Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01349/02
Data do Acordão:09/25/2003
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:VÍTOR GOMES
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
DIREITO DE ESTRANGEIROS.
CONVENÇÃO DE APLICAÇÃO DO ACORDO DE SCHENGEN.
PRINCÍPIOS GERAIS DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO.
VIOLAÇÃO DE LEI.
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM.
FUNDAMENTAÇÃO DO ACTO ADMINISTRATIVO.
Sumário:I - O princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos (art. 4º do CPA) não serve de referente autónomo de apreciação da validade dos aspectos vinculados do acto administrativo.
II - No procedimento de autorização de residência de estrangeiros, constando o interessado do "sistema de informações Schengen" como não admissível no "espaço Schengen", por iniciativa de outro Estado, não incumbe à Administração nacional fazer qualquer juízo próprio sobre o bem fundado dessa indicação, para efeito do disposto na al. d) do artº 3º da Lei nº 17/96, de 24 de Maio.
III - A inclusão de um estrangeiro na "lista de inadmissíveis" não tem carácter perpétuo ou incontrolável. A conservação dos dados no Sistema de Informação Schengen é feita por um tempo máximo, variável consoante a natureza dos dados (art.s 112º e 113º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen) e o interessado pode exigir a rectificação ou a eliminação de dados viciados por erro de facto ou de direito (art. 110º da CAS) ou instaurar, no território de cada Parte Contratante, uma acção que tenha por objecto a rectificação ou a eliminação da informação (art. 111º da CAS).
IV- O art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não garante a qualquer estrangeiro o direito de residir num país signatário da Convenção a pretexto de aí desenvolver a vida familiar.
Nº Convencional:JSTA00059577
Nº do Documento:SA12003092501349
Data de Entrada:08/05/2002
Recorrente:A...
Recorrido 1:MINAI
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC CONT.
Objecto:DESP MINAI DE 2002/07/05.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
Legislação Nacional:CPA91 ART4 ART124 ART125.
L 17/96 DE 1996/05/24 ART3 D.
RSTA57 ART67.
Legislação Comunitária:CONVENÇÃO DE APLICAÇÃO DO ACORDO DE SHENGEN ART5 ART19 ART21 ART25 N1 ART111 ART112 ART113 ART96.
Jurisprudência Internacional:CEDH ART8.
Referência a Doutrina:IRINEU CABRAL BARRETO A CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM 2ED PAG33 PAG188.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo (1ª Subsecção) do Supremo Tribunal Administrativo
1. A..., de 40 anos de idade, natural da República da Índia, residente em Camarate, interpõe recurso do despacho do Ministro da Administração Interna de 5 de Julho de 2002 que lhe indeferiu o pedido de autorização de residência, ao abrigo do regime de regularização extraordinária estabelecido pela Lei nº 17/96, de 24 de Maio.
Alega o seguinte:
1. O recorrente entrou em Portugal em data anterior a 25 de Março de 1995.
2. O recorrente, no ano de 1996, formulou o competente pedido de concessão de autorização de residência, pedido que viria a ser admitido.
3. Por deliberação da Comissão Nacional para a Regularização Extraordinária de 15 de Março de 2000, foi recusada a admissão do processo de legalização do recorrente, relativamente à qual o recorrente apresentou recurso hierárquico junto de junto de Sua Excelência o Ministro da Administração Interna, sobre o qual recaiu a decisão ora recorrida.
4. O recorrente não se conforma com esta decisão de indeferimento, em virtude de considerar que reúne todos os requisitos legais para beneficiar da legalização da sua situação de permanência em Portugal ao abrigo da Lei n°. 17/96 de 24 de Maio.
5. Com efeito, o recorrente, há largos anos, foi à Alemanha, onde permaneceu um curto período de tempo, tendo sido abordado por entidades policiais, tendo-lhe na altura sido indicada uma morada, para regularizar a sua situação em território alemão.
6. No entanto, e uma vez que não pretendia ficar a residir em território alemão, abandonou voluntariamente esse País, não mais aí tendo regressado.
7. Com efeito, a informação indicada pelo Estado Alemão prende-se com a permanência ilegal em território alemão e não com qualquer ilícito de índole criminal, o que terá de ser devidamente ponderado no âmbito do presente pedido de concessão de autorização de residência formulado pelo recorrente.
8. Mais acresce que sobre os factos que originaram essa indicação já decorreram largos anos.
9. Aliás, de qualquer forma, parece não se coadunar com a ratio do sistema a manutenção dessa situação de exclusão por um tão largo período de tempo.
10. Com efeito, a ordem jurídica, mais precisamente o direito dos estrangeiros, não adopta soluções estanques perpetuadas no tempo, sob pena de determinadas situações se tornarem ad aeternum.
11. Vejamos, a título de exemplo, a previsão normativa da alínea c) do artigo 3.° da Lei n.° 17/96, de 24 de Maio.
12. Na verdade, não poderão beneficiar de regularização extraordinária os cidadãos estrangeiros, aos quais tenha sido aplicada uma decisão de expulsão durante o período decretado pela mesma para interdição em território nacional.
13. Assim, se a um cidadão estrangeiro foi aplicada uma pena de expulsão do território nacional por um período de 3 anos, esse cidadão, apenas não poderá entrar em território nacional durante esses mesmos três anos, bem como, de acordo com o previsto na supracitada disposição legal, não poderá, durante três anos a contar da data da respectiva decisão, beneficiar de regularização.
13. Assim, se a um cidadão estrangeiro foi aplicada uma pena de expulsão do território nacional por um período de três anos, esse cidadão, apenas poderá entrar em território nacional durante esses mesmo três anos, bem como, de acordo com o previsto na supracitada disposição legal, não poderá, durante três anos a contar da data da respectiva decisão, beneficiar de regularização extraordinária.
14. Em suma, não se contesta o facto de não beneficiarem de regularização extraordinária, as pessoas que tenham sido indicados por qualquer das partes da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen para efeitos de não admissão, mas apenas o facto de essa situação permanecer sem qualquer limite temporal.
15. É destituído de qualquer fundamento a presente decisão de indeferimento que viola o artigo 4° do C.P.A., pois não pode a Administração negar ao recorrente, que está radicado em Portugal, desde 1995, a trabalhar, tendo toda a sua vida aqui organizada e estabilizada, o direito de permanecer em território nacional.
16. Com efeito, o nosso sistema jurídico, nomeadamente, o direito dos estrangeiros não se coaduna com soluções ad eternum.
17. Não foi esta decerto a vontade do legislador, uma vez que toda a ratio do sistema aponta em sentido contrário, ao estabelecer limitações temporais para várias situações correlacionadas.
18. Mais acresce que a decisão de indeferimento bule com os princípios previstos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente com o artigo 8° que apela ao respeito por " um justo equilíbrio entre os interesses em confronto, a saber o direito do recorrente ao respeito da sua vida familiar e privada e a protecção da ordem pública e a prevenção de infracções penais ".
19. Com efeito, a presente decisão recorrida é claramente violadora dos direitos reais e profissionais que cabem ao recorrente.
20. Na realidade, a proposta de indeferimento apenas tem razão de ser se for necessária para acautelar a segurança nacional ou pública, o bem estar económico do País, a defesa da ordem e prevenção de infracções penais, a protecção da saúde e da moral ou a defesa dos direitos e liberdades de terceiros, cfr. o n.° 2 do artigo 8.° da CEDH.
21. Mais se diga que a Administração, no exercício do poder discricionário, não se encontra à margem dos princípios gerais de Direito Administrativo, nomeadamente, do princípio da legalidade, o que proíbe a motivação da acto fundada em critérios subjectivos e casuísticos expressamente invocados em sede de fundamentação.
22. Na decisão de indeferimento não existiu, uma adequada ponderação dos vários interesses em questão, pelo que, se revela inconveniente e inoportuna a conservação da decisão ora recorrida, em homenagem ao dever de boa administração.
23. Por outro lado, a fundamentação do indeferimento do pedido de concessão de autorização de residência constante do despacho recorrido não pode deixar de se equiparar a falta de fundamentação, nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 125.° do C.P.A., uma vez que os fundamentos adoptados são obscuros, pois não esclarecem concretamente a motivação do acto, violando o preceituado no n.° 1 do artigo 125.° do C.P.A., no n.° 1 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 256-A/77 e n.° 3 do artigo 267.° da C.R.P.
A autoridade recorrida conclui nos termos seguintes:
I. O princípio "tempus regit actum" impõe que a legalidade do acto impugnado deva ser apreciada tendo em conta a situação fáctica e jurídica existente no momento da sua prolacção, sendo irrelevante o novo documento, com data posterior àquele, apresentado pelo Recorrente após a petição de recurso.
II. O despacho impugnado contenciosamente, que indeferiu o pedido de regularização extraordinária do Recorrente, por se encontrar abrangido pela causa de exclusão prevista no artigo 3°, alínea d), da Lei n.° 17/96, de 24 de Maio - ter sido indicado pelas Autoridades do Estado Alemão, para efeitos de não admissão no Espaço Schengen - não ofende qualquer preceito constitucional ou legal.
III. A decisão recorrida, através da qual foi recusada a regularização extraordinária do Recorrente, foi praticada no exercício de um poder vinculado e não discricionário, decorrente da Lei n.° 17/96, que aprovou uma medida de carácter político e extraordinário, dentro dos limites constitucionais.
IV. A Administração, ao proferir o acto impugnado contenciosamente, no qual considerou o então Requerente, ora Recorrente, abrangido pela causa de exclusão prevista no artigo 3°, alínea d), da Lei n.° 17/96, de acordo com a prova existente no processo), nada mais fez do que cumprir o dever de boa administração consagrado no artigo 4° do CPA, limitando-se, como é seu dever, a cumprir a lei.
V. A inclusão de um estrangeiro na lista de inadmissíveis não tem carácter perpétuo, como decorre do artigo 112° da CAS.
VI. O acto recorrido não padece do vício de violação de lei, por ofensa do artigo 8°° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma vez que é este próprio preceito a contemplar a ingerência na vida familiar, quando esta estiver prevista por lei e constitua uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para a defesa da ordem e para a protecção dos direitos e liberdades de terceiros, etc..
VII. O Estado Português, ao aderir ao Acordo de Schengen (cfr. a Resolução da AR n.° 53/93, e o Decreto do Presidente da República n.° 35/93, publicados no DR, 1 Série-A, n.° 276, de 25-11-1993), obrigou-se a respeitar a inclusão na lista de inadmissíveis de estrangeiros e a afastá-los do seu Território e do Território da União, por o seu comportamento poder pôr em perigo aqueles valores.
VIII. O acto impugnado contenciosamente está suficientemente fundamentado, em matéria de direito e de facto, como determinam o artigo 268° da CRP e os artigos 124° e 125° do Código do Procedimento Administrativo, ou o artigo 1 ° do Decreto-Lei n.° 256-A/77 de 17 de Junho, uma vez que se apropriou "per relationem" dos fundamentos constantes do parecer n.° 143-L/02, da Auditoria Jurídica do Ministério, onde constam os motivos da decisão, que são claros, suficientes e não contraditórios.
IX. Tal fundamentação permite, a um destinatário normal, reconstituir o itinerário cognoscitivo e valorativo do seu Autor, tendo o Recorrente compreendido, perfeitamente, o seu alcance e conteúdo.
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
2. Face ao alegado, ao que consta do processo instrutor apenso e aos documentos que constam do processo, consideram-se provados, com interesse para decisão do caso, os factos seguintes:
a) Em 9/12/96, o requerente apresentou "pedido de regularização extraordinária" da sua situação de residente em Portugal, ao abrigo do regime instituído pela Lei nº 17/96, de 24 de Maio.
b) Em 15/3/2000, a Comissão Nacional para a Regularização Extraordinária deliberou indeferir o pedido, com fundamento na causa de exclusão prevista no artº 3º, al. d) da Lei nº 17/96, de 24 de Maio.
c) O recorrente interpôs recurso hierárquico para o Ministro da Administração Interna, nos termos do requerimento de fls. 95/101 do P.I., que se considera reproduzido;
d) Sobre este recurso foi elaborado o Parecer nº REC-143-L/02, da Auditoria Jurídica do Ministério da Administração Interna, que consta de fls. 114/124 do P.I. e se considera reproduzido, propondo o seguinte:
"Concordando Vossa Excelência com o presente parecer, improcedendo os vícios de violação de lei aduzidos pelo Recorrente, e sendo susceptível de correcção, tendo em atenção que estamos perante um acto vinculado, o vício de fora por ele arguido, poderá, ao abrigo do artigo 137º do Código do Procedimento Administrativo, proceder à reforma do acto impugnado, mantendo a decisão de indeferimento do pedido, com os fundamentos de direito constantes da deliberação da CNRE de 15-03-00, e os fundamentos de facto inseridos no Relatório Complementar de fls. 69 e nas Propostas de Decisão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (fls. 70 e 84), respectivamente, de 02-09-99, 03-09-99 e 10-02-00, constantes do processo de regularização extraordinária, relativa ao Requerente".
e) Em 5 de Julho de 2002, o Senhor Ministro da Administração Interna proferiu o seguinte despacho (acto contenciosamente impugnado):
"1. Concordo com o parecer nº REC-143-L/02 da Auditoria Jurídica.
2. Nos termos e com os fundamentos do presente parecer, considero reformado o acto impugnado, nego provimento ao recurso de A..., id. nos autos, e mantenho o indeferimento do pedido.
3. Comunique-se ao SEF, que notificará o interessado e a sua advogada.
4. Comunique-se também à C.N.R.E.".
f) Em 9 de Julho de 2002, as autoridades alemãs (Regierungsprasidium - Chemnitz) informaram o recorrente nos termos do doc. de fls. 45 (traduzido a fls. 46), designadamente de que haviam recebido para processamento a carta do requerente de 9 de Julho de 2002 em que solicitava o apagamento do registo de procura policial no Sistema de Informação de Schengen e que haviam originado o apagamento desse registo.
3. O recorrente pediu a regularização da sua situação em Portugal ao abrigo do regime de regularização extraordinária de imigrantes instituído pela Lei 17/96, de 24 de Maio. Viu indeferido o seu pedido por se encontrar indicado pelas autoridades alemãs, nos termos do artº 96º da "Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen" (CAS).
A Lei nº 17/96, de 24 de Maio estabeleceu um processo de regularização extraordinária da situação de cidadãos estrangeiros não comunitários ou equiparados que se encontrem a residir em território nacional sem autorização legal. Abstraindo de algumas particularidades relativas a cidadãos de países de língua oficial portuguesa, podem obter legalização os estrangeiros que tenham entrado no País até 25 de Março de 1995 e nele tenham residido continuadamente e disponham de condições económicas mínimas para assegurarem a subsistência, designadamente pelo exercício de uma actividade profissional remunerada (artºs 1º e 2º).
O artigo 3.º desta Lei estabelece que não podem beneficiar deste regime de regularização extraordinária as pessoas que:
a) Tenham sido condenadas, por sentença transitada em julgado, em pena privativa da liberdade de duração não inferior a um ano;
b) Se encontrem em qualquer das circunstâncias previstas como fundamento da expulsão do território nacional, com excepção da entrada ou permanência irregular no País e do desrespeito pelas leis portuguesas referentes a estrangeiros;
c) Tendo sido objecto de uma decisão de expulsão do País, se encontrem no período de subsequente interdição de entrada em território nacional;
d) No âmbito do Sistema de Informações Schengen, tenham sido indicados por qualquer das partes contratantes para efeitos de não admissão.
O recorrente viu o seu pedido indeferido ao abrigo desta a al. c), por se encontrar indicado pelas autoridades alemãs, nos termos do art.96º da CAS, para efeitos de não admissão no Espaço Schengen.
Em sede de vício de violação de lei (em sentido estrito), o recorrente sustenta, no essencial, duas coisas:
- Que a Administração violou o art. 4º do CPA (princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos), pois que a indicação para efeitos de não admissão no espaço Schengen não pode valer indefinidamente;
- Que o indeferimento viola o art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que apela ao respeito por um justo equilíbrio entre os interesses em confronto, a saber o direito ao respeito da vida privada e familiar do indivíduo e a protecção da ordem pública e a prevenção de infracções penais.
3.1. Violação do art. 4º do CPA
O art.4º do CPA, inserido no capítulo respeitante aos princípios gerais do procedimento administrativo, estabelece que compete aos órgãos administrativos prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Antes de mais, importa notar que a violação deste princípio só pode ser erigida em causa de invalidade autónoma (vício) do acto administrativo no segmento em que a Administração goze de poderes discricionários ou de margem de conformação ou de apreciação. E ainda aqui com dúvidas, que a economia da decisão não exige que dilucidemos. Dificilmente se identifica um espaço para o funcionamento deste princípio isoladamente, porque o sistema dispõe de outros instrumentos de controle judicial da validade do acto administrativo específicos e de princípios de maior densificação ou proximidade operativa, que o recobrem. Relativamente a aspectos estritamente vinculados do acto - seja de natureza material, seja de natureza procedimental - a violação deste princípio é produto da violação das normas que lhes estabelecem o regime ou os disciplinam.
Efectivamente, o valor paramétrico do artº 4º do CPA é dificilmente determinável porque o que nele se contém são duas afirmações, aliás redundantes, de vinculação genérica da Administração à prossecução do interesse público e de observância dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados. Uma orientação finalista e uma limitação da acção. Para lá do valor proclamatório, só tem virtualidade para funcionar como critério ou parâmetro de aferição de validade da acção administrativa concreta por parte dos tribunais quando e na medida em que, no exercício do poder administrativo, o elemento fim tenha relevo autónomo, o modo ou os meios (materiais ou procedimentais) possam ser escolhidos, ou os efeitos graduados livremente (com alguma margem de liberdade) pela Administração. Isto é, onde exista poder discricionário ou margem de apreciação por parte dos órgãos administrativos. E ainda aí a invocação do art. 4º do CPA - que tal como o artº 3º estabelece um princípio dos princípios mais do que um princípio de acção - é de escassa utilidade, porque a vinculação ao fim encontra a sua técnica de controlo clássica no desvio de poder e o campo restante no controlo do erro manifesto e noutros princípios de maior densidade e eficácia operativa, como os da igualdade e proporcionalidade, boa-fé, imparcialidade e colaboração Fora disso, a violação do art. 4º confunde-se com a infracção da norma que estabelece os pressupostos vinculados do agir administrativo ou que disciplinam o procedimento. Só pode afirmar-se violação desse preceito quando e na medida em que se considerem infringidas essas outras normas mas, nessa altura, invocá-la como fundamento da anulação é inútil, do ponto de vista prático, e seria metodologicamente errado, porque a ilegalidade do acto está adquirida pela violação das normas de mais denso ou mais próximo conteúdo regulativo em que se materializa o seu desrespeito.
Voltando ao caso, o pedido de autorização de residência foi indeferido ao abrigo da al. d) do artº 3º da Lei 17/96, que estabelece um pressuposto vinculado: estar o estrangeiro indicado para efeitos de não admissão no "sistema de informação Schengen".
Ora, a razão pela qual o recorrente considera violado este preceito consiste em "... não pode[r] a Administração negar ao recorrente, que está radicado em Portugal desde 1995 [...], a trabalhar, tendo toda a sua vida organizada e estabilizada, o direito de permanecer em território nacional".
Portanto, aplicando aqui o que se disse, tudo o que, nesta vertente, pode ser útil ao recorrente respeita à interpretação e aplicação da norma que motivou o indeferimento, não podendo o artº 4º do CPA ser chamado a desempenhar o papel de fundamento autónomo de apreciação da validade do acto recorrido. Se aquela norma for aplicável, se tiver o sentido que a Administração lhe emprestou e se se verificarem os respectivos pressupostos de facto, o interesse público foi prosseguido e os direitos do recorrente foram respeitados, porque não tem outros senão os que a lei lhe possa reconhecer. Se, em alguns destes aspectos, o acto claudicar é porque violou essa norma, por erro de interpretação ou aplicação, ou porque ela própria viola normas de valor superior.
Em qualquer dos casos, não pode o artº 4º do CPA funcionar como fundamento autónomo de invalidade do (tipo de) acto administrativo em causa, pelo que este fundamento do recurso é improcedente.
As afirmações do recorrente relativamente ao carácter "perpétuo" da interdição podem ser interpretadas - num esforço de aproveitamento que encontra amparo na louvável atitude da autoridade recorrida de não se eximir, pela via da exploração das debilidades processuais do recorrente, a pronunciar-se sobre o essencial do litígio, eliminando assim, dúvidas quanto à efectividade do contraditório - como dirigidas à interpretação que o acto impugnado faz da al. d) do art.3º da Lei nº 17/96, de 24 de Maio.
A Administração interpretou este preceito, já acima transcrito, como estabelecendo um facto impeditivo de carácter imperativo (se quisermos, um pressuposto negativo vinculado), relativamente à concessão de autorização de residência. No entendimento subjacente ao acto recorrido, constando o interessado do "sistema de informações Schengen" para efeitos de não admissão, por iniciativa de outro Estado do "espaço Schengen", à Administração nacional cabe apenas verificar o facto e não fazer qualquer juízo próprio sobre o bem fundado dessa indicação.
Esta interpretação não merece censura.
Na referida al. d) do art. 3º da Lei nº 17/96 não é feita qualquer restrição à eficácia do facto impeditivo que aí se prevê, seja em função da causa, seja em função do tempo.
O legislador procurou afastar do território nacional e, por essa via, do espaço da União Europeia abrangido pelo Acordo de Schengen, os estrangeiros que qualquer dos Estados que se comprometeram nessa modalidade mais intensa de integração considere não admissíveis. Isso corresponde às obrigações internacionais assumidas por Portugal, ao aderir ao Acordo de Schengen (Cfr. a Resolução da Assembleia da República nº 53/93 e o Decreto do Presidente da República nº 35/93, publicados no DR-I série A, de 25/11/93 relativos à Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen - CAS), em que a não indicação do estrangeiro, por qualquer das partes contratantes, para efeitos de não admissão, é uma das peças chave da política comum em matéria de entrada, de autorização de residência e de circulação de estrangeiros (cfr. i.a. art.s 5º, 19º e 21º da CAS), em ordem a possibilitar a supressão do controle da circulação de pessoas nas fronteiras internas (art. 2º da CAS).
Designadamente, nos termos do nº 1 do art.25º da CAS, sempre que uma Parte Contratante tencionar emitir um título de residência a um estrangeiro que conste da lista de pessoas indicadas para efeitos de não admissão, consultará previamente a Parte Contratante que o indicou e tomará em consideração os interesses desta. O título de residência só pode ser emitido por motivos graves, nomeadamente de natureza humanitária ou decorrentes de obrigações internacionais.
Por outro lado, não é exacto que a inclusão de um estrangeiro na lista de inadmissíveis tenha carácter perpétuo. A conservação dos dados no Sistema de Informação Schengen é feita por um tempo máximo, variável consoante a natureza dos dados, mas que em nenhum caso vai além dos 10 anos (art.s 112º e 113º da CAS).
Para além disso, o interessado dispõe dos meios próprios para eliminar tais dados, podendo qualquer pessoa exigir a rectificação ou a eliminação de dados que lhe digam respeito, viciados por erro de facto ou de direito (art. 110º da CAS) ou instaurar, no território de cada Parte Contratante, perante um órgão jurisdicional ou a autoridade competentes por força do direito nacional, uma acção, que tenha por objecto, nomeadamente, a rectificação ou a eliminação da informação (art. 111º da CAS).
É, portanto, construção sem fundamento toda a argumentação do recorrente tendente a demonstrar que a interpretação e aplicação da al. d) do art. 3º da Lei nº 17/96 conduziria a uma restrição de carácter tendencialmente perpétuo.
Tanto basta para, também nesta perspectiva, este vício de violação de lei ser julgado improcedente (Questão diferente, que no presente processo não vem colocada e que não é de conhecimento oficioso, é a de saber se impenderia sobre as autoridades nacionais, designadamente quando confrontadas com a resposta do interessado nos termos do art. 100º do CPA, o dever de diligenciar, junto das autoridades alemãs ou por intermédio da entidade de controle do S.I.S., ao abrigo dos seus poderes de direcção do procedimento e da averiguação oficiosa dos factos no sentido de saber se ainda se justificava a subsistência da indicação de não admissão).
3.2. Violação do artº 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
O artº 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que vincula Portugal, na ordem jurídica interna e na ordem jurídica internacional, desde o depósito do correspondente instrumento de ratificação, no dia 9 de Novembro de 1978 (sobre o processo de adesão de Portugal à CEDH, cfr. IRENEU CABRAL BARRETO, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ,2ª ed., pag. 33 e sgs.), estabelece o seguinte:
[Direito ao respeito da vida privada e familiar]
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.
Este preceito - aliás, de um modo mais geral, a Convenção - não garante a qualquer candidato o direito de residir num país determinado do qual não se detém a nacionalidade (Decisão de 2 de Março de 1994, Queixa 16 360/90, Apud CABRAL BARRETO, op. cit,2ª ed., pag. 188). Não garante o direito de qualquer estrangeiro de optar por Portugal para aí desenvolver a sua vida privada e estabelecer família. Assim, uma vez que esse preceito não rege, positiva ou negativamente, a prática do acto administrativo em causa, não pode este ser anulado pela sua violação.
Não se ignora que os órgãos da Convenção têm considerado que, em certas circunstâncias, medidas tomadas contra um estrangeiro, designadamente pela via da expulsão, podem acarretar efeitos que infrinjam o direito fundamental garantido no art. 8º da Convenção (Sobretudo na vertente do respeito pela vida familiar). Todavia, no caso, não estamos perante uma medida dessa natureza, mas perante uma simples decisão de não atribuição de autorização de residência que, em si mesma e nos seus efeitos jurídicos imediatos, não contende com o respeito da vida privada e familiar. Se algum problema de protecção dos direitos garantidos por este preceito da Convenção pode equacionar-se será relativamente a um acto com incidência directa na vida privada ou familiar do requerente e não ao acto recorrido que indefere o pedido de autorização de residência, ainda que este possa vir a ser pressuposto da futura ingerência da autoridade pública naqueles direitos.
Aliás, mesmo que se concebesse um círculo mais alargado de protecção da vida privada e familiar, abarcando actos que, embora mediatamente, sejam aptos para necessariamente desencadear outros que se apresentem como potencialmente lesivos do desenvolvimento ou conservação do núcleo essencial da vida privada ou familiar, ainda assim não há quaisquer factos que dêem um mínimo de subsistência à hipótese de violação deste preceito da Convenção, pelo que é inútil mais longa indagação.
Efectivamente, nas quatro componentes em que se analisa a protecção do art. 8º da Convenção (respeito da vida privada, respeito da vida familiar, respeito do domicílio e respeito da correspondência), só seria razoável colocar a hipótese de o acto contender com a protecção do respeito pela vida familiar. Ora, mesmo que se prefigurasse a expulsão do território português como consequência necessária da recusa de autorização de residência, nada vem alegado que permita estabelecer conexão entre o afastamento do território nacional com qualquer aspecto da organização da vida familiar do recorrente no território português, que possa relevar face ao art. 8º da Convenção. Efectivamente, o recorrente limitou-se a um enunciado abstracto da regra contida no nº 1 do art. 8º da CEDH e da compatibilização do interesse do indivíduo com o interesse geral, isto é, dos condicionamentos ou restrições admitidas pelo nº 2 do mesmo art.8º. Nada alegou ou resulta dos autos no que respeita à vida familiar do requerente pelo que a invocação deste preceito como violado é inócua por falta de base de facto que lhe possa ser subsumida.
3.3. Da falta (insuficiência) de fundamentação
O recorrente alega que o acto recorrido enferma de insuficiência de fundamentação, equivalente à sua falta, nos termos do art. 125º do CPA.
Dá-se o caso de que o despacho impugnado expressamente visou a sanação da deficiência de fundamentação que reconheceu no acto que era objecto do recurso hierárquico.
Com essa finalidade, no tocante à decisão de indeferimento, disse-se na informação da Auditoria Jurídica (fls. 14 e sgs. para que o acto expressamente remete, o seguinte:
"Assim sendo, como decorre de fls. 64, 66, 67, 68, 70 e 84 dos autos do processo de regularização extraordinária, o Requerente A... "tem uma indicação criada pelas autoridades do Estado Alemão, nos termos do artigo 96º da C.A.S. para efeito de não admissão em Espaço Schengen".
Com fundamento no Relatório Complementar de fls. 69 e nas Propostas de Decisão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (fls. 70 e 84), respectivamente, de 02-09-99, 03-09-99 e 10-02-00, constantes do processo de regularização extraordinária, os quais devem ser acolhidos, e concordando com o sentido da deliberação de 15-03-00, da Comissão Nacional para a Regularização Extraordinária deve ser indeferido o pedido formulado pelo Requerente nos autos de Regularização Extraordinária nº RE079250/301, uma vez que ocorre a causa de exclusão prevista no artigo 3º, alínea d) da Lei 17/96 de 24 de Maio - "no âmbito do Sistema de Informações Shengen, tenham sido indicados por qualquer das partes contratantes para efeitos de não admissão".
Passou a ser esta a expressão dos fundamentos do indeferimento. Traduz com clareza, congruência e suficiência as razões de facto e direito pelas quais foi indeferido o pedido de autorização de residência ao abrigo do processo de regularização extraordinária. Um destinatário normal do tipo de acto em causa fica em condições de saber que esse indeferimento se deve ao facto de o requerente constar do S.I.S. para efeitos de não admissão no Espaço Schengen e à circunstância de esse facto ser uma causa de exclusão da regularização nos termos da al. d) do art.3º da Lei nº 17/96.
Assim, revelando a fundamentação do acto recorrido o iter cognoscitivo e valorativo adoptado pela autoridade decisora, em termos de permitir a sua impugnação ou a aceitação esclarecida, mostra-se satisfeito o dever de fundamentação dos actos administrativos imposto pelo art. 124º do CPA, pelo que improcede a alegação do vício correspondente.
3.4. A alteração posterior dos factos
O requerente juntou ao processo de recurso contencioso, imediatamente antes das alegações, cópia de um documento emitido pelas autoridades alemãs em 7 de Agosto de 2002, informando que, na sequência da sua carta de 9 de Julho de 2002 "em que solicitava o apagamento do registo de procura policial no SIS (Sistema Informativo de Schengen)" "originámos o apagamento do registo de procura policial no SIS".
Trata-se de facto posterior ao acto recorrido e mesmo à interposição do recurso contencioso que poderia suscitar a questão de saber se e em que termos poderia relevar na apreciação da validade do acto administrativo impugnado.
Todavia, o recorrente limitou-se a juntar esse documento, não extraindo dele qualquer consequência. Efectivamente, nas alegações finais, que seria o momento adequado a introduzir modificações da instância, o recorrente limitou-se a manter "tudo quanto alegou na petição inicial cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais, pelo que se remete para a mesma". Apresentando a petição a estrutura correspondente à que a lei impõe para as alegações, designadamente comportando conclusões e indicação das normas violadas, pode dar-se por satisfeito o ónus de alegar imposto pelo art. 67º do RSTA. Mas essa remissão tem outra consequência: as de que as questões a tratar são (salvo, obviamente, as de conhecimento oficioso ou as levantadas pela autoridade recorrida ou, eventualmente pelo Ministério Público) aquelas que ficaram delimitadas pela petição de recurso.
Não há, portanto, que apreciar a relevância do facto documentado a fls. 44 e sgs.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas.
Taxa de justiça: €300 (trezentos euros)
Procuradoria: €150 (cento e cinquenta euros)
Lisboa, 25 de Setembro de 2003.
Vítor Gomes - Relator - Pais Borges - Freitas Carvalho