Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0658/09.5BELRA 01263/15
Data do Acordão:11/08/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:REPOSIÇÃO DE QUANTIAS
RECLASSIFICAÇÃO PROFISSIONAL
BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS
Sumário:I – A excepcionalidade do regime jurídico da reclassificação e reconversão profissional deve reconduzir-se ao afastamento do princípio geral do concurso na função pública. Ir mais além, abdicando de exigir as habilitações académicas e profissionais previstas para o exercício de determinadas funções, não só pode contrariar a lei e os seus propósitos (os funcionários reclassificados ou reconvertidos deverão ter, também eles, uma preparação académica e profissional adequada às funções que exercem, tudo em nome da prossecução do interesse público), como, de igual forma, pode conduzir a uma diferença de tratamento sem justificação razoável (basta pensar que a al. d) do artigo 16.º do DL n.º 106/02 exige, para efeito de recrutamento de bombeiros de 3.ª classe, a escolha de entre bombeiros recrutas, aprovados em estágio com classificação não inferior a 14 valores).
II – Deve entender-se que o trabalho prestado, por imposição da Administração, ao abrigo de um título ulteriormente considerado inválido deve ser compensado como se o trabalhador estivesse investido no cargo com base num título válido.
Nº Convencional:JSTA000P23812
Nº do Documento:SA1201811080658/09
Data de Entrada:11/20/2015
Recorrente:SINDICATO NACIONAL DOS TRABALHADORES DA ADMINISTRAÇÃO LOCAL E OUTROS
Recorrido 1:MUNICÍPIO DO CARTAXO E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. O Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local (STAL), devidamente identificado nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do Acórdão do TCAS, de 12.02.15, que decidiu “conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido na parte impugnada e, julgando a ação improcedente, absolver o réu dos pedidos”.

Na origem do recurso interposto para o TCAS esteve uma decisão do TAF de Leiria, de 17.10.13, que decidiu “julgar parcialmente procedente a presente acção e em consequência: a. Anula-se o despacho proferido a 6 de Março de 2009 – Despacho n.º 04/2009 PC – de revogação das reclassificações dos associados do autor, A………… e B…………, mantendo-se, porém, tal revogação em relação aos associados C…………, D………… e E…………, e
b. Anula-se o despacho de restituição dos valores recebidos por todos os associados do autor, enquanto bombeiros municipais, proferido a 6 de Março de 2009 – Despacho n.º 04/2009 PC”.

2. O A., ora recorrente, apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. 280 a 282v.):

“1º O presente recurso de revista vem interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 16 de Fevereiro de 2015, que revogou a sentença proferida pelo TAF de Leiria que anulara os actos que haviam declarado a nulidade da reclassificação profissional dos associados do A. e exigira a reposição das verbas por eles auferidas enquanto exerceram as funções para que haviam sido reclassificados – e julgou a acção especial de Impugnação totalmente improcedente, considerando válidos os actos que tinham declarado a nulidade da reclassificação e exigiam a reposição das remunerações auferidas no exercício efectivo de tais funções.

2º Salvo o devido respeito, para além de enfermar de nulidade, de contrariar a jurisprudência deste venerando Supremo Tribunal Administrativo e de ir contra o que anteriormente o próprio Tribunal a quo já decidira, julga-se que o acórdão recorrido suscita três questões fundamentais cujo relevo social e jurídico se afigura ser inquestionável no universo do Direito e da Justiça administrativa, a saber:

a ilegalidade do acto de reclassificação profissional implica a obrigação de os funcionários reclassificados reporem o dinheiro auferido pelo exercício efectivo de funções ou, pelo contrário, essa reposição por parte de quem exerceu de boa fé tais funções envolve um locupletamento à custa alheia por parte de quem praticou o acto ilegal e beneficiou da prestação de trabalho?

é compatível com o direito fundamental à retribuição – por na prática traduzir a prestação e trabalho gratuito – e com os princípios da justiça e boa fé da Administração que se interprete o art.º 36º do DL 155/92 no sentido permitir a reposição de dinheiros abonados quando o trabalho foi prestado de boa fé e quando quem recebe e beneficia do trabalho correspondente à remuneração que foi paga é justamente quem cometeu a ilegalidade?

em sede de reclassificação profissional a idoneidade do funcionário para o exercício das funções tem de ser comprovada pela frequência do estágio exigido para ingresso na carreira ou, pelo contrário, por se tratar de um regime especial de preenchimento de postos de trabalho basta-se como reconhecimento da existência de uma situação de desajuste funcional, que é pressuposto da reclassificação?

3º As questões suscitadas pelo acórdão recorrido possuem uma capacidade expansiva e uma importância social e jurídica que justifica a sua apreciação e resolução por parte deste Venerando Supremo Tribunal Administrativo, encontrando-se preenchidos os pressupostos de que o art.º 150º do CPTA faz depender a admissão do recurso de revista.

Na verdade,

4º Saber-se se um funcionário público que execute determinadas funções com base num acto praticado pela Administração tem ou não de repor a remuneração correspondente às funções efectivamente exercidas quando, mais tarde, a Administração constate a ilegalidade do acto que legitimou a atribuição de tais funções, é seguramente matéria que não só tem a capacidade expansiva para justificar o recurso de revista como seguramente reveste a importância jurídica e social exigida para o efeito, seja pela natureza falimentar que é reconhecida à remuneração, seja pela natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias que é reconhecida ao direito fundamental consagrado no art.º 59º/1/a) da Constituição.

5º Para além disso, a primeira das questões suscitadas contende ainda com a atribuição ou não atribuição de efeitos putativos a actos nulos, possibilidade essa que se encontra prevista no art.º 134º/3 do CPA e que, por isso mesmo, justifica a intervenção do STA na delimitação de uma possibilidade prevista na lei, de forma a que se fixe uma orientação jurisprudencial que possa servir de base para no futuro se aferir se o Estado pode exigir a um trabalhador que preste determinado trabalho e depois lhe venha exigir o que pagou por esse trabalho com o argumento de que não poderia ter exigido o mesmo.

6º Acresce, ainda, que a intervenção deste Venerando Supremo Tribunal justifica-se igualmente para pacificar divergências jurisprudenciais do próprio TCASul, uma vez que, ao contrário do que no aresto em recurso foi decidido, aquele mesmo Tribunal já anteriormente havia considerado que não há lugar à reposição de quantias quando “além da boa fé, o funcionário tiver realmente prestado o serviço pelo qual foi pago” (v. Ac. do TCA Sul de 30/11/2000, Proc. n.º 256/97, disponível em www.dgsi.pt).

7º Por fim, por força do nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade – que só permite o recurso para o Tribunal Constitucional depois de esgotados os recurso ordinários –, julga-se igualmente que sempre que se suscite em termos m coerentes a inconstitucionalidade de uma norma se justifica a intervenção do STA para se pronunciar sobre tal inconstitucionalidade, pelo menos na ausência de uma Jurisprudência firmada pelos tribunais inferiores.

8º Também a terceira questão fundamental justifica a sua apreciação em sede de revista para efeitos de uma melhor aplicação do direito, uma vez que o aresto em recurso decidiu exactamente em sentido contrário à jurisprudência firmada por este Venerando Supremo Tribunal em Acórdão de 2 de Fevereiro de 2006, proferido no Proc. n.º 01033/05 – sendo o argumento de que os trabalhadores não invocaram que estavam numa situação de desajuste funcional uma mera forma de encapotar a rebeldia para com o decidido anteriormente por este douto Tribunal, pois bastava ler os art.ºs 4º e 19º da p.i. para se poder constatar que o desajuste funcional foi claramente invocado pelo Recorrente.

9º Consequentemente, julga-se estarem preenchidos in casu os pressupostos de que o n.º 1 do artº 150º do CPTA faz depender a admissibilidade do recurso de revista, devendo este ser admitido e apreciadas e resolvidas as questões de importância fundamental suscitadas pelo acórdão recorrido.

10º Para além de estarem preenchidos os pressupostos da admissibilidade do recurso de revista, deverá dizer-se o aresto em recurso enferma da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artº 615º do CPC, uma vez que revogou a sentença da 1ª Instância e julgou totalmente improcedente a acção sem ter apreciado a questão da inconstitucionalidade do art.º 36º do DL n.º 55/92 (suscitada nos artºs 36º a 39º da p.i.) e sem mesmo ter apreciado e conhecido todas as causas invalidantes que haviam determinado a 1ª Instância a anular os actos impugnados, tendo-se limitado à apreciação do vício da violação do princípio da boa fé e da protecção da confiança mas deixado por conhecer a questão do enriquecimento sem causa, que fora um dos vícios autónomos conhecidos e julgados procedentes pelo TAF de Leiria.

11º Por fim, ao revogar a sentença do TAF de Leiria e ao julgar legais os actos que haviam declarado a nulidade da reclassificação profissional e exigido a reposição das remunerações correspondentes às funções efectivamente exercidas pelos trabalhadores reclassificados, o aresto em recurso incorreu em flagrante erro de julgamento, porquanto:

- desrespeita frontalmente a jurisprudência firmada por este Venerando Supremo Tribunal no acórdão de 2 de Fevereiro de 2006;

- atenta frontalmente contra os princípios da boa fé e protecção da confiança, pois as quantias em causa corresponderam ao trabalho prestado e foram recebidos de boa fé;

- traduz um enriquecimento sem causa da entidade demandada à custa dos seus trabalhadores, pois obrigou-os a exercer determinadas funções e depois não lhes paga o trabalho que foi efectuado e que teria de pagar a qualquer outra pessoa que o fizesse levando a que os trabalhadores tivessem que prestar um determinado trabalho gratuitamente;

- interpreta em sentido inconstitucional o art.º 36º do DL n.º 155/92 por violação do direito fundamental à retribuição e por violação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nestes termos,

a) Deve ser admitido o recurso de revista por se verificarem os pressupostos do art. 150º do CPTA;

b) Deve ser concedido provimento ao recurso revogando-se a decisão recorrida, com as legais consequências”.

3. O R., ora recorrido Município do Cartaxo (MC), apresentou contra-alegações, oferecendo as seguintes conclusões:

“- Não existe qualquer contradição entre o Acórdão recorrido e jurisprudência anterior deste Supremo Tribunal, designadamente do Ac. de 02/02/2006 proferido no Procº nº 1033/05;

- A questão da legalidade da reposição de remunerações já foi objecto de uniformização de jurisprudência que é consonante com o Acórdão recorrido;

- Não existem, assim, questões que tenham especial relevância ou que possam contribuir para a melhor aplicação do direito;

- Deste modo, não deve o recurso ser admitido. Não obstante, e sem conceder,

- Não existiu qualquer omissão de pronúncia no Acórdão recorrido seja quanto às alegadas inconstitucionalidades e/ou enriquecimento sem causa, porquanto cumpriria ao A. requerer a ampliação do âmbito do recurso para acautelar a apreciação destas matérias pelo TCAS;

- Não está comprovada a falta de consciência dos associados do A. relativamente à ilegalidade dos actos das suas reclassificações ou do indevido recebimento dos vencimentos relativos a essas categorias profissionais, pois não podiam ignorar que não reuniam as condições legais necessárias à categoria;

- Não decorreu entre os actos de reclassificação e o posterior acto de revogação tempo suficiente para se poder ter por consolidada qualquer situação jurídica, nem para poderem ser atribuídos efeitos jurídicos a qualquer acto que padecesse de invalidade;

- Não tendo os associados do A. as habilitações académicas e/ou profissionais necessárias a poderem aceder à categoria, não se pode sustentar que tenham prestado serviço efectivamente qualificado que justificasse a remuneração indevidamente auferida;

- Não existe, portanto, qualquer violação às normas legais invocadas, pelo que não merece censura o Acórdão recorrido, devendo ser o recurso julgado totalmente improcedente”.

4. O TCA Sul, por acórdão datado de 09.07.15 (cfr. fls. 309), deu por não verificadas as nulidades assacadas ao aresto recorrido.

5. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 29.10.15 (fls. 317 a 319), veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

“(…)

3.2. Como já referimos o TCA Sul julgou a acção improcedente mantendo na ordem jurídica os despachos que declararam a nulidade das reclassificações profissionais dos associados do autor como Bombeiros Municipais de 2ª e 3ª Classe e ordenou a reposição das quantias por eles auferidas.

No recurso o Sindicato/recorrente coloca em causa os dois aspectos da questão: a legalidade da reclassificação e, mesmo que assim não se entenda, a ilegalidade da reposição das quantias recebidas no exercício do cargo após a reclassificação.

Julgamos que as questões suscitadas são de importância fundamental pois respeitam a aspectos gerais do regime jurídico dos trabalhadores da Administração Pública.

Embora neste processo estejam em causa apenas os funcionários de um Município as consequências de reclassificações ilegais – bem como a apreciação dessa ilegalidade – podem surgir em muitas outras situações.

Justifica ainda a intervenção deste STA com vista a uma melhor aplicação do Direito a questão de saber em que medida pode ser pedida a reposição da remuneração correspondente a funções efectivamente exercidas após a reclassificação do funcionário – cfr. o acórdão desta formação de 8-10-2015, proferido no recurso 0905/15, em situação semelhante”.

6. O Digno Magistrado do Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido do parcial provimento do presente recurso (cfr. parecer de fls. 326 a 329). Um tal parecer não mereceu qualquer resposta das partes.


7. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:

Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar as questões suscitadas pelo ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, quais sejam, a da verificação de nulidade por omissão de pronúncia e a de erro de julgamento por má interpretação e aplicação do direito.

2.2. Começando pela questão da alegada omissão de pronúncia, entende o ora recorrente que a decisão recorrida violou o artigo 615.º, n.º 1, al. d) pelos fundamentos alinhados na conclusão 10.ª das alegações de recurso: “o aresto em recurso enferma da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artº 615º do CPC, uma vez que revogou a sentença da 1ª Instância e julgou totalmente improcedente a acção sem ter apreciado a questão da inconstitucionalidade do art.º 36º do DL n.º 55/92 (suscitada nos artºs 36º a 39º da p.i.) e sem mesmo ter apreciado e conhecido todas as causas invalidantes que haviam determinado a 1ª Instância a anular os actos impugnados, tendo-se limitado à apreciação do vício da violação do princípio da boa fé e da protecção da confiança mas deixado por conhecer a questão do enriquecimento sem causa, que fora um dos vícios autónomos conhecidos e julgados procedentes pelo TAF de Leiria.

No seu acórdão de 09.07.05, o TCAS respondeu deste modo à alegada nulidade:

“O recorrente invoca 3 omissões de pronúncia contra o nosso acórdão de Fev.2015.
Mas não tem razão, porque as questões referidas não tinham de ser apreciadas, por estarem fora do objeto do recurso: a inconstitucionalidade do art. 36º DL 155/92 não foi colocada no recurso (embora referida na p.i; cf. o art. 636º CPC); o enriquecimento sem causa não consta igualmente do objeto do recurso interposto para este TCAS; o nº 3 do art. 134º CPA/1991 não foi igualmente parte integrante do objeto do recurso tendo inclusive sido afastado pela sentença recorrida.
Assim, acorda-se em declarar que não se verificam as nulidades decisórias invocadas no recurso para o STA”.

Vejamos.

Relativamente à questão da inconstitucionalidade do artigo 36º do DL n.º 155/92, de 28.07.92 (regime da administração financeira do Estado) ela não foi suscitada em sede de recurso para o TCAS pelo que, em relação a ela, não tinha o TCAS de se pronunciar, não se verificando qualquer omissão de pronúncia nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d).
Já em relação à questão do enriquecimento sem causa o cenário é distinto, pois que, contrariamente ao que é dito no acórdão de sustentação do TCAS, é questão expressamente colocada nas contra-alegações e nas conclusões das mesmas (Conclusão 3.ª: “O aresto em recurso efectuou uma correcta aplicação do direito ao anular a ordem de reposição dos vencimentos auferidos, pois não só não há lugar a essa reposição quando o funcionário está de boa fé e prestou o trabalho pelo qual foi pago (v. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª Ed., 2.º Vol., pág. 646; Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, p. 436; Luís Cosculluela Montaner, “Consideraciones sobre el enriquecimiento injusto en el Derecho Administrativo”, in RAP, n.º 84, 1977, pág. 189; Alexandra Leitão, O enriquecimento sem causa na Administração Pública, Lisboa, 1988, págs. 53 e 127 e Ac.º do TCA Sul, de 39 de Novembro de 2000, Proc. n.º 256/97), mas também por essa reposição envolver um locupletamento da entidade demandada, ora recorrente, à custa dos seus trabalhadores – a qual teria quem lhe tivesse feito o trabalho sem o ter pago” (cfr. fls. 214-5 dos autos). Ainda assim, não deve proceder este fundamento de nulidade do acórdão recorrido. Com efeito, a convocação do instituto do enriquecimento sem causa surge não como uma questão que haja que decidir, mas como um fundamento utilizado pelo A., ora recorrente, para apoiar a sua pretensão, qual seja, a da invalidade dos actos administrativos de anulação e de reposição das quantias indevidas. Ora, só existe nulidade por omissão de pronúncia nos casos em que o julgador não tenha decidido uma questão colocada pelas partes, e, ainda assim, apenas quando a isso estivesse obrigado (cfr. arts. 608.º e 615.º do CPC, aplicáveis ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA). Mas, mesmo que se pudesse considerar tratar-se de uma questão e não de mero fundamento, a decisão seria a mesma, no sentido da não verificação de qualquer omissão de pronúncia. Nos termos do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”. Isto significa que o artigo 608.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA, impõe ao julgador o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação – sancionando com nulidade o não cumprimento desse dever –, mas não aquelas “cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”. Pois bem, o acórdão recorrido, mal ou bem (esta seria uma questão a apreciar se tivesse sido invocado erro de julgamento), tomou uma decisão quanto ao enriquecimento sem causa. Com efeito, no acórdão recorrido, ao apreciar-se a alegada violação do princípio da protecção da confiança, é afirmado que os actos de reclassificação, de revogação das nomeações como bombeiros municipais de 2.ª e 3.ª categoria e de obrigação de reposição das remunerações indevidamente pagas e recebidas se inserem no âmbito da actividade vinculada da Administração – isto é, a Administração não tinha “qualquer margem de livre decisão” ou “não tinha margem de liberdade decisória”. Deste modo, não poderia a Administração actuar de maneira distinta, nem sequer com base na ideia da proibição do enriquecimento ilícito. Vale isto por dizer que a decisão recorrida, pelo facto de ter considerado que a actuação da Administração foi, relativamente a todos os actos administrativos em causa, uma actuação vinculada, decidiu implicitamente que não valeria a pena apreciar aquele fundamento de ilegalidade dos actos administrativos de revogação das nomeações e de determinação de reposição das quantias indevidamente pagas assente na invocação da proibição do enriquecimento sem causa.
Por último, e quanto à questão da aplicação ou não do nº 3 do artigo 134º CPA/1991, não cabe dúvida que é mencionada na conclusão 5.º das alegações de recurso, mas não especificamente para fundar uma nulidade por omissão de pronúncia. Nada indicia isso na conclusão 5.º; do mesmo modo, não se chega a essa conclusão a partir da conclusão 10º (“Para além de estarem preenchidos os pressupostos da admissibilidade do recurso de revista, deverá dizer-se o aresto em recurso enferma da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artº 615º do CPC, uma vez que revogou a sentença da 1ª Instância e julgou totalmente improcedente a acção sem ter apreciado a questão da inconstitucionalidade do art.º 36º do DL n.º 55/92 (suscitada nos artºs 36º a 39º da p.i.) e sem mesmo ter apreciado e conhecido todas as causas invalidantes que haviam determinado a 1ª Instância a anular os actos impugnados, tendo-se limitado à apreciação do vício da violação do princípio da boa fé e da protecção da confiança mas deixado por conhecer a questão do enriquecimento sem causa, que fora um dos vícios autónomos conhecidos e julgados procedentes pelo TAF de Leiria”). Parece-nos, pois, contrariamente ao que deduz o TCAS, que apenas foram imputadas ao acórdão recorridos duas causas de nulidade por omissão de pronúncia.

Em síntese, a decisão recorrida não padece de omissão de pronúncia.

2.3. Passando, agora, ao conhecimento dos alegados erros de julgamento, os mesmos são circunscritos pelo recorrente na conclusão 11.ª das alegações:

“11º Por fim, ao revogar a sentença do TAF de Leiria e ao julgar legais os actos que haviam declarado a nulidade da reclassificação profissional e exigido a reposição das remunerações correspondentes às funções efectivamente exercidas pelos trabalhadores reclassificados, o aresto em recurso incorreu em flagrante erro de julgamento, porquanto:

- desrespeita frontalmente a jurisprudência firmada por este Venerando Supremo Tribunal no acórdão de 2 de Fevereiro de 2006;

- atenta frontalmente contra os princípios da boa fé e protecção da confiança, pois as quantias em causa corresponderam ao trabalho prestado e foram recebidos de boa fé;

- traduz um enriquecimento sem causa da entidade demandada à custa dos seus trabalhadores, pois obrigou-os a exercer determinadas funções e depois não lhes paga o trabalho que foi efectuado e que teria de pagar a qualquer outra pessoa que o fizesse levando a que os trabalhadores tivessem que prestar um determinado trabalho gratuitamente:

- interpreta em sentido inconstitucional o art.º 36º do DL n.º 155/92 por violação do direito fundamental à retribuição e por violação do princípio da dignidade da pessoa humana”.

Vejamos.

Comecemos por atentar nos dispositivos legais pertinentes para a resolução do presente caso.

Do DL n.º 497/99, de 19.11 (estabelece o regime da reclassificação e da reconversão profissionais nos serviços e organismos da Administração Pública):


Artigo 3.º
Definições

“1 - A reclassificação profissional consiste na atribuição de categoria e carreira diferente daquela que o funcionário é titular, reunidos que estejam os requisitos legalmente exigidos para a nova carreira.

(…)”.

Do DL n.º 218/00, de 09.09 (procede à adaptação à administração local do Decreto-Lei n.º 497/99, de 19 de Novembro):




Artigo 2.º
Condições de aplicação

“Podem dar lugar à reclassificação e à reconversão profissional as seguintes situações:
a) A criação ou reorganização total ou parcial dos serviços;
b) A alteração de funções ou a extinção de postos de trabalho, originadas, designadamente, pela introdução de novas tecnologias e métodos ou processos de trabalho;
c) A desadaptação ou a inaptidão profissional do funcionário para o exercício das funções inerentes à carreira e categoria que detém;
d) A aquisição de novas habilitações académicas e ou profissionais, desde que relevantes para as áreas de especialidade enquadráveis nas atribuições das respectivas autarquias;
e) O desajustamento funcional, caracterizado pela não coincidência entre o conteúdo funcional da carreira de que o funcionário é titular e as funções efectivamente exercidas;
f) Outras situações legalmente previstas”.


Artigo 5.º
Requisitos

1 - São requisitos da reclassificação profissional:
a) A titularidade das habilitações literárias e das qualificações profissionais legalmente exigidas para o ingresso e ou acesso na nova carreira;
b) O exercício efectivo das funções correspondentes à nova carreira, em comissão de serviço extraordinária, por um período de seis meses, ou pelo período legalmente fixado para o estágio, se este for superior.
2 - O requisito previsto na alínea b) do número anterior pode ser dispensado quando seja comprovado com informação favorável do respectivo superior hierárquico o exercício, no mesmo serviço ou organismo, das funções correspondentes à nova carreira por período não inferior a um ano ou à duração do estágio de ingresso, se este for superior”.


Artigo 6.º
Situações funcionalmente desajustadas

“O prazo previsto no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 497/99, de 19 de Novembro, conta-se a partir da entrada em vigor do presente diploma”.

Do DL n.º 106/02, de 13.04 (estabelece o estatuto de pessoal dos bombeiros profissionais da administração local):


Artigo 16.º
Recrutamento para a carreira de bombeiro municipal

O recrutamento para as categorias da carreira de bombeiro municipal obedece às seguintes regras:
a) Chefe, de entre subchefes com, pelo menos, três anos na categoria, com classificação de Bom e aproveitamento em curso de promoção;
b) Subchefe, de entre bombeiros de 1.ª classe com, pelo menos, três anos na categoria, com classificação de Bom e aproveitamento em curso de promoção;
c) Bombeiro de 1.ª classe e de 2.ª classe, de entre bombeiros de 2.ª classe e de 3.ª classe, respectivamente, com, pelo menos, três anos na categoria, com classificação de Bom e aproveitamento em curso de promoção;
d) De 3.ª classe, de entre bombeiros recrutas, aprovados em estágio com classificação não inferior a 14 valores”.

Artigo 18.º
Estágio

1 - O estágio a que se referem a alínea g) do artigo 15.º e a alínea d) do artigo 16.º tem carácter probatório e visa a formação e adaptação do candidato às funções para que foi recrutado, devendo integrar a frequência de cursos de formação teóricos e práticos directamente relacionados com as funções a exercer.
2 - Podem candidatar-se ao estágio para bombeiro sapador e para bombeiro de 3.ª classe os indivíduos com idade inferior a 25 anos, completados no ano da abertura do concurso, habilitados, respectivamente, com o 12.º ano e o 9.º ano de escolaridade.
3 - O recrutamento dos candidatos ao estágio faz-se mediante concurso de prestação de provas de conhecimentos gerais e provas práticas, precedidas de inspecção médica para avaliar a robustez física dos candidatos e o estado geral de saúde, tendo em vista determinar a aptidão para o exercício das funções a que se candidatam.
4 - A frequência do estágio é feita como recruta, sendo a remuneração correspondente aos índices 75 e 89, respectivamente, quando se trate do estágio para a carreira de bombeiro sapador ou de bombeiro municipal.
5 - A frequência do estágio é feita em regime de contrato administrativo de provimento, nos casos de indivíduos não vinculados à função pública, e em regime de comissão de serviço extraordinária, nos restantes casos, nos termos da lei geral.
6 - O estágio tem a duração de um ano, findo o qual os recrutas são ordenados em função da classificação obtida.
7 - Os recrutas aprovados com classificação mínima de Bom são nomeados definitivamente nos lugares, respectivamente, de bombeiro sapador e de bombeiro de 3.ª classe.
8 - O regulamento geral do estágio, contendo, designadamente, o sistema de funcionamento e a avaliação, é aprovado por despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna, da administração local e da Administração Pública, ouvidas a Associação Nacional de Municípios Portugueses e as organizações sindicais.
9 - Através de regulamento interno, a aprovar pela câmara municipal, pode cada município concretizar as normas previstas no regulamento geral previsto no número anterior”.

[negritos nossos]

Em face do quadro legal acima descrito, que concluir?

Um primeiro aspecto a reter é o de que, se, por um lado, se deve entender que, in casu, a actuação da Administração é vinculada, por outro, o modo como foi disciplinado o regime jurídico da reclassificação e reconversão profissional não é de molde a conferir conteúdo unívoco a essa vinculação. Certamente que esse regime jurídico, ainda que não isento de alguns reparos, não comporta leituras voluntariosas como a que foi efectuada pelo Comandante dos Bombeiros Municipais do Cartaxo na sua informação de 2007, que esteve na base das reclassificações dos associados do A., ora recorrente, como bombeiros municipais. Mas, como é sabido, idêntica questão relativa a reclassificações e reconversões profissionais já deu azo, num passado não muito distante, a distintas orientações neste STA.
Assim, temos os Acórdãos de 15.10.03, Proc. n.º 853/03; de 10.03.04, Proc. n.º 1755/03; e de 23.06.04, Proc. n.º 149/04, os quais, para o que agora mais nos interessa, e em síntese, consideraram que o mero exercício de facto de determinadas funções não pode ser equiparado a um estágio profissional exigido enquanto habilitação profissional, sendo que “tal estágio não se limita a um mero exercício das funções correspondentes ao cargo, estando sujeito a testes e avaliações e a classificação final, tal como se mostra descrito no artº 30º do mesmo diploma. Ou seja, o ingresso na carreira em causa faz-se através da realização de um verdadeiro curso, sujeito a avaliação e classificação, não estando legalmente prevista outra forma de ingresso, nem existe norma expressa que dispense a realização de tal curso ou, na designação legal, estágio” (cfr. Acórdão de 15.10.03, Proc. n.º 853/03). Optando por uma diversa orientação, temos os Acórdãos de 07.10.04, Proc. n.º 288/04; de 26.04.05, Proc. n.º 236/04; e de 01.02.05, Proc. n.º 662/04, os quais, para o que agora mais nos interessa, e em síntese, consideraram “que se fosse exigível aos funcionários a reclassificar que possuíssem estágio para a categoria da carreira a transitar, dado que o estágio se segue sempre a um concurso e apenas é feito para as vagas existentes e às que se preveja que ocorram durante o período de validade do concurso realizado para o efeito (...) - artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 557/99, de 17/12 -, o seu ingresso nessa categoria ocorria pela via normal e não pela da reclassificação, pois que, de acordo com o estabelecido no artigo 31.º do referido Decreto-Lei n.º 557/99, os candidatos aprovados no estágio têm a nomeação garantida, mantendo-se até à sua ocorrência, na situação de estagiários” (cfr. Acórdão de 07.10.04, Proc. n.º 288/04).

Um segundo aspecto a reter é o de que a possibilidade de reclassificação e de reconversão profissional nestas situações de desajustamento funcional afasta o princípio geral do concurso na função pública, pelo que deve ser utilizada de forma parcimoniosa e de molde a não permitir situações iníquas – por comparação com os funcionários que se submetem a um processo de selecção rigoroso e em condições de concorrência – e mesmo fraudulentas.

O que extrair de tudo isto?

Entendemos que a excepcionalidade do regime jurídico da reclassificação e reconversão profissional se deve reconduzir, justamente, ao afastamento do princípio geral do concurso na função pública. Ir mais além, propondo um regime do género do programa de novas oportunidades, abdicando de habilitações académicas e profissionais, não só contraria a lei e os seus propósitos (os funcionários reclassificados ou reconvertidos deverão ter, também eles, uma preparação académica e profissional adequada às funções que exercem, tudo em nome da prossecução do interesse público – vejam-se, entre outros, o art. 5.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 218/02, e do art. 16.º, al. d) e 18.º, n.º 1, do DL n.º 106/02, de 13.04), como, de igual forma, pode conduzir a uma diferença de tratamento sem justificação razoável. Basta pensar que a al. d) do artigo 16.º do DL n.º 106/02 exige, para efeito de recrutamento de bombeiros de 3.ª classe, a escolha de entre bombeiros recrutas, aprovados em estágio com classificação não inferior a 14 valores” (negrito nosso). Como exactamente se afirmou no Acórdão de 15.10.03, Proc. n.º 853/03, o mero exercício de facto de determinadas funções não pode ser equiparado a um estágio profissional exigido enquanto habilitação profissional, uma vez que “tal estágio não se limita a um mero exercício das funções correspondentes ao cargo, estando sujeito a testes e avaliações e a classificação final, tal como se mostra descrito no artº 30º do mesmo diploma. Ou seja, o ingresso na carreira em causa faz-se através da realização de um verdadeiro curso, sujeito a avaliação e classificação, não estando legalmente prevista outra forma de ingresso, nem existe norma expressa que dispense a realização de tal curso ou, na designação legal, estágio”. Evidentemente, é importante ter em consideração o tipo de funções em causa, mas mesmo as funções de bombeiro municipal exigem uma série de conhecimentos técnicos que não são necessariamente adquiridos pela prática no terreno, como, por exemplo, aprendemos recentemente com os incêndios de 2017 e com as opiniões dos especialistas na matéria.

Reportando-nos ao caso dos autos, dois dos associados do A. (A………… e B…………), ora recorrente, possuíam habilitações académicas suficientes mas não a frequência do referido estágio. Os restantes (C…………, D………… e E…………) não possuíam nem uma coisa nem outra. Por este motivo, nenhum deles, nem sequer os dois associados do A. que possuíam as habilitações académicas exigidas, poderiam ter sido reclassificados como bombeiros de 3.ª e de 2.ªclasse, à luz, desde logo, do artigo art. 5.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 218/02. Pelo que o Despacho n.º 04/2009-PC do Presidente da Câmara Municipal do Cartaxo, que revogou o anterior despacho que determinou a reclassificação profissional dos associados do A., ora recorrente, não merece censura. Resta dizer que o Acórdão do STA de 02.02.06, Proc. n.º 1033/05, na parte que é convocada, diz respeito à al. b) do art. 5.º do DL n.º 218/00, e não à sua al. a), relativa à exigência de determinadas habilitações académicas e profissionais (“(…) é de interpretar aquela referência ao exercício de funções correspondentes à nova carreira (…)”).
Como não merece censura a ordem de reposição das verbas indevidamente recebidas. Com efeito, o artigo 36.º do DL n.º 155/92, de 28.07 (que aprovou e definiu as normas legais de desenvolvimento do regime de administração financeira do Estado) reporta-se à reposição de quantias indevidamente recebidas e a verdade é que as quantias foram recebidas de forma ilegal, uma vez que os associados do A., ora recorrente, não preenchiam requisitos legalmente exigidos para a reclassificação profissional em causa.

Cabe ainda mencionar, porque tal é convocado pelo A., ora recorrente, que não se aplica ao caso dos autos o artigo 134.º do CPA/91, designadamente o seu n.º 3, uma vez que este preceito – que admite a possibilidade de um acto nulo produzir alguns efeitos verificadas certas circunstâncias –, aplica-se, justamente, a actos nulos, o que não é o caso dos autos, em que está em causa anulação do Despacho n.º 04/2009-PC do Presidente da Câmara do Cartaxo – não se verificando nenhuma das situações previstas no artigo 133.º, designadamente por não existir nenhum direito à reclassificação e nem ter sido violado o núcleo essencial do direito à retribuição).

Não obstante todas estas conclusões a que chegámos – o Despacho n.º 04/2009 PC, de 06.03.08, do Presidente da Câmara do Cartaxo, não é ilegal, antes o era o despacho de 05.06, por ele revogado (revogação anulatória em virtude da ilegalidade do primeiro despacho) –, poder-se-á equacionar se o resultado a que se chega é justo, tendo em consideração que, ao que tudo indica (não há na matéria de facto nada que indique o contrário), os associados do ora recorrente não estavam de má-fé e exerceram durante algum tempo funções de bombeiros municipais apesar de não ser essa a sua categoria profissional. Se, mais concretamente, se poderá considerar a possibilidade, aventada por alguns doutrinadores, de suavizar o regime do artigo 141.º do CPA91 (Revogabilidade de actos inválidos). A este propósito, e segundo Vieira de Andrade, “talvez não devesse admitir-se livremente, dentro do prazo de recurso contencioso, a anulação de um acto administrativo favorável ou constitutivo de direitos: se o particular estivesse de boa fé e tivesse razões para confiar na legitimidade do acto administrativo, deveria efectuar-se uma ponderação entre os seus ‘direitos’ e o interesse público, procedendo-se à anulação apenas quando o interesse público o impusesse e assegurando sempre, nesses casos, uma indemnização pelos danos causados” (J.J. Vieira de Andrade, “Revogação do acto administrativo”, in Direito e Justiça, vol. VI, 1992, p. 59). A favor do favorecimento da flexibilidade das soluções relativamente à anulação de actos inválidos, Filipa Calvão sustenta que, “também em atenção à ideia da boa fé, o princípio da legalidade não deve ir tão longe que sacrifique todo e qualquer acto inválido. Quer dizer, se o destinatário do acto ou outros interessados estiverem de boa fé – desconhecendo a ilegalidade e não tendo o dever de a conhecer, e sendo esta exclusivamente imputável à conduta da Administração – e já houverem gozado a vantagem atribuída ou estiverem a exercer os poderes ou faculdades por aquele conferidos, a Administração deve ter espaço para ponderar a decisão de revogação anulatória. Se não for essencial para a realização do interesse público, a eliminação do acto anulável não deve ter lugar. Ou, ao menos, impor-se-á que os prejuízos sofridos pelo particular sejam compensados” (cfr. Filipa Urbano Calvão, “Revogação dos actos administrativos no contexto da reforma do Código do Procedimento Administrativo”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 54, pp. 336-7). Ao que tudo indica, ambos os autores parecem admitir um certo poder discricionário à Administração, no sentido de, nas situações mencionadas, não anular o acto ilegal ou prever uma indemnização para compensar os danos sofridos pelos particulares (afirma Filipa Calvão que “isto significa reconhecer na competência de anulação um poder discricionário, a ser exercido, com base na lei e dentro dos limites legalmente estabelecidos, num contexto de ponderação dos interesses públicos e privados envolvidos, por aplicação dos princípios da proporcionalidade e da boa fé. Solução que, de resto, não pode chocar quando se considera a previsão legal de uma faculdade similar em relação aos actos nulos (cfr. art. 134.º, n.º 3, do CPA)” – idem, p. 37). Ora, no caso vertente, a Administração não fez uso de um tal poder discricionário (porventura porque entendeu que não o tinha), não cabendo a este tribunal impor-lhe a não anulação total ou parcial do acto administrativo.

Restaria, então, apreciar a questão do alegado enriquecimento sem causa, pois que o Município do Cartaxo teria beneficiado do trabalho dos associados do ora recorrente, os quais, em virtude da ordem de reposição das quantias indevidamente recebidas (rectius, do diferencial das remunerações recebidas em função da nomeação como bombeiros municipais), teriam trabalhado de forma gratuita ou quase – o que também desrespeitaria o direito ao salário e o princípio da dignidade da pessoa humana. Sucede que este Supremo Tribunal já ensaiou uma via que, alcançando o resultado pretendido – que o trabalho prestado não o tenha sido de forma gratuita ou como se fosse gratuita – sem necessidade de recorrer a este instituto originário do direito privado. Vejamos o que é dito no Acórdão do STA de 03.03.16, Proc. n.º 905/15, o qual também versou sobre a questão de reposição de salários em virtude de revogação de anterior nomeação ilegal:

Temos para nós que as consequências dessa nulidade têm de ser apuradas no âmbito do regime jurídico laboral vigente naquela data, ou seja, antes da entrada em vigor [01/01/2009] do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas [RCTFP].
Previa o artº 83º, nº 1 da Lei nº 59/2008 de 11/09 que aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, que «O contrato declarado nulo ou anulado produz efeitos como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual esteve em execução», assim se consagrando uma ficção legal de validade, ficção esta que já se mostrava consagrada no artº 115º do Código do Trabalho então em vigor e, actualmente no artº 53º da LGTFP «O vínculo de emprego público declarado nulo ou anulado produz efeitos como válido em relação ao tempo em que seja executado» e artº 122º do Código do Trabalho.

Trata-se, pois, de uma nulidade que, apesar de subsistir enquanto se prolongar a prestação de trabalho, não impede que o contrato de trabalho produza os seus efeitos como se fosse válido enquanto o vício não for decretado e a prestação de trabalho não cessar.

E esta solução, pese embora, parecer estar em divergência dogmática com o regime regra da nulidade [artº 134º], acaba por ser a única que responde aos princípios da justiça e da proporcionalidade, e ancora-se de alguma forma no disposto no artº 133º, nº 3 do CPA que prevê a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo de harmonia com os princípios gerais do direito.

E, ao contrário do regime estabelecido no Código Civil para a nulidade e anulabilidade dos negócios jurídicos previsto nos artºs 285º a 294º e, especificamente, no que diz respeito aos efeitos da declaração de nulidade e da anulação previsto no nº 1 do artº 289º do CC, o regime no direito laboral é específico quanto à eficácia e invalidade do contrato de trabalho, bem como quanto ao regime da retroactividade, prevendo-se nos casos em que o contrato de trabalho, apesar de nulo, foi objecto de execução, que a declaração de nulidade só produza efeitos para o futuro e esse futuro pode iniciar-se apenas com o trânsito em julgado da decisão judicial que declarou nulo o contrato ou o acto que lhe deu execução.

Com efeito, trata-se de uma norma [o contrato, enquanto em execução, produz efeitos como se fosse válido em relação a todo esse tempo] que constitui um desvio à regra geral plasmada no artº 289º do CC, por razões óbvias, sendo que aqui a invalidade não tem eficácia retroactiva, obstando apenas à produção de efeitos futuros.

Todavia, durante esse período tudo se passa como se o contrato fosse válido, existindo a tal ficção legal da sua validade, ficção esta que mais do que uma explicação doutrinária do fenómeno, é uma técnica legislativa – cfr. Pedro Romano Martinez, in Direito do trabalho, 2ª ed., Almedina, pág. 469.

Quer isto dizer, até por razões de equidade, que o trabalhador, nestes casos, tem direito às prestações correspondentes ao tempo em que o contrato esteve em execução; ou seja, o trabalho prestado, por imposição da Administração, ao abrigo de um título inválido, deve ser compensado de forma equitativa ao que seria devido a um trabalhador investido no cargo com título válido.

E nem se vislumbram fundamentos de interesse público, no âmbito do direito administrativo [quer em sede do regime de execução de sentença, quer em sede do regime previsto no artº 134º do CPA] que neguem tais direitos, designadamente o respeitante ao pagamento do valor correspondente ao efectivo exercício de funções públicas, mesmo em caso de nulidade do acto jurídico que lhes deu origem.

Estamos, pois, perante uma situação em que a Administração já não pode restituir a prestação laboral da recorrente, pelo que terá de lhe retribuir com um valor correspondente, que deverá, na falta de outros elementos, coincidir com a quantia que ela já recebeu a título de remuneração, ou seja, o valor do vencimento da categoria, como tal recebido pela recorrente.

É, pois, esse o valor correspondente ao que foi prestado e que já não lhe pode ser devolvido em espécie [prestações correspondentes ao tempo em que o contrato esteve em execução], impondo-se a anulação do acto que procedeu à reposição das diferenças salariais recebidas e a condenação da entidade demandada a devolver à recorrente todas as reposições das diferenças salariais recebidas e já efectuadas”.

A orientação aqui firmada deverá valer, mutatis mutandis, para o caso dos autos, a isso não obstando, desde logo, a circunstância de a ele não ser ainda aplicável o DL n.º 59/2008, de 11.09, o qual, no seu artigo 83.º, n.º 1, determinava de forma expressa que “o contrato declarado nulo ou anulado produz efeitos como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual esteve em execução”. Com efeito, trata-se aqui da expressão de um princípio geral que inspira o direito fundamental à retribuição do trabalho (art. 59.º, n.º 1, al. a), da CRP). Princípio geral que já antes daquele diploma encontrava guarida no Código do Trabalho e que, a não ser aplicável também aos trabalhadores da administração pública (in casu, de funcionários da administração local), geraria uma diferença de tratamento inexplicável, injustificada e totalmente injusta. Afinal, o trabalho efectivamente prestado, seja ele por trabalhadores do sector privado, seja ele por trabalhadores da função pública, deverá ser remunerado. De igual modo, a isso não obstando estarmos, no caso vertente, perante actos anulados por ilegalidade, uma vez que, em relação a eles, o dito princípio geral vem suavizar os efeitos retroactivos que tipicamente produzem os actos anulados, só assim se cumprindo o desígnio constitucional de associar o trabalho prestado a uma retribuição.

Em face de todo o exposto, deve concluir-se que os associados do A., ora recorrente, não obstante a ilegalidade dos despachos que os reclassificaram como bombeiros de 3.ª e de 2.ª classe, têm direito às prestações correspondentes ao tempo em que exerceram as funções para que tinham sido nomeados, e isto, na medida em que se deve entender que o trabalho prestado, por imposição da Administração, ao abrigo de um título inválido, deve ser compensado como se o trabalhador estivesse investido no cargo com base num título válido.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se parcialmente a decisão recorrida e julgando parcialmente procedente a acção, anulando-se o acto que ordenou a reposição das quantias salariais e, em consonância, condenando o recorrido no pagamento aos associados do recorrente das quantias por eles recebidas que tenham sido devolvidas a título de reposição de diferenças salariais, acrescidas estas de juros vencidos e vincendos à taxa legal.

Custas pelo recorrente e pelo recorrido na proporção do seu decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário, e dos termos do mesmo, de que beneficia o recorrente.

Lisboa, 8 de Novembro de 2018. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – António Bento São Pedro.