Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01150/12
Data do Acordão:10/15/2014
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
IDENTIDADE DA QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
Sumário:I - A admissão do recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe que, no domínio do mesmo quadro normativo e perante uma realidade factual substancialmente idêntica, o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento tenham perfilhado soluções opostas quanto à mesma questão fundamental de direito.
II - Essa contradição não se verifica por falta de identidade factual quando, num caso, está em causa a suspensão de um despacho que ordena a realização de obras num prédio degradado e, no outro, está em causa um despacho que ordena a demolição de obras feitas sem o necessário licenciamento.
III - E também não se verifica essa contradição quando as decisões em confronto se fundarem em diferentes quadros legislativos.
IV - Sendo distintas as questões objecto dos acórdãos alegadamente em confronto não pode ocorrer qualquer oposição entre as respectivas decisões, relativamente a essas questões.
Nº Convencional:JSTA000P18066
Nº do Documento:SAP2014101501150
Data de Entrada:04/30/2014
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE LISBOA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA:

A……………, L.DA interpôs - nos termos do art.º 152.º do CPTA - recurso para a uniformização de jurisprudência do Acórdão do TCAS, de 16/08/2012 - que confirmou a sentença proferida no TAC de Lisboa que indeferiu parcialmente o pedido de suspensão de eficácia do despacho do Sr. Vereador da Câmara de Lisboa que a intimou a realizar obras de conservação num prédio de que era proprietária - alegando que o mesmo estava em contradição sobre a mesma questão fundamental de direito com o que se havia sentenciado no Acórdão do TCAN de 06/05/2004 (rec. n.º 00006/04).
Rematou as suas alegações do seguinte modo:
1. O douto Acórdão recorrido, de 16.08.2012, e o acórdão fundamento, de 06.05.2004, decidiram expressamente sobre a mesma questão jurídica fundamental - Não suspensão de eficácia do acto impugnado por serem considerados irrelevantes/relevantes prejuízos ou danos causados a terceiros (inquilinos) - cfr. texto nºs 1 a 3;
2. As situações de facto subjacentes aos dois arestos sub judice são coincidentes no essencial, não se verificou qualquer alteração substancial da regulamentação e princípios jurídicos aplicáveis e não foram as particularidades de cada caso que determinaram as soluções opostas relativamente às mesmas questões fundamentais de direito (v. art. 152 do CPTA) - cfr. texto nºs 4 a 6;
3. O acórdão recorrido e o acórdão fundamento, de 06.05.2004, consagraram soluções opostas, pois no acórdão recorrido considerou-se que “com o decretamento parcial da providência requerida, nos termos que acabámos de enunciar, ficam acautelados os interesses da segurança e salubridade dos ocupantes dos identificados fogos habitacionais” e no acórdão fundamento de 06.05.2004 se decidiu que “os prejuízos efectivamente invocados eram irrelevantes para o fim pretendido, por se projectarem na esfera jurídica de terceiros: as sociedades comerciais e respectivos empregados que laboram nas instalações a demolir.” (vd. proc. 00006/04) - cf. texto nºs 7 e 8;
4. A não concessão das providências requeridas causa prejuízos muito superiores aos interesses que se pretende alegadamente proteger, que correspondem apenas a interesses de terceiros, verificando-se assim que o não decretamento das providências requeridas sempre determinaria violação frontal dos princípios constitucionais da segurança das situações jurídicas e da protecção da confiança, da boa fé, da propriedade e de iniciativa económica privada da Recorrente, integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático (vd. arts. 2D, 9a e 266a da CRP), pelo que os danos que resultariam da sua não concessão serão necessariamente superiores aos que poderão resultar do seu decretamento, pois não foram sequer invocados, demonstrados ou provados quaisquer interesses públicos que conflituam com os interesses invocados, demonstrados e provados pela recorrente. - cf. texto nºs 9 a 15;
5. Assim, é manifesto que o não decretamento da presente providência cautelar coloca em causa interesses privados e princípios constitucionais que se sobrepõem aos interesses públicos alegadamente em causa no caso ora em apreço, sendo certo que nem sequer resulta dos factos considerados provados se e em que medida é que a não execução imediata das obras sub judice implicará qualquer prejuízo ao nível da salubridade das fracções habitadas, sendo certo que tal nem sequer corresponde a qualquer interesse público mas antes e apenas a interesses privados de terceiros que não deveriam ser aqui considerados conforme se decidiu no douto acórdão fundamento acima referido. - cf. texto nºs 9 a 15;
6. O douto acórdão recorrido infringiu assim, além do mais, o disposto nos art.ºs 20º e 62º da CRP e nos art.ºs 114º e 120º do CPTA, pelo que se impõe a sua revogação.

O Município de Lisboa contra alegou tendo concluído do modo que se segue:
1. O Recorrente alega como fundamento do presente recurso a contradição do acórdão recorrido de 16/08/2012 com o decidido no Acórdão do TCA Norte, de 06/05/2004 (proc. 00006/04), contudo, afigura-se que não deverá ser procedente o presente recurso, por não se verificar que os dois arestos em questão tenham decidido de forma contraditória a mesma questão fundamental de direito, não se encontrando, como tal, preenchidos os requisitos cumulativos enunciados pelo artigo 152° do CPTA.
2. São quatro os requisitos de admissão do recurso:
a) a contradição entre um acórdão de um TCA e acórdão anteriormente proferido pelo mesmo ou por outro TCA, ou pelo STA, ou entre dois acórdãos do STA;
b) o trânsito em julgado do acórdão impugnado e do acórdão fundamento;
c) a existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito;
d) ser a orientação perfilhada no acórdão impugnado desconforme com a jurisprudência mais recentemente consolidada do STA.
3. As alegações do recurso limitam-se a analisar o preenchimento de dois dos seus requisitos fundamentais: contradição entre um acórdão de um TCA e acórdão anteriormente proferido pelo mesmo ou por outro TCA, ou pelo STA, ou entre dois acórdãos do STA; existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito.
4. A questão jurídica controvertida tem de ser a mesma no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, mas, ao contrário do que a Recorrente invoca, não existem decisões contraditórias quanto à mesma questão fundamental de direito, no acórdão recorrido do TCA Sul de 16/08/2012 e no acórdão fundamento do TCA Norte, de 06/05/2004.
5. Não corresponde à realidade a afirmação da Recorrente de que em ambos os arestos estão em causa situações essencialmente idênticas, que suscitam ambos a solução da mesma questão fundamental de direito.
6. É falaciosa a interpretação apresentada pela Recorrente ao entender que a oposição se baseia em entendimentos divergentes quanto à mesma questão jurídica fundamental objecto de apreciação e decisão - eventuais prejuízos causados a terceiros e a sua relevância na aferição dos requisitos da procedência do meio cautelar.
7. Não está em causa a existência de qualquer contradição sobre a mesma questão fundamental de direito, no âmbito destes dois acórdãos.
8. A questão jurídica fundamental é totalmente distinta da questão jurídica fundamental invocada no âmbito da decisão do acórdão do TCA Sul, de 16/08/2012.
9. Esteve bem o Acórdão de 16/08/2012, ao decidir manter a decisão cautelar da primeira instância, no sentido de não suspender a eficácia do acto administrativo em questão, no que concerne à reparação das anomalias detectadas no auto de vistoria e que punham em causa a segurança e a salubridade dos habitantes no local, determinando pois a execução das obras intimadas nessa parte, uma vez que “a ponderação de interesses efectuada não merece qualquer censura por o edifício em causa se encontrar num avançado estado de degradação que se vai acentuando com o tempo e que agrava as condições de insalubridade e de insegurança especialmente para as pessoas que o habitam. Assim, o mero dano patrimonial que para a recorrente resulta da não concessão da suspensão da eficácia requerida deve ceder em face do interesse público da segurança e da salubridade do espaço urbano.”
10. O douto aresto em análise de 16/08/2012 não se preocupa meramente com eventuais prejuízos causados a terceiros e a sua (ir)relevância na aferição dos requisitos da procedência do meio cautelar, estando, sim, em causa, interesses públicos de importantíssimo relevo e cuja tutela se impõe, relativos à segurança e salubridade do espaço urbano que afectam especialmente os habitantes do edificado, interesses públicos estes que obrigatoriamente têm de ser ponderados em face dos interesses privados em confronto, como no âmbito de qualquer providencia cautelar, em cumprimento do disposto no artigo 120.º, n.º 2, do CPTA.
11. Bem estiveram as decisões jurisprudenciais tomadas, tanto na primeira como na segunda instância, ao efectuar uma correcta ponderação dos interesses públicos e privados em confronto.
12. Pelo que se conclui que nos dois arestos em confronto não existe qualquer questão fundamental de direito idêntica que, consequentemente, possa entrar em contradição de julgados.
13. Existe jurisprudência posterior ao acórdão fundamento invocado pela Recorrente, e que decidiu no mesmo sentido que o actual acórdão, de 16/08/2012, ora posto em crise para efeitos de uniformização de jurisprudência.
14. Nos termos do acórdão do TCA Sul, de 13/10/2005 (proc. 01060/05) foi decidido, em relação a um pedido de suspensão de eficácia de um acto administrativo que “(.,.) justifica-se a decisão tomada de - fazendo prevalecer, na ponderação de interesses, o interesse público de assegurar boas condições de salubridade e segurança ao edifício - indeferir o pedido de suspensão do acto que determinou a realização coerciva de obras”.
15. Também o teor do acórdão do TCA Sul, de 15/03/2007 (proc. 02021/06), vem ao encontro do entendimento perfilhado pelo acórdão proferido em 16/08/2012, ao entender, em relação a um pedido de suspensão de eficácia de um despacho proferido pela então Vereadora da CM de Lisboa em 20/04/2005, que intimara à realização de obras coercivas num imóvel sito em Lisboa), que “ (...,) os prejuízos que daí sobrevirão para o seu proprietário devem sobrelevar sobre meros preceitos de ordenamento e estética urbanos. 3. Serão ressalvados, contudo, as exigências de segurança de pessoas e bens, derivados do estado do prédio “, pelo que “ (...) haveria que ressalvar os indispensáveis cuidados com a segurança de pessoas e bens, designadamente os prédios confinantes e em risco, interesses que teriam de ser assegurados pelo requerente.”
16. Estes dois acórdãos são mais recentes que o acórdão fundamento invocado pela Recorrente, que data de 2004, e incidem sobre a mesma questão fundamental de direito, perfilhando um entendimento semelhante ao sufragado posteriormente pelo acórdão de 16/08/2012, no sentido da ponderação de interesses, em que deverão prevalecer e ser tutelados os interesses públicos de segurança e salubridade, em especial quando possa estar em causa a segurança de pessoas e bens.
17. Não é verdade que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento tenham decidido de forma contraditória a mesma questão fundamental de direito, porquanto não existe a identidade jurídica que a Requerente pretende atribuir, não se encontrando, como tal, preenchido o preceituado no artigo 152° do CPTA.
18. Em relação ao segundo requisito - da contradição de julgados - afigura-se que tudo aquilo que foi referido em sede anterior, quando à inexistência de identidade da questão fundamental de direito, faz cair por terra a possibilidade de existir qualquer contradição de julgados,
19. A Recorrente invoca em relação à sentença da primeira instância e que o acórdão recorrido confirmou, um excerto da mesma que refere que” (...) Nesta conformidade, não se pode concluir que a suspensão parcial do acto administrativo lese séria e gravemente o interesse público, afigurando-se-nos que com o decretamento parcial da providência requerida, nos termos que acabámos de enunciar, ficam acautelados os interesses da segurança e salubridade dos ocupantes dos identificados fogos habitacionais”.
20. Afirma a Recorrente que o aresto do TCA Norte, de 06/05/2004, decidiu de forma diametralmente oposta, ao entender que “os prejuízos efectivamente invocados eram irrelevantes para o fim pretendido, por se projectarem na esfera jurídica de terceiros: as sociedades comerciais e respectivos empregados que laboram nas instalações a demolir.”
21. Esta afirmação é totalmente falaciosa, uma vez que na sentença da primeira instância, mantida no acórdão de 16/08/2012, é bem expressa quando, a fls. 49 in fine refere que “Assim, afigurando-se-nos que os mencionados interesses públicos de segurança e de salubridade relativos aos identificados fogos merecem maior tutela que os aludidos interesses da requerente, deverá a presente providência ser decretada parcialmente, nos termos referidos, por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 120° do CPTA.”
22. Reitera-se que não existe qualquer identidade na questão fundamental de direito que permita que se verifique uma oposição de julgados, uma vez que, se o aresto de 2004 faz alusão à tutela de interesses de terceiros, é bem explícito que tanto a decisão da primeira instância, como o aresto de 16/08/2012 ora recorrido, fazem alusão à tutela de interesses públicos de segurança e salubridade do edificado, que naturalmente se reflectem, em especial, nos habitantes dos fogos habitacionais do mesmo.
23. No que concerne aos alegados erros de julgamento apontados pela ora Recorrente, em que esta invoca que o meio cautelar deveria ter sido julgado totalmente procedente, com fundamento no artigo 120°, n.º 2, do CPTA, discordando da interpretação jurisprudencial efectuada, não assiste à Recorrente qualquer tipo de razão.
24. Tal como foi referido anteriormente, existem acórdãos proferidos pelo TCA Sul que, à semelhança do acórdão ora posto em crise, decidem no sentido da prevalência de tutela dos interesses públicos de segurança e salubridade do edifício, do espaço urbano envolvente e, especialmente, dos habitantes que lá residam.
25. O recurso para uniformização de jurisprudência constitui uma das espécies de recurso ordinário e tem como único objectivo mas resolver a existência de um conflito de jurisprudência, não sendo esta a sede própria para efectuar qualquer análise sobre o mérito da decisão judicial que extravase a questão da contradição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito.
26. O recurso para uniformização de jurisprudência incide sobre uma decisão já transitada em julgado que não pode ser alterada com questões que não digam respeito ao objecto do recurso.
27. Por último, refira-se ainda que outro dos requisitos fundamentais para admissão do recurso consiste em que a orientação perfilhada no acórdão impugnado seja desconforme com a jurisprudência mais recentemente consolidada do STA, não tendo sido feita alusão nem prova, por parte da ora Recorrente, de que este requisito se encontre preenchido.
28. Não deverá, sequer, vir a ser proferido despacho liminar de admissão do presente recurso para uniformização de jurisprudência, uma vez que não se encontram preenchidos os quatro requisitos para admissão do mesmo.


FUNDAMENTAÇÃO


I. MATÉRIA DE FACTO

Nos termos do art.º 663/6 do CPC remete-se a matéria de facto fixada no Tribunal de 1.ª instância.


II. O DIREITO.
O presente recurso dirige-se contra o Acórdão do TCAS que confirmou a sentença do TAC de Lisboa que julgou parcialmente procedente o pedido de suspensão de eficácia do acto do Sr. Vereador da Câmara de Lisboa que intimou a Requerente a realizar obras de conservação num prédio de que era proprietária e que, em consequência, suspendeu a eficácia do aludido despacho “na parte em que determinou a execução das obras nos interiores dos andares não ocupados, com reparação das anomalias mencionadas no auto de vistoria.” Alegando-se neste recurso que aquele julgamento contradizia o que se decidira no Acórdão do TCA Norte, de 6/05/2004 (proc. 6/04) sobre a mesma questão fundamental de direito já que neste, ao contrário daquele, se desatendeu aos interesses de terceiros prejudicados com o indeferimento da suspensão e, consequentemente, se decidiu não suspender a deliberação da Câmara Municipal de Guimarães que ordenara a demolição das obras de ampliação de um prédio realizadas sem licenciamento.
Deste modo, estando em causa em qualquer um daqueles Arestos a importância que deviam merecer os interesses de terceiros (inquilinos) afectados com o indeferimento dos pedidos de suspensão de eficácia, a Recorrente sinalizou a questão fundamental de direito como sendo a de saber se naquela suspensão tais interesses deveriam ser tidos em conta.

1. No caso, o Sr. Vereador da CM de Lisboa, na sequência de vistoria, ordenou à Recorrente a realização de obras de conservação necessárias à correcção das deficientes condições de segurança e salubridade verificadas no prédio urbano propriedade de A……………. (……….)” (al.ª P do probatório), obras que esta se recusava a fazer alegando que a recuperação daquele edifício não era viável, nem técnica nem financeiramente. Daí que tivesse requerido a suspensão de eficácia daquele acto para o que invocou a sustentabilidade da pretensão anulatória, o facto da imediata execução do acto determinar a constituição de uma situação de facto consumado e desta lhe causar prejuízos irreparáveis ou de muito difícil reparação e daquela suspensão não só não causar grave prejuízo ao interesse público como os danos por ela provocados à Requerente serem manifestamente superiores ao que resultariam da recusa da providência.

O TAC julgou verificados os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora e debruçando-se sobre a ponderação de interesses concluiu que – estando provado que o edifício apresentava sinais vários de degradação e que estes punham em causa as condições de segurança e de salubridade do imóvel e das pessoas que o habitavam - do decretamento in totu da providência poderiam “emergir maiores danos para os interesses defendidos pela entidade requerida, no que respeita às condições de segurança e salubridade do imóvel, do que aqueles que se acautelariam com a sua recusa.” Daí que tivesse entendido que não havia que suspender o acto na parte em que ordenara a realização das obras “necessárias à correcção das deficiências existentes nos fogos correspondentes ao rés do chão direito, 2° andar esquerdo e 3° andar direito, assim como as obras nas partes comuns do edifício”, isto é, das obras referentes às partes habitadas do prédio decretando que a requerida suspensão se cingiria à parte em que se ordenara “a execução das obras nos interiores dos andares não ocupados, com a reparação das anomalias mencionadas no auto de vistoria”.

Decisão que o Acórdão recorrido manteve pela seguinte ordem de razões:
“Analisando as alegações da recorrente, constata-se que esta, no presente recurso jurisdicional, se limita a invocar que os órgãos do Município violaram os princípios mencionados na conclusão 1.ª, que o acto suspendendo lhe causa um enorme prejuízo, afectando a sua imagem e que é evidente que os prejuízos que para ela resultam da realização das obras de conservação são sempre superiores aos que podem resultar para os inquilinos da sua não realização.
Vejamos se lhe assiste razão.
Quanto à violação dos princípios referidos na conclusão 1.ª não se alcança o motivo por que a recorrente a considera verificada, sendo certo também que, ainda que se entendesse que o acto suspendendo desrespeitara esses princípios, daí não resultaria o provimento do presente recurso, uma vez que essa violação só teria repercussão sobre o requisito do “fumus boni iuris” que a sentença já considerou verificado.
No que respeita ao prejuízo para a sua imagem, não se vê - nem a recorrente refere - porque razão a intimação para a realização de obras de conservação é susceptível de afectar a sua imagem como instituição responsável e credível.
Finalmente, no que concerne à ponderação de interesses a que procedeu a sentença, a recorrente limita-se a afirmar, conclusivamente, a superioridade dos prejuízos por si sofridos.
Ora, afigura-se-nos que, em face da matéria fáctica que foi considerada provada (e aqui não impugnada), a ponderação de interesses efectuada não merece qualquer censura por o edifício em causa se encontrar num avançado estado de degradação que se vai acentuando com o tempo e que agrava as condições da insalubridade e da insegurança especialmente para as pessoas que o habitam. Assim, o mero dano patrimonial que para a recorrente resulta da não concessão da suspensão de eficácia requerida deve ceder em face do interesse público da segurança e da salubridade do espaço urbano.
Portanto, improcede o presente recurso jurisdicional.”

2. Por seu turno, no Acórdão fundamento estava em causa o pedido de suspensão da eficácia da deliberação da CM de Guimarães que ordenou a demolição da ampliação de um edifício realizada sem o necessário licenciamento, pedido que o TAC do Porto indeferiu por ter considerado que se não verificava o periculum in mora. Decisão que aquele Aresto manteve pela seguinte ordem de razões:
“A pretensão do Agravante foi indeferida, na decisão sob recurso, por se julgar não verificado o requisito da suspensão da eficácia vertido no artigo 76º/1, a) da LPTA, com base fundamentalmente nestas razões:
O requerente não alegou factos específicos concretos relativos à sua própria esfera jurídica, susceptíveis de serem valorados como “prejuízo de difícil reparação”.
Por outro lado, os prejuízos efectivamente invocados eram irrelevantes para o fim pretendido, por se projectarem na esfera jurídica de terceiros: as sociedades comerciais e respectivos empregados que laboram nas instalações a demolir.
Contra estas razões o Agravante alegou, em súmula:
Os prejuízos que recairiam directamente sobre a sua própria esfera jurídica eram óbvios, consistindo no custo da demolição do piso superior e da construção de novo telhado. Mas, caso não fossem óbvios ou suficientemente evidenciados, deveria o Tribunal ter convidado o requerente a suprir essa deficiência, ao abrigo dos artigos 265º do CPC e 76º do CPA.
Os prejuízos respeitantes às sociedades arrendatárias do edifício em causa, que ficariam sem sede social, e aos 21 trabalhadores ocupados nas duas empresas que funcionavam no prédio e que ficarão no desemprego, foram suficientemente alegados nos artigos 1º, 7º, 23º a 26º e 28º do requerimento inicial, cujo conteúdo deveria ser aditado à matéria de facto fixada, por relevante, uma vez que, nos termos do artigo 76º/1, a) da LPTA, a lei consente que se decrete a suspensão da eficácia do acto quando a sua execução imediata cause provavelmente prejuízo de difícil reparação quer para o requerente quer para os interesses que este defenda no recurso.
Cumpre analisar estas questões.
O artigo 268º da Constituição garante aos administrados a tutela jurisdicional efectiva “dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”.
E o artigo 821º do Código Administrativo confere legitimidade para a impugnação contenciosa dos actos praticados pelos órgãos da Administração Local, aos “titulares de interesse directo, pessoal e legítimo no provimento do recurso”.
Estas disposições não podem ser ignoradas numa interpretação sistemática significando que, regra geral, serão coincidentes os requisitos da legitimidade para interpor o recurso e o pedido de suspensão da eficácia, devendo interpretar-se de forma restritiva a norma prevista no artigo 76º/1, a), da LPTA, quando implique a hipotética possibilidade de defesa de interesses dos quais o requerente não seja titular, na estrita perspectiva técnico-jurídica.
Afigura-se que o espírito da norma é o de permitir a defesa de interesses que, do ponto de vista prático, sejam indissociáveis dos interesses do requerente, mormente e de forma paradigmática os interesses dos familiares que com ele vivam em economia comum e estejam, por isso, colocados numa posição solidária em face das vicissitudes (por exemplo, perdas patrimoniais) decorrentes da execução do acto administrativo.
É de excluir dessa situação de solidariedade, justificativa de uma defesa comum, os interesses dos titulares ou dos trabalhadores das empresas relativamente ao proprietário dos prédios onde tais empresas possuam instalações, uma vez que os interesses de uns e outros se afiguram perfeitamente distintos, quer do ponto de vista jurídico quer do ponto de vista prático.
Parece, aliás, óbvio que o Agravante na mera qualidade de senhorio (se é que existe algum contrato de arrendamento, que não se vê nos autos) não oferece garantias de produzir alegações credíveis sobre a situação económica das empresas, designadamente sobre a inviabilidade da sua transferência para outras instalações alternativas.
Assim, os pretensos prejuízos dos referidos terceiros eram no caso irrelevantes, como bem se decidiu em 1ª instância.
No que se refere aos prejuízos com repercussão na esfera jurídica do próprio requerente, ainda que as despesas de demolição do piso superior e reposição da cobertura do piso inferior, com algum excesso de generosidade, pudessem considerar-se factos notórios atendíveis sem necessidade de alegação e prova (artigo 514º do CPC), o certo é que sempre se trataria de despesas perfeitamente contabilizáveis e, portanto, desenquadradas do conceito de “prejuízo de difícil reparação” que constitui requisito necessário à concessão da providência requerida.
Finalmente, o presente meio acessório é, pelo seu carácter acessório e urgente, necessariamente dotado de uma tramitação célere, simplificada e rígida, que não comporta a possibilidade de convite para aperfeiçoamento dos articulados e, muito menos, para concretização de matéria de facto que nem sequer foi alegada, mas simplesmente omitida, em flagrante alheamento do ónus de especificação dos fundamentos do pedido que incumbia ao requerente, nos termos do artigo 77º/2 da LPTA.
Pelo exposto, considerando a decisão recorrida imune às críticas que lhe são desferidas, acordam em negar provimento ao recurso.”

3. O exposto evidencia que a razão que fundamenta a interposição do presente recurso é a alegada contradição nas decisões acabadas de transcrever, contradição que decorria do facto de – estando em causa a eventual relevância dos prejuízos causados a terceiros (inquilinos) na suspensão de eficácia de um acto – num caso, o Acórdão recorrido, atendeu-se a esses danos ao passo que no outro, o Acórdão fundamento, os mesmos foram completamente desconsiderados.

4. A admissão de um recurso para uniformização de jurisprudência depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
a) a existência de decisões contraditórias, expressas e não implícitas, entre Acórdãos do STA ou deste e do TCA ou entre acórdãos do TCA, sendo certo que só se pode falar em decisões contraditórias quando subjacente a tais decisões esteja o mesmo quadro normativo e realidades factuais iguais ou substancialmente semelhantes e, portanto, quando a divergência de soluções tiver resultado apenas de divergente interpretação jurídica;
b) que essa contradição recaia sobre a mesma questão fundamental de direito;
c) que tenha havido o trânsito em julgado dos Acórdãos impugnado e fundamento;
d) e que haja desconformidade da orientação perfilhada no acórdão impugnado com a jurisprudência mais recentemente consolidada no STA (Vd. art.º 152.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPTA e, entre muitos outros, os Acórdãos do Pleno deste Supremo de 7/05/2008 (rec. 241/08) e de 25/11/2009 (rec. 645/09) e a inúmera jurisprudência neles citada.).

Sendo certo que a jurisprudência deste Tribunal tem acrescentado como condição de admissão do recurso que a contradição de julgamentos se refira a decisões expressas e não a julgamentos implícitos (Vd. art.º 152.º/1 do CPTA e, entre muitos outros, Acórdãos do Pleno da 1ª Secção de 16/09/2010 (proc. 262/10), de 18/10/2010 (proc. 355/10) e de 18/11/2011 (proc. 482/11).
Sendo assim, e sendo que inexiste controvérsia quanto à verificação dos requisitos indicados nas mencionadas al.ªs c) e d), resta apurar se, subjacente às decisões proferidas nos Acórdãos em confronto, está o mesmo quadro normativo e idêntica realidade fáctica e se, por essa razão, a alegada contradição de julgamentos se ficou apenas a dever a divergente interpretação de normas jurídicas. Pois que só se assim for é que o recurso poderá prosseguir para que se conheça do seu mérito.

5. Ora, a leitura dos identificados Acórdãos evidencia que não se mostram reunidos os apontados requisitos.
Desde logo, porque tais Arestos não se fundaram no mesmo quadro legislativo. Com efeito, enquanto a decisão proferida no Acórdão sob censura se baseou no regime estabelecido nos art.ºs 112.º e seg.s do CPTA, designadamente no seu art.º 120.º, o Acórdão do TCA Norte fundamentou o seu julgamento no regime previsto na LPTA, maxime no seu art.º 76.º, regimes esses que, apesar das suas similitudes, são significativamente diferentes não só quanto ao enquadramento do periculum in mora como no tocante à ponderação de interesses.
Depois, porque a factualidade presente em ambos os Acórdãos em confronto é dissemelhante. Num caso - a situação dos autos - estava em causa a realização de obras num prédio degradado e os prejuízos que poderiam advir do imediato cumprimento do acto que as ordenou, no outro - o Acórdão fundamento - estava em causa uma ordem de demolição de obras ilegalmente realizadas e os prejuízos que causaria a sua imediata execução.
Acresce que os Acórdãos em questão suportaram as suas decisões na análise de diferentes requisitos da suspensão de eficácia. E isto porque no caso sub judice a sentença não foi atacada por ter julgado verificados os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora visto esse ataque se ter limitado a censurar a forma como ela analisou a ponderação de interesses e, porque assim foi, o Acórdão recorrido cingiu a sua análise à verificação (ou não verificação) desse requisito, enquanto que o Acórdão fundamento debruçou-se sobre uma sentença que julgou não verificado o periculum in mora e, por essa razão, limitou a sua análise a verificar se a sentença tinha feito correcto julgamento no tocante à não verificação desse requisito.
Finalmente, porque só se pode falar em oposição de julgados quando os Arestos alegadamente em contradição tiverem proferido decisão expressa sobre a mesma questão fundamental de direito e, portanto, tiverem discorrido juridicamente sobre ela não sendo possível antever essa oposição quando apenas uma das decisões for expressa e a outra implícita (Vd., entre outros, Acórdãos do Pleno de 15/3/01 (rec. 46.515), de 15/11/01 (rec. 47.042), de 21/2/02 (rec. 45.589), de 3/10/02 (rec. 1335/02), de 18/02/2010 (rec. 508/08) e de 19/01/2012 (rec. 566/11).). Sendo assim, e sendo que o Acórdão recorrido se limitou a sufragar o modo como a sentença fez a ponderação de interesses já que concordou que o prédio se encontrava “num avançado estado de degradação que se vai acentuando com o tempo e que agrava as condições da insalubridade e da insegurança especialmente para as pessoas que o habitam” e que, por ser assim, o dano patrimonial que resultava para a Requerente da não concessão da medida cautelar requerida deveria ceder perante o interesse público da segurança e da salubridade do espaço urbano, é manifestamente evidente que aquele Aresto não emitiu qualquer pronúncia expressa sobre a questão que o Recorrente considera ter sido julgada contraditoriamente visto nada ter dito sobre a relevância, nessa ponderação, dos interesses de terceiros que poderão ser afectados pelo (in)deferimento da providência.

É certo que se poderá ver no discurso do Acórdão recorrido uma admissão implícita da relevância dos interesses de terceiros no decretamento da providência mas também o é que o mesmo não indicou qual a importância que lhes atribuiu, tanto mais quanto é certo que a sua decisão parece ter tido sobretudo em conta o interesse público na segurança e a salubridade do edifício. Seja como for a verdade é que aquele Aresto não se pronunciou expressamente sobre a questão que o Recorrente identifica como a sendo questão fundamental de direito deste recurso - ao invés do que sucedeu com o Acórdão fundamento – e, porque assim é, também não se verifica este requisito de admissibilidade deste recurso.

Termos em que os Juízes do Pleno da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo acordam em declarar não verificada a alegada contradição de julgamentos e, em consequência, julgar findo o recurso.
Custas pela Recorrente.
Sem publicação.

Lisboa, 15 de Outubro de 2014. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – Alberto Augusto Andrade de Oliveira - Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Jorge Artur Madeira dos Santos – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – António Bento São Pedro – José Augusto Araújo Veloso – Maria Fernanda dos Santos Maçãs – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano.