ter um acesso com a largura mínima de 0,60m” ... O preceito estabelece requisitos mínimos obrigatórios. Impõe uma distância mínima entre sepulturas, mas a distância que se aplicará em cada caso será aquela que resultar do regulamento e da planta de cada cemitério, que poderá ser maior (e o mesmo se aplica aos acessos) Essa distância será necessariamente o espaço sobrante relativamente ao que é concessionado para a edificação dos jazigos/sepulturas… Ora, a construção em causa ao exceder a área concessionada está a invadir o espaço do domínio público destinado ao acesso e permanência entre as sepulturas, dificultando não sé a permanência dos AA. junto da sepultura de que são concessionários, como o acesso dos AA. à mesma (que confronta com a dos RR. na sua extrema sul)» termos em que «os RR. devem demolir o jazigo (soleiras de bordadura incluídas) de forma a que ocupe apenas, e só, a área que lhes foi concessionada, de 6,250m2».
11. Presentes os juízos diametralmente opostos que se mostram firmados pelas instâncias, já indiciadora de alguma complexidade jurídica que envolve a discussão em torno, mormente da questão relativa às regras definidoras/disciplinadoras das concessões de jazigos/sepulturas [mormente suas dimensões, acessos e delimitações dos seus intervalos], entende-se que, no caso, estamos ante quaestio juris que assume melindre e manifesto relevo jurídico e social, já que releva de dificuldade/complexidade jurídica, para além de suscetível de ser recolocada em casos futuros, e cuja dilucidação quanto aos
aspetos dubitativos e no contexto apurado carece também de melhor análise/ponderação por parte deste Supremo Tribunal».

5. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto deste STA, notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146º nº 1 do CPTA, emitiu parecer (cfr. fls. 2292 e segs. SITAF), no sentido de ser negado provimento à revista.

Para tanto ponderou, designadamente:

«(…) 4 – Salvo melhor opinião, cremos que não assiste razão aos recorrentes.
Na verdade, o acórdão recorrido fundamentou devidamente a sua posição ao referir que “as soleiras de bordadura dos jazigos, enquanto componente do edificado, são parte integrante dos mesmos” – e tal entendimento afigura-se-nos inteiramente correto.
Se o concessionário deseja construir uma soleira de bordadura terá de a edificar dentro do espaço que lhe foi concessionado, não podendo a mesma considerar-se como uma “benfeitoria” sobre um solo de domínio público não concessionado – ainda para mais quando essa soleira de bordadura fica elevada em relação ao chão, dificultando a passagem e acesso aos demais jazigos, como sucede no caso dos autos.
Ora, como se dispõe no artº 27º do DL nº 280/2007, de 7/8, “Os particulares podem adquirir direitos de uso privativo do domínio público por licença ou concessão”.
Assim, os poderes do particular sobre a parcela do domínio público de que obteve concessão estão delimitados pelos termos dessa mesma concessão, pelo que ao ser concessionada a um particular uma parcela do domínio público do cemitério é unicamente nessa parcela que o mesmo pode realizar a construção do jazigo, não podendo exceder a área que lhe foi concessionada.
Ora, como resulta provado nos autos, a área concessionada aos RR foi de 6,25 m2, – mas estes ultrapassaram essa área, efetuando a construção do jazigo, com soleiras de bordadura, com uma área total de 10,28 m2.
Defendem os recorrentes que não devem contar para essa área as soleiras de bordadura.
Mas, mesmo admitindo, por mera hipótese, que devesse operar essa exclusão das soleiras de bordadura, ainda assim a área elevada ocupada pela construção do jazigo dos RR é superior à área concessionada, uma vez que tem um total de 6,875 m2 (2,50m x 2,75m) - facto provado nº 17.
Essa violação da área concessionada foi invocada pelos AA nos arts. XL e XLI da petição, onde alegaram que “a ocupação abusiva dos Réus do referido espaço de domínio público - em cerca de 64% mais do que o concessionado - impede, perturba e prejudica os AA. de gozarem de modo pleno dos direitos de uso, fruição e disposição do jazigo que lhes foi
concessionado. Não sendo legalmente admissível aos concessionários criarem restrições ao direito dos demais concessionários”.
Assim, constituem causa de pedir na presente ação não só a violação dos intervalos entre sepulturas previstos no art. 8º § 3º do Decreto nº 44220, como também a violação da área de domínio público concessionada, cabendo ao tribunal apreciar ambas as causas invocadas.
5 - Por outro lado, como resulta da matéria de facto provada, a distância de 46 cm entre as partes elevadas do lado sul do jazigo dos AA e do lado norte do jazigo dos RR é constituída pela soma da largura das soleiras de bordadura de ambos os jazigos.
Ora, como resulta do facto provado nº 32 “as soleiras de bordadura das sepulturas/jazigos dos AA e dos RR encontram-se justapostas, sem qualquer espaço entre si” – inexistindo, pois, qualquer espaço de terreno entre ambas, as quais, além disso, se encontram desniveladas, como se vê nas fotografias juntas pelo perito nos seus esclarecimentos de 9/1/2018 (fls. 1400 e segs.).
Como bem demonstram essas fotografias, o que os RR fizeram foi justapor as soleiras de bordadura do seu jazigo a todas as soleiras de bordadura de cada um dos jazigos confinantes – fazendo desaparecer todos os intervalos ou espaços de terra anteriormente existentes entre as sepulturas.
Os intervalos entre sepulturas previstos no art. 8º § 3º do Decreto nº 44220 destinam-se claramente a permitir a passagem e permanência de pessoas nesses espaços, de modo a que não tenham de passar sobre o solo onde se encontra a sepultura.
Ora, como resulta da matéria de facto provada, a parte interior enterrada do jazigo concessionado aos RR abrange grande parte da soleira de bordadura, uma vez que, conforme facto provado nº 21, “abaixo do solo a distância entre as sepulturas dos AA e dos Réus é de cerca de 0,20 m”, sendo as dimensões no interior do jazigo dos RR, incluindo os respetivos muros, de 9,89m2 (3,08 m x 3,21 m) - facto provado nº 18.
Conclui-se, pois, que a soleira de bordadura do jazigo concessionado aos RR se encontra colocada sobre a parte enterrada da construção do jazigo, fazendo por isso parte integrante desse mesmo jazigo.
Assim sendo, tal soleira não pode manifestamente ser considerada como um espaço de intervalo entre sepulturas, nos termos exigidos pelo disposto no art. 8º § 3º do Decreto nº 44220.
Em consequência, verifica-se que os RR construíram o jazigo das sepulturas nº 22/23 sem deixar qualquer espaço de intervalo relativamente às sepulturas nº 20/21 dos AA, como se provou nos pontos 31 e 32 da matéria de facto – portanto, em violação da norma acima citada, como bem se decidiu no acórdão recorrido».

6. Os Recorrentes/Réus vieram responder ao parecer, afirmando não assistir razão ao Ministério Público, insistindo, pois, pelo provimento da revista (cfr. fls. 2304 e 2312 SITAF).

7. Colhidos os vistos, o processo vem submetido à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
*

II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

8. Constitui objeto do presente recurso de revista apreciar e decidir, no âmbito delimitado pelas alegações dos Recorrentes/Réus (designadamente, nas respetivas conclusões), e tendo em consideração os factos dados como provados, se o Acórdão do TCAN recorrido procedeu a um correto julgamento do recurso de apelação, interposto pelos ora Recorridos/Autores, ao julgar procedente a ação, contrariamente ao decidido em 1ª instância pelo TAF/Braga.

Especificamente, cumpre apreciar se o Acórdão recorrido errou ao decidir a questão do excesso de área construída no seu jazigo pelos Réus (face à área que lhes fora concessionada pela Junta de Freguesia), em vez de se ter cingido (até, por obediência ao Acórdão do mesmo TCAN, precedentemente lavrado nos autos em 5/12/2014 - cfr. fls. 1174 e segs. SITAF) a decidir se os Réus, na construção do seu jazigo, incumpriram norma legal (designadamente, a contida no aludido § 3º do art. 8º do Decreto nº 44.220, de 3/3/1962, que rege quanto a intervalos mínimos entre sepulturas, entre estas e os lados dos talhões, e seus acessos), destinada a preservar o direito e permanência entre sepulturas e, nomeadamente, o direito dos Recorridos/Autores ao acesso e permanência relativamente ao seu jazigo.
E, se for este o caso, apreciar e decidir – tão só - esta última questão, isto é, se os ora Recorrentes/Réus incumpriram tal norma legal (§ 3º do art. 8º do Decreto nº 44.220).
*

III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

9. As instâncias deram como relevantemente provados os seguintes factos:

«1. Os Autores são os legítimos concessionários de cinco metros e setenta e cinco decímetros quadrados de terreno para sepultura - com jazigo construído, situado no primeiro quarteirão do lado Norte da entrada no cemitério paroquial da Junta de Freguesia ..., concelho ..., mais concretamente, Secção ... — Sepulturas 20 e 21 - cfr. docs. ... e ... juntos com a petição inicial;
2. A concessão do referido jazigo adveio aos Autores em virtude da sucessão por morte de NN e UU - cfr. doc. ... junto com a petição inicial;
3. Sendo que os Autores, por si e seus antecessores concessionários, há mais de 40 anos têm usufruído do aludido jazigo de forma pública e pacífica, à vista de toda a gente, de forma continua e sem interrupções, sem a oposição de quem quer que seja, na convicção de estar a exercer um direito próprio, sem que o exercício de tais direitos lesasse direitos de outrem;
4. Os Autores têm vindo a retirar do referido jazigo a sua normal utilidade, nomeadamente, nele tendo sido enterrados familiares, nele celebrando as respetivas cerimónias fúnebres, nele efetuando obras de manutenção, procedendo semanalmente à respetiva limpeza e arranjos florais;
5. Os Réus são concessionários do terreno para sepultura que confronta a sul com o jazigo dos Autores, mais concretamente, Secção ... - Sepultura 22 e 23, com a área de 2,5m/2,5m - cfr. doc. ... junto com a petição inicial;
6. O jazigo dos Autores e o terreno para sepultura dos Réus confrontam entre si, respetivamente, nas suas extremas sul e norte - cfr. doc. ... junto com a petição inicial;
7. Em 16.09.2008, o Autor BB verificou que no terreno de sepultura confinante a sul com a sua tinham iniciado obras de construção civil de um jazigo;
8. Dirigiu-se à Junta de Freguesia ... para obter informações sobre a obra em curso, designadamente, o respetivo projeto e licença para construção ou reconstrução, da qual obteve resposta no dia 30.09.2008 - cfr. doc. ... junto com a petição inicial;
9. Em 19.09.2008, os Autores embargaram extrajudicialmente a obra dos Réus - cfr. doc. ... junto com a petição inicial;
10. Proferida decisão de incompetência material pelo Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, a execução da obra continuou em dezembro de 2008;
11. Os Autores solicitaram à Junta de Freguesia ..., em 27.04.2010, vários documentos que pudessem informá-los sobre a obra em causa - cfr. doc. ...1 junto com a petição inicial;
12. A Junta de Freguesia ..., em 17.05.2010, respondeu aos Autores - cfr. doc. ...1 junto com a petição inicial;
13. Nessa resposta a Junta de Freguesia ... enviou diversa documentação aos Autores, entre ela:
a) Planta do Jazigo dos Réus;
b) Alvará do Jazigo dos Réus;
c) Projeto de Arquitetura do Jazigo dos Réus;
d) Edital que precedeu a licitação da concessão do jazigo dos Réus - cfr. doc. ...2 a ...5 junto com a petição inicial;
14. Dos elementos fornecidos pela Junta de Freguesia ... retiram-se as seguintes áreas da obra dos Réus:
a. A área concessionada é de 6,250m2;
b. A área constante do projeto é de 9,28m2;
c. A área ocupada é de 10,28m2.
15. A área concessionada ao jazigo dos Réus é de 6,25m2 - cfr. relatório pericial;
16. As dimensões do projeto do jazigo dos Réus são de 2,90m x 3,20m, a que corresponde a área de 9,28m2 - cfr. relatório pericial;
17. As dimensões do jazigo dos Réus, à superfície, são de 2,50m x 2,75m = 6,875m2 - cfr. relatório pericial;
18. As dimensões no interior do jazigo dos Réus são de 2,48m x 2,6 lm, assumindo muros exteriores de espessura média de 0,30m, as dimensões exteriores são de 3,08 x 3,21m = 9,89m2 - cfr. relatório pericial;
19. A área total da sepultura dos Réus é de (3,08m x 3,34m) = 10,28m2, incluindo a área da soleira de bordadura - cfr. relatório pericial;
20. O espaço entre a sepultura dos Autores e a dos Réus é de 0,46m - cfr. relatório pericial;
21. Abaixo do solo, a distância entre as sepulturas dos Autores e dos Réus é de cerca de 0,20m - cfr. relatório pericial;
22. São as seguintes as distâncias a partir da sepultura dos Réus:
a) Do lado Nascente com jazigo n° 17, a distância é de 0,47 m,
b) Do lado Norte com a sepultura 20/21, a distância é de 0,46 m,
c) Do lado Poente com o jazigo n° 29, a distância é de 0,50 m,
d) Do lado Sul confronta com o percurso principal com a largura de 3,90 m - cfr. relatório pericial;
23. São as seguintes as distâncias a partir da sepultura dos Autores:
a) Do lado Nascente com o jazigo n° 15, a distância é de 1,09 m,
b) Do lado Norte com a sepultura 18/19, a distância é de 0,84 m,
c) Do lado Poente com a sepultura 27/28, a distância é de 0,48 m,
d) Do lado Sul com a sepultura dos Autores, a distância é de 0,46 m - cfr. relatório pericial;
24. É possível aceder à sepultura dos Autores na parte confrontante com a sepultura dos Réus mas não sem dificuldade uma vez que o espaço não é demasiado largo e há um desnível entre os materiais que revestem o solo - cfr. relatório pericial;
25. Os espaços peatonais existentes entre outros jazigos, no mesmo cemitério, têm as seguintes dimensões:
Sector ... - Talhão 64/65 - do lado Norte com a sepultura 62/63, a distância é de 0,39 m, do lado Nascente com jazigo 57, a distância é de 0,54 m, do lado Sul com percurso principal, a distância é de 3,90 m, do lado Poente com percurso transversal, a distância é de 2,32 m;
Sector ... - Distância média entre a sepultura 5/6 e a sepultura 11/12 é de 0,335 m;
Sector ... - Distância entre o jazigo do talhão 4 e as cabeceiras do jazigo dos talhões 5/6 é de 0,325 m;
Sector ... - Distância entre a cabeceira do jazigo dos talhões 11/12 e o jazigo do talhão 10 é de 0,45 m;
Sector ... - Distância média entre os jazigos dos talhões 11/12 e os jazigos dos talhões 16/17 é de 0,61 m;
Sector ... - Distância entre os jazigos dos talhões 49/50 e os jazigos dos talhões 51/52 é de 0,27 m;
Sector ... - Distância entre os jazigos dos talhões 51/52 e os jazigos dos talhões 53/54 é de 0,28 m;
Sector ... - Distância média entre as cabeceiras dos talhões 49/50, 51/52 e 53/54 e os jazigos dos talhões 43 a 48 é de 0,60 m;
Sector ... - Distância média entre os jazigos de VV (11/12) e o jazigo do Padre WW (5/6) é de 0,335 m - cfr. relatório pericial;
26. A petição inicial que motiva estes autos deu entrada neste Tribunal em 30.07.2010 – cfr. registo Sitaf».

9.1. O Acórdão TCAN recorrido aditou a seguinte factualidade (cinco factos numerados de 27 a 32, omitindo-se um nº 29) – ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 662º do CPC -, que considerou «emergir dos esclarecimentos prestados pelo perito ao relatório pericial, peça desenhada e fotografias anexas (a fls. 522 a 534 dos autos em suporte papel)»:

«27. As dimensões do projeto (que não incluíam soleiras de bordadura), do corpo elevado, com as paredes periféricas exteriores na continuidade das paredes enterradas, são de 2,90m x 3,20m, a que corresponde a área de 9,28m2.
28. As dimensões de 3,08m x 3,34m, a que corresponde a área de 10,28m2, referem-se às dimensões totais periféricas, incluindo a soleira de bordadura.
30. A distância de 0,46 m, referida em 20., entre a sepultura/jazigo dos AA e a dos RR foi medida entre os corpos elevados acima do solo de ambas as sepulturas/jazigos.
31. Ao nível do solo, a distância referida em 20. entre a sepultura/jazigo dos AA e a dos RR é de zero.
32. As soleiras de bordaduras das sepulturas/jazigos dos AA e dos RR encontram-se justapostas, sem qualquer espaço entre si.
Estes últimos dois factos resultam dos esclarecimentos do perito, que referiu que “a distância de 0,46 m foi medida entre os corpos elevados acima do solo de ambas as sepulturas, como se identifica na peça desenhada anexa” (nela não entrando, portanto, as dimensões totais periféricas, incluindo a soleira de bordadura), em conjugação com a peça desenhada e as fotografias, juntas pelo perito, como complemento dos seus esclarecimentos (cfr. fls. 522 a 534 dos autos em suporte papel)».
*

III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

10. Os Recorrentes/Réus alegam que o Acórdão TCAN recorrido, ao condená-los a demolir o jazigo que construíram (Secção ... - sepulturas 22 e 23) «de forma a que o jazigo ocupe apenas, e só, a área concessionada de 6,250m2, e, ainda, a realizar todas as obras necessárias para a reconstituição antes existente nos espaços confinantes» infringiu o disposto no nº 3 do art. 37° do CPTA, violando, pela mesma razão, a “autoridade de caso julgado”, do Acórdão do T.C.A.N. que precedentemente havia sido proferido nestes autos em 5-12-2014 (constante de fls. 1174 e segs. SITAF).

Diremos, liminarmente, que os Recorrentes têm razão.

Na verdade, o que os Autores vieram invocar e defender, com a instauração da presente ação (em 2010 – cfr. SITAF e facto provado nº 26 -, ainda como “ação administrativa comum”), foi o seu direito a continuar a aceder convenientemente ao seu jazigo (Secção ... – sepulturas 20 e 21), e à volta dele permanecer e circular – direito alegadamente posto em causa pela construção, pelos Réus, de jazigo contíguo, que com o seu confina (norte/sul).

Não está, pois, em causa, nos presentes autos, se o jazigo construído pelos Réus o foi em total respeito da concessão outorgada pela Junta de Freguesia ... – designadamente, quanto às dimensões e volumetria da obra -, mas apenas se a construção coloca em causa, perturbando-o, o direito dos Autores, por estes invocado, à preservação da distância entre o seu jazigo e o novo jazigo construído pelos Réus. Isto é, a eventual divergência entre o autorizado pela Junta de Freguesia e a construção dos Réus só interessará na medida em que ela se reflita numa ofensa àquele direito dos Autores.

Ou seja, irreleva, para a decisão da presente causa, saber se o jazigo construído pelos Réus se conteve, ou não, nas dimensões concessionadas de 6,250m2, pelo que não se afigura ajustada nem correta a decisão do Acórdão TCAN recorrido de – em claro excesso de pronúncia - condenar os Réus a «demolir a obra de construção do jazigo (…) de forma a que o jazigo concessionado ocupe apenas, e só, a área concessionada de 6,250m2».

É que não estamos perante uma ação proposta pela Junta de Freguesia, em que cumpra controlar o cumprimento das dimensões concessionadas, mas apenas na medida em que a obra dos Réus seja suscetível de afetar direitos dos Autores.

Aliás, o próprio TCAN assim bem o entendeu ao sublinhar, no Acórdão recorrido, que «a causa de pedir assenta na inobservância da largura instituída entre talhões».

Acresce que, tendo-se suscitado nos autos a controvérsia sobre a adequação da forma de processo utilizada na presente ação pelos Autores, o TCAN, em Acórdão proferido nos presentes autos em 5/12/2014, anteriormente, pois, ao Acórdão ora recorrido (de 31/1/2020), decidiu que esta forma de processo, prevista no nº 3 do art. 37º do CPTA era a adequada ao presente caso, uma vez que este tipo de ações obedece a pressupostos específicos, «o Autor tem de ter sido ou estar em risco de ser lesado nos seus direitos ou interesses» (para além de se destinar a suprir a falta de intervenção dos poderes públicos que, quando solicitadas para o efeito – de salvaguarda desses direitos – não o tenha feito).

É certo, como se refere no parecer do Ministério Público, que «a violação da área concessionada foi invocada pelos AA nos arts. XL e XLI da petição, onde alegaram que “a ocupação abusiva dos Réus do referido espaço de domínio público - em cerca de 64% mais do que o concessionado - impede, perturba e prejudica os AA. de gozarem de modo pleno dos direitos de uso, fruição e disposição do jazigo que lhes foi concessionado. Não sendo legalmente admissível aos concessionários criarem restrições ao direito dos demais concessionários”».

Porém, como resulta claramente do nº 3 do art. 37º do CPTA, e na sequência do clarificado pelo TCAN, a este propósito, nestes autos, em 5/12/2014, apenas podem estar em apreciação, nos presentes autos, violações de vínculos jurídico-administrativos que diretamente ofendam direitos ou interesses dos autores considerados lesados.

Ora, resultando dos autos que os direitos tidos como afetados são os de acesso, permanência e circulação dos Autores, relativamente ao seu jazigo, supostamente perturbados pela proximidade do jazigo construído pelos Réus, somente pode estar, aqui, em discussão, a violação, por estes, de vínculos jurídico-administrativos que se traduza na ofensa daqueles direitos dos Autores.

Assim, constitui causa de pedir – válida -, na presente ação, a violação dos intervalos entre sepulturas previstos no art. 8º § 3º do Decreto nº 44.220, e já não a mera violação, em si, da área de domínio público concessionada.

Colocada a questão dos presentes autos nestes devidos termos, tudo se deve resumir, afinal, a saber se houve, ou não, atuação dos Réus, na construção do seu jazigo, que tenha afetado indevidamente os diretos e interesses dos Autores no distanciamento, em congruência com a relevante causa de pedir, a qual - como já vimos que o Acórdão recorrido reconheceu - «assenta na inobservância da largura instituída entre talhões».

11. Determina o aludido, e aplicável, § 3º do art. 8º do Decreto 44.220, de 3/3/1962 («Promulga as normas para a construção e polícia dos cemitérios»):
«A largura dos intervalos entre as sepulturas e entre estas e os lados dos talhões nunca poderá ser inferior a 0,40m. Todavia, deverá cada sepultura ter um acesso com a largura mínima de 0,60m».

Estas distâncias mínimas vieram a ser mantidas pelo posterior Decreto 48.770, de 18/12/1968 («Aprova os modelos dos regulamentos dos cemitérios municipais e paroquiais»), cujo § único do art. 15º dispõe:
«Procurar-se-á o melhor aproveitamento do terreno, não podendo, porém, os intervalos entre as sepulturas e entre estas e os lados dos talhões ser inferiores a 0,40m, e mantendo-se, para cada sepultura, acesso com o mínimo de 0,60m de largura».

Resulta dos factos dados como provados, especificamente do facto provado nº 20, que «o espaço entre a sepultura dos Autores e a dos Réus é de 0,46m» - facto que adveio de perícia realizada (constante de relatório pericial).

Efetivamente, perante questões colocadas pelos Autores:
«4 – Os jazigos sitos na Secção ... – Sepultura 20 e 21 (dos AA.) e Sepultura 22 e 23 (dos RR.) - do Cemitério ... confrontam entre si?»;
«5 – Em caso afirmativo, em que extremas?»; e
«6 – Qual o espaço ou intervalo, à superfície, que medeia entre a Sepultura 20 e 21 (dos AA.) e Sepultura 22 e 23 (dos RR.)?»,
foi pericialmente respondido, no relatório pericial constante de fls., 1333 e segs. SITAF, respetivamente:
«Sim.»
«Norte/Sul.»
«O espaço à superfície entre as sepulturas é de 0,46m.»

E, perante a questão colocada pelos Réus:
«3- Qual a área de circulação pública peatonal envolvente dos jazigos dos Autores e dos jazigos com que confronta?»,
Foi pericialmente respondido, no mesmo relatório pericial:
«Do lado Nascente com o jazigo nº 15, a distância é de 1,09m.
Do lado Norte com a sepultura 18/19, a distância é de 0,84m.
Do lado Poente com a sepultura 27/28, a distância é de 0,48m.
Do lado Sul com a sepultura dos RR, a distância é de 0,46m.»

Desta factualidade é imperioso concluir que foram respeitadas as distâncias mínimas entre sepulturas legalmente impostas.

Como já a sentença de 1ª instância do TAF/Braga tinha concluído:
«(…) Analisadas as normas, das mesmas decorre que entre sepulturas a distância mínima é de 0,40m devendo assegurar-se acesso com 0,60m no mínimo.
Cotejados estes artigos com a factualidade referida em torno das distâncias entre as sepulturas dos Autores e dos Réus, fácil é de perceber que a distância de 0,40m se encontra assegurada entre estas (e aliás, a toda a volta da sepultura dos Autores). No que concerne ao acesso de 0,60m, retira-se pela leitura global da norma (atendendo aos seus vários elementos), que se a toda a volta é preciso garantir distância de 0,40m, o acesso será apenas um (no mínimo, logicamente). Analisada a matéria de facto provada constata-se que do lado nascente e norte há uma distância superior a 0,60m, sendo garantido, deste modo, um acesso nos termos legais».

Comprovado que o distanciamento entre as sepulturas dos Autores e dos Réus (0,46m), cumpre o mínimo legalmente exigido (0,40m), estando assegurado, em mais de um acesso (nascente e norte), a distância mínima de 0,60m, não se vê que se possa concluir por qualquer violação, por parte dos Réus, de alguma vinculação jurídico-administrativa que ofenda o direito dos Autores ao seu direito de acesso, permanência e circulação relativamente ao seu jazigo.

12. O Acórdão recorrido concluiu de forma oposta, pois que, embora reconhecendo que estas medidas cumprem os distanciamentos legalmente exigidos, sublinhou que são distâncias entre as sepulturas “a partir dos respetivos corpos elevados”, isto é, desprezando as “soleiras de bordadura” dos jazigos, nomeadamente a “soleira” do jazigo construído pelos Réus.

É que, encontrando-se as “soleiras de bordadura” justapostas, evidentemente que entre as mesmas (isto é, entre a “soleira de bordadura” do jazigo dos Autores e a “soleira de bordadura” do jazigo dos Réus) a distância é igual a zero.

Daqui as conclusões opostas a que chegaram as instâncias: é um facto que o distanciamento entre os corpos elevados dos jazigos cumpre o legalmente exigido (o que foi considerado como relevante para o TAF/Braga); porém, esse espaço entre os dois jazigos é ocupado pelas duas “soleiras de bordadura”, justapostas, de ambos os jazigos (o que levou o TCAN a concluir que não existe, afinal, qualquer distanciamento entre os jazigos, em infração à lei).

Assim, esta controvérsia resume-se a saber se as “soleiras de bordadura” dos jazigos em questão contam como espaço entre os mesmos – caso em que o distanciamento cumpre o legalmente estabelecido -, ou se, pelo contrário, não contam como espaço entre os jazigos e sim como elementos exclusivos de cada um dos jazigos – caso em que, estando as “soleiras” justapostas, se considerará que os próprios jazigos se encontram justapostos, sendo, então, o distanciamento entre os mesmos “igual a zero” (como entendeu o Acórdão recorrido).

13. Sucede que, independentemente de as “soleiras de bordadura” fazerem, ou não, parte intrínseca dos respetivos jazigos, é de ter por relevante a função que as mesmas se destinam a exercer.

Ora, as “soleiras de bordadura” – como, aliás, resulta do seu próprio nome ou designação – destinam-se a exercer a função de “solo” ao redor (“bordo”) das sepulturas. Por outras palavras, exercem, ou pretende-se que exerçam, a mesma função que o solo existente entre as sepulturas: já não o solo originário (em terra batida), mas um solo construído, pavimentado – mantendo, porém, a mesma função.

Assim, se tais “soleiras” se destinam a exercer a mesma função que o solo, não se pode concluir que as mesmas não relevam como espaços para, sobre elas, aceder, permanecer ou circular entre as sepulturas. Afinal, estamos perante “pavimentações” dos espaços entre as sepulturas, pelo que não se vê porque não hão-de relevar como distanciamento entre estas.

É, aliás, sintomático que no relatório pericial (na parte dos esclarecimentos, a fls. 1418 e segs. SITAF, resposta aos quesitos 4 e 5 dos Autores) se exprima a opinião pericial de que «as soleiras de bordadura não fazem parte integrante dos jazigos e destinam-se ao acesso e permanência (…)». O que condiz com a circunstância de se tratar de pavimentações do solo, revestindo, mas não eliminando, o espaço de acesso, permanência ou circulação entre as sepulturas.

E a própria interveniente “Junta de Freguesia”, nos artigos 5º a 7º do seu articulado/contestação (cfr. fls. 763 e segs. SITAF), confirma que o espaço existente entre as sepulturas dos Autores e dos Réus, em confrontação sul/norte, é de 0,48m – espaço intermédio que uns e outros «pavimentaram» (sic).

É, pois, de concluir que as ditas “soleiras de bordadura” são “pavimentações do solo” que, como tal, não anulam os espaços entre sepulturas destinados a permitir o acesso, a permanência e a circulação.

E a razão, ou fundamento, para uma generalizada pavimentação dos solos originais entre sepulturas, através destas “soleiras de bordadura”, é bem explicada, nos autos, pelos Autores: destina-se a evitar os buracos, as poças ou as lamas que os solos originais, em terra, sempre proporcionam, sendo as próprias Juntas de Freguesia que, por isso, fomentam essas pavimentações junto dos concessionários.

E resulta do relatório pericial junto aos autos (na parte dos esclarecimentos, fls. 1418 e segs. SITAF, resposta aos quesitos 4 e 5 dos Autores) a genérica utilização destas pavimentações, através de “soleiras de bordadura” entre sepulturas, ao ali referir-se que, se não se considerassem estas “soleiras” como espaços de circulação, então seria de concluir que «os jazigos centrais não possuiriam acessos».

14. Resta ponderar se a circunstância de as “soleiras de bordadura” entre os jazigos dos Autores e Réus, na sua confrontação sul/norte, apresentarem um desnível, permite concluir de forma diferente, isto é, que aquele distanciamento entre as sepulturas, legalmente imposto para permitir a permanência e circulação, foi infringido pelos Réus.

Desde logo, cumpre notar que já não estaremos, aqui, perante a discussão entre a imposição de uma distância legal mínima entre sepulturas – a qual é, em si, “in casu” respeitada, como já vimos -, mas sim perante um eventual obstáculo que não permite uma conveniente permanência ou circulação.

E esta diferença releva, uma vez que colocará eventualmente em causa, já não a necessidade de um afastamento entre os jazigos – designadamente, entre os corpos elevados dos mesmos - mas, sendo o caso, a necessidade da eliminação desse aludido desnível. Como os Recorrentes/Réus alegam, estaria, no máximo em causa, a obrigação de nivelamento daquela pavimentação, ou, no limite, a retirada da pavimentação, deixando o espaço intermédio em terra batida, mas sem afetação do corpo elevado do seu jazigo.

No entanto, entendemos, tal como foi ajuizado em 1ª instância, que não se impõe, na presente ação, uma tal condenação, considerando, desde logo, que os Autores sempre invocaram como causa de pedir o incumprimento do distanciamento entre as sepulturas – o que não ocorre (para além de invocarem o eventual desrespeito pela área concessionada, que não cumpre, em si mesmo, aqui conhecer, como já acima foi dito) – cfr. p.i. (a fls. 1 e segs. SITAF), nomeadamente artigos IX, XVI, XIX e XX, e réplica (a fls. 434 e segs. SITAF).

Por outro lado, considerou-se provado nos autos, como acima visto, que «É possível aceder à sepultura dos Autores na parte confrontante com a sepultura dos Réus mas não sem dificuldade uma vez que o espaço não é demasiado largo e há um desnível entre os materiais que revestem o solo - cfr. relatório pericial» - facto provado nº 24.

Daqui se retira que a perícia entendeu que a “dificuldade” (ainda que não obstativa da possibilidade de acesso à sepultura dos Autores) se ficava a dever a duas razões confluentes: não ser o espaço demasiado largo; e haver um desnível entre os materiais (entenda-se: entre os materiais dos pavimentos).

Porém, a circunstância de o espaço não ser demasiado largo é, para os efeitos aqui em questão, totalmente inócua, uma vez que o espaço em causa – de 0,46m, conforme a mesma perícia – é superior à distância mínima, de 0,40m, legalmente imposta (no §3º do art. 8º do Decreto 44.220).

E, na confluência destas duas causas apontadas, não resulta comprovado qual a importância relativa do desnível aludido – isto é, se aporta, só por si, “dificuldade” relevante, tanto mais que, observado o relatório pericial, constata-se que o desnível em causa vem aí descrito como se tratando apenas de «um pequeno desnível entre os materiais que revestem o solo» (cfr. relatório pericial, a fls. 1333 e segs. SITAF, resposta ao quesito nº 7 formulado pelos Autores) – sublinhado nosso.

15. Pelos fundamentos expostos, julga-se, pois, dever ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão do TCAN recorrido, e mantendo-se o julgamento de 1ª instância, do TAF/Braga, de improcedência da ação.

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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

Conceder provimento ao presente recurso de revista interposto pelo Recorrentes/Réus AA e CC, revogando-se o Acórdão do TCAN recorrido, e mantendo-se o julgamento de improcedência da ação firmado em 1ª instância, no TAF/Braga.

Custas a cargo dos Recorridos/Autores (sem prejuízo de ser considerada a não apresentação de contra-alegações no presente recurso – art. 7º nº 2 do RCP).

D.N.

Lisboa, 11 de maio de 2023 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) – José Augusto Araújo Veloso – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.