Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:03373/07.0BELSB 0644/17
Data do Acordão:05/21/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
JUÍZO CONCLUSIVO
Sumário:Não constitui juízo conclusivo a menção, no probatório, a um facto indeterminado ou incerto na medida em que não venha acompanhada de qualquer juízo de valor.
Nº Convencional:JSTA000P25945
Nº do Documento:SA12020052103373/07
Data de Entrada:09/06/2017
Recorrente:A.....................
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. A………., devidamente identificado nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do Acórdão do TCAS, de 16.02.17, que decidiu:

(i) Negar provimento ao recurso interposto pelo autor;

(ii) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo réu, revogar a sentença recorrida e condenar o mesmo a pagar ao autor a quantia de € 11.091,78, acrescida de juros de mora, desde a data da sentença até integral pagamento”.

Na origem do recurso interposto para o TCAS esteve a sentença do TAC de Lisboa, de 25.09.13, que decidiu do seguinte modo: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a presente acção parcialmente procedente, e, consequentemente, condena-se o R., Estado Português, a pagar ao A. a quantia de € 56 236,01, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento”.

2. O A., ora recorrente, apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. 556):

“a) A definição do que deve ser entendido por matéria conclusiva, tratando-se de questão divergente na doutrina e na jurisprudência, constitui questão juridicamente relevante, mostrando-se claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, pelo que se deve por verificado um dos requisitos previstos no artigo 150º nº 1 do CPPA;

b) O ponto 20 do probatório fixado na sentença de 1.ª Instância não constitui matéria meramente conclusiva cabendo o apuramento se o é, ou não é, no campo da interpretação e aplicação do disposto no artigo 607º nºs 3 e 4 do CPC;

c) A proposição constante daquele ponto não se reconduz ao uso de conceitos normativos de que dependa a solução do caso, no plano jurídico, contendo um substrato factual consistente que deve ser interpretado em conexão com o restante acervo factual provado como consta da fundamentação de fls. 360 e seguintes;

d) Decidindo-se, como se espera, que a referida matéria não tem natureza conclusiva, devem retirar-se as necessárias consequências para o objeto do presente processo, nomeadamente ao que toca ao valor da indemnização fixada que no acórdão recorrido se reduziu ao valores constantes do auto de arresto em contrário do que se entendeu naquele ponto;

e) A definição de qual o correto critério para a fixação de indemnização em dinheiro pelos prejuízos decorrentes dos extravio de bens confiados a fiel depositário e pelos quais é responsável o Estado Português, nomeadamente se a indemnização se deve resumir ao valor constante de auto de arresto e/ou de penhora, ou se se devem ter em conta outros elementos constantes dos autos, ou fixá-la equitativamente ou relegá-la para incidente de liquidação, constitui também questão juridicamente relevante e claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, verificando-se um dos requisitos da revista excecional, prevista no nº 1 do artigo 150º do CPPA;

f) O valor dos bens constantes dos autos de arresto e/ou de penhora é meramente aproximado como emerge dos artigos 406º nº 2 e 849º nº 1 do pretérito CPC e dos artigos 391º nº 2 e 666 nº 1 do NCPC, não podendo atribuir-se relevância absoluta para efeitos de fixação da indemnização pelos prejuízos emergentes do extravio dos objetos constantes daqueles autos;

g) Nos presentes autos, o denominado “louvado” foi apenas um funcionário judicial, sem quaisquer competências próprias de avaliador e o próprio mandatário do requerente do arresto, presente na diligência, declarou que todos os objetos estavam em estado novo ou porque tinham sido adquiridos recentemente ou porque estavam em estado de grande conservação;

h) Dos pontos 21 a 36 do probatório da sentença de 1.ª Instância consta o valor de aquisição neles referidos, algo que não foi questionado pelo Réu nem pelo acórdão recorrido, pelo que, – e também considerando o ponto 20 daquele probatório “caso seja revogado o decidido a propósito no aresto sob recurso, – uma correta interpretação e aplicação do disposto nos artigo 562º e 566º do CC, imporá que o valor indemnizatório seja fixado em tanto quanto ali consta, ou próximo disso ou, em alternativa, ser relegado o respetivo apuramento para incidente de liquidação, nos termos do artigo 609º nº 2 do CPC;

i) Ao acórdão recorrido imputa-se, como resulta do exposto, a violação por erro de interpretação e de aplicação do disposto nos artigos 607º nºs 3 e 4 do CPC e 562º e 566º do CC, a interpretar e aplicar nos termos propugnados na presente alegação e respetivas conclusões.

Decidindo-se nos termos expostos e com tanto quanto V. Exas. doutamente suprirem, será concedida a revista, com as legais consequências, e fazendo-se a habitual Justiça!”.

3. O R. Estado Português, aqui representado pelo MP, produziu contra-alegações, concluindo-as do seguinte modo (cfr. fls. 569 e ss.):

“1. O recurso de revista vem interposto pelo autor, ora recorrente, do douto acórdão deste TCAS, na parte em que absolveu o Estado parcialmente do pedido, reduzindo a indemnização em que o Estado fora condenado na primeira instância, no valor de 56.236,01 euros, mais juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento, para 11.091,78 euros, mais juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento.

2. As duas questões suscitadas nas alegações dizem respeito a matéria de facto pelo que não cabem no âmbito do recurso de revista (artº 150º nº 4 do CPTA).

3. A primeira questão reside em saber se o ponto 20 da BI fixada na primeira instância, contém matéria de facto conclusiva ou matéria de facto a relevar nos termos dos nºs 3 e 4 do artº 607º do CPC não existindo qualquer matéria de direito em apreciação;

4. A segunda questão é também de facto, pois pretende-se pôr em causa a base instrutória que fixou o valor dos bens constantes do auto de arresto, ao pretender que tais valores não são os valores adequados.

5. Neste recurso o recorrente não impugna o acórdão por errada interpretação ou aplicação da lei, portanto, não deverá o presente recurso de revista ser admitido.

6. A hipotética aplicabilidade dos invocados artºs 562º e 566º do CC, bem como do artº 609º do CPC, sempre dependeria da impugnação e alteração da matéria de facto já fixada, o que não cabe no âmbito deste tipo de recurso.

7. Nos artºs 21 a 36 da BI transcrevem-se, apenas, facturas e outros documentos apresentados pelo autor, a grande maioria elaborados muitos anos depois dos bens terem sido comprados e arrestados, não tendo ficado provado que os bens constantes do auto de arresto tinham aquele valor à data da elaboração deste.

8. Assim, os referidos documentos, constantes da base instrutória, são absolutamente irrelevantes para dos mesmos se extrair o real valor dos bens arrestados.

9. Os valores dados aos objectos constantes do auto de arresto, que não foram impugnados pelos interessados na altura da sua elaboração, correspondem aos valores a acautelar pelo fiel depositário, sendo que o Estado apenas pode, quando muito, ser responsabilizado pelos valores aí fixados.

10. Caso seja recebido o acórdão impugnado deverá ser mantido, mormente na parte em que desconsiderou o facto constante do ponto 20. da BI por ser meramente conclusivo, bem como na parte em que considerou o valor dos bens arrestados, o constante do auto de arresto.

Assim decidindo, farão Vossas Excelências a Costumada Justiça”.

4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 20.06.17, veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

“(…)

3. Como se vê, a única questão que o Recorrente coloca nesta revista é a de saber se o TCA decidiu bem quando, desvalorizando a importância dos documentos juntos ao processo e do teor de determinados depoimentos, entendeu que na valorização dos bens arrestados se devia atender apenas ao que constava do auto de arresto e não àqueles documentos ou depoimentos, tanto mais quanto era certo que, por um lado, destes resultava o seu preço enquanto novos quando era certo que os bens arrestados eram usados e, por outro, os valores indicados no auto de arresto não foram contestados aquando da sua realização.

O que quer dizer que o que o Recorrente quer é ver reapreciada a questão de saber se, para efeitos do cálculo do valor indemnizatório, só são atendíveis os valores dos bens que constam no auto de arresto ou se nesse cálculo também se deve atender à prova que for feita em julgamento. As instâncias, como vimos, divergiram nessa matéria.

Ora, essa questão é de importância jurídica fundamental não só porque se relaciona com o critério a adoptar naquele cálculo indemnizatório, do qual podem resultar resultados muito diferenciados, como porque pode pôr em causa a justiça da indemnização a atribuir.

Questão que é susceptível de se replicar em inúmeros casos.

Finalmente, ainda se dirá que a divergência de julgamento ocorrida nas instâncias reforça também a necessidade da intervenção do STA com vista a uma melhor interpretação aplicação do direito”.

5. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto:

Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar as questões suscitadas pelo ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, relacionadas com duas alegadas questões de direito, assim por ele sintetizadas:

(i)a) A definição do que deve ser entendido por matéria conclusiva (…)”; e, “d) Decidindo-se, como se espera, que a referida matéria não tem natureza conclusiva, devem retirar-se as necessárias consequências para o objeto do presente processo, nomeadamente ao que toca ao valor da indemnização fixada”;

(ii) “(…) se a indemnização se deve resumir ao valor constante de auto de arresto e /ou de penhora, ou se se devem ter em conta outros elementos constantes dos autos, ou fixá-la equitativamente ou relegá-la para incidente de liquidação”.

Vejamos se lhe assiste razão.

2.2. Relativamente à primeira questão, atentemos no que é dito no acórdão de que se recorre:

Importa referir, desde já, que a matéria vertida no ponto 20) do probatório – «Alguns dos bens em referência tinham um valor muito superior ao que do auto de arresto se entendeu fazer constar» – é manifestamente conclusiva e, por isso, não pode ser considerada”.

Argumenta o ora recorrente, em síntese, que “c) A proposição constante daquele ponto não se reconduz ao uso de conceitos normativos de que dependa a solução do caso, no plano jurídico, contendo um substrato factual consistente que deve ser interpretado em conexão com o restante acervo factual provado como consta da fundamentação de fls. 360 e seguintes”.

De mencionar, apenas, o teor do primeiro quesito da base instrutória (cfr. fl. 90):

1.º Os bens em referência nos autos, tinham um valor real muito superior ao que do auto de arresto se entendeu fazer constar?”.

A este quesito o TAC de Lisboa respondeu (cfr. fl. 360): “Provado que alguns dos bens em referência nos autos, tinham um valor real muito superior ao que do auto de arresto se entendeu fazer constar” – passando esta afirmação a constar do ponto 20 da matéria de facto assente.


Retomando o acórdão recorrido, no mesmo afirma-se que a matéria vertida no ponto 20. da matéria de facto é manifestamente conclusiva, pelo que não poderia ser considerada. Em função disso, o TCAS julga de novo a matéria de facto dada por assente pela 1.ª instância, afastando o facto 20. tido como conclusivo na medida em que integrador de um juízo de valor. Solução que lhe permitiu, a final, concluir no sentido de que o valor dos bens em causa é o que consta no auto de arresto, o que o ora recorrente contesta.

É sabido que não podem constar do probatório juízos de valor sobre factos. Os juízos de valor reportam-se já à apreciação do mérito da causa constituindo questão de direito e não questão de facto. Sucede que no caso dos autos, e, mais concretamente, no que respeita ao ponto 20. da matéria de facto, este último não encerra qualquer valoração, neste caso, jurídica, sobre factos. No referido ponto é apresentado um facto ainda que indeterminado ou incerto – na medida em que não identifica os bens e nem qual o seu valor exacto. Ora, a indeterminação de um facto não significa que se tenha passado de um plano ontológico para um plano jurídico-axiológico.
Por este motivo, não podemos acompanhar o acórdão recorrido quando qualifica a matéria contida no ponto 20. da factualidade provada como matéria conclusiva e concomitantemente o retira do probatório. Assim sendo, devem os presentes autos baixar ao TCAS para que, novamente, seja julgada a matéria de facto – dela não se podendo afastar o ponto 20. –, e, em consequência, para que seja refeito o juízo sobre o valor dos bens.


2.3. Relativamente à segunda questão, o seu conhecimento fica prejudicado pelo tratamento dado à primeira questão, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º e 140.º do CPTA.



III – DECISÃO


Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao presente recurso, devendo os autos baixar ao TCAS para os fins supra indicados.


Custas pelo recorrido.

Lisboa, 21 de Maio de 2020. - Maria Benedita Urbano (relatora) - Madeira dos Santos - Carlos Carvalho.