Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0166/20.3BEAVR
Data do Acordão:06/03/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANÍBAL FERRAZ
Descritores:JUROS DE MORA
Sumário:Para os efeitos do artigo 3.º n.º 3 (atualmente, n.º 4) do Decreto-Lei 73/99 de 16 de março, a expressão “dívidas cobertas por garantias reais” deve ser interpretada, extensivamente, por forma a abranger na sua previsão legal, conferente do benefício da redução da aplicável taxa (regra) de juros de mora, não apenas as dívidas cobertas por garantias reais, stricto sensu, nominadas, mas, também, entre outras, as cobertas por penhora, com registo a favor do credor.
Nº Convencional:JSTA000P25991
Nº do Documento:SA2202006030166/20
Data de Entrada:05/15/2020
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ***
Acórdão proferido no Supremo Tribunal Administrativo (STA), com sede em Lisboa;

# I.


O/A representante da Fazenda Pública (rFP), recorre da sentença proferida, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Aveiro, em 2 de abril de 2020, que julgou procedente reclamação de ato/decisão do órgão da execução fiscal, apresentada por A…………, com os demais sinais dos autos, determinando, em consequência, a anulação do ato reclamado e a restituição da quantia peticionada, no valor de 8.875,42 €.

A recorrente (rte) formalizou alegação, terminada com o seguinte quadro conclusivo: «

1- O presente recurso tem por objecto a decisão proferida pelo TAF Aveiro que deferiu a subjacente reclamação e, em consequência, determinou a restituição, ao abrigo do disposto no nº 3 do art. 3º do DL 73/99, de 16 de março, dos juros de mora pagos em excesso.

2- A questão controvertida versa sobre a interpretação do nº 3 do art. 3º do DL 73/99, de 16 de março, no sentido de determinar se a base de incidência deste normativo abrange a penhora.

3- Com efeito, o referido normativo confere um benefício de redução da taxa de juros de mora para 0,5% para as dívidas cobertas por garantia real ou bancária.

4- No capítulo VI do Código Civil (CC) encontram-se identificadas e definidas as garantias especiais das obrigações, dividindo-se estas em garantias de natureza pessoal, como seja a fiança, e as de natureza real como é o caso do penhor e da hipoteca.

5- No elenco aí identificado não se encontra incluída a penhora, a qual vem tratada no capítulo seguinte dedicado ao cumprimento e não cumprimento das obrigações e realização coactiva da prestação.

6- Esta sistematização do Código não é alheia ao conceito de penhora.

7- A penhora consiste num ato de apreensão de bens por autoridade pública, não consubstanciando um direito real de garantia.

8- Neste sentido se pronunciou o AC. TR Guimarães, de 07-10-2018, no proc. 3128/17.4T8VNF-G.G1 - A penhora não é, em sentido rigoroso, uma garantia do crédito (2). É apenas o meio de o efectivar através da intervenção do Tribunal, o meio de obter o cumprimento coercivo da obrigação, consistindo na apreensão do bem – conservação da garantia geral relativamente a um ou mais bens, na medida do necessário à satisfação daquele crédito – para, através dele (venda ou adjudicação), os Tribunais se substituírem ao executado no cumprimento da respectiva obrigação pecuniária.

9- A preferência da penhora sobre as garantias reais posteriormente constituídas decorre naturalmente dos seus efeitos previstos, designadamente, no art. 822º do CC.

10- A doutrina não é consensual relativamente à classificação da penhora como garantia real, por a sua formação ocorrer no âmbito de um processo judicial, e não no decurso de um acto negocial, tendo na sua raiz um direito de crédito sem conexão qualquer com o bem penhorado, não obstante proporcionar ao exequente uma preferência sobre o produto da venda dos bens penhorados.

11- Mas até os defensores de que a penhora constitui uma garantia real reconhecem que não se trata de uma garantia real plena.

12- O crédito reclamado na insolvência que beneficie de uma penhora registada, para os efeitos da sua classificação neste processo, é tido como crédito comum e não como um crédito garantido, por força da conjugação dos artigos 47.º, n.º 4, alínea a) e 140.º, n.º 3 do CIRE.

13- Acresce que, a necessidade que o legislador teve em fazer constar expressamente da lei a equiparação da penhora a garantia, no nº 4 do art. 199º do CPPT, só se justifica aderindo ao entendimento de que a penhora não constitui uma garantia.

14- De resto, o nº 3 do art. 3º do DL 73/99, de 16 de março especifica as garantias susceptíveis de beneficiar desta redução de juros – as garantias reais e bancária, donde se extrai que o referido normativo não pretende abranger a totalidade das garantias.

15- E tal como foram especificadas outras garantias, acaso o legislador pretendesse incluir no nº 3 do art. 3º do DL 73/99, de 16 de março a penhora, certamente também ela teria sido especificada.

16- Não o tendo sido, e não fazendo a penhora parte do elenco das garantias reais definidas no Código Civil, porque de uma verdadeira garantia real não se trata, o nº 3 do art. 3º do DL 73/99, de 16/03 deve ser interpretado no sentido de não abranger no seu âmbito de incidência a penhora, ainda que a mesma seja susceptível de constituir garantia idónea.

Nos termos vindos de expor e nos que V.ªs Ex.ªs, sempre mui doutamente, poderão suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue a reclamação totalmente improcedente, como se nos afigura estar mais consentâneo com o

Direito e a Justiça. »


*

Não houve contra-alegação.

*

O Exmo. Procurador-geral-adjunto emitiu parecer, em que, após indicação de doutrina e jurisprudência relevantes e consonantes, conclui dever ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida na ordem jurídica.

*

Com dispensa de vista, dada a natureza urgente do processo, compete conhecer e decidir.

*******

# II.


Na sentença, em sede de julgamento factual, vem expresso: «

3.1. Factos provados

1. Foi instaurado contra o Reclamante o PEF nº 0051200901047582, por dívidas de IRS/2005, na quantia exequenda de 28.304,03 € (fls. 4 e 35 – certidão de dívida);

2. A dívida tributária executada foi impugnada judicialmente (por acordo, artigo 1.º da reclamação e 2.º da resposta à reclamação).

3. Em 12/10/2010, foi registada penhora a favor da Fazenda Pública sobre o prédio urbano do Reclamante situado em ……., lote ………, inscrito na matriz da freguesia de ……….., concelho de Aveiro, sob o artigo 2064 (fls. 13 - certidão permanente, Registo Predial On-Line).

4. Em 16/9/2019, na sequência da improcedência da impugnação judicial, o Reclamante pagou a dívida exequenda no valor de 45.945,31 €, dos quais 17.750,84 € em juros de mora (fls. 4, doc. 1 p.i.).

5. Por requerimento de 17/9/2019, o Reclamante dirigiu reclamação graciosa ao Chefe de Serviço de Finanças de Aveiro, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, contra a liquidação dos juros de mora, pedindo a devolução do montante pago em excesso (fls. 17 SITAF, reclamação graciosa).

6. Em 19/11/2019, por despacho da Chefe do Serviço de Finanças de Aveiro, o requerimento foi indeferido com a fundamentação que abaixo se reproduz (fls. 17 – despacho e informação do Serviço de Finanças de Aveiro)

“Em nome dos SP's A……… e B………… NIF's ……. e …….., respetivamente, foi instaurado em 2009-08-20, o PEF 0051200901047582, proveniente de dívidas de IRS do ano de 2005, no valor de € 28.304,32.

Antes da referida instauração, foi apresentada reclamação graciosa à qual coube o n.º 0051200904001087, tendo a mesma sido deferida parcialmente.

Da decisão do processo de contencioso, foi a liquidação anulada parcialmente no valor de 744,24.

Por iniciativa do Serviço de Finanças, em 2010-10-15 foi penhorado o artigo urbano 2064, da freguesia de …………

Para efeitos de suspensão do PEE nos termos do n.º 1 do art.º 169.º do CPPT, foi considerada como garantia a penhora do já referido imóvel, a pedido do executado, com intenção de impugnar a liquidação em causa.

Em 2011-01-03, foi apresentada impugnação judicial, à qual coube o n.º 0051201103000010.

Por decisão judicial de 2019-02-21, foi a impugnação considerada improcedente.

A fim de desonerar o artigo penhorado, o executado efetuou o pagamento da dívida através da guia n.º 1910210051721410016777, em 2019-09-16.

O valor constante da guia de pagamento inclui juros de mora calculados à taxa normal, porém o executado não se conforma com tal valor pago por o respetivo PEE se encontrar garantido por penhora de um imóvel. Por requerimento apresentado em 2019-09-18, vem o executado requerer a devolução do montante dos juros pagos em excesso, por entender que a penhora constitui uma garantia real, pelo que os juros de mora deveriam ter sido reduzidos a metade nos termos do art.º 3.º do DL 73/99 de 16/3.

O n.º 4 do art.º 3(6).º do DL 73/99, de 16/03, prevê a redução da taxa de juros a metade, para as dívidas cobertas por garantias reais constituídas por iniciativa da entidade credora ou por ela aceites, e para as dívidas cobertas por garantia bancária.

O Ofício-Circulado 60009, de 21/05 da DSJT, vem esclarecer quais as garantias que possuem idoneidade para serem consideradas garantias reais nos termos previstos no diploma antes mencionado, referindo que (...) "A garantia real a constituir a favor do estado pode constituir a forma de hipoteca voluntária/legal ou penhor."

No caso em apreço, foi efetuada a penhora do imóvel do executado, para garantia da dívida exequenda e do acrescido, não tendo a penhora de imóveis sido incluída na tipologia de garantias reais, de acordo com a instrução administrativa antes mencionada, pelo que deverá ser indeferido o pedido do requerente. É o que me cumpre informar.

A consideração superior.”

7. Em 25/11/2019 o Reclamante foi notificado do despacho mencionado 6 (fls. 17).

8. Em 10/12/2019 deu entrada no Serviço de Finanças de Aveiro a presente reclamação judicial (fls. 4, carinho no canto superior direito da p.i.).

9. Em 20/2/2020 a reclamação judicial deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro (fls. 1).

(…). »


***

A única questão, de direito, a solucionar, neste recurso jurisdicional, conecta-se com a determinação de se penhora, devidamente registada, pode ser (ou não) abrangida pela figura das “dívidas cobertas por garantias reais”, desde sempre, inscrita no artigo (art.) 3.º do Decreto-Lei (DL.) n.º 73/99 de 16 de março (Regime de Juros de Mora das Dívidas ao Estado e Outras Entidades Públicas (RJMDEOEP).); até à alteração produzida pelo art. 79.º n.º 3 do DL. n.º 32/2012 de 13 de fevereiro (Com efeitos reportados a 1 de janeiro de 2012.), no respetivo n.º 3 e, após, no n.º 4, mas, em ambos os casos, permanecendo ligada à possibilidade de redução (0,5% e metade, respetivamente) da taxa (normal), aplicável, para o cálculo de juros de mora, em primeira linha, por dívidas ao Estado.

A sentença recorrida, depois de alongada exposição de fundamentos doutrinais e da jurisprudência, pretérita, deste STA, concluiu que, in casu, a penhora sobre um imóvel, propriedade do reclamante, legalmente registada a favor da FP, cujos serviços competentes promoveram e aceitaram como garantia idónea, para efeitos de suspensão de processo executivo, permitia a este beneficiar da redução, no pagamento que efetuou da quantia exequenda e demais acréscimos legais, prevista no n.º 3 do art. 3.º do DL. 73/99 de 16 de março, quanto aos juros de mora liquidados. Não obstante a diversidade e acerto dos argumentos invocados, a rte insiste, com as mesmas razões que foram chumbadas, assacando errado julgamento, por parte da decisão sob apreciação.

Porque a matéria deste dissenso, já, mereceu abordagens e veredictos deste Supremo Tribunal, porque com as mesmas e os mesmos continuamos a identificar-nos, deixando de parte a querela, doutrinária (muito interessante), em torno do que são e quais as “garantias reais”, bem explicada e resolvida na sentença recorrida, mas cujo conteúdo não vemos necessidade de, aqui, reproduzir, reiteramos o entendido no acórdão, do STA, de 14 de setembro de 2011 (0203/11), bem como, no, seu predecessor (próximo), aresto de 20 de dezembro de 2006 (0886/05) (Ambos disponíveis no sítio www.dgsi.pt. Quanto ao segundo, registe-se que embora estivesse em causa a existência de um arresto de bens, a argumentação desenvolvida não deixa dúvidas quanto à identidade com a penhora; aliás, aquele sempre pode (e deve) ser convertido nesta.).

Em conformidade, continuamos a afirmar que para os efeitos do art. 3.º n.º 3 (atualmente, n.º 4) do DL. 73/99 de 16 de março, a expressão “dívidas cobertas por garantias reais” deve ser interpretada, extensivamente, por forma a abranger na sua previsão legal, conferente do benefício da redução da aplicável taxa (regra) de juros de mora, não apenas as dívidas cobertas por garantias reais, stricto sensu, nominadas, mas, também, entre outras, as cobertas por penhora, com registo a favor do credor. Efetivamente, esta proposição permanece atual, porquanto, “como se assinala no seu preâmbulo (do DL. 73/99), pretendeu-se criar um incentivo à constituição de garantias reais por iniciativa ou com a colaboração dos devedores, ou de garantias bancárias, traduzido numa redução da taxa de juros de mora a metade.

Ou seja, oferecendo-se uma taxa de juros mais baixa, pretende-se garantir duma forma mais eficaz e efectiva o pagamento das dívidas ao Estado.

O arresto, consistindo numa apreensão judicial de bens destinada a garantir a cobrança dos créditos tributários e do acrescido (juros e custas) e sendo convertido em penhora, independentemente de qualquer despacho, se o pagamento não for efectuado (artigo 214.º CPPT), e tendo, por outro lado, os mesmos efeitos da penhora, a nível da oponibilidade a terceiros, na medida em que incide sobre bens determinados e ao seu titular é conferida preferência sobre qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior, deve ter-se por abrangido na estatuição do n.º 3 do art.º 3.º daquele diploma legal.

É que, pelo arresto, independentemente da sua qualificação jurídica, e a par dos direitos reais de garantia propriamente ditos e previstos na lei, o Estado obtém garantia plena e segura de que será pago.”.

Antes de terminar, um breve apontamento para dizer que, o sumário da decisão jurisprudencial referenciada na conclusão 8, não nos merece reparo algum, nem conflitua com o decidido neste aresto (com o mesmo conteúdo, a rte poderia ter citado centenas). Sobre o teor da conclusão 12, da sentença recorrida, respigamos o seguinte: “…, a razão da não atendibilidade da penhora e da hipoteca judicial no âmbito do processo de insolvência nada tem que ver com a maior ou menor função de garantia da penhora comparativamente às garantias reais, mas por razões de equidade ou igualdade dos credores da massa insolvente.”. Por outras palavras, os argumentos que se invocam para a defesa de determinadas posições jurídicas não podem esquecer as especificidades dos institutos jurídicos/enquadramentos legislativos onde os mesmos se inscrevem e gravitam; na interpretação das normas fiscais, importa, em primeira linha, operar com a ferramenta que constitui “o pensamento legislativo”.


*******

# III.


Pelo exposto, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, acordamos negar provimento ao recurso.

*

Custas a cargo da recorrente.

*

[Elaborado em computador e revisto, com versos em branco]

**********************************************************************


[Pela Exma. Senhora Conselheira Isabel São Pedro, na condição de 1.ª adjunta e porque lhe é impossível a assinatura digital, por, ainda, não ter acesso ao SITAF, foi-me transmitido, enquanto relator, voto de conformidade, com os fundamentos e a decisão supra – artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março.]

**********************************************************************

Lisboa, 3 de junho de 2020. – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz (relator) – Maria Isabel São Pedro Soeiro – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.