Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0157/23.2BALSB
Data do Acordão:02/21/2024
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:PEDRO VERGUEIRO
Descritores:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
MESMA QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
Sumário:I - O recurso para o Supremo Tribunal Administrativo de decisão arbitral pressupõe, para além do mais, que se verifique, entre a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento, oposição quanto à mesma questão fundamental de direito (cfr. o n.º 2 do art. 25.º RJAT), o que pressupõe uma identidade substancial das situações fácticas.
II - Para apurar da existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito entre a decisão arbitral recorrida e o Acórdão Fundamento devem adoptar-se os critérios já firmados por este STA, quais sejam: - Identidade da questão de direito sobre que recaíram as decisões em confronto, que supõe estar-se perante uma situação de facto substancialmente idêntica; - Que não tenha havido alteração substancial da regulamentação jurídica; - Que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta; - A oposição deverá decorrer de decisões expressas, não bastando a pronúncia implícita ou a mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.
III - A partir daqui, e fazendo aplicação do que fica exposto ao caso dos autos, a matéria em análise é mais exigente no que diz respeito à análise vertida na decisão arbitral fundamento, nomeadamente quanto se tem presente o disposto no art. 3º nº 2 do CIUC na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, até porque estamos perante contratos que são realizados por escrito e são, à partida, sujeitos a registo, sendo que, perante os dados de facto vertidos na decisão arbitral recorrida, a situação tem como ponto de partida a elaboração de contratos dos quais resulta para a contraparte a obrigação de liquidação do imposto em apreço, sendo que, ainda que não tenha sido feito o registo da locação, teria ainda de ser ponderada a possibilidade de conferir relevância à situação derivada da existência dos tais contratos entre as partes, ou seja, mantém-se a pertinência da ponderação do tal nº 2, que constituirá sempre o ponto de partida de análise em função da natureza dos contratos ali identificados, sendo que só depois poderemos então cair na aplicação do nº 1 da norma já apontada.
IV - Neste ponto, é manifesto que esta realidade nunca se colocou no âmbito da decisão arbitral fundamento, o que significa que a questão jurídica em apreço tem contornos distintos, sendo que o Tribunal não pode deixar de apreciar a mesma em função da realidade de facto vertida nos autos, o que torna incontornável o que ficou exposto, de modo que, perante a dinâmica das decisões em apreço, designadamente em função da factualidade ponderada em cada um dos processos, só podemos concluir que não estão, pois, reunidos os pressupostos imprescindíveis para que se conheça do mérito do recurso para uniformização de jurisprudência, uma vez que as decisões em confronto apresentam diverso enquadramento factual, pelo que, como já tinha sido enunciado, tem de ser negativa a resposta à questão de saber se os dois acórdãos em alegada oposição se pronunciaram efectivamente em termos contrários acerca de uma mesma questão jurídica, dentro de um igual enquadramento fáctico e jurídico, pelo que, não se mostram reunidos os pressupostos legais (cumulativos) para que este Supremo Tribunal possa conhecer deste recurso.
Nº Convencional:JSTA000P31945
Nº do Documento:SAP202402210157/23
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:BANCO 1... SA - SUCURSAL PT
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Processo n.º 157/23.2BALSB (Recurso para Uniformização de Jurisprudência)

Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

A Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, devidamente identificada nos autos, inconformada com a decisão proferida nos autos de processo arbitral - Proc. nº 154/2023-T - que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral deduzido por “Banco 1..., S.A. - Sucursal em Portugal” tendo como objecto imediato o acto de indeferimento expresso do recurso hierárquico n.º 3433202210000016, notificado através do ofício n.º ...22-12-22, de 21-12-2022 e por objecto mediato 18 (dezoito) actos de liquidação de imposto único de circulação (IUC), relativamente a 18 (dezoito) veículos automóveis, no montante global de € 1305,80 (mil trezentos e cinco euros e oitenta cêntimos), sendo que, com o pedido de anulação, a aludida Requerente solicitou o reembolso do indevidamente pago, bem como o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º da LGT, calculados à taxa legal, veio interpor Recurso para Uniformização de Jurisprudência ao abrigo do disposto nos artigos 25º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e no artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi do artigo 25.º, n.º 3 do RJAT, com base em oposição de acórdãos, apontando como decisão fundamento, a decisão arbitral proferida no âmbito do Proc. n.º 417/2020-T.

Formulou nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“ (…)

A - O Acórdão arbitral recorrido (154/2023-T) incorreu em erro de julgamento, porquanto decidiu o Tribunal Arbitral

“a) Anular a decisão que incidiu sobre o recurso hierárquico apresentado pela Requerente;

b) Anular as liquidações de IUC sub judice;

c) Condenar a Requerida no reembolso das quantias pagas pela Requerida, acrescida de juros indemnizatórios contados, à taxa legal, desde a decisão de indeferimento da reclamação graciosa até efectivo e integral reembolso;

d) Condenar a Requerida a suportar as taxas de arbitragem.”

B - E sustenta o referido acórdão arbitral que:

“(…)

Esta redacção é, de facto, diferente daquele que o Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de Dezembro adoptava para o Imposto sobre Veículos: “O imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”, redacção que transitou sucessivamente para o Decreto-Lei n.º 782/74, de 31 de Dezembro, para o Decreto-Lei n.º 81/76, de 28 de Janeiro e finalmente para o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho, legalmente designado por «Imposto Municipal sobre Veículos», aplicável aos automóveis ligeiros de passageiros e motociclos.

E é esta diferença que vem sustentando a posição da AT, de que, em sede de IUC se consagrou uma presunção inilidível, de que quem consta do registo como proprietário do veículo na data em que se verifica o facto tributário o é, para efeitos unicamente tributários e sem prejuízo das regras civis da transmissão da propriedade.

Em qualquer caso, a verdade é que, mesmo tendo-se substituído a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se” e tendo-se eliminado a expressão “até prova em contrário”, a norma fiscal da incidência subjectiva esteve e está subordinada às regras do registo automóvel.

Ora, o Código do Registo Automóvel preceitua que o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.

A propriedade de um veículo automóvel é facto obrigatoriamente sujeito a registo, nos termos daquele Código, sendo que quer o CRA quer o Regulamento do Registo Automóvel fixam prazos máximos para o registo dos actos a ele obrigatoriamente sujeitos, sob várias cominações, designadamente, de natureza financeira.

(…)

Pelo que a resposta dada à primeira questão sub judice é a de que a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, consubstancia uma mera presunção juris tantum, susceptível de demonstração em contrário, de propriedade do veículo;

(…)

A transmissão de veículos automóveis não é um negócio formal e o registo da propriedade automóvel tem subjacente uma mera declaração para registo, subscrita pelas partes.

Para ilisão da presunção que decorre do registo, atenta a natureza não formal do negócio, não é necessária a declaração para registo, que se destina, como o próprio nome indica, ao registo automóvel.

Na verdade, após alguma divergência decisória é actualmente mais ou menos pacífico, em nome de uma certa coerência e unidade do sistema fiscal, que as facturas que são emitidas no âmbito de impostos, como o IVA (artigo 29.º, n.º 1, alínea b), que no caso dos operadores económicos viabiliza a dedução do imposto e a sua contabilização como custo) e o IRC (artigos 23.º, n.º 6 e 123.º n.º 2), para efeitos de comprovar operações de venda e de prestação de serviços, originando, em regra, liquidações e cobranças subsequentes, não poderão deixar de ser meio idóneo para prova da alienação do veículo automóvel e ilisão da presunção de propriedade.

Pelo que também é positiva a resposta à segunda questão sub judice: a prova documental junta ao processo pela Requerente é meio idóneo e apto para firmar a propriedade dos locatários no final dos contratos.”

C - Ao contrário do que decidiu a Decisão Arbitral fundamento (processo n.º 417/2020-T), na qual o Tribunal arbitral considerou que:

“15. Face ao exposto nos números anteriores, relativamente à exposição escrita, por cada uma das partes e, aos argumentos apresentados nas respetivas peças processuais, as principais questões a decidir prendem-se com a apreciação da legalidade da liquidação do ICU e decidir se existe uma errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjetiva do imposto único de circulação liquidado.

(…)

28. O presente pedido de pronúncia arbitral tem por questão essencial saber se o artigo 3.º do Código do IUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita e, saber se, como alega a AT, a interpretação da Requerente não atende aos elementos histórico e teleológico de interpretação da lei.

29. O Código do IUC, até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, estatuía, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º, o seguinte:

“Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

30. Contudo, com a entrada em vigor do referido Decreto-Lei n.º 41/2016, o n.º 1 do referido artigo 3.º, passou a ter uma redação bem distinta:

“Artigo 3.º – Incidência Subjetiva

1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.

31. Ora, ao retirar a parte “os proprietários dos veículos, considerando-se como tais”, a alteração operada visa, claramente, passar a incidência subjetiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor.

32. É uma alteração relevante que que faz toda a diferença no presente caso, dado que, sendo a liquidação posterior a 2016, a ela se aplica a nova redação e as suas consequências, ou seja, a atual redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC não contempla uma presunção e, consequentemente, também não se coloca aqui a questão de saber se a ilisão da presunção foi realizada - como pretendeu demonstrar a ora Requerente -, nem a questão de saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal desconsidera o elemento histórico e o elemento teleológico, como defendeu a Requerida na sua resposta.”

D - Concluindo o Acórdão fundamento que:

35. Em face do acima exposto e acolhendo-se, aqui, a jurisprudência que se vem consolidando nos Tribunais superiores quanto à incidência subjetiva do imposto na nova redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC - redação que se aplica à liquidação aqui em causa - e estando provado que a viatura a que tal liquidação diz respeito se encontrava, no ano de 2019, registada em nome da Requerente, não pode deixar de concluir-se pela legalidade da questionada liquidação de IUC, bem como da decisão de indeferimento da correspondente reclamação graciosa.

36. Deste modo, face a esta conclusão, mostra-se inútil proceder à apreciação das questões suscitadas pela Requerente relativas à prova de que, à data da ocorrência do facto gerador e exigibilidade do imposto, a viatura a que este respeita já lhe não pertencia por ter sido transmitida a terceiro.”

E - Verifica-se, assim, uma patente e inarredável contradição quanto à mesma questão fundamental de direito, que consiste em saber se o artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, na sua redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 1 de agosto, contempla ou não uma presunção legal iuris tantum, ou seja, suscetível de prova em contrário, sobre quem se considera ser o proprietário do veiculo.

F - Quanto ao estabelecido pelas regras que determinam os requisitos de admissibilidade deste tipo de recursos, resulta que, para que se tenha por verificada a oposição de acórdãos, é necessário (vd., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2015-06-03, processo 0793/14) que:

· as situações de facto sejam substancialmente idênticas;

· haja identidade na questão fundamental de direito;

· se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta; e,

· a oposição deverá decorrer de decisões expressas e não apenas implícitas.

G - As presentes alegações demonstram que, no caso vertente, se encontram reunidos os referidos requisitos para que se tenha por verificada a alegada oposição de acórdãos.

H - Para que se considere que há oposição de acórdãos, entende a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que os acórdãos em confronto versem sobre situações fácticas substancialmente idênticas e que se pronunciem sobre a mesma questão fundamental de direito. Ou seja, importa que as soluções opostas tenham sido perfilhadas relativamente ao mesmo fundamento de direito, o se verificou.

I - Entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento há uma identidade de situações de facto, na medida que em ambos os casos, na medida que em ambos os casos, a factualidade consignada se reporta em saber se o artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, na sua redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 1 de agosto, contempla ou não uma presunção legal iuris tantum, ou seja, susceptível de prova em contrário, sobre quem se considera ser o proprietário do veiculo.

J - As decisões em confronto perfilharam, sobre a mesma questão fundamental de direito, soluções opostas de forma expressa, isto é, adotaram sobre a mesma questão de direito soluções juridicamente divergentes em idênticas situações de facto.

L - Resta concluir que o Acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, bem como que se encontra em manifesta oposição quanto à mesma questão fundamental de direito com a jurisprudência firmada na Decisão fundamento, devendo ser substituído por novo Acórdão que julgue improcedente o pedido arbitral.

Termos em que deve o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência ser aceite e posteriormente julgado procedente, por provado, sendo, em consequência, nos termos e com os fundamentos acima indicados revogada a decisão arbitral recorrida e substituída por outro Acórdão consentâneo com o quadro jurídico vigente.”

O recurso foi admitido por despacho de 12-10-2023.

Foi cumprido o disposto no artigo 25º nº 5 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

A Recorrida “Banco 1..., S.A. - Sucursal em Portugal” apresentou contra-alegações, nas quais enuncia as seguintes conclusões:

“(…)

A. A AT veio interpor recurso para o STA da decisão arbitral proferida pelo Tribunal Arbitral Singular constituído sob a égide do CAAD no processo n.º 154/2023-T, que julgou totalmente procedente, por provado, o pedido de pronúncia arbitral deduzido contra a ilegalidade de 18 (dezoito) atos de liquidação de Imposto Único de Circulação («IUC») relativos ao ano de 2021 no montante global de € 1.305,80 (mil trezentos e cinco euros e oitenta cêntimos).

B. Decisão esta que considera estar em oposição com a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral, sob a égide do CAAD, no processo n.º 417/2020-T (acórdão fundamento) alegando existir contradição sobre a mesma «questão fundamental de direito» entre a decisão arbitral recorrida e o acórdão fundamento.

C. A «questão fundamental de direito» em apreço nos presentes autos é a previsão do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação («Código do IUC»), na sua redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 1 de agosto, sobre quem se considera ser o proprietário do veículo, ser ou não considerada uma presunção ilidível, ou seja, suscetível de prova em contrário.

D. A Recorrida considera que os requisitos substanciais para a admissibilidade do presente recurso não se encontram preenchidos, vejamos:

E. Cumpridas as exigências formais legalmente impostas, são igualmente exigidos requisitos substanciais do recurso por oposição de acórdão ou de uniformização de jurisprudência, a saber: (i) que exista contradição entre a decisão arbitral de que se recorre e um Acórdão proferido por algum dos TCA, pelo STA, ou por outra decisão arbitral; (ii) que essa contradição seja relativamente à mesma «questão fundamental de direito»; e (iii) que a orientação perfilhada pela decisão em crise não esteja de acordo com a jurisprudência consolidada do STA.

F. O preenchimento dos pressupostos (i) e (ii) exige, em primeira linha, a definição do que é uma «questão fundamental de direito» e como deve esta ser caracterizada.

G. Nesse sentido, a caracterização da «questão fundamental» sobre a qual exista oposição entre acórdãos deverá seguir os seguintes critérios firmados no domínio do ETAF de 1984 e da LPTA e não raras vezes citados por este STA:

a. identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, o que pressupõe uma identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos, mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais;

b. que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica, a qual se verifica sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica; e

c. que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta e esta oposição decorra de decisões expressas, não bastando a simples oposição entre razões ou argumentos enformadores das decisões finais ou a invocação de decisões implícitas ou a pronúncia implícita ou consideração colateral tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

H. Caso não estejam verificados estes critérios à luz destes princípios, o recurso por oposição de acórdãos não deverá ser admitido e, por conseguinte, este STA não deverá conhecer do mérito da «questão».

I. Tarefa essa que compete a este Venerando Tribunal apreciar e decidir, entendendo a recorrida ser de chamar apenas atenção para o seguinte aspecto: no caso sub judice não se mostra verificado um dos requisitos de admissibilidade do presente recurso - a identidade das situações de facto – uma vez que a valoração dos factos não foi idêntica nos dois casos, o que levou à divergência no sentido decisório. Pelo que o mesmo não deve ser conhecido.

J. Com efeito, no que respeita aos factos do acórdão fundamento apenas se sabe que i) a AT emitiu a liquidação de IUC relativamente ao ano de 2019; b) a Requerente alega já não ser proprietária da viatura; c) a viatura foi objeto de penhora por dívida da adquirente.

K. Ao invés, na decisão arbitral recorrida ficou provado i) ser a Requerente uma instituição financeira; ii) a celebração, por esta, de contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira; iii) cujas viaturas, objeto daqueles contratos, foram adquiridas pelos locatários no fim dos mesmos contratos; iv) tornando-se estes últimos, os seus reais proprietários.

L. E foi face a toda a factualidade aí provada que os árbitros, interpretando a lei, deram a solução do caso, devidamente fundamentada.

M. Assim sendo, não se duvida que os acórdãos em confrontam partilham decisões diferentes relativamente à mesma questão de direito, todavia, esta diferença é justificada pela assimetria da matéria factual entre os acórdãos.

N. Por esse motivo (ie. dada a assimetria da matéria factual), é de considerar que não se encontra verificado um dos requisitos do presente recurso - a identidade das situações de facto - pelo que, sendo também este o entendimento de V. Exas., deverão abster-se de tomar conhecimento do mesmo.

O. Todavia, caso se entenda que o presente recurso para uniformização de jurisprudência deverá ser admitido, o que não se concede, sempre se dirá que, mesmo assim, a decisão arbitral recorrida não merece qualquer reparo, devendo, como tal, ser integralmente mantida na ordem jurídica pelos motivos ponderosos que se enunciam de seguida.

P. Em outras palavras, caso o STA entenda que se encontram preenchidos os requisitos legais - formais e substanciais - para que o presente recurso seja admitido, considera então a Recorrida que o entendimento que deve prevalecer e vingar, e como tal sancionado por este Venerando Tribunal em sede do presente recurso, é o vertido na decisão recorrida, dado que, com o devido respeito, é esse que encontra efectivamente suporte nos termos do nosso direito constituído, maxime nas regras e funções do registo automóvel apontam neste sentido, bem como em nome do princípio da proporcionalidade e da capacidade contributiva.

Q. Em traços gerais, a AT defende que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, porquanto considera que deve prevalecer o entendimento do tribunal arbitral no acórdão fundamento, o qual considerou que «[o legislador] ao retirar a parte «os proprietários dos veículos» visa, claramente, passar a incidência subjetiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor».

R. Sucede, todavia, que, com todo o acervo jurisprudencial existente, e citando a decisão arbitral recorrida, «fica claro o entendimento de que o artigo 3.º do Código do IUC prevê uma presunção ilidível pelo que, a questão semântica em nada altera o sentido interpretativo desta norma.».

S. Analisada meticulosamente a argumentação esgrimida pelo Tribunal a quo, à luz da mais visada doutrina e da corrente jurisprudencial arbitral que se tem debruçado sobre o tema, entende a Recorrida que a decisão arbitral recorrida não merece qualquer reparo, dado que, sem nenhuma dúvida, o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece uma presunção ilidível.

T. Em primeiro lugar porque, conforme esclarece a melhor doutrina e jurisprudência, o registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem somente de eficácia declarativa.

U. Neste sentido decidiu o tribunal arbitral na decisão recorrida:

VEJAMOS:

«O legislador converteu a base de dados dos registos de propriedade automóvel numa base de dados fiscal constituída por sujeitos passivos, abstraindo-se da formação da sua constituição e da respectiva natureza declarativa, pretendendo assim com esta mudança que as questões que se suscitavam com a titularidade da propriedade formal versus propriedade efectiva não levantassem dificuldades à liquidação e cobrança do imposto. Não pretendeu, porém, com isso subverter as finalidades do registo e criar uma presunção inilidível de propriedade, mas apenas facilitar a cobrança do imposto, transferindo para o sujeito passivo o ónus da prova, dotando a Administração Tributária de um mecanismo de fácil identificação dos sujeitos passivos deste imposto e socorrendo-se de uma presunção, ilidível, baseada nas regras e funções do registo automóvel.». (Destaque nosso)

V. Em segundo lugar, e socorrendo-nos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica, porque o princípio da equivalência está consubstanciado no artigo 1.º do CIUC - no atual e novo quadro da tributação automóvel - decorre daí que o sujeito do passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.

W. Neste sentido, foram já proferidas múltiplas decisões arbitrais, designadamente decisões transitadas em julgado. Veja-se, a título meramente ilustrativo, a decisão arbitral proferida pelo Árbitro Hélder Faustino, no processo n.º 55/2023-T, de 02-06-2023, que assentava também sobre uma situação fáctica em tudo idêntica à da decisão recorrida, inclusive com identidade das partes:

X. Neste mesmo sentido, veja-se a decisão proferida pela árbitra Raquel Franco no processo n.º 106/2022-T, de 2022-07-27:

«Nos termos do disposto no artigo 349.º do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”. Por outro lado, o n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil esclarece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.

Ora, quanto à questão de saber se o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC consagra uma presunção ilidível ou inilidível, não vemos que se possa olvidar ou, de qualquer outra forma, ignorar, o disposto no artigo 73.º da LGT, que estabelece claramente que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário. Tratando-se a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC de uma norma de incidência tributária, outro entendimento senão o de que a mesma prevê uma presunção ilidível seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal». (Destaque nosso)

«Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC. Donde, a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC à luz da relevância legalmente, constitucionalmente e até no âmbito do Direito da União Europeia, conferida ao princípio da equivalência não comporta a tributação, em IUC, do locador que, enquanto proprietário formal do veículo, não tem, consequentemente, qualquer potencial poluidor, o que significa que os danos advenientes para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis devem ser assumidos pelos seus reais utilizadores, como custos que só eles deverão suportar.»

Y. Em terceiro lugar, através do recurso às regras elementares de hermenêutica jurídica (elemento histórico), extrai-se a conclusão de que a legislação fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma outra expressão que, como vimos, têm no ordenamento jurídico português um sentido coincidente.

Z. Assim decidiu o Tribunal Arbitral sob a égide do CAAD, no âmbito do processo n.º 462/2019 T:

«Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.

(…)

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.»

AA. Em quarto lugar porque o artigo 73.º da LGT ao prever que as presunções relativas a normas de incidência tributária são sempre ilidíveis - «admitem sempre prova em contrário» -, então, o único desfecho possível é o de que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC é uma presunção juris tantum, portanto, ilidível.

BB. Também aqui citamos a já citada decisão proferida pela árbitra Raquel Franco no âmbito do processo n.º 106/2022-T «Ora, quanto à questão de saber se o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC consagra uma presunção ilidível ou inilidível, não vemos que se possa olvidar ou, de qualquer outra forma, ignorar, o disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, que estabelece claramente que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário. Tratando-se a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC de uma norma de incidência tributária, outro entendimento senão o de que a mesma prevê uma presunção ilidível seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal (…)».

CC. Sendo ainda de referir que este mesmo entendimento é sufragado em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis («IMI»), cujo código estabelece no seu artigo 8.º uma presunção juris tantum de quem é considerado sujeito passivo do imposto, à semelhança do que sucede com todas as demais presunções que regulem matérias de incidência tributária.

DD. Em quinto lugar a interpretação «cega» da lei, levaria a situações extremas de completa injustiça, atentando-se contra os princípios da equivalência, da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da justiça material.

EE. Assim sendo, bem andou o Tribunal a quo, no acórdão recorrido, a decidir que «Outra solução violaria o princípio da proporcionalidade e, bem assim, em bom rigor, o da capacidade contributiva, como bem sustenta a Requerente.»

FF. Desta premissa parte para outra igualmente unívoca de que «Pelo que a resposta dada à primeira questão sub judice é a de que a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, consubstancia uma mera presunção juris tantum, susceptível de demonstração em contrário, de propriedade do veículo».

GG. Sem prescindir, e até acrescentando, caso se admita a tese pugnada pela Recorrente - de que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção inilidível - o que não se concede apenas de admite por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que a interpretação daquela norma, nesses termos, padece de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da equivalência, da igualdade, da capacidade contributiva e da proporcionalidade; inconstitucionalidade essa que se invoca para todos os efeitos legais.

HH. Inconstitucionalidade material que se sustenta, desde logo, no facto de o princípio da equivalência, na sua máxima pujança, não comportar razões de praticabilidade desmedida e que vá além dos objetivos pretendidos pelo legislador; e exige que, no caso do IUC e quanto à sujeição passiva a este imposto, seja onerada a pessoa concreta que utilizou o veículo e provocou danos à rede viária com a sua utilização.

II. É conhecimento da Recorrida que esse princípio se encontra circunscrito pelo princípio da praticabilidade e, na confluência entre estes dois princípios decorre que o IUC, enquanto imposto ambiental, por natureza de base mais larga, onde o causador dos danos ou o aproveitador dos benefícios que visam ser internalizados pelo imposto é reconhecido com maior dificuldade, poderá ser sujeito passivo o causador presumível dos danos, ie., o proprietário do veículo automóvel, ou quando a propriedade e o direito de uso sejam separados, o locatário financeiro, o adquirente com reserva de propriedade, ou outro titular de direitos de opção de compra por força do contrato de locação, tal como estatuído nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do Código do IUC.

JJ. Importar ainda invocar nesta sede o princípio da proporcionalidade, constante do n.º 2 do artigo 18.º da CRP que, por sua vez, restringe o âmbito de aplicação do princípio da praticabilidade. Aquele princípio subdivide-se em (i) princípio da adequação, que dita que as medidas tomadas devem ser adequadas à prossecução dos fins visados pela lei; (ii) princípio da exigibilidade, que manda que as medidas restritivas previstas na lei; e (iii) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito que impede o legislador de tomar medidas legais excessivas em relação às finalidades que se visam atingir.

KK. Atentos os comandos constitucionais supra expostos, parece-nos ser completamente desproporcional a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC de que o critério normativo extraído daquela norma ditasse, sem mais, que o antigo proprietário do veículo automóvel, por ter sido anterior locador, se veja obrigado a suportar o IUC e demais encargos associados possa ou não requerer a alteração do registo da propriedade da viatura, uma vez que ou essa alteração lhe acarretará custos que ele não está obrigado a supor ad eternum um custo (in casu, o IUC) com a repercussão de um dano que não provocou, quando o custo que a AT teria neste tipo de situações será, apenas e somente, a emissão de uma nova liquidação de IUC, não estando defraudadas, sequer, as expectativas do erário público.

LL. Entende-se ainda que quando o direito de propriedade do veículo e o direito à sua efetiva utilização seja separado por contrato com eficácia real ou obrigacional, o princípio da equivalência exigirá que a sujeição passiva do IUC não recaia sobre a pessoa em nome da qual esteja registada a propriedade da viatura do automóvel, mas sobre outras pessoas que adquiriram a real propriedade.

MM. Em síntese, e por maioria de razão, o entendimento de que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC consagra uma presunção inilidível que a AT tanto pregou de que o sujeito passivo é, sem prova admitida em contrário, a pessoa em nome da qual o mesmo está registado é uma interpretação totalmente contrária à lógica subjacente ao artigo 13.º e 18.º da CRP, sendo, e por isso, inconstitucional.

NN. O Tribunal Constitucional («TC») inclusive já se debruçou sobre a (in)admissibilidade de presunções inilidíveis no direito fiscal, no que diz respeito à sua (des)conformidade com o princípio da igualdade, subprincípio da capacidade contributiva, no Acórdão n.º 348/97, de 29 de abril de 1997.

OO. Em face ao exposto, para que a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC possa estar em harmonia com o princípio da equivalência, da igualdade, da capacidade contributiva e da proporcionalidade, constitucionalmente tutelados, deve-se entender que a presunção de causação de custo ou de aproveitamento de um benefício deixa de subsistir no momento em que o putativo proprietário apresenta prova da transmissão da propriedade do veículo.

PP. Portanto, mesmo que se pudesse interpretar o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC como se de uma presunção inilidível se tratasse, não era possível, contudo, aplicar essa interpretação à situação vertente (entidade locadora), sob pena de manifesta inconstitucionalidade material.

QQ. Em face ao exposto, é forçoso concluir que, ainda que se admita hipoteticamente o presente recurso por oposição de acórdãos, a decisão arbitral recorrida não padece de nenhum dos vícios imputados pela Recorrente nas alegações de recurso; primeiro por estabelecer o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC uma presunção ilidível de quem deve ser considerado sujeito passivo do Imposto Único de Circulação com base no Registo Automóvel, e segundo - sem prescindir - por a interpretação invocada pela Recorrente ser inconstitucional, na medida em que fere o princípio da equivalência, da igualdade, da capacidade contributiva e da proporcionalidade, todos constitucionalmente tutelados, devendo, por isso, a decisão arbitral recorrida ser integralmente mantida por este STA, com todas as consequências legais.

V. DO PEDIDO

Nestes termos, requer-se a V. Exas., ao abrigo do n.º 2 do artigo 25.º do RJAT, e observado o regime do recurso regulado no artigo 152.º do CPTA - e caso entenda que deve admitir e apreciar o presente recurso por considerar preenchidos os respetivos requisitos formais e substanciais - que se dignem a julgar totalmente improcedente o presente recurso, por manifesta ilegalidade e/ou manifesta inconstitucionalidade, mantendo, assim, a decisão arbitral recorrida (processo arbitral n.º 154/2023-T) na ordem jurídica, com todas as consequências legais.”

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser determinada a anulação da decisão arbitral recorrida, devendo ser uniformizada jurisprudência nos seguintes termos: - Para efeitos do disposto no artigo 3º nº1 do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, de 1 de agosto, responde pelo pagamento do imposto a pessoa em nome da qual está registado o veículo à data da verificação do facto tributário, independentemente de nessa data já ter ocorrido transmissão da propriedade para outra pessoa.

Cumprido o estipulado no n.º 2 do artigo 92.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cumpre decidir, em conferência, no Pleno da Secção.




2. FUNDAMENTOS

2.1. DE FACTO

Neste domínio, consta da decisão arbitral recorrida o seguinte:

“…

Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados (pedido de constituição arbitral, Resposta da Requerida e alegações de ambas as partes), à prova documental junta aos autos, julgam-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão de mérito:

a) A Requerente é uma instituição de crédito que se apresenta actualmente como um dos maiores bancos especializados a operar no financiamento ao sector automóvel, na área dos bens de consumo, cartões de crédito e empréstimos pessoais com presença no mercado nacional, em que uma parte substancial da sua actividade se reconduz à celebração de contratos de locação financeira destinados à aquisição de veículos automóveis, por empresas e particulares.

b) Esses contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, em que a Requerente, depois de contactada pelo cliente que, nessa fase, já escolheu o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características e, inclusive, o seu preço, adquire o veículo ao fornecedor indicado pelo próprio cliente, e de seguida, procede à sua entrega ao cliente, assumindo este a qualidade de locatário.

c) Durante o período estipulado no contrato, o locatário restitui o financiamento em prestações mensais, na forma de rendas, tendo o direito, no final do contrato, de adquirir o veículo, mediante o pagamento de um valor residual, acrescido de despesas e IVA.

d) A Requerente celebrou contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira para os veículos indicados na em f) tendo os locatários, no final desses contratos e nos respectivos termos, adquirido os veículos;

e) A Requerente emitiu, por conseguinte, as respectivas facturas de venda.

f) Com referência àqueles veículos, foram emitidas as liquidações de IUC relativas ao mês de Março de 2021 constantes do seguinte quadro:

[IMAGEM]

g) À data do facto gerador daquelas liquidações, a Requerente já tinha emitido as facturas de venda relativas àqueles veículos automóveis.
h) À data do facto gerador, todos os veículos automóveis se encontravam ainda registados no nome da Requerente.
i) A Requerente apresentou reclamação graciosa daquelas liquidações de imposto a 10 de Novembro de 2021.
j) Notificada do despacho que indeferiu aquela reclamação, dele interpôs recurso hierárquico;
l) A Requerente pagou os montantes de imposto liquidados.
Factos não provados
Não foram julgados não provados quaisquer factos relevantes para a decisão da causa.
Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto
Para a convicção do Tribunal Arbitral, relativamente aos factos provados e não provados, relevaram os documentos juntos aos autos, os quais se mostraram idóneos sobre os factos em discussão nos presentes autos.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correcta composição da lide processual.
De resto, estão documentalmente comprovados e não foram objecto de controvérsia entre a Requerente e a Requerida.

Por sua vez, a decisão arbitral fundamento relevou a seguinte matéria de facto:
“(…)
10. Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
a. A viatura em questão, com a matrícula ..-..-LH, durante o ano de 2019 esteve registado em nome da Requerente.
b. A 15 de setembro de 2019 a AT emitiu liquidação oficiosa de IUC n.º ...28 (cfr. PA junto pela Requerida ao processo) pelo valor de € 517.
c. A 16 de janeiro de 2020 a Requerente apresentou reclamação graciosa.
d. A 28 de fevereiro de 2020 a AT notificou a Requerente do despacho de indeferimento à referida Reclamação Graciosa.
B. Factos não provados
11. Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.
C. Fundamentação da decisão da matéria de facto
12. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e n.º 3 do artigo 607.ºdo CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).
13. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de direito (cfr. n.º 1 do anterior artigo 511.º, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º, do RJAT).
14. Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, com base nos elementos documentais aí indicados.

«»

2.2. DE DIREITO

2.2.1.- Dos requisitos de admissibilidade do recurso por oposição de acórdãos

O presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência, interposto ao abrigo do disposto nos artigos 25º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e no artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi do artigo 25.º, n.º 3 do RJAT, respeita à decisão arbitral proferida no processo nº 154/2023-T - que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral deduzido por “Banco 1..., S.A. - Sucursal em Portugal” tendo como objecto imediato o acto de indeferimento expresso do recurso hierárquico n.º 3433202210000016, notificado através do ofício n.º ...22-12-22, de 21-12-2022 e por objecto mediato 18 (dezoito) actos de liquidação de imposto único de circulação (IUC), relativamente a 18 (dezoito) veículos automóveis, no montante global de € 1305,80 (mil trezentos e cinco euros e oitenta cêntimos), sendo que, com o pedido de anulação, a aludida Requerente solicitou o reembolso do indevidamente pago, bem como o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º da LGT, calculados à taxa legal, com base em oposição de acórdãos, apontando como decisão fundamento, a decisão arbitral proferida no âmbito do Proc. n.º 417/2020-T.

Nos termos do n.º 2 do referido art. 25.º do RJAT, na redacção aplicável, «[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é […] susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo»; dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que a esse recurso «é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no art. 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral».

Como já foi enunciado, o presente recurso tem fundamento na oposição de julgados, impondo-se aferir previamente da verificação dos pressupostos substantivos de que depende o conhecimento do seu mérito. Que são, esquematicamente, os seguintes:

[1.º] que a decisão recorrida tenha apreciado o mérito da pretensão deduzida e tenha posto termo ao processo arbitral (artigo 25.º, n.º 2, primeira parte, do Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária – doravante identificado pela sigla “RJAT”);

[2.º] que exista oposição quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo (artigo 25.º, n.º 2, segunda parte, do mesmo diploma);

[3.º] que a orientação perfilhada na decisão arbitral não esteja de acordo com a jurisprudência mais recente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo [artigo 152.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável a coberto do n.º 3 do artigo 25.º daquele outro diploma].

[4.º] que o acórdão fundamento tenha transitado em julgado (artigo 688.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 140.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), situação que se verifica neste caso, não existindo qualquer dissídio em relação a este elemento.

Avançando, diga-se ainda como se refere no Ac. deste Tribunal (Pleno) de 4 de Junho de 2014, Proc. nº 01763/13, www.dgsi.pt, para apurar da existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito é exigível “que se trate do mesmo fundamento de direito, que não tenha havido alteração substancial da regulamentação jurídica e que se tenha perfilhado solução oposta nos dois arestos: o que, como parece óbvio, pressupõe a identidade de situações de facto, já que sem ela não tem sentido a discussão dos referidos pressupostos. Sendo que a oposição também deverá decorrer de decisões expressas, que não apenas implícitas. (Cfr., neste sentido, os acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário, de 25/3/2009, rec. nº 598/08 e do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, de 22/10/2009, rec. nº 557/08; bem como Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, pp. 1004 e ss.; e Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Vol. IV, 6ª ed., Áreas Editora, 2011, anotação 44 ao art. 279º pp. 400/403.)”.

Tal significa que para apurar da existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento devem adoptar-se os critérios já firmados por este STA, quais sejam:

- Identidade da questão de direito sobre que recaíram as decisões em confronto, que supõe estar-se perante uma situação de facto substancialmente idêntica;

- Que não tenha havido alteração substancial da regulamentação jurídica;

- Que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta;

- A oposição deverá decorrer de decisões expressas, não bastando a pronúncia implícita ou a mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

Analisando:

O primeiro e decisivo problema que se impõe aqui tratar - e que preclude o tratamento dos demais, como se verá - é, portanto, o de saber se as duas decisões em alegada oposição se pronunciaram efectivamente em termos contrários acerca de uma mesma questão jurídica, dentro de um igual enquadramento fáctico e jurídico.

E tal, já adiantamos, só pode ser negativa.

A Recorrente começa por identificar a questão fundamental de direito, objecto de contradição entre a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento nos seguintes termos: saber se o artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, na sua redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 1 de agosto, contempla ou não uma presunção legal iuris tantum, ou seja, susceptível de prova em contrário, sobre quem se considera ser o proprietário do veículo, referindo depois que as decisões em confronto perfilharam, sobre a mesma questão fundamental de direito, soluções opostas de forma expressa, isto é, adoptaram sobre a mesma questão de direito soluções juridicamente divergentes em idênticas situações de facto.

Pois bem, na decisão arbitral recorrida o tribunal deu como assente que à data da verificação do facto tributário a locadora já havia emitido as facturas relativas à transmissão dos veículos aos locatários, mas os veículos encontravam-se ainda registados em nome da locadora e debruçando-se sobre a questão do sujeito passivo do imposto, ponderou que:

“…

A reforma da fiscalidade automóvel teve na sua génese os estudos efectuados por um Grupo de Trabalho (GT), mandado constituir por Despacho Conjunto dos Ministros de Estado e das Finanças e do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (Despacho Conjunto n.º 290/2006, de 27 de março, (2.ª série), em que se definiram um conjunto de orientações e princípios, designadamente, de eficiência, eficácia e simplicidade, e se recomendou, sempre que possível, o recurso a soluções electrónicas e a busca de soluções integradas que permitissem segurança e eficácia nas liquidações e cobranças através do envolvimento em processos de transmissão electrónica de dados e acesso à informação de entidades externas.

Os trabalhos desse GT suportaram a Proposta de Lei n.º 118/X, de 7 de março de 2007.

A versão inicial do referido artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, preceituava que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

A solução legislativa encontrada foi a de recolher as informações necessárias às operações de cobrança do IUC numa base de dados de uma entidade externa - o registo automóvel - por razões de eficácia e simplicidade e tendo em conta as finalidades e a natureza dos dados constantes do registo.

Esta redacção é, de facto, diferente daquele que o Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de Dezembro adoptava para o Imposto sobre Veículos: “O imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”, redacção que transitou sucessivamente para o Decreto-Lei n.º 782/74, de 31 de Dezembro, para o Decreto-Lei n.º 81/76, de 28 de Janeiro e finalmente para o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho, legalmente designado por «Imposto Municipal sobre Veículos», aplicável aos automóveis ligeiros de passageiros e motociclos.

E é esta diferença que vem sustentando a posição da AT, de que, em sede de IUC se consagrou uma presunção inilidível, de que quem consta do registo como proprietário do veículo na data em que se verifica o facto tributário o é, para efeitos unicamente tributários e sem prejuízo das regras civis da transmissão da propriedade.

Em qualquer caso, a verdade é que, mesmo tendo-se substituído a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se” e tendo-se eliminado a expressão “até prova em contrário”, a norma fiscal da incidência subjectiva esteve e está subordinada às regras do registo automóvel.

Ora, o Código do Registo Automóvel preceitua que o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.

A propriedade de um veículo automóvel é facto obrigatoriamente sujeito a registo, nos termos daquele Código, sendo que quer o CRA quer o Regulamento do Registo Automóvel fixam prazos máximos para o registo dos actos a ele obrigatoriamente sujeitos, sob várias cominações, designadamente, de natureza financeira.

Nos casos de locação financeira ou ALD - actividade desenvolvida pela Requerente - o CRA prescreve que o registo é feito mediante requerimento subscrito pelo vendedor, na sequência do exercício do direito de propriedade ou de aluguer de longa duração registado, acompanhado da factura correspondente à venda ou de documento de quitação.

O legislador fiscal - atentas as finalidades do registo, a mera presunção que ele gera e os prazos para ele estabelecidos - não podia desconhecer que, pese embora a expressão “considerando-se” que resolver utilizar, que a informação que obtinha do registo quanto ao proprietário do veículo automóvel constituía mera presunção, que o visado podia ilidir, mediante prova cabal do contrário.

O legislador converteu a base de dados dos registos de propriedade automóvel numa base de dados fiscal constituída por sujeitos passivos, abstraindo-se da formação da sua constituição e da respectiva natureza declarativa, pretendendo assim com esta mudança que as questões que se suscitavam com a titularidade da propriedade formal versus propriedade efectiva não levantassem dificuldades à liquidação e cobrança do imposto. Não pretendeu, porém, com isso subverter as finalidades do registo e criar uma presunção inilidível de propriedade, mas apenas facilitar a cobrança do imposto, transferindo para o sujeito passivo o ónus da prova, dotando a Administração Tributária de um mecanismo de fácil identificação dos sujeitos passivos deste imposto e socorrendo-se de uma presunção, ilidível, baseada nas regras e funções do registo automóvel.

Outra solução violaria o princípio da proporcionalidade e, bem assim, em bom rigor, o da capacidade contributiva, como bem sustenta a Requerente.

Pelo que a resposta dada à primeira questão sub judice é a de que a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, consubstancia uma mera presunção juris tantum, susceptível de demonstração em contrário, de propriedade do veículo; …”.

Por seu lado, na decisão arbitral fundamento o tribunal deu como assente que a liquidação do IUC, emitida em 15/09/2019, respeita a viatura registada na altura em nome da impugnante e apreciando a legalidade do ato de liquidação o tribunal arbitral adoptou o entendimento sufragado no acórdão do TCA Norte de 21/02/2019, proferido no processo nº 00611/13.4BEVIS, apontando que:

“…

28. O presente pedido de pronúncia arbitral tem por questão essencial saber se o artigo 3.º do Código do IUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita e, saber se, como alega a AT, a interpretação da Requerente não atende aos elementos histórico e teleológico de interpretação da lei.

29. O Código do IUC, até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, estatuía, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º, o seguinte:

“Artigo 3.º - Incidência Subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

30. Contudo, com a entrada em vigor do referido Decreto-Lei n.º 41/2016, o n.º 1 do referido artigo 3.º, passou a ter uma redação bem distinta:

“Artigo 3.º - Incidência Subjetiva

1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.

31. Ora, ao retirar a parte “os proprietários dos veículos, considerando-se como tais”, a alteração operada visa, claramente, passar a incidência subjetiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor.

32. É uma alteração relevante que que faz toda a diferença no presente caso, dado que, sendo a liquidação posterior a 2016, a ela se aplica a nova redação e as suas consequências, ou seja, a atual redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC não contempla uma presunção e, consequentemente, também não se coloca aqui a questão de saber se a ilisão da presunção foi realizada - como pretendeu demonstrar a ora Requerente -, nem a questão de saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal desconsidera o elemento histórico e o elemento teleológico, como defendeu a Requerida na sua resposta.

33. A este respeito, e como bem refere, o Acórdão do TCA Norte de 21/2/2019, no proc. n.º 00611/13.4BEVIS: “«No tocante à incidência subjetiva de imposto, dispunha à data dos factos o art. 3.º daquele Código: ‘1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados. (...)’. Ulteriormente, mediante a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março de 2016 (Orçamento de Estado para 2016) a Assembleia da República conferiu ao Governo a seguinte autorização legislativa, através do seu art. 169.º: ‘(...) Autorização legislativa no âmbito do imposto único de circulação. Fica o Governo autorizado a introduzir alterações no Código do Imposto Único de Circulação, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, com o seguinte sentido e extensão: a) Definir, com carácter interpretativo, que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito publico ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, no n.º 1 do artigo 3.º (...)’. Essa autorização foi utilizada para emanação do Decreto-Lei n.º 41/2016 de 01 de Agosto, em cujo preâmbulo se afirmou: ‘(...) o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autoriza que se efetuem, também, alterações ao Código do Imposto Único de Circulação. Sendo estas, igualmente, conexas com a necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto. (...)’. O art. 3.º daquele Decreto-Lei conferiu a seguinte redação ao art. 3.º, n.º 1, do CIUC: ‘1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos. (...)’ Em face da nova redação conferida ao preceito, dúvidas não subsistem que o legislador pretende que seja sujeito passivo de imposto o proprietário constante do registo, independentemente de poder não ser o titular do direito real de propriedade sobre veículo. (...)» Embora a decisão recorrida seja, afinal, no sentido da verificação de dúvidas sérias quanto à existência física das viaturas em causa, cuja propriedade estriba as liquidações impugnadas, entendemos que a alteração do regime legal operada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, não é aplicável aos presentes autos. É verdade que o identificado Decreto-Lei veio dar cumprimento à norma constante da Lei do Orçamento de Estado (doravante LOE) para 2016, no seu artigo 169.º, e aprovada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março. Na verdade, dispõe o referido normativo o seguinte: «Fica o Governo autorizado [...] no n.º 1 do artigo 3.º (...)». No uso desta autorização legislativa, foi publicado o referido Decreto-Lei n.º 41/2016, e que alterou a redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, que passou a ser, como se transcreve na sentença recorrida, a seguinte: «São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.», norma esta que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (nos termos do disposto no artigo 15.º do identificado diploma legal). Ora, não se julga que a supra transcrita seja uma norma verdadeiramente interpretativa. Dúvidas não existem de que a lei habilitante, a LOE, no seu artigo 169.º, classifica a alteração legal a efectivar quanto ao artigo 3.º do CIUC como tendo carácter meramente interpretativo. Já a norma habilitada se limita a estabelecer, no seu preâmbulo, o seguinte: «(...) Finalmente, o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autoriza que se efetuem, também, alterações ao Código do Imposto Único de Circulação. Sendo estas, igualmente, conexas com a necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto. (...)» Porém, não classifica a norma como tendo natureza interpretativa, apesar de o diploma assumir que a alteração legal veio ao encontro da necessidade sentida pelo legislador de «ultrapassar dificuldades interpretativas». Da redacção dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 conclui-se que veio o legislador afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados. [...]. [...] [A] norma que vigorou até à aprovação do Decreto-Lei n.º 41/2016 nunca suscitou dúvidas, ao intérprete ou outros interessados, não sendo fonte de incerteza ou insegurança jurídica a definição do seu âmbito de aplicação. Contrariamente, sempre foi pacífica e uniformemente interpretado o referido artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, como estabelecendo uma presunção legal iuris tantum, ou seja, susceptível de prova em contrário, sobre quem se considera ser o proprietário do veículo. Sublinhe-se que as normas de interpretação legal sempre impuseram a classificação de que era sujeito passivo deste tributo o proprietário do veículo, servindo a referida presunção para estabelecer que se considera como tal a pessoa singular ou colectiva que como tal figurar no registo automóvel, solução que bem se entende num sistema jurídico em que o registo tem como objectivo dar publicidade ao acto em questão, que não qualquer natureza constitutiva. [cfr. Acórdão do STA, de 08/07/2015, processo n.º 0606/15]. Esta posição vem sendo reiterada pelos tribunais superiores, designadamente, pelo nosso mais alto tribunal – cfr., entre outros, o Acórdão do STA, de 18/04/2018, proferido no âmbito do processo n.º 0206/17. É, portanto, certo que o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autorizou a alteração da redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC. O que foi cumprido pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, passando esta norma a prever que «São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos». Trata-se de norma claramente inovadora, uma opção legislativa diversa da anterior, e, como tal, a nova redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC só se aplica para futuro.”

34. Entendimento que tem sido seguido, e bem, entendemos nós, em várias decisões arbitrais.

35. Em face do acima exposto e acolhendo-se, aqui, a jurisprudência que se vem consolidando nos Tribunais superiores quanto à incidência subjetiva do imposto na nova redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC - redação que se aplica à liquidação aqui em causa - e estando provado que a viatura a que tal liquidação diz respeito se encontrava, no ano de 2019, registada em nome da Requerente, não pode deixar de concluir-se pela legalidade da questionada liquidação de IUC, bem como da decisão de indeferimento da correspondente reclamação graciosa.

36. Deste modo, face a esta conclusão, mostra-se inútil proceder à apreciação das questões suscitadas pela Requerente relativas à prova de que, à data da ocorrência do facto gerador e exigibilidade do imposto, a viatura a que este respeita já lhe não pertencia por ter sido transmitida a terceiro. …”.

Com este pano de fundo, se é incontroverso que ambas as decisões arbitrais colocaram a questão da identificação do sujeito passivo do imposto à luz do disposto no artigo 3º do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, não é menos verdade que a análise efectuada tem um enquadramento totalmente diferente, considerando a matéria de facto plasmada em cada um dos processos.
No caso da decisão arbitral fundamento, o único facto alinhado prende-se com o facto de “a viatura em questão, com a matrícula ..-..-LH, durante o ano de 2019 esteve registada em nome da Requerente.”, nada tendo sido considerado a propósito da alegada transmissão da viatura, eventualmente por acordo verbal, a favor de uma sociedade, o que nos remete para a consideração do disposto no art. 3º nº 1 do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016.

Ora, no âmbito do processo onde foi prolatada a decisão arbitral recorrida, a ali Requerente pretende ver esclarecida a questão da qualidade de sujeito passivo e da responsabilidade pelo pagamento do IUC e discorre sobre a tese da presunção (in)ilidível, referindo que a jurisprudência arbitral tem de forma maioritária realçado que nem mesmo durante a vigência de um contrato de LSG ou de ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo do imposto, pelo que, por maioria de razão, após o termo do contrato, quando o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, esta é (ou se torna) proprietária.
Em termos de fundamentação de facto, a decisão arbitral recorrida refere que a “A Requerente é uma instituição de crédito que se apresenta actualmente como um dos maiores bancos especializados a operar no financiamento ao sector automóvel, na área dos bens de consumo, cartões de crédito e empréstimos pessoais com presença no mercado nacional, em que uma parte substancial da sua actividade se reconduz à celebração de contratos de locação financeira destinados à aquisição de veículos automóveis, por empresas e particulares.” e que “d) A Requerente celebrou contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira para os veículos indicados na em f) tendo os locatários, no final desses contratos e nos respectivos termos, adquirido os veículos”.

Assim sendo, crê-se que a matéria subjacente aos autos é mais exigente no que diz respeito à análise vertida na decisão arbitral fundamento, nomeadamente quanto se tem presente o disposto no art. 3º nº 2 do CIUC na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, até porque estamos perante contratos que são realizados por escrito e são, à partida, sujeitos a registo.
Nesta medida, perante os dados de facto vertidos na decisão arbitral recorrida, a situação tem como ponto de partida a elaboração de contratos dos quais resulta para a contraparte a obrigação de liquidação do imposto em apreço, sendo que, ainda que não tenha sido feito o registo da locação, teria ainda de ser ponderada a possibilidade de conferir relevância à situação derivada da existência dos tais contratos entre as partes, ou seja, mantém-se a pertinência da ponderação do tal nº 2, que constituirá sempre o ponto de partida de análise em função da natureza dos contratos ali identificados, sendo que só depois poderemos então cair na aplicação do nº 1 da norma já apontada.
Neste ponto, é manifesto que esta realidade nunca se colocou no âmbito da decisão arbitral fundamento, o que significa que a questão jurídica em apreço tem contornos distintos, sendo aqui que reside o elemento fundamental com referência à sorte do presente recurso.
Diga-se ainda que de nada vale a referência no sentido de que a decisão arbitral recorrida, em sede de fundamentação de direito, como que ignorou a matéria acima apontada, dado que, no tratamento da realidade objecto do presente recurso, o Tribunal não pode deixar de apreciar a mesma em função da realidade de facto vertida nos autos, o que torna incontornável o que ficou exposto, de modo que, perante a dinâmica das decisões em apreço, designadamente em função da factualidade ponderada em cada um dos processos, só podemos concluir que não estão, pois, reunidos os pressupostos imprescindíveis para que se conheça do mérito do recurso para uniformização de jurisprudência, uma vez que as decisões em confronto apresentam diverso enquadramento factual, pelo que, como já tinha sido enunciado, tem de ser negativa a resposta à questão de saber se os dois acórdãos em alegada oposição se pronunciaram efectivamente em termos contrários acerca de uma mesma questão jurídica, dentro de um igual enquadramento fáctico e jurídico, pelo que, não se mostram reunidos os pressupostos legais (cumulativos) para que este Supremo Tribunal possa conhecer deste recurso.

Razão porque se decide não tomar conhecimento do mérito do recurso.



3. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em não tomar conhecimento do mérito do recurso.

Custas pela Recorrente.

Notifique-se. D.N..

Comunique ao CAAD.




Lisboa, 21 de Fevereiro de 2024. – Pedro Nuno Pinto Vergueiro (relator) - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Anabela Ferreira Alves e Russo – Fernanda de Fátima Esteves.