Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01174/12
Data do Acordão:06/26/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:DOMÍNIO PÚBLICO
AFECTAÇÃO
DESAFECTAÇÃO
CONTRATO DE URBANIZAÇÃO
USUCAPIÃO
PRESUNÇÃO
CASO JULGADO
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE DIREITO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário:I - A apreciação da questão da qualificação como dominial ou não duma parcela de terreno [quer se trate de atos de classificação ou de afetação] e eventual delimitação da mesma com outros bens de outra natureza mostra-se no quadro do ETAF/2004 incluída no âmbito da jurisdição administrativa.
II - O art. 15.º do CPTA, consagrando o princípio da devolução facultativa e não da devolução obrigatória, confere ao julgador uma liberdade de sobrestar na decisão ou de decidir a questão prejudicial com base nos elementos disponíveis nos autos com efeitos restritos ao processo.
III - À luz do quadro normativo então vigente em matéria de delimitação/definição do domínio público estadual [cfr. arts. 380.º e 382.º do CC/1867, 49.º da Constituição de 1933, o DL n.º 23565, de 12.02.1934, revogado, entretanto, pelo DL n.º 477/80, de 15.10] aplicável em termos de princípios gerais e com as devidas e necessárias adaptações ao domínio público das autarquias locais, uma parcela de terreno doada à edilidade unicamente para «zona verde», sob pena de reversão caso afeta a fim diverso, passa a constituir coisa pública mercê da afetação jurídica que lhe foi conferida pela escritura de doação, outorgada em 1961, no quadro do contrato de urbanização e do concreto arranjo urbanístico decorrente do Plano Parcial de Urbanização a Poente da então Vila da Amadora.
IV - Na ausência de regime normativo semelhante ao que vigora desde 1991 em matéria de cedência de parcelas de terreno para o ente público no quadro de operação loteamento [cfr. arts. 16.º, n.º 2 do DL n.º 448/91, 43.º e 44.º do RJUE], tal contrato de doação, celebrado no quadro da execução do referido Plano Parcial de Urbanização, constituiu o instrumento formal e material através do qual se operou a cedência jurídica da titularidade daquela parcela de terreno para a edilidade.
V - A afetação de uma coisa à utilidade pública é uma forma de lhe atribuir caráter dominial.
VI - A coisa pública não está sujeita às mesmas leis sobre a prescrição que as coisas do domínio privado e, por isso, é insuscetível de posse privada, pelo que os atos/condutas que hajam sido desenvolvidos pelos particulares quando incidentes sobre coisa do domínio público não poderão ser qualificados como atos de posse, não determinando o momento da desafetação.
VII - A desafetação tácita, enquanto forma de cessação da dominialidade, só ocorre quando a coisa pública deixe de servir ao fim de utilidade pública e passe a ser utilizada/usufruída pelos particulares por abandono intencional da entidade pública sua titular.
VIII - A desafetação tácita não poderá derivar ou resultar de ato ou de atuação praticada por um particular, sendo apenas na atitude da Administração, sua ação ou omissão, que importa encontrar o traço que vinque, claramente, o abandono intencional da coisa, abandono esse a resultar inequivocamente de atos praticados pela Administração.
IX - Para tal não bastará a simples constatação duma ausência, ainda que longa, da construção por parte da Administração dum jardim ou doutro tipo de arranjo urbanístico destinando o espaço a «zona verde», já que se exige mais do que uma simples e mera inércia por parte daquela e se desconhecem inteiramente motivações ou razões que estiveram na sua origem.
X - Tal desafetação não resulta ter ocorrido com a publicação do Regulamento PDM da Amadora [Resolução do CM n.º 44/94], mormente, por efeito do que se dispõe no seu art. 89.º, n.º 1, já que tal preceito não tem a virtualidade de fazer desaparecer do domínio público da edilidade R. as parcelas que haviam sido cedidas para arruamentos e «zona verde» pela referida escritura pública de doação.
XI - Improcede, assim, o erro sobre os pressupostos de facto/direito invocado, enquanto fundamento de ilegalidade assacado ao ato administrativo impugnado, se resulta demonstrado que a parcela de terreno em questão constitui bem do domínio público da edilidade e se mostra afastada a presunção do registo decorrente do art. 07.º do Código de Registo Predial, enquanto mera presunção “juris tantum” ilidível ou passível de destruição por prova em contrário [cfr. arts. 350.º, n.º 2 do CC e 01.º, 07.º, 08.º e 13.º do CdRP - demonstração da não existência do facto presumido e não só a criação de dúvidas a tal respeito].
Nº Convencional:JSTA00068816
Nº do Documento:SA12014062601174
Data de Entrada:08/05/2013
Recorrente:A...
Recorrido 1:MUNICÍPIO DA AMADORA E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT.
DIR URB.
Legislação Nacional:CONST76 ART84 ART211 ART212.
CONST33 ART49.
ETAF02 ART1 ART4.
CPTA02 ART15.
CPC96 ART66 ART497 ART498 ART660 ART668 ART671.
CCIV867 ART1456-1477.
CCIV66 ART202 ART280-295 ART1251 ART1287 ART1304.
CCJ96 ART12.
CADM40 ART44-61 ART345.
CRP84 ART5 ART7.
CNOT35 ART163.
CNOT60 ART88 ART89.
RGEU51 ART24 N1 A ART43 ART44.
L 41/13 DE 2013/06/26 ART5 ART7.
L 2009 DE 1959/08/14.
DL 35931 DE 1946/11/04.
DL 46673 DE 1965/11/29.
DL 560/71.
DL 289/73 DE 1973/06/06.
DL 400/84 DE 1984/12/31.
DL 448/91 DE 1991/11/29.
DL 555/99 DE 1999/12/16.
DL 280/07 DE 2007/08/07.
DL 303/07 DE 2007/08/24 ART11 ART12.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC014/10 DE 2011/03/03.; AC TCF PROC024/13 DE 2013/05/15.; AC TCF PROC039/13 DE 2013/11/05.; AC TCF PROC061/13 DE 2014/01/29.; AC TCF PROC058/13 DE 2014/02/06.; AC TCF PROC031/13 DE 2014/05/15.; AC STA PROC039114 DE 2001/11/07.; AC STA PROC01759/03 DE 2005/02/23.; AC STA PROC0301/09 DE 2009/12/09.; AC STA PROC0937/10 DE 2011/07/13.; AC STA PROC0267/11 DE 2011/09/08.; AC STA PROC0677/13 DE 2014/02/20.; AC STA PROC0774/13 DE 2013/10/10.; AC STA PROC0584/13 DE 2013/11/27.; AC STA PROC0528/08 DE 2010/03/18.; AC STJ PROC0286/07 DE 2012/02/16.
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ALBERTO DOS REIS CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VOLV PAG143.
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JOSÉ PEDRO FERNANDES IN DICIONÁRIO JURÍDICO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA VOLIV PAG184-185.
MARCELLO CAETANO - MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOLII 10ED PAG921.
FREITAS DO AMARAL IN DICIONÁRIO JURIDICO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA VOLII 2ED PAG439.
ANTÓNIO DUARTE DE ALMEIDA E OUTROS LEGISLAÇÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO DO URBANISMO VOLII PAG571.
A CARVALHO MARTINS IN CAMINHOS PÚBLICOS E ATRAVESSADOUROS 2ED PAG37-38.
MANUEL RODRIGUES - A POSSE - ESTUDO DE DIREITO CIVIL PORTUGUÊS 4ED PAG118.
MENEZES CORDEIRO - DIREITOS REAIS VOLI PAG181.
MENEZES CORDEIRO IN RLJ ANO64 PAG60.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

1.1. A…………………. [falecida na pendência do processo - cfr. fls. 550/554 (escritura de habilitação)] e sua filha B…………………., devidamente identificadas nos autos, haviam instaurado no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra [doravante TAFS], contra o “município dA AMADORA” a presente ação administrativa especial pedindo, pela motivação inserta na petição inicial corrigida de fls. 252/259 v., para fosse anulado o despacho do Presidente da C.M. Amadora de 11.11.2003 [que indeferiu às AA. pedido de informação prévia n.º DF 10727/03, bem como declarado que, “face ao PDM invocado, ser legal a aprovação do pedido de informação prévia apresentado … em 28 de outubro de 2003 …”, e, em consequência, condenado o R. a “revogar a sua decisão … e a deferir o pedido de informação prévia …”].

1.2. O TAFS, por acórdão de 17.03.2006, julgou a ação procedente, condenando o R. “a emitir informação prévia, no âmbito do pedido apresentado por requerimento datado de 28 outubro de 2003, registado com o n.º 10727/03, sobre a viabilidade de realizar a operação urbanística e sobre os condicionamentos legais ou regulamentares, sem a aplicação, enquanto norma regulamentar em vigor, do denominado Contrato de Urbanização C15 ...”.

1.3. O R. Município, inconformado, recorreu para o TCA Sul o qual, por acórdão de 03.05.2012, concedendo provimento ao recurso jurisdicional, declarou nula a decisão daquele TAF e julgou totalmente improcedente a ação, absolvendo o R. dos pedidos.

1.4. Invocando o disposto no art. 150.º do CPTA a A., B………… [entretanto também habilitada por sucessão dado o falecimento da outra co-A. - cfr. fls. 550/554], inconformada com o acórdão proferido pelo TCA Sul, interpôs, então, o presente recurso jurisdicional de revista apresentando o seguinte quadro conclusivo que se reproduz [cfr. fls. 532 e segs. e 568 - paginação processo suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário]:
...
1 - O TCA e a jurisdição administrativa são incompetentes para apreciar a titularidade do terreno em causa ou qualificá-lo como domínio público, não podendo fazê-lo a título prejudicial sem notificação ao ora requerido para propor ação autónoma, uma vez que tal questão releva da competência dos tribunais judiciais (STA 19.11.2009).
2 - Ainda que os tribunais administrativos fossem competentes, tal não foi peticionado pela então ré, enfermando o aresto recorrido de excesso de pronúncia e consequente nulidade.
3 - Para que tal matéria pudesse ser tratada como questão prejudicial era forçoso aplicar o artigo 15.º do CPTA e o TCA deveria ter sobrestado na decisão e convidado o Município a propor ação autónoma, tendo existido violação flagrante da lei processual, sendo certo estar-se nesse cenário perante questão prejudicial (STA 021/05).
4 - O acórdão recorrido enfermou de erro de julgamento relativamente à pretensa existência de domínio público, porque nunca existiu um dos requisitos de constituição do domínio público de circulação - a afetação à utilidade pública, porque o terreno em causa nunca foi transformado em jardim ou praça estando abandonado (STA 0267/11), não podendo ser aplicável a lei especial do RJEOP por não existir à época.
5 - Ainda que por absurdo os terrenos se tivessem integrado no domínio público, a caducidade do plano de urbanização determinou a sua desafetação tácita …”.
Termina peticionando a revogação da decisão judicial recorrida com “… fundamento na sua nulidade por violação da lei processual ao afastar a presunção registral sem existir ação prejudicial ou convidar as partes a propô-la e ao decidir ultra petitum …”, bem como com “… fundamento na violação da lei substantiva considerando não existir fundamento para a qualificação dos terrenos em causa como domínio público por falta de afetação …”.

1.5. Devidamente notificado o R. Município, aqui ora recorrido, não veio produzir contra-alegações [cfr. fls. 544 e segs.].

1.6. Pelo acórdão da formação de apreciação preliminar deste Supremo Tribunal prevista no n.º 5 do art. 150.º do CPTA, datado de 20.06.2013, veio a ser admitido o recurso de revista.

1.7. O Digno Magistrado do Ministério Público (MP) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso [cfr. fls. 596/599].
Esta pronúncia objeto de contraditório não mereceu qualquer resposta [cfr. fls. 600 e segs.].

1.8. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


2. DAS QUESTÕES A DECIDIR
No essencial, a Recorrente discorda do decidido com os seguintes fundamentos:
- Erro de julgamento por violação da lei processual dada a incompetência do tribunal administrativo para conhecer e decidir quanto à qualificação/delimitação da parcela de terreno como integrante do domínio público do R., afastando a presunção registral de que a A. goza enquanto proprietária da mesma parcela, e sem que tivesse existido ação prejudicial nos tribunais comuns ou convite às partes a propô-la [violação, nomeadamente, do art. 15.º do CPTA];
- Nulidade do acórdão recorrido por haver decidido com excesso de pronúncia - art. 668.º, n.º 1, al. d) do CPC na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 303/2007 e pela Lei n.º 41/2013 [cfr., respetivamente, seus arts. 21.º e 23.º e 05.º e 07.º, n.º 1] [atual art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC/2013];
- Erro de julgamento dado entender não existir fundamento para a qualificação do terreno em causa como fazendo parte do domínio público do aqui recorrido por falta de afetação do mesmo, pelo que não integrando tal domínio o mesmo é suscetível de haver sido adquirido por usucapião tal como foi declarado pela sentença proferida nos autos de ação declarativa de simples apreciação positiva sob o n.º 1815/2000 do 2.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. DE FACTO
Resulta como assente na decisão judicial recorrida o seguinte quadro factual:
I) Por sentença de 03.04.2001, do 2.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, proferida no Processo n.º 1815/2000, foi declarada justificada a favor das Requerentes A………….. e B…………….. a aquisição originária, por usucapião, em comum e sem determinação de parte, do direito de propriedade do prédio composto de terreno inculto com a área de 2.031 m2, sito na freguesia da ……………, concelho da Amadora, a confrontar de norte com …………., de sul com Rua ……………, de nascente com …………… e de poente com ……….., correspondente a parte do sobrante do prédio urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o n.º 451 da dita freguesia da …………., omisso na matriz mas com respetiva inscrição já formulada - Documento n.º 02 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004;
II) A sentença referida em I) transitou em julgado em 26.04.2001 - Documento n.º 02 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004;
III) Na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora, através da apresentação n.º 24, com data de 04.05.2001, encontra-se registada a favor de A………………. e B…………. a aquisição, em comum e sem determinação de parte ou direito, por usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio urbano, descrito sob o n.º 1233, da freguesia da ………………, sito nas traseiras da ……….., n.º …………., com a área de 2031 m2, a confrontar de norte com ………… n.º ……….., de sul com Rua ………….., n.ºs …….. e ………., de nascente com ………. n.ºs ……… e ………. e de poente com …….. n.º ……….., o qual corresponde à parte sobrante do prédio descrito sob o n.º 451 a fls. 110 do livro B-2 - Documento n.º 01 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004;
IV) O Contrato de Urbanização C-15 é composto por três escrituras públicas celebradas em 31.08.1957, 26.11.1958 e 04.10.1961, e uma planta - Documento n.º 08 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004;
V) Em 31.08.1957 foi lavrada escritura pública entre o Presidente da Câmara Municipal de Oeiras e C………., residente em Lisboa, na Avenida …………, número …………., ………., tendo pelo primeiro sido dito que pelo segundo outorgante foi “… submetido à apreciação desta Câmara Municipal o estudo para o aproveitamento dos seus terrenos sitos na Amadora, a que respeita o processo «Obras com planta» mil e quarenta e dois digo e três, entrado na secretaria em três de Agosto do corrente ano, este foi aprovado nas condições seguintes:
- Primeira: - São encargos dos segundos outorgantes todos os trabalhos de urbanização que constam do projeto de construção dos arruamentos, esgotos e instalação da rede de canalização e águas.
- Segunda: - A construção da faixa de rodagem será constituída por um macadame e duas camadas de enrocamento e desgaste e revestimento a betão betuminoso;
- Terceira: - A construção da faixa de bordadura do lancil terá a largura de treze centímetros de aresta boleada e será assente sobre fundação de alvenaria hidráulica de vinte e cinco por trinta centímetros, devendo o remate do empedrado junto à faixa da bordadura ser feito com uma fiada de cubos de granito de primeira escolha.
- Quarta: - A construção de coletores abrange os coletores de águas pluviais e domésticas, incluindo ramais de ligação aos lotes e sarjetas.
- Quinta: - Os trabalhos referidos serão feitos sob fiscalização da Câmara, comprometendo-se os segundos outorgantes a dar cumprimento às indicações dos funcionários da Fiscalização de Obras da Câmara e, em todos os casos omissos no projeto serão seguidos os processos e normas que a Câmara aplica na execução de arruamentos novos.
- Sexta: - Os segundos outorgantes obrigam-se a por à testa dos trabalhos um responsável técnico que seja aceite pela Câmara, e a pedir vistoria a todos os trabalhos elementares tais como assentamento de coletores e suas ligações, regularização de caixa de empedrado e (...) implantação de lancis etc.
- Sétima: - As licenças para construção de prédios só serão concedidas depois da execução de todos os trabalhos dos arruamentos com exceção do revestimento a betão betuminoso que deverá ser executado após a conclusão a concessão da última licença de habitação, sendo o prazo máximo para a execução de dois anos.
(...) Pelos segundos outorgantes foi dito que aceitam e consequentemente se obrigam ao cumprimento das condições que antecedem …” - Documento n.º 08 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004;
VI) Em 26.11.1958 foi lavrada escritura pública entre o Presidente da Câmara Municipal de Oeiras e C……….., residente em Lisboa na Avenida …………., número ……… …….. ……………, tendo pelo primeiro sido dito que pelo segundo outorgante foi “… submetido à apreciação desta Câmara Municipal o projeto de arruamentos e esgotos - segunda fase do Plano Parcial de Urbanização a Poente da Vila de Amadora a que respeita o processo «Obras com planta» mil quinhentos e doze, entrado na secretaria municipal em catorze de Outubro do corrente ano de mil novecentos e cinquenta e oito, este foi aprovado nas condições seguintes:
- Primeira: - São encargos dos segundos outorgantes todos os trabalhos de urbanização que constem do projeto de construção dos arruamentos, esgotos e instalação da rede de canalização de águas;
- Segunda: - A construção da faixa de rodagem será constituída por um macadame e duas camadas de enrocamento e desgaste e revestimento a betão betuminoso;
- Terceira: - A construção da faixa de bordadura do lancil terá a largura de treze centímetros de aresta boleada e será assente sobre fundação de alvenaria hidráulica de vinte e cinco por trinta centímetros, devendo o remate do empedrado junto à faixa de bordadura ser feito com uma fiada de cubos de granito de primeira escolha.
- Quarta: - A construção de coletores abrange os coletores de águas pluviais e domésticas, incluindo ramais de ligação aos lotes e sarjetas.
- Quinta: - Os trabalhos referidos serão feitos sob fiscalização da Câmara, comprometendo-se os segundos outorgantes a dar cumprimento às indicações dos funcionários da Fiscalização de Obras da Câmara e, em todos os casos omissos no projeto serão seguidos os processos e normas que a Câmara aplica na execução de arruamentos novos.
- Sexta: - Os segundos outorgantes obrigam-se a pôr à testa dos trabalhos um responsável técnico que seja aceite pela Câmara, e a pedir vistoria a todos os trabalhos elementares tais como assentamento de coletores e suas ligações, regularização de caixa de empedrado (…), implantação de lancis, etc.
- Sétima: - As licenças para construção de prédios só serão concedidas depois da execução de todos os trabalhos dos arruamentos com exceção do revestimento a betão betuminoso que deverá ser executado após a conclusão a concessão da última licença de habitação, sendo o prazo máximo para a execução de dois anos.
(...) Pelo segundo outorgante foi dito que aceita e consequentemente se obriga ao cumprimento das condições que antecedem …” - Documento n.º 08 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004;
VII) Em 04.10.1961 foi lavrada escritura pública entre C………., e sua mulher D……….. ambos residentes na Avenida ………, número ……….., ……….., ……….., em Lisboa e o Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, tendo pelos primeiros sido dito que “… são donos e possuidores por legítimos títulos dos seguintes prédios rústicos: número quatrocentos e cinquenta e um, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras a folhas cento e dez do Livro B-dois e inscrito na matriz cadastral da freguesia da Amadora sob o artigo cento e sessenta e cinco - Secção oito: e número dezanove mil quinhentos e quarenta e sete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras a folhas quarenta e seis do Livro-B - quarenta e oito, e inscrito na matriz urbana da freguesia da ………… sob o artigo cento e quarenta e dois, secção oito.
Que estas propriedades se encontram livres de quaisquer ónus ou encargos o que garantem sob sua inteira responsabilidade.
Que destes prédios destacam e doam à Câmara Municipal de Oeiras representada neste ato pelo segundo outorgante as parcelas de terreno a seguir indicadas, que se encontram devidamente assinaladas na planta que apresentam:
a) - Quarenta e três mil setecentos e cinquenta e nove metros quadrados que se destinam a zona verde e têm as seguintes confrontações: norte escolas; limites do concelho de Sintra, lotes cento cinquenta e cinco a cento cinquenta e oito, cento e onze a cento a quinze, quarenta e oito e outros; sul Estrada Velha da Amadora, lotes cento setenta e dois a cento setenta e quatro, cento oitenta e sete a cento oitenta e nove e outros; nascente ruas, lotes cento sessenta e um a cento sessenta e cinco, cento setenta e cinco a cento e oitenta, duzentos e oito a duzentos vinte e um e outros igualmente propriedade deles doadores; e poente limites do Concelho de Sintra, lotes cento e cinquenta e cinco a cento e cinquenta e quatro, cento oitenta e um a cento e oitenta e seis, cento noventa e oito a duzentos e quatro e outros, propriedade deles doadores.
b) - Uma parcela com catorze mil e sessenta metros quadrados que se destina a arruamentos respeitantes à primeira fase da urbanização das suas propriedades, (...).
c) - Uma parcela com trinta e um mil duzentos trinta e oito metros quadrados de terreno que se destina a arruamentos, já concluídos, e respeitantes à segunda fase da urbanização das suas propriedades (...).
d) - Uma parcela de terreno com a área de cinco mil quatrocentos sessenta e três metros quadrados que se destina a arruamentos, por concluir, respeitantes à segunda fase da urbanização das suas propriedades (...).
(...) Que a presente doação é feita atento o fim a que se destinam as quatro (...) parcelas de terreno, e que, por isso, as mesmas deverão voltar à sua posse e propriedade no caso de lhes ser dado destino diferente …” - Documento n.º 08 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004;
VIII) Na planta anexa à escritura referida em VII), intitulada de “AMADORA - PLANO PARCIAL DE URBANIZAÇÃO A POENTE DA VILA”, pode ler-se na legenda:

TERRENO DESTINADO A ARRUAMENTOS DA 1.ª FASE - 14.060 m2;
TERRENO DESTINADO A ARRUAMENTOS DA 2.ª FASE E JÁ CONCLUÍDOS - 31.238 m2;
TERRENO DESTINADO A ARRUAMENTOS DA 2.ª FASE E AINDA POR CONCLUIR - 5.463 m2;
TERRENO DESTINADO A ZONA VERDE - 43.759 m2” - Documento n.º 08 junto à petição inicial apresentada em 20 de Janeiro de 2004;
IX) O prédio identificado em III) encontra-se assinalado na planta, referida em VIII), anexa à escritura referida em VII), a cor verde, integrando a parcela destina a zona verde - Documento n.º 08 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004 e admitido por acordo;
X) Por requerimento datado de 31.01.2002, entregue na mesma data no serviço de obras da Câmara Municipal da Amadora, as ora AA., invocando a qualidade de proprietárias, requereram ao Presidente da Câmara Municipal da Amadora informação sobre os condicionalismos especiais, além das normas gerais e especificas de construção a ter em conta para edificar dois blocos, no terreno identificado em III), processo ao qual foi atribuído o n.º 21-PV/2002 - Documento n.º 06 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004 e documento junto ao Processo Administrativo n.º 21PV/2002 (folhas não numeradas);
XI) Em 12.02.2002, pelo ofício n.º 2136, da Câmara Municipal da Amadora, datado de 11.02.2002, as ora AA. foram notificadas, relativamente ao pedido referido em X), de que sobre o mesmo recaiu despacho de indefiro, proferido pelo Exmo. Senhor Presidente, em 08.02.2002, nos termos e pelos fundamentos constantes das informações emitidas pelos serviços competentes - Documento n.º 07 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004;
XII) Foi junta ao ofício referido em XI) a seguinte informação, prestada pelo arquiteto E…………., em 06.02.2002:
… O presente DF-350/02 trata-se de um pedido de viabilidade de construção para um espaço sito na ……….. na freguesia da ………….. Os elementos constantes no processo não cumprem as disposições conjugadas do Art.º 9.º n.º 4 e Art.º 11.º n.º 2 do DL 555/99, de 16 de dezembro, pelo que não pode ser analisado em conformidade com o pedido solicitado.
No entanto, verifica-se que mais importante que a instrução incorreta do processo é o facto de ser solicitada a construção de edifícios num terreno que se destina a Zona Verde de cedências nos termos do Contrato de Urbanização C-15 que se encontra em vigor para o local, neste termo o uso ora pretendido é absolutamente incompatível com o uso definido no Contrato de Urbanização referido, donde é o pedido em análise contrário às mais elementares regras urbanísticas.
Proponho que o presente DF-350/02 seja objeto de rejeição liminar nos termos do Art. 11.º ponto 3 do DL 555/99 de 16 de dezembro, dado que o mau grado da escassez dos elementos instrutórios, o pedido é manifestamente contrário às normas legais e regulamentares em vigor e aplicáveis ao local …” - Documento n.º 07 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004 e documento junto ao Processo Administrativo n.º 21PV/2002 (folhas não numeradas);
XIII) Por requerimento datado de 26.09.2003, entregue na mesma data nos serviços da Câmara Municipal da Amadora, “F……………….., Ld.ª” requereu ao Presidente da Câmara Municipal da Amadora, “… nos termos do art. 110.º, de acordo com o previsto no Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n. 117/01, de 4 de junho, (...) informação sobre a possibilidade de construção de um centro de lavagem automóvel …”, no terreno identificado em III), processo ao qual foi atribuído o n.º 430-PV/2003 - Documento junto ao Processo Administrativo n.º 430-PV/2003 (folhas não numeradas);
XIV) Sobre o pedido referido em XIII) foi emitida em 06.10.2003 a seguinte informação: “… O presente DF-8767/03 trata-se de um pedido de informação para um espaço sito na ……… na freguesia da …………. O pedido de informação recai sobre a viabilidade da construção de um centro de lavagens automática de viaturas (Elefante Azul) num terreno que se destina a Zona Verde resultante das cedências nos termos do Contrato de Urbanização C-15 que se encontra em vigor para o local. Neste termo o uso ora pretendido é absolutamente incompatível com o uso definido no Contrato de Urbanização referido, donde é o pedido em análise contrário às mais elementares regras urbanísticas. O pedido é manifestamente contrário às normas legais e regulamentares em vigor e aplicáveis ao local. Propõe-se o indeferimento com base no Art. 24.º ponto 1 alínea a) do Decreto-lei 555/99 e nos termos do CPA do Art. 103.º ponto 2 alínea a) ...” - Documento n.º 09 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004 e documento junto ao Processo Administrativo n.º 430-PV/2003 (folhas não numeradas);
XV) Sobre a informação referida em XIV) foi exarado, em 06.10.2003, pelo Chefe de Divisão de Gestão Urbanística, o seguinte despacho: “Considera-se inviável a proposta, visto contrariar o uso dado ao local pelo Contrato de Urbanização C-15 …” - Documento n.º 09 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004 e documento junto ao Processo Administrativo n.º 430-PV/2003 (folhas não numeradas);
XVI) Por requerimento datado de 28.10.2003, entregue na mesma data nos serviços da Câmara Municipal da Amadora [requerimento n.º 10727/03], a ora A. B……………., invocando a qualidade de proprietária, requereu ao Presidente da Câmara Municipal da Amadora informação sobre a possibilidade de realizar a construção de edifício destinado a habitação plurifamiliar e quais os condicionamentos a que deverá obedecer, no prédio identificado em III), processo ao qual foi atribuído o n.º 430-PV/2003 - Documento n.º 10 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004 e documento junto ao Processo Administrativo n.º 458-PV/2003 (folhas não numeradas);
XVII) Na memória descritiva anexa ao requerimento referido em XVI) refere-se designadamente que: “… Propõe-se uma área de construção aproximada de 1.598,00 m2, distribuída por 4 pisos acima do solo (R/c=350,00 m2; 1.º andar - 416,00 m2; 2.º andar - 416,00 m2; e 3.º andar - 416,00 m2), e duas caves para estacionamento automóvel, de acordo com os índices do PDM da Amadora em vigor para esta zona da ……….. …” - Documento junto ao Processo Administrativo n.º 458-PV/2003 (folhas não numeradas);
XVIII) Sobre o pedido referido em XVI) foi emitida, em 04.11.2003, a seguinte informação: “… O pedido de informação recai sobre a viabilidade da construção de um edifício composto por 4 pisos e duas caves num total estimado de 1.598.00 m2 (valores descritos na memória descritiva), num terreno que se destina a Zona Verde resultante das cedências nos termos do Contrato de Urbanização C-15. Nestes termo, o uso ora pretendido é absolutamente incompatível com o uso definido no Contrato de Urbanização referido, donde é o pedido em análise contrário às mais elementares regras urbanísticas. O pedido é manifestamente contrário às normas legais e regulamentares em vigor e aplicáveis ao local. Propõe-se o indeferimento com base no Art. 24.º ponto 1 alínea a) do Decreto-Lei 555/99 e nos termos do CPA do art. 103.º ponto 2 alínea a). No referente ao abaixo-assinado, em anexo ao processo, refere-se que de facto o local deverá ser objeto de limpeza e manutenção do local, tal como é necessário ao invocar a usucapião como forma de registo da propriedade. Tendo em conta que o terreno é particular, proponho que em resposta ao abaixo-assinado o proprietário seja notificado a limpar a sua propriedade …” - Documento n.º 11 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004 e documento junto ao Processo Administrativo n.º 458-PV/2003 [folhas não numeradas];
XIX) Sobre a informação referida em XVIII) foi exarado, em 11.11.2003, pelo Presidente da Câmara Municipal da Amadora o seguinte despacho: “Informar como proposto …” - Documento n.º 11 junto à petição inicial apresentada em 20.01.2004 e documento junto ao Processo Administrativo n.º 458-PV/2003 [folhas não numeradas] e admitido por acordo.


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3.2. DE DIREITO
Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação pela ordem de invocação dos fundamentos que constituem objeto desta instância de recurso de revista.

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3.2.1. DA INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

I. Alega a recorrente que o acórdão sob impugnação padece de erro de julgamento já que os tribunais administrativos não são os tribunais materialmente competentes para apreciar da questão relativa à titularidade da parcela de terreno em crise e/ou qualificá-la como integrante do domínio público do R., para além de que o tribunal recorrido não poderia afastar a presunção registral de que a A. goza, enquanto proprietária da mesma parcela, sem que tivesse existido ação prejudicial nos tribunais comuns ou convite às partes a propô-la [violação, nomeadamente, do art. 15.º do CPTA].

II. Como advertia Manuel de Andrade "... a competência do tribunal … afere-se pelo 'quid disputatum' (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)"; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do A.. E o que está certo para os elementos objetivos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes. (...) É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão …" [cfr. "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra 1979, pág. 91] [no mesmo sentido e entre outros e nos mais recentes, Acs. deste STA de 09.12.2009 - Proc. n.º 0301/09, de 27.11.2013 - Proc. n.º 0584/13, de 20.02.2014 - Proc. n.º 0677/13; Acs. do Tribunal de Conflitos de 03.03.2011 - Proc. n.º 014/10, de 15.05.2013 - Proc. n.º 024/13, de 05.11.2013 - Proc. n.º 039/13, de 29.01.2014 - Proc. n.º 061/13, de 06.02.2014 - Proc. n.º 058/13, de 15.05.2014 - Proc. n.º 031/13 todos in: «www.dgsi.pt/jsta»].

III. Por outro lado e tal como é, aliás, entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme, a competência do tribunal não está dependente da personalidade judiciária de demandante(s) e demandado(s) ou sequer da legitimidade das partes, nem das qualificações jurídicas que o autor empreste aos factos que apresentou, sendo que para a aferição da mesma de nada releva também um julgamento quanto à procedência da pretensão deduzida na ação.

IV. Determina o art. 212.º, n.º 3 da CRP que compete “… aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais …", comando constitucional este que foi transposto para a lei ordinária através, mormente, do art. 01.º, n.º 1 do ETAF/04, no qual se prevê que os “… tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais ...”.

V. Resulta, por sua vez, do n.º 1 do art. 211.º da CRP que os “… tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais …”, sendo que, nos termos do art. 66.º do CPC na referida redação [tal como as referências posteriores ao CPC salvo expressa indicação em contrário], são “… da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional …”.

VI. Deriva, por outro lado, do n.º 1 do art. 04.º do ETAF, no que releva para a questão em discussão nos autos, que compete “… aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por pessoas coletivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal (…); c) Fiscalização da legalidade de atos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública …”, sendo que, atualmente, nos seus n.ºs 2 e 3 [preceitos nos quais se processa a delimitação negativa da jurisdição administrativa/fiscal mercê da enunciação das matérias/litígios excluídos do seu âmbito], não consta preceito semelhante à al. e) do n.º 1 do art. 04.º do ETAF/84 nos termos da qual se previa que estavam “… excluídos da jurisdição administrativa … os recursos e as ações que tenham por objeto: (…) Qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e atos de delimitação destes com bens de outra natureza …”.

VII. Por último, estipula-se no n.º 1 do art. 15.º do CPTA que quando “… o conhecimento do objeto da ação dependa, no todo ou em parte, da decisão de uma ou mais questões da competência de tribunal pertencente a outra jurisdição, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie …”, preceito este onde se consagra o princípio da devolução facultativa [ou da suficiência discricionária].

VIII. Cotejado e presente o quadro normativo acabado de convocar e, bem assim, os considerandos de enquadramento tecidos supra não assiste, no nosso entendimento, razão à recorrente quanto ao erro de julgamento em análise, não procedendo a crítica que é dirigida à decisão judicial recorrida.

IX. Motivando nosso juízo temos para nós que, aferindo-se da competência material para conhecer da presente ação e, consequentemente, a definição da jurisdição competente para a mesma pela pretensão deduzida pela A., aqui recorrente, então manifestamente situamo-nos no quadro de litígio emergente duma relação jurídica administrativa para o qual os tribunais administrativos são os materialmente competentes, assim, como para o conhecimento de todas as questões em discussão nos autos.

X. Discute-se nos mesmos da legalidade do ato administrativo [despacho do Presidente da C.M. Amadora datado de 11.11.2003] que indeferiu o pedido de informação prévia sobre a viabilidade de realização de operação urbanística que havia sido deduzido mormente pela aqui recorrente [ilegalidade do ato administrativo impugnado consubstanciada no erro sobre os pressupostos e na infração do art. 24.º, n.º 1, al. a) do RJUE e 89.º do PDM porquanto a parcela de terreno em questão ser sua propriedade e integrar-se pelo PDM em vigor na “unidade operativa 2 (artigo 60.º PDM), cujos índices urbanísticos brutos que lhe são aplicáveis são os de alta densidade do art. 32.º (artigo 62.º PDM)” tanto mais que o contrato de urbanização C-15 é ineficaz e não as vincula], bem como se assiste a esta o direito ao deferimento daquele mesmo pedido por, alegadamente, conforme com o quadro normativo então vigente [PDM e demais comandos legais/regulamentares aplicáveis].

XI. E no quadro desta discussão, mercê dos fundamentos em que se estriba toda a pretensão da aqui recorrente [mormente, fundamentos de ilegalidade invocados] e, bem assim, daquilo que constituem os fundamentos de defesa carreados para a ação pelo R., coloca-se, nomeadamente, o problema da qualificação ou não como dominial da parcela de terreno em crise de cuja propriedade plena aquela se arroga ser titular e do erro sobre os pressupostos [parcela de terreno ser propriedade da aqui recorrente].

XII. Estamos, por conseguinte, no quadro de litígio para o qual, claramente, assiste competência aos tribunais administrativos para o seu julgamento, incluindo no que diz respeito à própria questão da qualificação dum determinado terreno como dominial ou não e da sua delimitação quanto a outros bens de outra natureza.

XIII. Dúvidas não parecem ter existido à própria recorrente de que estávamos em face de litígio emergente de relação jurídica administrativa quanto instaurou a presente ação administrativa no «TAFS», nem ao mesmo Tribunal quando em sede de despacho saneador assim julgou, tabelarmente, o tribunal como o competente [cfr. decisão de fls. 284 e segs.], na certeza de que a apreciação da questão da qualificação como dominial ou não da parcela de terreno em crise [quer se trate de atos de classificação ou de afetação] e eventual delimitação da mesma com outros bens de outra natureza também ela se mostra, atualmente, incluída no quadro ou no âmbito da jurisdição administrativa por se tratar de questão de direito administrativo tal vem sendo afirmado pela doutrina [cfr., entre outros, J. C. Vieira de Andrade in: “A Justiça Administrativa - Lições”, 2012, 12.ª edição, pág. 112; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in: “Código de Processo nos Tribunais Administrativos … - Anotados”, vol. I, pág. 36; Ana Raquel Gonçalves Moniz, in: “O Domínio Público: o critério e o regime jurídico da dominialidade”, págs. 510/511, 531 e segs.] e pela jurisprudência [vide, entre outros, os Acs. Tribunal de Conflitos de 21.02.2008 - Proc. n.º 20/07, de 28.09.2010 - Proc. n.º 23/09 consultáveis in: «www.dgsi.pt/jcon»].

XIV. Assim, pode ler-se na fundamentação do acórdão do Tribunal de Conflitos, datado de 28.09.2010 [Proc. n.º 23/09], acabado de citar, que o “… legislador não definiu, pelo menos de modo expresso, o conceito de «relação jurídica administrativa», apenas delimitou, no art. 4.º do ETAF, pela positiva (n.º 1) e pela negativa (n.º 2 e 3), o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, mas fê-lo, exemplificativamente, ou seja, não está excluída a possibilidade de o legislador poder atribuir à jurisdição administrativa ou excluir do seu âmbito o conhecimento de outros litígios. (…) De qualquer modo, resulta das diferentes alíneas que no art. 4.º do ETAF densificam o conceito, designadamente as alíneas a) e b), que na relação jurídica administrativa há-se existir, pelo menos, um ente público ou um ente privado no exercício de poderes públicos e que a mesma há-de ser regulada por normas de direito administrativo. (…) Ou seja, o legislador adotou, para o efeito, o conceito de relação jurídica administrativa já anteriormente construído pela maioria da doutrina e da jurisprudência e que assentava, essencialmente, nessas duas características. (…) Por outro lado, não restam dúvidas que com a última reforma da jurisdição administrativa de 2002, entrada em vigor em 01.01.2004, a jurisdição administrativa viu substancialmente alargado o seu âmbito, passando os tribunais administrativos a ser referidos como os tribunais comuns desta jurisdição, o que significa que todos os litígios que versem sobre uma relação jurídica administrativa, que não estejam expressamente atribuídos por lei a outra jurisdição, caem no seu âmbito (…). (…) Ora, é, a nosso ver, o que acontece com os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e atos de delimitação destes com bens de outra natureza, que antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cf. art. 4.º, n.º 1 e) do ETAF/84), mas que depois daquela reforma passaram a integrar o âmbito da jurisdição. (…) Aliás, diríamos que é esse o seu campo próprio, atento a natureza pública do bem objeto dessa relação jurídica e o consequente estatuto de direito público (administrativo) desse bem, também denominado «estatuto de dominialidade». (…) Portanto, se bem que tais questões não estejam expressamente referidas no n.º 1 do art. 4.º do ETAF, o certo é que deixaram de integrar as alíneas deste preceito que respeitam à delimitação negativa da jurisdição e que integram os seus n.º 2 e 3. (…) E não existindo, hoje, qualquer outra norma que as exclua do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, elas cairão, necessariamente, no âmbito da cláusula geral do art. 1.º n.º 1 do ETAF, verificados os demais pressupostos da relação jurídica administrativa. (…) Neste sentido se tem pronunciado a melhor doutrina, que aqui acompanhamos. (…) Assim e por exemplo, diz a este propósito Vieira de Andrade: «Julgamos que o desaparecimento desta exclusão ao implicar a aplicação da cláusula geral, vai trazer para os tribunais administrativos a competência para conhecer da impugnação dos atos de qualificação dominial, que são atos administrativos, quer se trate de atos de classificação, quer de afetação (…), bem como as ações relativas a questões de delimitação do domínio público com outros domínios que são questões de direito administrativo. Na realidade sempre se entendeu que um dos privilégios inerentes à propriedade pública, em comparação com a propriedade privada, é o poder da Administração de delimitar unilateralmente o domínio público (…). (…) As razões de exclusão, no anterior ETAF, estavam ligadas à ideia de que tudo o que respeitava à propriedade devia ser julgado perante os tribunais judiciais, por desconfiança relativamente aos tribunais administrativos e pela pressuposição da limitação dos seus poderes - são por isso razões que deixaram de justificar o desvio relativamente ao critério substancial de definição do âmbito da jurisdição administrativa» …”.

XV. Acompanhando-se inteiramente este entendimento, que aqui se reitera, temos que falece a argumentação expendida pela recorrente já que não só a pretensão deduzida na ação administrativa sob análise se insere no âmbito da jurisdição e da competência dos tribunais administrativos, como a questão em torno da qualificação da parcela de terreno em crise, enquanto bem integrante do domínio público ou não, também nelas se mostra integrada, razão pela qual a situação vertente não se enquadra no quadro da previsão do art. 15.º do CPTA dada a ausência de questão cujo conhecimento fosse pertencente a tribunal de outra jurisdição, preceito este que, assim, também não resulta minimamente infringido pelo juízo decisório firmado no acórdão sob impugnação. De referir, ainda, que no quadro da análise da pretensão anulatória/condenatória à luz dos fundamentos de ilegalidade invocados, mormente, o alegado erro sobre os pressupostos, e mesmo a entender que existia questão prejudicial sempre assistiria competência ao tribunal administrativo para julgar a causa, na certeza de que o art. 15.º do CPTA, consagrando o princípio da devolução facultativa e não da devolução obrigatória, confere ao julgador uma liberdade de sobrestar na decisão ou de decidir a questão prejudicial com base nos elementos disponíveis nos autos com efeitos restritos ao processo.
Improcede, por conseguinte, o fundamento de recurso invocado [conclusões 01.ª) e 03.ª)].

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3.2.2. DA NULIDADE DE DECISÃO

XVI. Argumenta a recorrente, nesta sede, que o acórdão sob impugnação se mostra lavrado com excesso de pronúncia porquanto ainda que os tribunais administrativos fossem os materialmente competentes para apreciar da titularidade do terreno e qualificá-lo como domínio público tal não foi peticionado pelo R. o que geraria como consequência a nulidade da decisão judicial sobre apreciação.

XVII. Analisemos, sendo que essa atividade será feita considerando o regime processual civil vigente à data da emissão da referida decisão judicial face àquilo que constitui o necessário e devido respeito quanto à validade e eficácia dos atos praticados no quadro da lei antiga e ao assegurar da sua utilidade [cfr. art. 12.º do CC], presente, sempre, também o que se mostra disposto nos arts. 11.º e 12.º do DL n.º 303/2007, de 24.08, 05.º e 07.º, n.º 1 da Lei n.º 41/013, de 26.06.

XVIII. Assim, preceituava-se na al. d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC que é “… nula a sentença quando: … d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ...” (n.º 1), derivando ainda do mesmo preceito que as “… nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades ...” (n.º 4).

XIX. As situações de nulidade da decisão encontravam-se legalmente tipificadas no art. 668.º, n.º 1 do CPC, cuja enumeração era taxativa, comportando causas de nulidade de dois tipos [de caráter formal - art. 668.º, n.º 1, al. a) CPC - e várias causas respeitantes ao conteúdo da decisão - art. 668.º, n.º 1, als. b) a e) CPC], na certeza de que a qualificação como nulidade de decisão de ilegalidades integradoras de erro de julgamento não impedia o Tribunal “ad quem” de proceder à qualificação jurídica correta e apreciar, nessa base, os fundamentos do recurso.

XX. Caraterizando em que se traduzia a nulidade de decisão por infração ao disposto na al. d) temos que a mesma consistia na infração ao dever que impendia sobre o tribunal de resolver todas as questões que as partes tinham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão estivesse ou ficasse prejudicada pela solução dada a outras [cfr. art. 660.º, n.º 2 CPC].

XXI. De tal dever, constituindo uma decorrência do princípio da disponibilidade objetiva [cfr. art. 264.º, n.º 1 e 664.º, 2.ª parte do CPC], derivava e deriva a imposição ao julgador da obrigação de examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e de analisar todos as pretensões/questões formulados pelas mesmas, com exceção apenas das matérias ou dos pedidos/pretensões que se mostrem como juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se haja tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões.

XXII. Questões para este efeito eram “... todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer ato (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes …” [cfr. A. Varela in: RLJ, Ano 122.º, pág. 112], ou, por outras palavras, trata-se de termo que deve ser considerado “em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem …” [cfr. Ac. do STA de 31.10.2007 - Proc. n.º 01007/06, in: «www.dgsi.pt/jsta»], sendo que não poderiam confundir-se “... as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão …” [cfr. J. Alberto dos Reis in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 143] [cfr., no mesmo sentido e entre os mais recentes, os Acs. deste Supremo de 18.03.2010 - Proc. n.º 0528/08, de 13.07.2011 - Proc. n.º 0937/10, e de 10.10.2013 - Proc. n.º 0774/13 in: «www.dgsi.pt/jsta»].

XXIII. Daí que no contexto do quadro normativo disciplinador das regras de elaboração da decisão judicial em crise as questões suscitadas pelas partes e que justificam a pronúncia do Tribunal eram determinadas pelo binómio causa de pedir-pedido, pelo que a decisão será nula quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento [art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte], ou seja, quando a decisão se mostre viciada por excesso de pronúncia.

XXIV. E tal excesso ocorrerá sempre que o julgador/tribunal utilize, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou condene ou absolva num pedido não formulado, bem como quando conheça de matéria alegada ou pedido formulado em condições para que estava impedido de o fazer, sendo que não integra excesso de pronúncia a atribuição pelo julgador/tribunal de uma qualificação jurídica distinta daquela que é fornecida pelas partes.

XXV. O referido excesso de pronúncia poderá ser parcial ou qualitativo, consoante o julgador/tribunal conheça de um pedido que é quantitativa ou qualitativamente distinto daquele que foi formulado pela parte, na certeza de que, como afirma neste âmbito M. Teixeira de Sousa, este “... excesso de pronúncia parcial ou qualitativo também conduz à nulidade da decisão [arts. 661.º, n.º 1 e 668.º, n.º 1, al. e)], mas ele é distinto do excesso de pronúncia previsto no art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte, pela seguinte razão: - se o tribunal condena no pedido formulado, mas utiliza um fundamento que excede os seus poderes de conhecimento, a hipótese cabe na nulidade prevista no art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte; - mas se o tribunal, mesmo utilizando os fundamentos admissíveis, condena em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, o caso inclui-se na previsão do art. 668.º, n.º 1, al. e) …” [in: “Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, Lx 1997, pág. 223].

XXVI. Cientes dos considerandos caraterizadores da nulidade de decisão aqui ora em análise constitui nosso entendimento o de que a decisão judicial sob impugnação não se mostra proferida em infração do disposto no art. 668.º, n.º 1, al. d) do CPC.

XXVII. Na verdade, tal como claramente se extrai do simples confronto da pronúncia firmada pela decisão judicial recorrida; daquilo que havia sido alegado em termos de fundamentos da ação e peticionado pelas AA. no seu articulado inicial [ilegalidade do ato administrativo impugnado consubstanciada no erro sobre os pressupostos e infração do art. 24.º, n.º 1, al. a) do RJUE e 89.º do PDM porquanto a parcela de terreno em questão ser sua propriedade e integrar-se pelo PDM em vigor na “unidade operativa 2 (artigo 60.º PDM), cujos índices urbanísticos brutos que lhe são aplicáveis são os de alta densidade do art. 32.º (artigo 62.º PDM)” tanto mais que o contrato de urbanização C-15 é ineficaz e não as vincula]; bem como daquilo que constituíam os fundamentos de defesa invocados na contestação [cfr. arts. 12.º a 32.º desta peça processual - questão da dominialidade pública da parcela de terreno em questão por força dos efeitos decorrentes do referido contrato de urbanização (tratar-se-ia de área cedida pelo promotor e que integraria zona verde) e enquanto detendo aquele contrato valor jurídico semelhante aos atuais alvarás de loteamento, sendo que como terreno integrante do domínio público era e é insuscetível de aquisição por usucapião ou de apropriação individual] e das alegações de recurso jurisdicional produzidas junto do TCA Sul pelo R., aqui recorrido [cfr. conclusões X) a XIV) das alegações]; não vislumbramos que, na situação em presença, tenha ocorrido nulidade de decisão por excesso de pronúncia já que a mesma nos fundamentos e conclusão decisória observou aquilo que eram os limites decorrentes das questões objeto do litígio, não havendo extravasado aquilo que eram as suas fronteiras.

XXVIII. O segmento decisório do acórdão e respetiva fundamentação mostra-se lavrado dentro daquilo que eram os limites do pedido objeto da ação administrativa especial “sub judice”, não se descortinando que o tribunal “a quo” na pronúncia firmada haja feito utilização de fundamento que exceda os seus poderes de conhecimento [art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte CPC], termos em que improcede também totalmente este fundamento de recurso [conclusão 02.ª)].

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3.2.3. DO ERRO JULGAMENTO

XXIX. Sustenta a A./recorrente, em síntese, que a decisão judicial recorrida incorreu em erro de julgamento porquanto considera inexistir fundamento para a qualificação da parcela de terreno em crise como fazendo parte do domínio público do R., aqui recorrido, dada a falta de afetação da mesma, pelo que, não integrando tal domínio, aquela parcela era e é suscetível de haver sido adquirida por usucapião tal como foi declarado pela sentença proferida nos autos de ação declarativa de simples apreciação positiva sob o n.º 1815/2000 do 2.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, decisão judicial que se impunha ser respeitada. Mais refere beneficiar a mesma de presunção registral oponível “erga omnes” que não poderia ter sido afastada pela decisão judicial em crise, tanto mais que se impunha a instauração de ação judicial para esse efeito, para além de que, a ter havido afetação, a dominialidade teria cessado com a caducidade do plano de urbanização por desafetação tácita.
Analisemos da procedência desta motivação, impondo-se para tal tecer algumas notas de enquadramento sobre a matéria.

XXX. A dominialidade foi tratada na doutrina à luz dos critérios da “classificação” [sustenta Freitas do Amaral que a mesma se traduz no “ato pelo qual se declara que uma certa e determinada coisa reúne os caracteres próprios de cada classe legal de bens dominiais … in: “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, 2.ª edição, vol. II págs. 439 e segs.] e da “afetação” [implicaria quer um ato, quer uma prática consagrando o bem à efetiva produção de utilidade pública - vide sobre a noção José Pedro Fernandes, em “Domínio Públicoin: “Dicionário Jurídico da Administração Pública” vol. IV, págs. 184/185 e A. Carvalho Martins, in: “Caminhos Públicos e Atravessadouros”, 2.ª edição, págs. 37/38].

XXXI. Nas palavras de Marcello Caetano a “… atribuição do caráter dominial depende de um, ou vários, dos seguintes requisitos: a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria do domínio público; (…) b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe; (…) c) afetação dessa coisa à utilidade pública. (…) Não é forçoso que concorram estes três requisitos: um só pode bastar (…). Na verdade: (…) - há bens cuja dominialidade depende apenas da genérica disposição da lei, completada, ou não, por meras operações de delimitação da parte sobre a qual se exercerão os direitos dominiais (ar atmosférico, águas marítimas …); (…) - há coisas que entram no domínio depois de se verificar, por lei ou ato administrativo, possuírem o atributo típico da classe genericamente considerada dominial (classificação de uma via férrea como de interesse público, de uma água como mineromedicinal, de um museu como nacional, etc.); (…) - finalmente, quanto outras coisas pertencentes a uma categoria que a lei considera do domínio público, a integração em cada caso concreto depende de um ato especial de afetação, isto é, de aplicação do imóvel ao fim de utilidade pública justificativo da dominialidade (abertura ao público do uso de uma estrada ou de uma linha telegráfica). (…) A afetação não é incompatível com a classificação: muitas vezes à classificação segue-se, completadas as obras necessárias, a afetação ao uso público, por ato administrativo ou por mero facto, dos bens classificados …” [in: “Manual de Direito Administrativo” Vol. II, 10.ª ed., Coimbra, 1991, pág. 921].

XXXII. Importa, por outro lado, ter presente que à data da outorga das escrituras públicas aludidas nos n.ºs V), VI) e VII) dos factos apurados nos autos não existia ainda um qualquer regime global em matéria de loteamentos urbanos, porquanto antes da publicação do DL n.º 46673, que ocorreu em 29.11.1965, apenas algumas medidas esparsas procuraram evitar a desorganizada ocupação urbanística do solo [cfr., nomeadamente, DL n.º 33921, de 05.09.1944 (diploma que veio condicionar a transformação de prédios nas áreas urbanizadas ou nas urbanizações abrangidas por planos à observação rigorosa dos mesmos planos e seus regulamentos - seu art. 29.º - e entretanto veio a ser revogado pelo DL n.º 560/71), DL n.º 35931, de 04.11.1946 (diploma que veio determinar que os anteplanos de urbanização aprovados pelo Ministro fossem obrigatoriamente respeitados em todas as edificações, reedificações ou transformações de prédios e no traçado de novos arruamentos nas áreas sedes de concelho e demais localidades ou zonas por ele abrangidos, sendo-lhes aplicáveis os arts. 29.º do DL n.º 33921 e 61.º do Código Administrativo) e Lei n.º 2009, de 14.08.1959 (diploma que por sua vez veio sujeitar à autorização do então Ministro das Obras Públicas a criação de novos núcleos populacionais na área do plano diretor da região de Lisboa - cfr. sua base V)], sendo que aquela regulamentação global e autónoma veio a ser, depois, profundamente alterada, primeiramente, pelo DL n.º 289/73, de 06.06, tendo-lhe depois sucedido diversos regimes legais ao longo dos tempos [DL n.º 400/84, de 31.12; DL n.º 448/91, de 29.11; e DL n.º 555/99, de 16.12, atual «RJUE» (também ele já objeto de várias alterações)].

XXXIII. Face à ausência dum regime normativo global nesta matéria era muito utilizada, então, a figura dos contratos de urbanização, enquanto instrumentos jurídicos de promoção de operações de urbanização e parcelamento, através dos quais se operavam as cedências para o município e obrigações assumidas pelos interessados em decorrência daquelas operações.

XXXIV. De referir que o fracionamento material de terrenos através da constituição de lotes para construção urbana acarreta, por vezes, a existência, a realização de obras de urbanização dentro do prédio/prédios a lotear, nomeadamente, com a construção de arruamentos viários e pedonais, zonas estacionamento, zonas verdes/lazer, instalação de redes de água, esgotos, gás, eletricidade, telecomunicações, etc..

XXXV. E a obrigatoriedade na cedência de áreas em favor do município por parte do loteador mostra-se presente neste tipo de operações urbanísticas, constituindo, inclusive, um traço ínsito aos vários diplomas legais que passaram a disciplinar globalmente o regime dos loteamentos urbanos [cfr. António Duarte Almeida e outros in: “Legislação Fundamental de Direito Urbanismo”, vol. II, pág. 571], obrigatoriedade essa que se mostra expressamente consagrada desde o DL n.º 400/84 [cfr. seu art. 42.º] e que foi sendo mantida, sucessivamente, pelos referidos regimes normativos [cfr., respetivamente, art. 16.º do DL n.º 448/91 e art. 44.º do RJUE].

XXXVI. Além disso, a previsão no quadro de operações de loteamento de áreas para espaços verdes públicos e de utilização coletiva constitui uma exigência que, de há muito, se vem revelando como essencial para a obtenção dum adequado e equilibrado ordenamento do território e para a promoção dum adequado “ambiente urbano”.

XXXVII. No caso vertente estamos, face ao que resulta dos n.ºs III) a VIII) da matéria de facto apurada, em presença de contrato de urbanização que veio a ser outorgado entre o promotor/construtor da operação urbanística e o ente público ao qual o R. sucedeu [entre 1957/1961], contrato esse nos termos do qual aquele doou ao ente público e este aceitou, no que aqui releva para a discussão nos autos, uma parcela de terreno com 43.759 m2 destinada a zona verde, sendo que caso tal parcela fosse destinada a outro fim a mesma reverteria de novo em favor do doador [cfr. n.º VII) dos referidos factos].

XXXVIII. Temos, assim, que, na ausência de regime normativo semelhante ao que vigora desde 1991 em matéria de cedência de parcelas de terreno para o ente público no quadro de operação loteamento [cfr. art. 16.º, n.º 2 do DL n.º 448/91, 43.º e 44.º do RJUE - onde se prevê que a transmissão da titularidade dos terrenos opera automaticamente através da emissão do alvará dispensando-se, assim, a necessidade de recurso à escritura pública com instrumento formal para proceder à transmissão e à afetação], tal contrato assumiu ou constituiu o instrumento ou veículo formal e material através do qual se operou a cedência jurídica da titularidade daquela parcela de terreno, parcela essa onde se integra aquela que a recorrente invoca ser sua propriedade e que veio a ser invocada no quadro do pedido de informação prévia [cfr. n.ºs III) e IX) dos factos apurados].

XXXIX. Tal doação, outorgada através de escritura pública e operada no quadro daquele instrumento jurídico destinado à execução do Plano Parcial de Urbanização a Poente da então Vila da Amadora, mostra-se perfeitamente válida e eficaz para proceder à transmissão das parcelas de terreno nele referidas [v.g., a destinada a «zona verde»] à luz daquilo que constituía o regime normativo vigente à época, porquanto não tendo sido objeto de revogação ao que se infere dos autos observa ainda, nomeadamente, o regime decorrente dos arts. 1456.º, 1458.º, 1459.º, 1473.º, 1476.º, 1477.º todos do CC/1867 [vigente até 31.05.1967 - cfr. art. 02.º do DL n.º 47.344, de 25.11.1966, que aprovou o CC vigente], 163.º do Código de Notariado/1935 [vigente à data da outorga das escrituras referidas em V) e VI) dos factos apurados - DL n.º 26118], 88.º e 89.º do Código de Notariado/1960 [já em vigor a quando da outorga da escritura de doação datada de 04.10.1961 - DL n.º 42933] e não envolve nessa transmissão/cedência de terrenos para a edilidade qualquer infração ao regime que decorria dos arts. 44.º, 46.º, 47.º, 49.º, 51.º, 61.º, 345.º todos do Código Administrativo.

XL. É que dada a ausência de quadro normativo à data vigente que dispensasse a outorga de escritura pública para proceder à transmissão das parcelas de terrenos cedidos para edilidade no âmbito de procedimento de urbanização, mormente, por efeito automático da emissão de alvará de loteamento [como passou a ocorrer com a vigência do regime inserto no DL n.º 448/91], aliás, também então ainda inexistentes, temos que apenas restava aos intervenientes o uso da via que foi utilizada para formalizar a transmissão da titularidade daquelas parcelas de terreno.

XLI. Por efeito de tal contrato de doação, o qual não pode ser visto como representando uma mera liberalidade do doador em favor da edilidade mas, ao invés, como uma contrapartida integrada nas condições e contrapartidas pelo mesmo devidas e assumidas em decorrência da aprovação do plano de urbanização, operou-se, então, a transmissão para a edilidade da titularidade de todas as parcelas de terreno descritas na escritura referida em VII) da matéria de facto provada, transmissão essa que, face ao destino que cada parcela havia sido afeto nos termos da aludida escritura [zona verde], passaria a integrar, no nosso entendimento, o domínio público daquela autarquia local em decorrência da afetação jurídica a tal domínio.

XLII. É que, presente o quadro normativo então vigente em matéria de delimitação/definição do domínio público estadual [cfr. arts. 380.º e 382.º do CC/1867, 49.º da Constituição de 1933, o DL n.º 23565, de 12.02.1934 (diploma que veio classificar os bens do domínio público e privado do Estado para efeito da organização do cadastro) revogado, entretanto, pelo DL n.º 477/80, de 15.10] aplicável em termos de princípios gerais e com as devidas e necessárias adaptações ao domínio público das autarquias locais [vide José Pedro Fernandes em “Domínio Públicoin: “Dicionário Jurídico da Administração Pública” vol. IV, pág. 189], a parcela de terreno em questão, enquanto integrante da parcela doada à edilidade unicamente para «zona verde» sob pena de reversão caso afeta a fim diverso, passa a constituir coisa pública mercê da afetação jurídica que lhe foi conferida pela escritura de doação celebrada no quadro do contrato de urbanização e do concreto arranjo urbanístico dele decorrente objeto da planta anexa àquela escritura [cfr. n.ºs III), IV), V), VI), VII), VIII) e IX) da factualidade apurada], já que destinada ao uso público ou utilização coletiva.

XLIII. Com efeito, não se descortina procedente a tese sustentada de que por força daquela escritura as parcelas de terreno doadas integrariam o domínio privado da edilidade e não o domínio público desta, já que no quadro da operação urbanística aprovada pela edilidade e do fim aposto às cedências/doações daquelas parcelas de terreno nas escrituras em conformidade com tais deliberações e da planta anexa junta aos autos, outra não pode ser a conclusão, tanto mais que se tratam de escrituras outorgadas pela edilidade no quadro do regime privativo de que beneficiavam e que constituíam, como vimos, o único meio/veículo procedimental ou formal que, no quadro normativo então em vigor, as autarquias locais dispunham para fazer operar em seu favor a transmissão das cedências de áreas de terreno no quadro de procedimentos de urbanização/loteamento e respetivos arranjos urbanísticos.

XLIV. Daí que, no nosso entendimento, nenhum argumento válido se pode extrair para a qualificação da parcela de terreno em crise como integrante do domínio privado da edilidade pelo facto da transmissão haver operado por escritura pública já que este meio era, então, o único possível para proceder àquela transmissão da titularidade da referida parcela, na certeza de que a entidade pública na outorga das escrituras públicas realizadas fê-lo no exercício das suas competências e legais atribuições em matéria de urbanismo, investida do seus poderes públicos e nunca como ente privado ou mero particular.

XLV. É certo que inexistia à data preceito que estabelecesse expressamente que as áreas a ceder às câmaras municipais eram integradas automaticamente no seu domínio público, mas daí não se pode concluir que, por um lado, aquelas áreas integrassem o seu domínio privado e, por outro lado, que nunca viessem a integrar o domínio público das mesmas, já que a atribuição do caráter dominial pode derivar da afetação jurídica das mesmas parcelas a esse domínio decorrente de instrumento jurídico válido.

XLVI. Tal como foi entendimento expresso por este Supremo no seu acórdão de 07.11.2001 [Proc. n.º consultável in: «www.dgsi.pt/jsta» e Apêndice ao DR publicado em 23.10.2003, vol. II, págs. 7605 e segs.], que aqui se acompanha e reitera, “… a atribuição por lei não era a única forma de atribuição do caráter dominial. (…) «A atribuição do caráter dominial depende de um, ou vários, dos seguintes requisitos: a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria do domínio público; b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe; c) afetação dessa coisa à utilidade pública» (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume II, 9.ª edição, página 921. Essencialmente no mesmo sentido, quanto aos tipos de atos que podem produzir a integração de bens no domínio público, embora não exatamente quanto aos respetivos conceitos, pode ver-se José Pedro Fernandes, Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume IV, páginas 183-185, que indica a «qualificação legal», a «classificação» e a «afetação»). (…) No caso em apreço, pelo que se disse, não se está perante qualquer das situações indicadas nas duas primeiras alíneas, pelo que a integração da parcela em causa no domínio público do município … apenas será viável por via de afetação da mesma à utilidade pública. (…) A matéria de facto fixada não revela a existência de uma efetiva afetação da referida parcela à utilidade pública. (…) No entanto, sendo a parcela destinada, nos termos do alvará de loteamento, a uma «zona verde», necessariamente destinada à utilização pelo público, entende-se que ela, independentemente de uma efetiva afetação de facto a esse uso, foi afetada juridicamente ao domínio público. (…) Assim, deverá ter-se por assente que a parcela referida se integrou no domínio público municipal, através de afetação …” [sublinhados nossos].

XLVII. E do acórdão de 08.09.2011 [Proc. n.º 0267/11 in: «www.dgsi.pt/jsta»] extrai-se também com relevância que “… bastando a afetação de uma coisa à utilidade pública para que esta passe a integrar o domínio público - afetação que não depende da prolação de um ato administrativo formal visto poder resultar de um mero facto ou de uma prática da Administração que manifeste a intenção de consagração ao uso público - não se pode duvidar de que o jardim - e a parcela ora em causa que lhe foi retirada - estava submetido ao domínio público do Réu e, por essa razão, a dita parcela estava subtraída do comércio jurídico privado. Ou seja, e dito de forma diferente, integrando o domínio público as coisas subtraídas ao comércio privado em razão da sua primacial utilidade coletiva e sendo que um jardim que está ao serviço da comunidade tem evidente utilidade coletiva é forçoso concluir que a dita parcela, independentemente da forma como a sua aquisição foi feita, integrava os bens sujeitos ao domínio público do Réu …” [sublinhado nosso].

XLVIII. Transpondo, assim, os posicionamentos e considerandos antecedentes para o quadro do caso vertente e presente o quadro normativo convocado importa concluir que, face ao que se mostra apurado nos mesmos sob os n.ºs III), IV), V), VI), VII), VIII), IX), X), XI), XII), XIII), XIV), XV), XVI), XVII) e XVIII) da matéria de facto provada, a parcela de terreno em crise, enquanto integrante da parcela que havia sido cedida como e para «zona verde», deve qualificar-se como integrante do domínio público da edilidade aqui recorrida e isso independentemente duma efetiva afetação material da referida parcela à utilidade pública de harmonia com o entendimento afirmado por este Supremo.

XLIX. É que tal parcela foi destinada, nos termos da escritura pública outorgada entre os então intervenientes [incluindo a planta anexa à mesma escritura e que continha o arranjo urbanístico definido/aprovado pelo contrato e plano de urbanização para aquela zona - n.ºs III), VII), VIII) e IX) dos factos fixados], enquanto instrumento jurídico válido e eficaz à luz do quadro normativo vigente, a «zona verde», fim esse que, necessariamente, a destina à utilização pelo público, pelo que se considera que a mesma foi afetada juridicamente ao domínio público, integrando o domínio público municipal, tanto mais que se mostra como possível e admissível que a afetação jurídica ocorra antes da afetação de facto [vide José Pedro Fernandes em “Domínio Públicoin: ob. cit., pág. 185].

L. No quadro do arranjo urbanístico definido/aprovado e depois contratualizado temos que concreta parcela de terreno em crise integrava área/zona verde sujeita ao domínio público da edilidade dado o caráter permanente que lhe é conferido pelos termos do contrato de doação e do arranjo urbanístico que resulta da operação de loteamento aprovada e que se mostra documentada pela planta junta, na certeza de que não se revela minimamente alegado/apurado da factualidade fixada nos autos sem impugnação no devido momento que tenha ocorrido alteração ou desaparecimento do fim/destino daquela área/parcela de terreno, mormente, através de alteração do contrato e/ou do plano/arranjo urbanístico ou, ainda, dos termos definidos pelo PDM e respetivo regulamento entretanto aprovado [cfr. Resolução do Conselho de Ministros n.º 44/94, publicada DR I-B, de 22.06.1994].

LI. Se assim é e deve ser considerado importa, então, determinar das consequências daí decorrentes face à qualificação do bem como coisa pública e, bem assim, se no caso ocorreu, entretanto, qualquer desafetação do mesmo que legitime a sua aquisição por parte da A./recorrente à luz da invocação de titularidade que é feita pela mesma.

LII. Tal como decorre do quadro normativo que esteve vigente e do atual [cfr. arts. 369.º, 370.º, 371.º, 372.º, 380.º, 479º e 482.º todos do CC/1867, art. 49.º da Constituição 1933; 84.º da atual CRP; DL n.º 23565; DL n.º 477/80; arts. 202.º, 280.º, 281.º, 295.º, 1251.º, 1252.º, 1254.º, 1255.º, 1258.º a 1263.º, 1267, 1268.º, 1287.º e segs., 1304.º do CC/1966; arts. 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º todos do DL n.º 280/2007, de 07.08, que veio aprovar o regime jurídico do património imobiliário público (diploma entretanto alterado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31.12, pela Lei n.º 64-B/2011, de 30.12, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31.12, pelo DL n.º 36/2013, de 11.03, e pela Lei n.º 83-C/2013, de 31.12)] e, bem assim, é reconhecido pela doutrina e jurisprudência [na doutrina, vide Marcello Caetano in: ob. cit., vol. II, págs. 891/892; Manuel Rodrigues in: “A Posse - Estudo de Direito Civil Português”, 4.ª edição, págs. 118 e segs.; José Pedro Fernandes em “Domínio Públicoin: ob. cit., pág. 174 e segs.; Menezes Cordeiro in: “Direitos Reais”, vol. I, pág. 181, nota (190); RLJ Ano 64, págs. 60/61; na jurisprudência ver, entre outros, os Acs. deste STA de 18.10.1994 - Proc. n.º 33627, de 07.11.2001 - Proc. n.º 39114, de 08.09.2011 - Proc. n.º 0267/11 in: «www.dgsi.pt/jsta»], as coisas públicas mostram-se fora do comércio jurídico privado, o que significa serem as mesmas insuscetíveis de redução à propriedade particular, inalienáveis, imprescritíveis, impenhoráveis e não oneráveis pelos modos do direito privado enquanto assim se mantiverem, na certeza de que as denominadas “coisas públicas artificiais” uma vez objeto de desafetação e subsequente integração no domínio privado poderão ser objeto de atos de comércio no quadro do direito privado.

LIII. Pode ler-se no acórdão deste Supremo de 07.11.2001 [Proc. n.º 39114 supra citado] que as “… coisas que integram o domínio público estão fora do âmbito do comércio jurídico (art. 202.º, n.º 2, do Código Civil), só podendo ser objeto de relações jurídicas privadas se lhes for retirado o caráter dominial. (…) Embora a Constituição preveja que seja definido por lei o regime, condições de utilização e limites do domínio público municipal (art. 84.º, n.º 2, da CRP), essa lei não foi ainda publicada. (…) No entanto, tem-se entendido que os bens do domínio público podem ser objeto de operações de «comércio público», como é o caso de mutações dominiais, bem como que lhes pode ser retirado caráter dominial por lei ou por ato administrativo. Designadamente, este Supremo Tribunal Administrativo tem entendido ser possível a desafetação de bens do domínio público autárquico, através de deliberações dos seus órgãos …”.

LIV. E do acórdão de 08.09.2011 [Proc. n.º 0267/11 também atrás citado] extrai-se também com pertinência para o julgamento do caso vertente que “… a atribuição do caráter público dominial a um bem resulta não da forma ou das circunstâncias da sua aquisição mas da verificação de um dos seguintes requisitos: (1) da existência de norma legal que o inclua numa classe de coisas na categoria do domínio público, (2) de ato que declare que certa e determinada coisa pertence a esta classe e (3) da afetação dessa coisa à utilidade pública, sendo que esta afetação tanto pode resultar de um ato administrativo formal (decreto ou ordem que determine a abertura, utilização ou inauguração), como de um mero facto (a inauguração) ou de uma prática consentida pela Administração em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público (…). (…) Todavia, o facto das coisas públicas não poderem ser objeto de contratos de direito civil, nem reduzidas à propriedade privada ou ser objeto de posse civil não significa que elas não possam ser subtraídas ao domínio público e integradas no domínio privado e que, na sequência desta alteração, não possam ser objeto de atos de comércio. Ou seja, a lei não impede a alteração do regime de dominialidade das coisas públicas, alteração que se fará através da desafetação do bem integrado no domínio público e da sua integração no domínio privado, mas neste caso essa alteração tem de obedecer às normas legais que a consentem, designadamente as que respeitam à competência do órgão para a fazer …”.

LV. Ora mercê da qualificação atrás realizada quanto à parcela de terreno em crise como integrante do domínio público municipal temos que a mesma, como coisa pública, estava subtraída ao comércio jurídico, não sendo suscetível de sobre a mesma poderem incidir atos de posse e, como tal, a recorrente não poderia, válida e legitimamente, invocar a sua titularidade mediante aquisição por usucapião, invocação que a mesma nem sequer fez no quadro da presente ação judicial prevenindo o soçobrar duma eventual impugnação procedente deduzida pelo R. que afastasse a presunção registral de que a mesma se arroga deter.

LVI. Enquanto tal coisa pública não haja deixado de integrar o domínio público municipal do recorrido a mesma não entrou no comércio jurídico, pelo que só se tiver ocorrido desclassificação e/ou desafetação [expressa/tácita] da mesma poderá ser objeto de atos de posse por parte, mormente, da aqui recorrente.

LVII. É que a coisa pública não está sujeita às mesmas leis sobre a prescrição que as coisas do domínio privado e, por isso mesmo, é insuscetível de posse privada [cfr., ainda, Manuel Rodrigues in: ob. cit., págs. 120/121 e 134/135], pelo que os atos/condutas que hajam sido praticados ou desenvolvidos pelos particulares quando incidentes sobre coisa do domínio público não poderão ser qualificados como atos de posse, não determinando o momento da desafetação.

LVIII. Assim, presente o quadro factual apurado nos autos não se vislumbra que tenha sido, por um lado, prolatado qualquer ato de desclassificação/desqualificação do bem imóvel em questão e, por outro lado, que tenha ocorrido qualquer desafetação da concreta parcela de terreno em crise, já que não resulta demonstrado a existência dum ato praticado pelo recorrido ou de qualquer facto que determine a sua eliminação do âmbito do domínio público da edilidade.

LIX. Na verdade, dos autos não deriva documentado que tenha existido uma qualquer deliberação ou decisão que haja procedido à desclassificação/desqualificação da referida parcela de terreno, nem que por norma, entretanto emitida e publicada no quadro temporal em apreciação no processo, tal parcela haja sido desafetada expressamente do domínio público.

LX. Por outro lado, também não se descortina que do circunstancialismo factual apurado nos autos tenha ocorrido desafetação tácita da aludida parcela de terreno, já que a mesma, enquanto forma de cessação da dominialidade, só ocorre quando a coisa pública deixe de servir ao fim de utilidade pública e passe a ser utilizada/usufruída pelos particulares por abandono intencional do recorrido.

LXI. De notar que, na sequência do que supra se avançou, a desafetação tácita não poderá derivar ou resultar de ato ou de atuação praticada por um particular, nomeadamente, da A./recorrente, porquanto se assim fosse as coisas públicas perderiam os seus caracteres da inalienabilidade e da imprescritibilidade e seriam suscetíveis de posse, o que, como vimos, não é admissível.

LXII. Será apenas na atitude da Administração, sua ação ou omissão, que importa encontrar o traço que vinque claramente o abandono intencional da coisa, sendo que tal abandono há-de resultar inequivocamente de atos praticados pela mesma.

LXIII. Para tal não bastará a simples constatação duma ausência, ainda que longa, da construção por parte da edilidade dum jardim ou doutro tipo de arranjo urbanístico destinando o espaço a «zona verde», já que se exige mais do que uma simples e mera inércia por parte da edilidade e se desconhecem inteiramente motivações ou razões que estiveram na sua origem.

LXIV. Como afirma Ana Raquel Moniz “… os particulares apenas podem utilizar ou ocupar privativamente um bem submetido ao estatuto de dominialidade ao abrigo de um título jurídico-administrativo (…). Na ausência de título, a ocupação considera-se abusiva, e efetivada por mera tolerância incrementada pela inércia da Administração, expressa na ausência de defesa dos bens dominiais, não nos encontrando diante de uma situação de posse, mas de simples permissão de atos facultativos, os quais nem chegam a configurar uma hipótese de detenção (a qual pressupõe um consentimento, ainda que tácito, do proprietário do bem) (…). (…) a inércia da Administração não pode alcançar aqui o significado de uma «desafetação implícita» (que pressupõe sempre uma atuação positiva da Administração), sob pena de ofensa do princípio da extracomercialidade privada de bens públicos …” [in: “O Domínio Público - O critério e o regime jurídico da dominialidade”, págs. 432/433] [sublinhados nossos].

LXV. Ora ocorre que, no caso, nada do que se mostra apurado e/ou foi aportado aos autos revela ter existido da parte do aqui recorrido um qualquer ato/facto do qual se extraia a verificação dum abandono intencional da afetação ao domínio público da concreta área de terreno destinada a «zona verde», na qual a parcela de terreno em crise se integra, por forma a que a recorrente possa legitimamente sustentar e concluir ter havido não uma simples inércia mas antes uma desafetação tácita da aludida parcela e, assim, ter a mesma entrado no comércio jurídico ficando sujeita a atos de posse e à prescrição aquisitiva.

LXVI. E tal desafetação não resulta ou se extrai ter ocorrido também com a publicação do Regulamento PDM da Amadora [ratificado/aprovado pela referida Resolução do CM n.º 44/94], mormente, por efeito do que se dispõe no seu art. 89.º, n.º 1, já que, como acertadamente se concluiu no acórdão sob impugnação, tal preceito ao prever que “com a ratificação do Plano Diretor Municipal caducam todos os planos municipais de ordenamento do território que se encontrarem à data em vigor” fez caducar “… o plano parcial cit., mas esta norma não tem a virtualidade de fazer desaparecer do domínio público do R. as cits. parcelas efetivamente cedidas ao R. para arruamentos e espaços verdes (sob pena de reversão), adquiridas com a celebração das escrituras públicas cits. …”, dado que não opera dos seus termos e previsão uma tal função ou objetivo.

LXVII. Inexistindo demonstração da desclassificação/desqualificação ou da desafetação, impõe-se concluir que a pretensão da recorrente se mostra insubsistente à luz do quadro normativo atrás enunciado e, como na decisão judicial sob recurso se afirmou, que as AA. não adquiriram licitamente por usucapião tal parcela de terreno, na certeza de que tal “… aquisição por usucapião é ininvocável em juízo e inoponível, ainda que «justificada» por tribunal judicial ao abrigo do DL 284/84 (reconhecimento do direito para efeitos de registo: art. 1.º-2) e do art. 116.º C.Reg.P. vigente em 2000-2001, pois que a sentença constitui caso julgado «apenas» nos precisos limites e termos em que julga (aqui reconhecimento do direito para efeitos de registo, contra o MP e incertos). (…) Ou seja, o caso julgado obtido naqueloutro processo ao abrigo do DL 284/84 (…), como decorre da sentença junta à p.i., não atinge o município da Amadora, pois este não foi parte naquele processo (v. art. 498.º CPC e, assim, o Ac. STA de 23.2.2005, P. n.º 01759/03; Ac. STJ de 16.2.2012, P. n.º 286/07.0TVLSB.L1.S1; Antunes Varela et al., Manual…, 2.ª ed., p. 722 ss.; e Alberto dos Reis, Valor das sentenças proferidas contra incertos, in RLJ 80.º, p. 65 ss. e C.P.C.A., V, 1952, p. 185) e não versou sobre a questão da eventual dominialidade pública municipal ou estadual. (…) Dir-se-á, enfim, que, sem prejuízo da dominialidade cit., as AA. demonstraram ao cit. tribunal judicial o que o DL 284/84 e o art. 116.º cit. exigem para o estabelecimento ex novo do trato sucessivo; apenas isso. A dominialidade do ora réu, imprescritível, não pode ser beliscada pela sentença cit., porque o município não foi parte naquele processo e porque o objeto do mesmo não incluiu tal questão …”.

LXVIII. Além disso, não se descortina assistir razão à recorrente quando invoca a força e valor da presunção registral de que beneficiaria e da impossibilidade/inadmissibilidade do seu afastamento sem ser no quadro de ação judicial própria, bem como do caso julgado firmado no quadro da ação judicial acima referida.

LXIX. É que importa termos presente que a eficácia do registo predial consubstancia-se no dar publicidade à situação jurídica dos prédios, bem como aos direitos e ónus que incidem sobre os mesmos, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário [cfr. art. 01.º do Código do Registo Predial (doravante CdRP)].

LXX. E que, por outro lado, o registo predial não visa, nem se destina, assim, a dar/atribuir ou a retirar direitos, porquanto a regra no nosso sistema jurídico é a de que o registo não tem eficácia constitutiva ou extintiva de direitos já que é, normalmente, meramente enunciativo.

LXXI. Mostra-se, aliás, consensual o entendimento de que um dos mais importantes efeitos substantivos do registo é o da atribuição ao seu titular da presunção da titularidade do direito, a qual se corporiza em duas presunções: (a) a de que o direito existe, tal como consta do registo; e (b) a de que pertence, nesses precisos termos, ao titular inscrito [cfr. art. 07.º do CdRP].

LXXII. Na verdade, à luz dum dos princípios enformador e conformador do regime legal relativo ao registo predial, o da presunção da verdade registral [ou da exatidão do registo, ou, ainda, da fé pública registral], o que consta do registo é juridicamente existente e, consequentemente, quem figura no registo como titular dum direito real sobre um bem imóvel é o seu verdadeiro titular, podendo, portanto, dispor desse direito.

LXXIII. Trata-se, todavia, duma presunção “juris tantum” que é conferida à pessoa que dele beneficia [no caso a aqui A.] e, como tal, que é ilidível ou passível de destruição por prova em contrário [cfr. arts. 350.º, n.º 2 do CC e 01.º, 07.º, 08.º e 13.º do CdRP - demonstração da não existência do facto presumido e não só a criação de dúvidas a tal respeito], porquanto, salvo nas situações, nas quais o caso vertente não se inclui, em que o objeto de discussão do litígio seja a própria validade/legalidade da constituição da presunção registral [cfr., para estas o Ac. do STJ n.º 01/2008 que uniformizou jurisprudência no sentido de que na «ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial»], tal presunção faz operar uma inversão das regras relativas ao ónus da prova previstas no art. 342.º do CC.

LXXIV. O registo não garante, assim, que um determinado imóvel pertence ao transmitente ou ao titular nele inscrito, ou ainda que o prédio tem esta ou aquela configuração, estes ou aqueles limites e confrontações, esta ou aquela área nele referida.

LXXV. O mesmo não constitui presunção da realidade substantiva, pois, como referimos o registo apenas faz presumir que o direito pertence ao seu titular inscrito e que, quanto a determinado prédio, ocorre certa situação jurídica.

LXXVI. Se assim deve ser considerado, então, não assistirá também aqui razão à recorrente na crítica que dirige à decisão judicial em crise porquanto a presunção registral de que a mesma goza resulta ou mostra-se no caso vertente infirmada pela factualidade que se logrou apurar nos autos [cfr., em especial, n.ºs III), IV), V), VI), VII), VIII) e IX)], porquanto a parcela de terreno em questão, fazendo parte integrante do terreno destinado a «zona verde» nos termos do que havia sido aprovado e contratualizado, constitui, como se concluiu supra, bem integrado no domínio público do aqui recorrido, pelo que se trataria de coisa pública e, como tal, fora do comércio jurídico, sendo insuscetível de prescrição aquisitiva mormente por parte da A./recorrente.

LXXVII. Tal qualificação/classificação daquela parcela de terreno assente no quadro factual apurado e enquadramento normativo aludido afasta a procedência da pretensão da recorrente enquanto assente meramente na presunção registral, presunção essa que resultou, assim, no caso ilidida, na certeza de que a recorrente não alegou na petição inicial, à cautela, factualidade integradora da aquisição originária da parcela de terreno em crise prevenindo uma eventual defesa do R., que no caso inexiste, tendente a afastar/infirmar tal presunção, o que também levaria ao soçobrar da sua pretensão na eventualidade de prova de factualidade conducente à aquisição originária por parte do R., ora aqui recorrido.

LXXVIII. Note-se, ainda, que ao invés do que pretende a recorrente, para o operar do afastamento daquela presunção não se mostra necessária, à luz do quadro normativo vigente no nosso contencioso, a dedução duma ação judicial própria destinada a discutir tal classificação/qualificação ou mesmo que seja mandatório a dedução formal no quadro desta ação administrativa especial dum pedido reconvencional de reconhecimento do caráter dominial da referida parcela de terreno, porquanto bastará, para o efeito e enquanto fundamento de defesa, a alegação do referido caráter dominial o que, como vimos, resultou ter sido feito pelo recorrido na contestação oportunamente deduzida.

LXXIX. De reiterar, por último, que inexiste no julgado sob impugnação qualquer violação ao caso julgado firmado no quadro da ação judicial que correu termos no TJ da Comarca de Lisboa já que o caso julgado material ali firmado tem os limites fixados nos arts. 497.º e segs. do CPC “ex vi” art. 35.º, n.º 2 do CPTA, como expressamente se refere no art. 671.º do mesmo diploma, formando-se apenas relativamente a quem interveio na causa em que a decisão foi proferida [arts. 498.º, n.ºs 1 e 2 do CPC].

LXXX. Assim, se a decisão só tem força de caso julgado inter partes temos que se a mesma for invocada contra terceiro deve reconhecer-se a este uma ampla possibilidade de alegar e demonstrar a existência do seu direito incompatível com aquela decisão conforme é imposto pelo princípio do contraditório.

LXXXI. Daí que caso julgado obtido naqueloutro processo não afeta ou vincula o município aqui recorrido porquanto o mesmo não foi parte naquele processo, na certeza ainda de que o mesmo processo não versou sobre a questão da eventual dominialidade pública municipal da parcela de terreno em questão.

LXXXII. Nessa medida e considerando tudo o atrás exposto, não vislumbramos assistir razão à recorrente nas críticas avançadas perante esta instância e enquanto estribadas num alegado erro de julgamento assacado à decisão judicial recorrida [demais conclusões], impondo-se, por conseguinte, concluir pela total improcedência do recurso jurisdicional.


4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar total provimento ao recurso jurisdicional “sub judice”e consequentemente, pela motivação antecedente, manter a decisão judicial recorrida.

Custas nesta instância a cargo da recorrente.

D.N..

Lisboa, 26 de junho de 2014. – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) – Jorge Artur Madeira dos Santos (com declaração que junto) – António Políbio Ferreira Henriques.

DECLARAÇÃO DE VOTO

O acórdão, até por imperfeição metodológica, não capta correctamente a problemática dos autos.
A acção é, antes do mais, impugnatória de um acto de indeferimento (do pedido de informação sobre a viabilidade de uma construção). Entre os vícios assacados ao acto avulta, e persiste, um erro num dos seus pressupostos - o de o terreno, onde as requerentes pretendiam edificar, não ser delas, mas do município. E note-se que o acto, embora dizendo que o terreno era municipal, não afirmou que ele integrava o respectivo domínio público.
Assim, as autoras, ao asseverarem na petição que o terreno era seu - porque o teriam adquirido por usucapião - invocaram um erro nos pressupostos do acto; mas, subjacente a tal denúncia, estava posta uma questão de direito dominial, cuja sede própria de resolução é o tribunal comum.
Na contestação, o município afirmou que o terreno pertencia ao domínio público. Esta defesa integrava um facto impeditivo da aquisição por usucapião. Mas a doação do terreno ao município não era título bastante para a integração dele no domínio público; e, ao invés do que assevera o acórdão, não houve a afectação - através de um comportamento, designadamente a construção da projectada zona verde - que conferisse ao terreno a natureza pública.
Portanto, aquela defesa do município deveria improceder. Mas isso não significava que a acção vingasse.
Após os articulados, a situação do processo era clara: as autoras haviam invocado, contra o acto, um erro nos pressupostos cuja análise supunha a prévia decisão de uma questão prejudicial, da competência dos tribunais comuns: a questão de saber se elas eram, conforme haviam alegado, donas do terreno por o terem adquirido por usucapião.
Perante isso, e como resulta do art. 15º do CPTA, o TAF tinha de fazer uma de duas coisas: ou suspender a instância, para que as partes discutissem no foro próprio a propriedade do terreno; ou decidir a questão prejudicial do processo administrativo.
O TAF terá optado por esta segunda via. E essa escolha, correspondendo ao exercício de uma faculdade ao dispor do juiz, é insindicável - o que logo acarretava a improcedência das três primeiras conclusões da alegação de recurso.
Nas duas últimas conclusões da sua minuta, a recorrente recusa que o terreno fosse público, como o TCA afirmara e o presente acórdão agora reiterou – e, portanto, que ele fosse insusceptível de aquisição por usucapião. Mas, antes disso, punha-se outro problema: qualquer pronúncia, favorável à recorrente, acerca do erro nos pressupostos dependia dela ter cumprido o ónus de alegação quanto à propriedade de que se arroga.
Sucede, no entanto, que a petição não continha os factos constitutivos da aquisição originária a favor das autoras. Ora, tal défice de alegação tornava impossível que elas, nestes autos, convencessem o município da sua dominialidade - e, por essa via, provassem o erro nos pressupostos do acto. E parece que esse silêncio das autoras adveio delas se fiarem na presunção derivada da inscrição registral a seu favor.
Mas a presunção do art. 7º do CRP - que não é confundível com a oponibilidade prevista no art. 5º do mesmo diploma - só permite dizer que as autoras são as donas do terreno se a justificação, isto é, o título usado para lavrar o registo, tiver base real. Daí que o justificante que inscreveu continue, ao confrontar-se com o anterior «dominus», a ter de provar, contra ele, os factos constitutivos da sua aquisição originária.
Assim, as autoras, ao oporem ao município - que era o «dominus» anterior - a sua aquisição originária, não podiam ficar-se pela prova da inscrição e tinham de convencer que usucapiram. Até porque o município era alheio ao caso julgado da justificação judicial. Mas, como a alegação e a prova dos factos constitutivos da usucapião não constam do processo, a questão prejudicial haveria de ser resolvida contra as autoras - sem prejuízo da recorrente recolocar o problema nos tribunais comuns. E, por isso, improcedia o vício de erro nos pressupostos ainda em discussão.
Com esta diferente fundamentação, chegar-se-ia ao resultado do acórdão, mas por um diferente «iter», que não teria de averiguar se o terreno é do município e, sendo-o, se integra o domínio público ou o domínio privado. E este caminho seria mais conforme ao conteúdo do acto de indeferimento e à feição impugnatória do processo - prevenindo eventuais dúvidas quanto ao âmbito do caso julgado do acórdão.

Jorge Artur Madeira dos Santos.