Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0896/14
Data do Acordão:10/23/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:FARMÁCIAS
TRANSFERÊNCIA DE FARMÁCIA
Sumário:I - Um dos requisitos da transferência de uma farmácia dentro do município consiste na distância mínima de 100 metros entre a nova localização e alguma unidade de saúde, «salvo em localidades com menos de 4.000 habitantes» – como se estatui no art. 2º, ns.º 1, al. c), e 2, da Portaria n.º 1430/2007, de 2/11.
II - Se o acto que deferiu um desses pedidos de transferência foi impugnado porque o documento demonstrativo da população da localidade não teria aptidão probatória, esse ataque envolvia necessariamente a ideia de que a nova localização da farmácia distava menos de 100 metros de uma unidade de saúde.
III - Ao enfrentar essa impugnação, considerando demonstrado que a localidade tem menos de 4.000 habitantes e que, por isso, o acto não enferma da ilegalidade respectivamente arguida, o TAF não procedeu a uma qualquer substituição dos motivos do acto – mesmo que este tivesse erroneamente pressuposto que a nova localização da farmácia respeitava aquela distância mínima.
Nº Convencional:JSTA00068959
Nº do Documento:SA1201410230896
Data de Entrada:07/15/2014
Recorrente:A......
Recorrido 1:INFARMED-AUTORIDADE NAC DO MEDICAMENTO E PRODUTOS DE SAÚDE., I.P. E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA PER SALTUM
Objecto:AC TAF MIRANDELA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACÇÃO ADM ESPECIAL.
Legislação Nacional:PORT 1430/2007 DE 2007/11/02 ART2 N1 C.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
A Dr.ª A………, identificada nos autos, veio interpor a presente revista, «per saltum», do acórdão do TAF de Mirandela que julgou improcedente a acção administrativa especial que ela, conjuntamente com o Dr. B………., movera ao Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, IP, e à contra-interessada Dr.ª C………., acção essa tendente a invalidar o acto, praticado em 27/2/2009 pela Vice-presidente do Conselho Directivo daquele ente público, que deferira o pedido de transferência da farmácia da contra-interessada.
A recorrente terminou a sua minuta de recurso oferecendo as conclusões seguintes:
I - O Acórdão recorrido, no seu epílogo, refere que os recorrentes invocaram a invalidade do acto impugnado por este violar do disposto no artº 2º, n.º 2, da Portaria 1430/2007 citada, porquanto a nova localização da farmácia da contra-interessada não respeita a distância mínima de 100 metros do Centro de Saúde de Montalegre.
II - Como reconhece o Acórdão recorrido, a apreciação da matéria de facto não está em causa na medida em que é pacífico e assim foi considerado naquele aresto que nova localização da farmácia dista menos de 100 metros do Centro de Saúde de Montalegre;
III - O acto impugnado que deferiu a pretensão da contra-interessada recorrida assenta a sua fundamentação no pressuposto de que a nova localização “respeita as distâncias previstas nas alíneas b) e c) do n.º1, do artigo 2º, Portaria n.º 1430/2007, de 2 de Novembro, conforme documentos apresentados em sede do pedido, apresentando distâncias superiores a 350m às farmácias mais próximas e distâncias mínimas de 100m entre a nova localização da farmácia e as unidades de saúde”. (ponto 14 dos factos provados);
IV - O Acórdão recorrido assenta a sua decisão num pressuposto de facto que não consta da fundamentação do acto administrativo impugnado, o de que o deferimento ocorreu tendo por base a excepção prevista na parte final da al. c), do nº 1 do artigo 2º, Portaria n.º 1430/2007, de 2 de Novembro, ou seja, de não ter de ser respeitada a distância de 100 metros relativamente à unidade de saúde uma vez que a população de Montalegre, nos termos dos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística tinha apenas 1.776 habitantes;
V - Ora, sobre a alteração da fundamentação do acto José Carlos Vieira de Andrade, in “Dever de fundamentação expressa de actos administrativos” Colecção Teses, Almedina, Coimbra, pág. 298, em nota de rodapé (38) refere “Mais flagrantes ainda serão as diferenças entre a fundamentação posterior e a substituição de fundamentos (pelo juiz). Aí, uma outra consideração, retirada do princípio da divisão de poderes, limita mais a possibilidade de se evitar a anulação do acto.”;
VI - Efectivamente, verificada a desconformidade entre a fundamentação e a realidade de facto dada como assente, não poderiam os Mm.ºs Juízes “a quo” corrigir, por via de Acórdão, o teor daquela fundamentação, validando e mantendo o acto impugnado;
VII - Assim, a sentença recorrida violou, para além de outros, o disposto nos art.s 95º, 113º, nº 1, e 120º, nº 1 al. a), do CPTA e al. c), do n.º 2, da Portaria n.º 1430/2007, de 2 de Novembro.

O Infarmed contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
1- A Sentença recorrida não padece de nenhum vício.
2- Conforme resulta do processo instrutor, e dos factos dados como assentes pelo Tribunal a quo, o (primeiro) requerimento apresentado pela ora Contra-interessada foi indeferido por insuficiência de instrução e falta de pagamento do valor previsto no artigo 34.º da Portaria 1430/2007.
3- No entanto, a documentação apresentada pela Contra-interessada, junta quer com o pedido de transferência e quer a junta mais tarde, em 7 de Novembro de 2008, foi aproveitada para o novo pedido.
4- Mesmo que assim não se entendesse, nada proíbe o aproveitamento da documentação entregue, aliás, ao abrigo dos princípios gerais da actividade administrativa, a Administração deve aproveitar ao máximo a documentação entregue.
5- O artigo 2º/1/c) da Portaria 1430/2007 quando refere “localidade” não se refere a concelho”, sendo que a Contra-interessada demonstrou, efectivamente, que a localidade para onde se pretende transferir tem menos de 4000 habitantes, pelo que se encontrava obrigada a respeitar a distância dos 100 metros do Centro de Saúde.

Contra-alegou também a contra-interessada, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

A matéria de facto pertinente é a dada como provada no acórdão «sub specie», a qual aqui damos por integralmente reproduzida – como ultimamente decorre do art. 663º, n.º 6, do CPC.

Passemos ao direito.
Na acção administrativa especial dos presentes autos, os dois autores, em litisconsórcio voluntário, vieram impugnar o despacho, datado de 27/2/2009 e proveniente do Infarmed, que deferira o pedido de transferência, dentro da área territorial do município de Montalegre, da farmácia da contra-interessada.
Dos vários vícios que, «in initio litis», os autores imputaram ao acto impugnado, só um permanece sob controvérsia – o que se relaciona com o requisito dessas transferências que está previsto no art. 2º, n.º 1, al. c), da Portaria n.º 1430/2007, de 2/11. E a controvérsia, tal como vem colocada nesta revista, nem sequer directamente incide sobre o incumprimento ou a desnecessidade do requisito. Com efeito, a autora e aqui recorrente única não sustenta que aquele requisito absolutamente faltava e que o acto é ilegal por causa disso; pois simplesmente diz que o acto impugnado não considerou um pormenor – relacionado com o «quantum» da população de Montalegre – que tornava o requisito inexigível, razão por que o TAF não podia ter afirmado a legalidade do acto com base nesse elemento, descaracterizador do requisito, que ao acto era estranho.
Esta denúncia da recorrente parece persuasiva «prima facie», já que os tribunais não podem aferir da legalidade de um acto administrativo partindo de fundamentos, factuais e jurídicos, que ele não contenha – sob pena de incorrerem numa substituição de motivos, violadora do princípio da separação de poderes. Ora, visto que o acto impugnado disse que a nova localização da farmácia da contra-interessada cumpria a distância mínima de 100 metros relativamente a qualquer unidade de saúde e se veio a apurar que essa distância era, afinal, inferior, tudo apontava para que o acto tivesse errado nesse seu pressuposto. E a presença desse erro tenderia a produzir efeitos anulatórios se o acto não houvesse também assumido que o mencionado requisito era irrelevante – em virtude da localidade onde a transferência se realizaria ter menos de 4.000 habitantes (art. 2º, ns.º 1, al. c), «in fine», e 2, da Portaria citada).
O que dissemos mostra o seguinte: que a crítica agora desferida na revista ao acórdão do TAF só poderá valer se os autores, logo na sua petição inicial, tiverem atribuído ao acto impugnado esse erro nos pressupostos de facto – traduzido na consideração de uma distância, até alguma unidade de saúde, que se não verificava na realidade. É que, se os autores acaso negligenciaram tal erro nos pressupostos e atacaram o acto, quanto ao requisito em questão, por uma diferente perspectiva, já será impossível afirmar que o acórdão do TAF de Mirandela, ao responder-lhes, substituiu aquele motivo ilegal por um outro legal; e, então, dificilmente o acórdão será merecedor da censura que lhe é dirigida nesta revista.
Ora, e a propósito do requisito daquela distância mínima de 100 metros entre a nova localização da farmácia e uma unidade de saúde, os autores disseram na petição basicamente duas coisas: que a declaração – de preenchimento dos «requisitos respeitantes às distâncias» – apresentada pela contra-interessada no procedimento administrativo era falsa, dado que o novo local situava-se a menos de 100 metros do Centro de Saúde de Montalegre; e que o acto devia ter concluído pela falta desse requisito porque o documento que a contra-interessada oferecera para demonstrar que Montalegre tinha «uma população inferior a 3.000 habitantes» não era o apropriado a esse fim.
É agora claro que o vício arguido pelos autores em torno deste assunto não consistiu, precisamente, num erro nos pressupostos de facto do acto impugnado, já que eles puseram o acento tónico da sua crítica no pormenor do Infarmed não se ter apercebido, como devia, de que o documento acerca da população de Montalegre não dispunha da aptidão probatória que permitiria dispensar o requisito previsto na 1.ª parte da al. c) do n.º 1 do art. 2º da Portaria n.º 1430/2007. E mais: ao centrarem a sua atenção – e, depois, a do tribunal – na questão de saber se tal documento relevava, os autores também sugeriram ao TAF que a distância inferior a 100 metros verdadeiramente não interferia, «a se», na bondade do acto. Com efeito, só tinha sentido discutir a grandeza da população, enquanto dado eliminatório do requisito da distância, se este requisito não estivesse verificado. Donde se segue que os autores, ao questionarem o documento relativo à população, agiram como se o acto supusesse a falta do requisito daquela distância – o que é o exacto oposto de nele divisarem e denunciarem a afirmação, errónea, da verificação do requisito.
Colocado o vício nos sobreditos termos, o TAF tratou-o e concluiu que tal documento possuía a potência demonstrativa que os autores haviam negado. E, ao decidir isso, o TAF moveu-se no quadro da arguição delineada «in initio litis», ou seja, reflectiu e julgou dentro dos seus poderes cognitivos e, aliás, sem que essa sua pronúncia trouxesse ou implicasse uma substituição dos motivos do acto.
É certo que subsiste o facto de o acto ter erroneamente afirmado que a nova localização da farmácia respeitava uma certa distância mínima. Mas este erro, apenas causal de anulação, não fora arguido pelos autores, que optaram por tratar do problema num plano conexo – o do requisito estar, ou não, afastado pelo documento respeitante à população de Montalegre.
Dado que o erro nos pressupostos não fora arguido, o TAF não o enfrentou nem dele extraiu consequências anulatórias. E é óbvio que, ao abster-se de fazê-lo, o que correspondia a uma omissão pura, o TAF não procedeu a um simultâneo acrescento, no acto, de motivos que dele não constavam.
Mostram-se, pois, improcedentes ou irrelevantes todas as conclusões da revista.

Nestes termos, acordam em negar a revista e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.
Lisboa, 23 de Outubro de 2014. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – Maria Fernanda dos Santos Maçãs – José Augusto Araújo Veloso.