Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0394/18
Data do Acordão:05/03/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:INTIMAÇÃO
INTERESSE DIRECTO
Sumário:É de admitir a revista quando está em causa a legitimidade para requerer dados de saúde de um terceiro por ser questão que este Supremo Tribunal nunca apreciou.
Nº Convencional:JSTA000P23259
Nº do Documento:SA1201805030394
Data de Entrada:04/16/2018
Recorrente:UNIDADE DE SAÚDE MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO/SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA
Recorrido 1:A.........
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO.
A……… intentou, no TAF de Sintra, contra a Unidade de Saúde Maria José Nogueira Pinto – Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, acção pedindo:
“- a intimação da Entidade Requerida a proceder à reprodução e ao envio ao Requerente, para o seu endereço eletrónico, dos seguintes documentos: (I) «[r]registos médicos», (II) «[r]registos de enfermagem», (III) «data e hora de registo de entrada do Senhor Dr. B………., nas instalações da Requerida, no dia 25/08/16, e (IV) data em que a intervenção cirúrgica do Requerido teve início e fim» e (V) «cópia das fotografias que foram enviadas pela Requerida, ao Senhor Dr. B……., bem como (VI) indicação da data e pessoa que as obteve, e (VII) comprovativo do dia, hora e meio (e-mail, telemóvel ou fax) em que as mesmas foram enviadas ao profissional indicado;
- Condenação da Entidade Requerida no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.”

Aquele Tribunal julgou essa pretensão procedente intimando a entidade requerida nos termos pretendidos.

E o TCA Sul negou provimento ao recurso.

É desse acórdão que a Entidade Requerida vem recorrer (artigo 150.º/1 do CPTA).

II.MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III.O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCAs em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O Recorrido requereu a intimação da Requerida para que esta lhe fornecesse determinada documentação e lhe prestasse algumas informações.
Com êxito já que o TAF de Sintra condenou a Requerida a satisfazer a aquela pretensão. Tendo ponderado:
“…
Um terceiro só tem direito de acesso a documentos nominativos, se estiver munido de autorização escrita do titular dos dados ou se demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante, após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação (n.º 5 do artigo 6.° da Lei n.º 26/2016.)
Também o acesso e comunicação de dados de saúde têm um regime especial de acesso previsto no artigo 7.° da Lei n.º 26/2016. O acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de terceiros com o seu consentimento ou nos termos da lei, é exercido por intermédio de médico se o titular da informação o solicitar, com respeito pelo disposto na Lei n.º 12/2005, de 26/01. ….. .
Em todo o caso, os documentos administrativos sujeitos a restrições de acesso são objeto de comunicação parcial sempre que possível expurgar a informação relativa à matéria reservada e os documentos nominativos comunicados a terceiros não podem ser utilizados ou reproduzidos de forma incompatível com a autorização concedida, com o fundamento do acesso, com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização, sob pena de responsabilidade por perdas e danos e responsabilidade criminal, nos termos legais (n.º 2 do artigo 8.° da Lei n.°26/2016).

Quanto ao interesse direto e pessoal terá que se considerar o mesmo suficientemente demonstrado por estar em causa o acesso a informações relativas ao procedimento médico, realizado no dia 25/08/2016, que conduziu à extração de uma unha ao pai do Requerente, uma vez que este se encontra incapacitado, cabendo o Requerente tomar as decisões relativas a esta matéria.
Também se encontra suficientemente demonstrada a existência de um interesse legítimo e constitucionalmente protegido do Requerente, que se consubstancia no direito àquela informação, que lhe assiste na qualidade de interessado da referida informação, consagrado no n.° 2 do artigo 268.° da Constituição da República Portuguesa, para, eventualmente, fazer valer interesses legítimos do próprio titular da informação, que se encontra incapacitado de, por si, o fazer.

Feita a ponderação dos direitos fundamentais em presença, acima identificados, e do princípio da administração aberta, no quadro do princípio da proporcionalidade, teremos que concluir estar demonstrada a titularidade de um interesse direto, pessoal, legítimo … que justifica o acesso à informação pretendido pelo Requerente, o qual deverá fazer-se, como foi requerido, através da reprodução por meios eletrónicos e envio ao Requerente para o seu endereço eletrónico (alínea b) do n.° 1 do artigo 13.° da Lei n.° 26/2016).
Quanto ao acesso e comunicação dos dados de saúde, deve ser transmitida a informação estritamente necessária à realização do interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido que fundamenta o acesso, ou seja, os dados necessários a verificar se foram prestados os cuidados médicos adequados ao doente e, na impossibilidade de apuramento da vontade do titular da informação quanto ao acesso, este terá que se realizar com intermediação de médico (n.°s 2 e 4 do artigo 7.º da Lei n.° 26/2016).

Nada permite, nesta sede, concluir que a Entidade Requerida não venha a cumprir a presente decisão, pelo que não existem, neste momento, motivos para condenar em sanção pecuniária compulsória.
….
A Entidade Requerida pede, no entanto, o reconhecimento da isenção do pagamento de custas, invocando o disposto na al.ª f) do n.º 1 do art.º 4.° do Regulamento das Custas Processuais.
….
Ora, no caso, está em causa o cumprimento pela Entidade Requerida do dever de facultar o acesso a documentos administrativos e não uma atuação da Entidade Requerida no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhe seja aplicável, pelo que não pode reconhecer-se a isenção de custas prevista na al.ª f) do n.º 1 do artigo 4.° do Regulamento das Custas Processuais.”

A Recorrida apelou para o TCA e este negou provimento ao recurso pelas razões que se seguem:
“…
Mas, o que está em discussão neste recurso é a violação do artigo 7º/4 da Lei 26/2016.
E, segundo nos parece (bem), em conjugação com o artigo 6º/5 cit.
Assim, estando em causa elementos da saúde e do sigiloso processo clínico do pai do requerente, bem como o segredo médico, entende a recorrente que o filho ora requerente não tem o interesse exigido no cit. artigo 7º/4: um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido que fundamente o acesso (a vontade de acesso).
Desde já cumpre sublinhar que aquele segredo e aquele sigilo visam apenas proteger o doente e não o médico ou o serviço de saúde. …..
Ora, aqui está claro que a informação pretendida pelo requerente sobre o seu pai …. se destina ao requerente, como filho de alguém doente e incapacitado (em geral), poder ajuizar e acionar ou não acionar as eventuais responsabilidades civil, disciplinar ou criminal do caso. Independentemente do MP, da O.M. ou de outrem.
….
Há, pois, um interesse compósito direto (imediato, atual), pessoal (próprio, seu), legítimo (não ilícito) e constitucionalmente protegido - previsto nos artigos 22º e 268º/2/4 na CRP - que fundamenta o acesso (a vontade de acesso), e que não afronta relevantemente o direito previsto no artigo 26º/1 da CRP (que, aqui, tem um peso e afetação leve, valor de 1, na fórmula de ALEXY), antes pelo contrário.

Portanto, a recorrente não tem razão nesta 1ª questão.

2 – Sobre a violação do artigo 4º/1-f) do RCP
A recorrente, perdendo a ação, foi condenada nas custas processuais, como resulta do artigo 527º do CPC.
Porém, considera estar isenta de custas, ao abrigo do artigo 4º/1-f) do RCP …. .
Mas não tem razão. Este tipo de processo, regulado nos artigos 104º ss do CPTA e concretizador do artigo 268º/2 da CRP, nada tem a ver com os fins estatutários prosseguidos pela requerida na área da saúde ou noutra.
Cumprir o artigo 268º/2 da CRP e a Lei nº 26/2016 não faz parte dos fins estatutários de ninguém, das atribuições legais de qualquer entidade.
É um dever legal e constitucional. Não cabe, assim, na previsão do artigo 4º/1/f) cit.”.

3. É desse Acórdão que a Requerida interpõe recurso alegando estarem em causa duas questões de importância jurídica e social que justiçam a sua admissão; (1) a de saber se “o requerente, terceiro, filho do titular dos dados, tem interesse compósito directo, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido, e que fundamenta o acesso por justificar tal interesse compósito com a salvaguarda de direitos fundamentais como o direito fundamental a responsabilizar terceiros por danos sofridos e o de dar notícia para procedimentos disciplinares ou criminais em defesa ou a favor do seu pai” e (2) a de saber se a intervenção da Requerida neste processo se ajusta aos seus fins estatutários e se, por essa razão, goza de isenção de custas nos termos do disposto do art.º 4.º, n.º 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais

4. As instâncias, como se acabou de ver, responderam de forma unânime e com fundamentação idêntica às referidas questões considerando, no primeiro caso, que o Requerente tinha interesse directo, pessoal e legítimo nas informações e documentos que a Requerida se recusou a entregar-lhe e, por isso, que essa recusa fora ilegal e, no tocante à segunda, que aquela não gozava de isenção de custas.
Todavia, a questão é saber se decidiram bem.
Com efeito, de acordo com o disposto no art.º 7.º da Lei 12/2005:
“1 - O acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de terceiros com o seu consentimento ou nos termos da lei, é exercido por intermédio de médico se o titular da informação o solicitar, com respeito pelo disposto na Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro.
2 - Na impossibilidade de apuramento da vontade do titular quanto ao acesso, o mesmo é sempre realizado com intermediação de médico.
3 - No caso de acesso por terceiros mediante consentimento do titular dos dados, deve ser comunicada apenas a informação expressamente abrangida pelo instrumento de consentimento.
4 - Nos demais casos de acesso por terceiros, só pode ser transmitida a informação estritamente necessária à realização do interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido que fundamenta o acesso.”
Deste modo, parece que, atenta a impossibilidade de apuramento da vontade do titular, o acesso às pretendidas informações e documentação é realizado com intermediação de um médico. O que não aconteceu, in casu, uma vez que aquela intermediação não existiu e foi o Requerente que, na qualidade de filho, solicitou directamente a referida informação e documentação.
Todavia, ficou assente que o pai do Requerente foi vítima de um traumatismo crânio-encefálico grave em 17/11/2016, que o deixou com graves sequelas incapacitantes, e que, desde essa data, as decisões relativas à sua saúde são tomadas pela sua Mulher e pelo Requerente. O que, desde logo, coloca a questão de saber se o Requerente tinha interesse directo, legítimo e pessoal para solicitar as informações e documentação em causa ou se esse pedido deveria ter sido formulado por sua Mãe com intermediação médica. Questão com relevante importância jurídica e social para merecer a admissão da revista,
Acresce que este Supremo Tribunal nunca se debruçou sobre esta questão pelo que é de concluir que a admissão da revista é necessária para uma melhor aplicação do direito.

Decisão
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 3 de Maio de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.