Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01072/12
Data do Acordão:01/30/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LINO RIBEIRO
Descritores:MAIS VALIAS
USUCAPIÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
Sumário:I – O artigo 5.° do Dec. Lei n.° 442-A/88, de 30 de Novembro, deve ser interpretado no sentido de que não são tributados em sede de IRS os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de prédio urbano adquirido como rústico antes da entrada em vigor do Código do IRS e que ainda conservava essa natureza no momento da entrada em vigor deste Código, pese embora tenha adquirido, posteriormente, a natureza de urbano e sido alienado como tal.
II – Tratando-se de aquisição por usucapião, a não sujeição a IRS dos ganhos obtidos com a alienação do prédio rústico depende da prova de que na data da entrada em vigor do CIRS o alienante já podia invocar a usucapião, ainda que a escritura de justificação notarial tenha sido efectuada em data posterior.
Nº Convencional:JSTA00068071
Nº do Documento:SA22013013001072
Data de Entrada:10/16/2012
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LEIRIA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR FISC - / MAIS VALIAS
Legislação Nacional:CIRS89 ART9 N1 A ART10 N1 A
DL 44-A/88 DE 1988/11/30
DL 287/03 DE 2003/11/12 ART31 N5
CPP08 DE 2008/12/31 ART5 R ART34 ART116
Jurisprudência Nacional:AC STA0431/10 DE 2010/10/13; AC STA01073/09 DE 2010/07/14; AC STJ/08 DE 2007/01/24
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


1. A……….., devidamente identificado, recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou parcialmente procedente a impugnação da liquidação do IRS do ano de 2004, na parte em que se procedeu à tributação das mais-valias na venda de um prédio urbano.
Nas respectivas alegações, conclui o seguinte:
a) Partindo da factualidade dada como provada na douta sentença recorrida, entende o recorrente que estão preenchidas as premissas para aplicação do regime transitório da categoria G, previsto no artigo 5° do D.L. n.º 442-A/88 de 30 de Novembro,
b) Com efeito, dispõe a supra referida norma que não há lugar a tributação de mais-valias em sede de IRS, se os ganhos derivados da alienação de bens, que não eram sujeitos a mais-valias no âmbito do Decreto-Lei 46373/65 de 9/06, forem relativos a prédios adquiridos antes da entrada em vigor do CIRS. E, dispõe o n.º 2 da mesma norma que cabe ao contribuinte a prova de que os bens foram adquiridos em data anterior à entrada em vigor do CIRS.
c) Ora, no caso sub judice estão preenchidas as duas condições e feita a prova da data da aquisição para se verificar a exclusão da tributação, uma vez que o prédio foi adquirido antes de 1989 (facto provado 2.) e os ganhos derivados da alienação de prédios rústicos, não eram tributados no revogado Código do Imposto das Mais-Valias (Decreto - Lei n.º 46373/65 de 9 de Junho).
d) Por outro lado, é na própria norma do regime transitório (n.° 2 do art. 5° citado) que se estabelece acerca da prova da data de aquisição do bem, para aferir da aplicabilidade do mesmo à situação concreta.
e) Esta é, pois, uma norma especial que derroga eventual normal geral prevista no CIRS quanto à data relevante da aquisição.
f) Logo, atendendo aos factos dados como provados na douta decisão recorrida, a prova da data da aquisição anterior à data da entrada em vigor do CIRS, que se exigia ao contribuinte, foi cumprida.
g) Entende o recorrente que o recurso ao disposto nos artigos 45° e 46° do CIRS, para aferição da data de aquisição do imóvel vendido, não é acertado.
h) Em primeiro lugar, porque os artigos 45° e 46° do CIRS disciplinam a matéria relativa ao valor de aquisição (a título gratuito e a título oneroso) para determinação dos ganhos sujeitos a IRS, e não a data da aquisição dos bens.
i) Em segundo lugar, não há no CIRS qualquer norma que defina, estabeleça ou, sequer, presuma, o momento da aquisição relevante para efeitos de cálculo de mais-valias.
j) E em terceiro lugar, porque o recurso à analogia ou interpretação analógica não é permitido nas normas de incidência fiscal.
l) A aquisição por usucapião reporta os seus efeitos à data da aquisição verbal/não titulada ou início da posse, nos termos dos art.°s 1287° e 1288° do Código Civil.
m) Donde, a usucapião é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade cujo início coincide com a posse, conforme dispõe a alínea c) do art. 1317° do CC, e a escritura de justificação representa tão só a titulação de um direito já existente, e é o meio próprio para justificar a posse.
n) Dado que a lei tributária, no caso do CIRS, não distingue entre as várias modalidades de aquisição do direito de propriedade, nem o momento do início da aquisição, deve aceitar-se todos e quaisquer modos de aquisição segundo o direito civil, pois que é subsidiariamente aplicável por força do art. 2.° da LGT. Em reforço deste entendimento veja-se o Acórdão do TCA Sul, processo 2695/99 de 21/11/2000.
o) Pelo que, o recorrente discorda da justificação apontada na douta decisão recorrida, que invoca o artigo 45° do CIRS (e por remissão deste para o CIMSISSD por ser este o diploma em vigor à data da celebração da escritura de usucapião) para apontar a data de aquisição relevante para efeitos fiscais, a data da escritura de justificação.
o) Aliás, em 1995, na data da outorga da escritura de justificação notarial (facto provado 2.), estava em vigor o CIMSISSD, diploma que impunha a tributação das transmissões “qualquer que seja o titulo por que se operem”, nos termos do seu art. 1°, mas cuja incidência não abarcava as aquisições por usucapião como acontece hoje com o CIS.
q) De todo o exposto conclui-se que a data da aquisição do prédio se iniciou com a posse, e não no momento da titulação do direito de propriedade com a escritura de justificação, e, como tal, os ganhos obtidos com a alienação do referido prédio não estão sujeitos a tributação por se enquadrar no regime transitório da categoria G, previsto no art. 5° do DL. n.°442-A/88.
r) Finalmente, acrescenta-se que, ao caso, é irrelevante o facto do prédio rústico ter dado origem (juntamente com outro) a um prédio urbano objecto da venda declarada, isto porque, por aplicação de regime de exclusão do referido artigo 5° do D. L. n.º 442-A/88, só tem de aferir-se a natureza do bem no momento da entrada em vigor do CIRS e não à data da alienação.
s) Pelo que, a douta sentença recorrida na parte em que julgou parcialmente improcedente a impugnação, violou o disposto nos n.º 1 e 2 do art.° 5° do D.L. 442-.A/88 de 30/11.

1.2. Não houve contra-alegações
1.3. O Ministério Público emitiu parecer no sentido do provimento do recurso com fundamento em que «a aquisição por usucapião controvertida teve por objecto um prédio rústico (terra de semeadura), reportando-se os seus efeitos à data da posse, iniciada mais de 20 anos antes da escritura de justificação notarial celebrada em 22 de Maio de 1995».
2. A sentença deu como assente os seguintes factos:

1. No ano de 1988, B………. participou à matriz um prédio urbano, que foi inscrito, sob a seguinte descrição: R/C destinada a comércio; R/C com 2 divisões destinado a habitação 1° Andar com 6 divisões destinado a habitação; 2° Andar com 3 divisões, destinado a habitação; Superfície Coberta: 162 m2; Valor patrimonial: € 5.207,15, inscrito com o artigo 1207 (informação de fls. 88 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).
2. No dia 22 de Maio de 1995, foi celebrada escritura de justificação nos termos da qual A……….. e mulher, B…………. se declararam proprietários do prédio rústico, inscrito na matriz da mesma freguesia e concelho, sob o art. 7656, com o valor patrimonial de € 49,88 (informação de fls. 88 do apenso cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido).
3. O prédio é composto por terra de serradura com 1060 m2, em S. Sebastião, freguesia …….., concelho de Ourém, a confinar do Norte com estrada, Sul herdeiros de C…….., Nascente herdeiros de D……… e poente E……… (fls. 18 e 19 cujo conteúdo se dá por reproduzido).
4. Mais declararam que há mais de vinte anos sem a menor oposição de ninguém exercem a posse sobre o referido prédio (fls. 19 cujo conteúdo se dá por reproduzido).
5. Através de declaração mod.1 do IMI (registo n° 162517 de 2004-02-19), foi participado à matriz por B…………, um prédio urbano resultante da anexação dos artigos atrás referidos, (1207+7656) com a indicação de “Prédio, melhorado, Modificado, Reconstruído”, com área total de terreno de 1.060,00 m2 (idem cujo conteúdo se dá por reproduzido);
6. Este prédio foi inscrito na respectiva matriz sob o art° 2003, composto de R/C (com 2 pisos) para comércio, com o valor patrimonial de € 31.510,00 e R/C1 (com 3 pisos) para habitação com o valor patrimonial de € 128.940,00 (idem, cujo conteúdo se dá por reproduzido).
7. Declarou-se ainda que a conclusão das obras se deu em 3/1/2004 (fls. 102 dos autos cujo conteúdo se dá por reproduzido).
8. Em 9/6/2004, os sujeito passivos alienaram o imóvel a F…………., sendo o U-2003 pelo preço de e €285.000,00 (fls. 88 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).
9. Relativamente à fracção “A” (arrecadação na cave) do art. 5523, a mesma foi adquirida em 1/8/2003 pelo valor de € 3.500,00 e foi alienada em 9/6/2004 por igual valor a G……….
10. Por ser a primeira transmissão na vigência do CIMI, o prédio foi avaliado com base nas regras previstas nesse código, atribuindo-se o valor patrimonial tributário de € 5.450,00.
11. A correcção foi efectuada tendo em vista a sujeição a tributação dos ganhos obtidos com a venda do imóvel., na parte proporcional correspondente ao acréscimo de área ampliada, ou seja 898m2.
12. Este acréscimo resultou da subtracção à área de 1060m2 do Artigo 2003 a área de 162m2 do Artigo 1207 (fls. 84 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido)
13. Desde 1988, ano da inscrição do U-1207 na matriz, que o mesmo sempre teve a área de implantação de 427,50m2 e não 162m2.
14. Só que esta área não estava averbada na matriz por o impugnante não ter título aquisitivo do R-7656.

3. Em 2004, o recorrente vendeu um prédio urbano que foi inscrito na matriz nesse ano, sob o artigo 2003, e que resultou da anexação de dois prédios, um urbano, inscrito na matriz sob o artigo 1207 e outro rústico, inscrito na matriz sob o artigo 7656.
A administração tributária considerou que essa alienação gerou ganhos na esfera patrimonial do recorrente, procedendo ao cálculo da tributação em sede de IRS.
A sentença anulou parcialmente a liquidação, com o argumento de que “embora o impugnante tenha demonstrado a aquisição por usucapião em data anterior a 1989, não pode beneficiar, para efeitos fiscais, do artigo 1288º do Código Civil, com referência ao nº 1 do art. 5º do Decreto-Lei nº 442-A/88 de 30 de Novembro. E como tal, há lugar à tributação em sede de IRS pelos ganhos realizados com a alienação do art. 7656. Já a alienação da parte correspondente ao art. U-1207, por estar inscrito na matriz em nome do impugnante desde 1988, não está sujeito a tributação”.
O recorrente discorda deste entendimento, porque: (i) está provado que o prédio rústico veio à sua posse em data anterior a 1989, sendo irrelevante que a escritura de justificação notarial da aquisição por usucapião tenha sido celebrada em 1995, pois não serve de “título aquisitivo” do direito de propriedade; (ii) e que em 1/1/1989 o prédio era rústico, sendo irrelevante que posteriormente tenha adquirido a natureza de prédio urbano.
Para efeitos de tributação em IRS, categoria G, o ganho obtido com a venda em 2004 do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 2003, impõe-se responder a duas questões: (i) que implicação teve a alteração da natureza do prédio ocorrida em 2004; (ii) em que data se considera que o prédio rústico foi adquirido.
Dispõe o artigo 9.º, n.º 1, al. a) do CIRS que constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias, as «mais-valias», constituindo estas, nos termos do n.º 1, al. a) do artigo 10.º, os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de «alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis».
Todavia, para evitar a retroactividade da lei fiscal, o art. 5º do DL nº 442-A/88, de 30/11 estabeleceu a seguinte norma transitória:
Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo Código aprovado pelo DL nº 46.373, de 9/6/65, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos a IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código”.
Ora, tendo sido alienado um prédio urbano que na data da entrada em vigor do CIRS – 1/1/1989 – tinha a natureza de prédio rústico, a primeira questão que se levanta é a de saber se a modificação da natureza do prédio após aquela data afasta a aplicação daquela norma transitória.
Sobre esta questão pode afirmar-se que se formou jurisprudência consolidada no sentido de que, «à luz do disposto no artigo 5.º do Dec. Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, não são tributados em sede de IRS os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de prédio urbano adquirido como rústico antes da entrada em vigor do Código do IRS e que ainda conservava essa natureza no momento da entrada em vigor deste Código, pese embora tenha adquirido, posteriormente, a natureza de urbano (terreno para construção) e sido alienado como tal» (cfr. acs. do STA de 29/3/05, rec. nº 01213, de 6/6/2007, rec. nº 0179/07, de 29/10008, rec. nº 0539/08, de 4/2/2009, rec. nº 0872/08, de 13/2/2008, rec. nº 0763/07, de 27/1/2010, rec. nº 0969/09, de 2/6/2010, rec. nº 0998/09, de 12/1/2012, rec. nº 0529/11).
E assim tem que ser porque, como se argumenta no referido acórdão nº 0179/07, «o afastamento pelo art. 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 da tributação em IRS, a título de mais-valias, dos ganhos obtidos com a transmissão de terrenos que, à data da entrada em vigor do CIRS, eram qualificados como terrenos agrícolas (e, por isso, estavam fora do âmbito de incidência do Código do Imposto de Mais-Valias) compreende-se pelo facto de, tendo-se optado pelo cálculo dos ganhos tributáveis a título de mais-valias com base na diferença entre o valor da aquisição e o valor da transmissão, a tributação em IRS da valorização de terrenos agrícolas que haviam sido adquiridos antes da sua entrada em vigor incluiria, parcialmente, a aplicação retroactiva do novo regime de tributação a ganhos obtidos com a valorização dos prédios rústicos, pois forçosamente se iriam tributar, além dos ganhos correspondentes à valorização gerada na vigência do novo Código, também alguns correspondentes à valorização que, como prédios rústicos, pode ter tido ocorrido antes da sua entrada em vigor. Ora, essa aplicação retroactiva de normas de incidência tributária, que, a partir da revisão constitucional de 1997 é absolutamente proibida pela nova redacção dada ao art. 103.º, n.º 3, da CRP, só era tolerável anteriormente em situações especiais em que estivesse em causa o interesse geral (essencialmente neste sentido, pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 216/90, de 20-6-1990, processo n.º 203/89, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 398, página 2ª7.), que não se vislumbram em matéria de tributação de mais-valias».
Portanto, estando provado que parte do prédio urbano que foi alienado em 2004 tinha natureza rústica na data da entrada em vigor do CIRS, pois resultou da anexação do prédio rústico, de natureza agrícola, inscrito sob o art. 7656 com o prédio urbano inscrito sob o artigo 1207, é de concluir que, em face do disposto no art. 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, os ganhos obtidos com a sua transmissão não se inserem no âmbito de incidência do IRS, isto no caso a sua aquisição ter ocorrido em data anterior à entrada em vigor desse imposto.
A questão mais complexa, para efeitos de interpretação do artigo 5º, consiste pois em determinar o momento em que, para efeitos fiscais, se pode considerar que o recorrente adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio rústico.
A escritura de justificação notarial da aquisição por usucapião ocorreu em 22/5/1995, mas o início da posse ocorreu em data anterior a 1/1/1989. Naquela escritura os justificantes declararam que «há mais de vinte anos sem a menor oposição de ninguém exercem a posse sobre o referido prédio».
A controvérsia reside aqui: enquanto a sentença julgou que a transmissão da propriedade ocorreu com a justificação notarial, o recorrente entende que se verificou com o início da posse.
O artigo 5º acima transcrito não dá uma resposta directa ao problema, uma vez que faz uma delimitação negativa da incidência objectiva do IRS por referência às alienações onerosas de prédios afectos a fins agrícolas cuja «aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código», mas sem distinguir as modalidades que pode revestir tal aquisição. Como o contribuinte se pode tornar titular do direito de propriedade por aquisição originária ou por aquisição derivada, poder questionar-se se a norma contempla, e em que condições, as duas formas de aquisição de direitos.
Já se referiu que a ratio legis do artigo 5º foi evitar que o novo regime de tributação de ganhos obtidos com a valorização de prédios rústicos tivesse efeitos retroactivos. Com o novo CIRS, todas as transmissões onerosas de imóveis passaram a ser tributadas como rendimentos da categoria G (incrementos patrimoniais), incluindo alienações que até aí não estavam abrangidas pelo revogado Código de Imposto de Mais Valias (CIMV). Para evitar a retroactividade do novo regime, estabeleceu-se que para serem tributadas tais transmissões era necessário que os bens abrangidos fossem adquiridos e alienados dentro da vigência da nova lei, com excepção daqueles que já eram antes tributados por força do CIMV, ou seja, os terrenos para construção, os quais passariam agora a ser tributados nos termos do CIRS.
Mas a racionalidade que inspira a norma transitória é ponto de referência para um outro recorte: não estão sujeitos ao IRS os ganhos das alienações de prédios rústicos que não seriam sujeitas ao imposto de mais-valias se tivessem sido efectuadas antes da entrada em vigor do CIRS. Se em 1/1/89 o alienante não podia transmitir validamente o prédio, também não poderiam existir ganhos que, pela proibição constitucional da retroactividade, tivessem que ficar subtraídos ao novo imposto. Daí que a expressão normativa «aquisição de bens e direitos» tenha que ser interpretada no sentido de aquisição que legitime ao titular poder dispor validamente do bem ou direito adquirido.
Pelo artigo 1.º do CIMV, aprovado pelo DL 46373, de 9/6/65, o imposto de mais-valias incidia sobre os ganhos realizados através de, entre outros actos, transmissão onerosa de terreno para construção, qualquer que fosse o título por que se operasse, quando dela resultassem ganhos não sujeitos aos encargos de mais-valia previstos no artigo 17.º da Lei 2030, de 22/6/48, ou no artigo 4.º do DL 41616, de 10/5/58, e que não tivessem a natureza de rendimentos tributáveis em contribuição industrial. Portanto, se a alienação não tivesse por objecto um terreno para construção, o ganho com ela obtido não constituía mais-valia e por conseguinte, sob pena de retroactividade, assim deve continuar a ser no novo regime de tributação. Daí que se compreenda a exigência de que a «aquisição do bem ou do direito» alienado tenha ocorrido antes de 1/1/1989. Só nessa situação é que é se impõe assegurar a confiança e expectativa jurídica do contribuinte em dispor do prédio sem que os ganhos obtidos estejam sujeito a imposto.
Mas, se na aquisição derivada é fácil saber em que momento o alienante adquiriu o direito transmitido, pois há sempre uma causa que justifica a aquisição, o chamado “título de aquisição”, na aquisição originária a causa adquirendi brota de elementos psíquicos e físicos, como acontece na usucapião, em que se permite, independentemente do título e da boa fé, a aquisição do direito pela posse continuada durante certo período de tempo.
Na aquisição mediante usucapião, ou seja, a dependente da posse, pública e pacífica (cfr. arts. 1293º, a) 1297º, e 1300º, nº 1 do CCv), pode acontecer que o início da posse ocorra antes de 1/1/1989, mas o momento em que finda o prazo para a invocar se verifique em data posterior. À primeira vista interessa distinguir os dois momentos, pois a lei civil, nos artigos 1288º e alínea c) do art. 1317º, considera como momento relevante da aquisição do direito da propriedade por usucapião o do início da posse.
Assim, aplicando a retroactividade da usucapião ao caso dos autos, dir-se-ia que em 1/1/1989 o recorrente já era titular do direito de propriedade do prédio que vendeu em 2004. Com efeito, na escritura de justificação notarial de 1995 declarou que possuía o dito prédio há mais de 20 anos, o que significa que o início da posse se deu antes de 1/1989. E assim sendo, adquirindo o prédio antes dessa data, estava coberto pela norma do artigo 5º do diploma que aprovou do IRS, com a consequente não sujeição a imposto dos ganhos obtidos com a alienação.
Simplesmente, para efeito da aplicação do artigo 5º, não se pode fazer tal raciocínio, como pretende o recorrente, porque era necessário provar que na data da entrada em vigor do CIRS a usucapião já tivesse sido invocada ou pudesse ser invocada. Se a usucapião não pode ser invocada, também não é possível alienar o prédio por falta de facto ou título aquisitivo. E se a alienação não pode ser realizada antes de 1/1/1989, também não se coloca a questão da aplicabilidade da norma do artigo 5º que, como referimos, só tem razão de ser para as alienações que, se fossem efectuadas antes daquela data, não estariam sujeitas a mais-valias.
Como se sabe, a usucapião, para ser eficaz, necessita de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente. Referem Pires de Lima e Antunes Varela que não há «uma aquisição ipso jure, mas uma faculdade de adquirir atribuída ao possuidor, ou aos credores deste, ou a terceiros com interesse na aquisição» (cfr. Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 56). A ineficácia ope legis da usucapião, que resulta dos artigos 1293º e 303º do CCV, significa que pela posse não se adquirem direitos, mas apenas que faculta ao possuidor a sua aquisição, pelo que precisa sempre de ser invocada por aquele a quem aproveita.
O recorrente invocou a usucapião através da escritura de justificação notarial, que é o meio privilegiado para o fazer no plano extrajudicial. Como se pode ler no documento de fls. 88, tratou-se de uma justificação para obter a primeira inscrição, isto é, para estabelecimento do trato sucessivo, relativamente a um prédio não descrito. Esta modalidade de justificação notarial «consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais, devendo, quando for alegada a usucapião baseada na posse não titulada, ser mencionadas expressamente as circunstâncias de facto que determinaram o início da posse, bem as que consubstanciam e caracterizam a pose geradora a usucapião (cfr. Neto Ferreira e Zulmira Neto da Silva, Manual de Direito Notarial, 4ª ed. Coimbra, 2008, pág. 490).
Embora pensada e estruturada para suprir a falta de documentos e não a falta de direitos, a justificação notarial também é um meio através do qual se invoca a usucapião. Quando a usucapião não foi previamente invocada e é necessário estabelecer o trato sucessivo, a escritura de justificação cumpre um duplo objectivo: o de invocar extrajudicialmente a usucapião; e o de obter o “título formal” que sirva de suporte à feitura do registo. Neste caso, a escritura de justificação não visa apenas dar forma a declarações de ciência ou de verdade, confirmativas de que no passado ocorreram actos de posse, mas também representa o exercício do direito potestativo de usucapir, e nessa medida, se pode configurar como um “quase-negócio jurídico”.
Contrariamente ao estabelecido nos artigos 89º e 91º do Código de Notariado, a escritura de justificação notarial não indica “as circunstâncias de facto que determinaram o início da posse”. E desconhecendo-se as circunstâncias concretas que estiveram na origem da posse, incluindo o momento em que se iniciou, não se pode afirmar que em 1/1/1989 o recorrente podia exercer o direito de usucapir e obter o “título formal” para efeitos de registo. Nada prova que nessa data já estivesse esgotado o prazo de 20 anos de posse declarado na escritura de justificação notarial.
Ora, se não há prova que nessa data a usucapião podia servir de causa adquirendi, também não há justa causa traditionis que possa se reconhecida pelo ordenamento jurídico como apta e suficiente a justificar a passagem do domínio entre sujeitos. É que, não valendo entre nós a regra «posse vale título», era necessário que o recorrente em 1//1/89 tivesse legitimidade para transferir validamente o direito de propriedade sobre o prédio possuído. Mas, como não se prova que o prazo para usucapir estava consumado nessa data, não se pode falar em “título” ou “modo de aquisição” (art. 1316º do Ccv) para que o prédio lhe pudesse ser atribuído em domínio pleno.
Como referimos, a razão de ser da não sujeição a imposto das mais-valias obtidas com a aquisição de bens e direitos em data anterior à entrada em vigor do CIRS foi a de impedir que a valorização que os prédios rústicos obtiveram até então fosse tributada em IRS, pois se tivessem sido alienados naquela data não estariam sujeitos a imposto. Simplesmente, no caso dos autos, não se pode admitir que naquela data o recorrente estivesse munido de um “título idóneo” para transmitir ou constituir um direito real correspondente à posse do prédio. Se não se esgotou o prazo de usucapião, não era um “adquirente”, seja a domino ou non domino, e por isso faltava-lhe um título plenamente eficaz para poder transferir o prédio rústico E assim sendo, também não poderiam existir quaisquer ganhos que, em razão da data de aquisição, tivessem que ficar excluídos de tributação.
A sentença recorrida seguiu por caminho diverso, ao considerar a aquisição originária uma “transmissão gratuita” que apenas se concretizou com a escritura de justificação notarial. Para tal, invoca-se a jurisprudência constante do acórdão do STA de 6/6/2007, segundo a qual «o conceito de transmissão adoptado pelo CIRS, para efeitos de tributação a título de mais-valias, coincide com o utilizado para efeitos de incidência de imposto sobre sucessões e doações, como se conclui do art. 45º do CIRS». Mas, nem o acórdão se refere a uma situação de aquisição originária, mas sim à sucessão mortis causa, que é uma aquisição derivada translativa, nem a aquisição originária era uma “transmissão” para efeitos do imposto de sucessões e doações (cfr. art. 3º do CIMSISD).
Apenas com o Código de Imposto de Selo, integrado na “reforma da tributação do património” aprovada pelo DL nº 287/2003 de 12 de Novembro, é que a aquisição por usucapião passou a ser ficcionada como uma “transmissão gratuita”: os nºs 1 e 3 do artigo 1º e alínea b) do nº 2 do artigo 2º estabelecem que (i) «o imposto do selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens». (ii) para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objecto «direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião»; (iii) e que «nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos respectivos beneficiários».
Neste imposto, aplicável apenas aos factos tributários ocorridos após 1/1/2004 (cfr. nº 5 do ar. 31º do DL nº 287/2003), a obrigação tributária considera-se constituída, «nas aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a acção de justificação judicial, for celebrada a escritura de justificação notarial ou no momento em que se tornar definitiva a decisão proferida em processo de justificação nos termos do Código do Registo Predial» (cfr. al. r) do artigo 5º, na redacção pela Lei nº 64-A/2008 de 31/12).
Ou seja, o legislador situa a aquisição por usucapião no momento em que se detecta o aumento de riqueza equivalente ao “substrato económico” do direito novo que surge no património do usucapiente. É por isso que o facto tributário não coincide com o momento em que se iniciou a posse ou com o momento em que findou o prazo prescricional, mas com o momento em que há um acto público que justifica a aquisição. Só com a justificação judicial ou notarial é que nasce a obrigação de imposto de selo, por ser esse momento que se revela a capacidade contributiva do usucapiente. Como refere a jurisprudência deste Tribunal, «tal aquisição, consonantemente com o princípio da expressão formal dos actos tributários, em imposto de selo, só ocorre no momento em que se torna definitivo o documento que titula essa aquisição ou “transmissão”» (cfr. Ac. do STA, de 13/10/2010, rec. nº 0431/10 e de 14/7/2010, rec. nº 01073/09, e de 7/3/2012, rec. nº 0833/11).
Mas, embora indicador de que a aquisição originária em direito fiscal pode ter um significado diferente daquele que reveste no direito privado, especialmente no que se refere à retroactividade da usucapião (art. 1288º do Ccv), no caso dos autos o facto tributável não é a aquisição por usucapião, mas os ganhos obtidos com a transmissão onerosa do imóvel. Como os ganhos relativos a alienações de prédios rústicos adquiridos antes da entrada em vigor do CIRS continuaram a não ser sujeitos a imposto, o que realmente importa saber é se naquela data o alienante já havia adquirido ou estava em condições para adquirir o direito de propriedade sobre o prédio alienado.
Aqui, o que revela é o facto de no momento da entrada em vigor do CIRS o disponente já se encontrar na situação de poder invocar a usucapião, ainda que o titulo formal para registo fosse obtido após aquela data. É que, como referimos, a escritura de justificação notarial não é mais do que um expediente técnico simplificado posto pela lei à disposição dos interessados para o efeito de dar real consistência prática ao princípio do trato sucessivo (artºs 34º e 116º do Código do Registo Predial) e, conforme se decidiu no acórdão de uniformização de jurisprudência nº 1/2008 do STJ (ac. de 4.12.07, publicado no DR, I Série, de 31.3.08), a inscrição do direito de propriedade no registo com base em escritura de justificação não dá origem à presunção do art. 7º a favor do justificante.
Ora, o que falta nos autos é a demonstração de que em 1/1/89 o recorrente já estava legitimado, através da usucapião, a dispor validamente do prédio que alienou em 2004. E daí que, por fundamentos diversos, a sentença recorrida tenha que ser mantida.

4. Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2013. – Lino Ribeiro (relator) – Dulce Neto – Isabel Marques da Silva.