Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0439/14.4BECBR
Data do Acordão:09/08/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULA CADILHE RIBEIRO
Descritores:IRS
BOLSA DE FORMAÇÃO
MÉDICO
VAGA
Sumário:I - A bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial, deve ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores pois o seu escopo é o de estimular a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico.
II - Como corolário dessa opção, a quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo a título de bolsa de formação, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal e, por isso, fora da incidência objectiva da norma de exclusão da tributação (art. 2º n.ºs 3 al. b) e 8 al. c) CIRS em vigor à data dos factos), sendo que, ao invés, estes rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte no momento do seu pagamento ou colocação à disposição nos termos do artigo 99°,1 do CIRS e do Decreto-Lei n° 42/91 de 1991-01-22.
III - A Administração Tributária não viola o princípio da confiança se antes não adotou um qualquer comportamento suscetível de criar uma legítima expetativa no contribuinte da não sujeição de tais verbas a imposto.
Nº Convencional:JSTA00071237
Nº do Documento:SA2202109080439/14
Data de Entrada:07/17/2020
Recorrente:A...............
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Objecto:SENT TAF COIMBRA
Decisão:NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional:art. 02.º, art. 99.º, do CIRS
art. 48.º da LGT
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. Relatório
1.1. A……………., identificado nos autos, recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, que julgou improcedente a impugnação judicial dirigida contra as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), referentes aos anos de 2011 e 2012.

1.2. O Recorrente conclui da seguinte forma as suas alegações de recurso:
«1. O presente recurso tem como objecto a decisão de 3 de Janeiro de 2020 que julgou como improcedente a impugnação judicial.
2. Conclui o Tribunal a quo que a bolsa de formação em análise constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal, consequentemente fora da incidência objectiva da norma de exclusão da tributação.
3. Mais entendeu o Tribunal a quo quanto à violação do princípio da protecção da confiança, que a questão não foi bem enquadrada, concluindo pela improcedência total da impugnação.
4. Impõe-se fazer um enquadramento jurídico quer da bolsa de formação em apreciação, quer do conceito de rendimento de trabalho dependente (designadamente de remunerações acessórias), para aferir se a mencionada bolsa se subsume ao conceito de remuneração acessória, como defende o Tribunal a quo.
5. No que se refere ao regime jurídico dos internatos médicos, o mesmo encontra-se regulado pelo Decreto-Lei nº 203/2004, de 18 de Agosto, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei nº 45/2009, de 13 de Fevereiro, diploma que procurou redefinir o regime jurídico da formação após a licenciatura em Medicina, com vista à especialização, estabelecendo os princípios a que deve obedecer o respectivo processo.
6. Nos termos do seu artigo 2º, nº 1, "Após a licenciatura em Medicina, inicia-se o internato médico, corresponde a um processo único de formação médica especializada, teórica e prática, tendo como objectivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na respectiva área profissional de especialização".
7. Os internos são, em princípio colocados, nos locais de formação, mediante a celebração de contrato de trabalho em funções públicas com a administração regional de saúde ou com as Regiões Autónomas, na modalidade de contrato a termo resolutivo incerto ou, no caso do internato ser titular de uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado constituída previamente, mediante comissão de serviço. O contrato vigora pelo período de duração estabelecido para o respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições e interrupções.
8. Assim, o Decreto-Lei nº 45/2009, de 13 de Fevereiro, veio aditar o artigo 12º-A, sob a epigrafe “Vagas Preferenciais", e passou a prever-se a atribuição de uma bolsa de formação aos médicos internos que preencham uma vaga preferencial, bem como a obrigatoriedade daqueles, após o internato ficarem a realizar trabalho para o estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período não inferior ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições. Em caso de incumprimento desta obrigação, o interno terá de devolver a totalidade ou parte do montante da bolsa recebida.
9. É precisamente a percepção desta bolsa de formação prevista no nº 8 do artigo 12º-A, do Decreto-Lei nº 203/2004, de 18/08, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 45/2009, de 13/02, que está em causa nos presentes autos, mais concretamente se tal bolsa deve ser tributada em sede de IRS ou se, pelo contrário, a mesma não constitui rendimento tributável, à luz do disposto no artigo 2º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ICIRS).
10. O artigo 2º do CIRS, tipifica, de forma muito ampla e abrangente, a incidência de imposto no que respeita aos rendimentos provenientes do trabalho dependente, ou seja é rendimento da categoria A tudo o que o trabalhador receba, em dinheiro ou em espécie ou sob a forma de quaisquer vantagens, salvo o expressamente exceptuado pela lei, desde eu tais rendimentos tenham natureza remuneratória, ou seja, eu tenham sido auferidos em razão da prestação de trabalho.
11. Tal entendimento é confirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que se tem pronunciado no sentido de que os rendimentos auferidos com natureza meramente compensatória não estão abrangidos no âmbito da incidência do IRS (cfr. Acórdão do STA, de 07/12/-2011, Processo nº 0713/11, disponível in www.dgsi.pt).
12. A remuneração base auferida pelo Recorrente em face do seu contrato de trabalho em funções públicas é fixada nos termos do disposto no artigo 214º do RCTFP. À remuneração base acrescem suplementos remuneratórios previstos e devidos nos termos do artigo 73º da Lei 12-A/2008, de 27/02, nos quais não se encontra prevista a bolsa de formação auferida pelo Recorrente, recebida por efeito de preenchimento de uma vaga preferencial.
13. Tal bolsa de formação é concedida ex lege, por força do nº 8 do artigo 12º-A do Decreto-Lei nº 45/2009, de 13/02, e assume uma natureza compensatória no âmbito do processo de formação médica especializada, concedida ao médico que ocupe uma vaga preferencial, em contrapartida da obrigação de, após realização do respectivo internato, permanecer ao serviço do estabelecimento onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial e por um período igual ao do programa de formação médica especializada, restringindo, dessa forma a liberdade de escolha e de exercício do seu trabalho.
14. Tal obrigação, além de futura (por apenas se poder efectivar após o internato), é eventual, pois conforme resulta do nº 5 do artigo 12º-A, do Decreto-Lei nº 45/2009, de 13/02, a mesma depende da celebração de um (novo) contrato de trabalho em funções públicas, precedido de um processo de recrutamento onde serão considerados e ponderados o resultado da prova de avaliação final do internato médico e a classificação obtida em entrevista de selecção.
15. Na situação em apreço, o Recorrente assumiu a obrigação perante a Direcção Regional de Saúde dos Açores, tendo prestado funções no Hospital da Horta, EPE, tendo sido esta entidade que efectuou o pagamento da referida bolsa de formação, durante o internato, a qual ascendeu ao montante anual de € 9.000,00.
16. Por outro lado, resulta ainda que a referida bolsa de formação não tem interesse exclusivamente para o interno, que assegura uma vaga para prestar o seu trabalho como médico especialista, mas também, e especialmente, para a entidade pagadora, isto é a futura entidade empregadora, na medida em que assegura o recrutamento de médicos especialistas em áreas onde têm carência de profissionais.
17. Resulta assim, que a bolsa de formação é uma compensação pela obrigação futura que os médicos internos assumem, não existindo correlação entre a bolsa de formação e a prestação de trabalho enquanto interno, pelo que não derivando esse montante de qualquer prestação de trabalho presente e efectiva, é de afastar o seu carácter remuneratório, seja a título principal ou acessório.
18. Tal ilação pode ainda ser retirada do facto de, o incumprimento da obrigação de permanência, bem como a não conclusão do respectivo internato médico por motivo imputável ao médico interno, implicar a devolução do montante de bolsa de formação (cfr. Nº 10 do artigo 12º-A do Decreto-lei nº 45/2009, de 13/02), o que não sucederia se tal bolsa tivesse carácter remuneratório.
19. No mesmo sentido se pronunciou o TCA Sul, no acórdão de 12-01-2017, processo nº 09966/16 (disponível in www.dgsi.pt), no qual se refere: "Em conclusão, a bolsa de formação em causa não constitui uma acessória derivada de uma prestação de trabalho dependente, antes, um incentivo pecuniário atribuído, a tÍtulo compensatório, no âmbito de um processo de formação profissional, ao médico interno que ocupe uma vaga preferencial, em contrapartida da obrigação por ele assumida de, findo o internato, permanecer ao serviço do estabelecimento onde se verificou a necessidade que deu lugar àquela vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada."
20. Em idêntico sentido o Acórdão do STA de 31-01-2018 (processo n.º 01331/16 in www.dgsi.pt) em que se refere que o propósito confesso da bolsa de formação "é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico".
21. Com base na fundamentação daqueles arestos, com os quais se concorda na integra, é de concluir, atento o carácter compensatório e não remuneratório da bolsa de formação, que o montante anual de € 9.000,00 auferido pelo Recorrente a esse título, não se encontra abrangido pelo disposto no artigo 2º do CIRS, pelo que não constitui rendimento tributável para efeitos daquele imposto.
22. Também não aceita o Recorrente o argumento do Tribunal a quo de falta de enquadramento devido da questão, nem tão pouco que a expectativa do Recorrente não era fundada, senão vejamos.
23. A actuação da administração tributária (AT), ao reclamar imposto sobre as bolsas de formação liquidadas nos anos de 2010 a 2012 é completamente iníqua e viola inequivocamente o princípio da confiança, constitucional e legalmente consagrado.
24. Lembre-se que os montantes colocados à disposição dos médicos internos são processados por estabelecimentos e serviços de saúde públicos, que integram a administração directa ou indirecta do Estado, que não retiveram ou declararam como tributáveis tais bolsas.
25. A administração fiscal, por seu turno, teve acesso às declarações enviadas por tais estabelecimentos e serviços e validou a sua não tributação nos anos de 2010 a 2012.
26. Tal validação passou pelo pré-preenchimento das declarações anuais de IRS, as quais não incluíam as bolsas de formação.
27. Naturalmente, os médicos internos, confiando na actuação da administração de saúde e da administração tributária, conformaram os seus comportamentos, assumindo como disponível todo o montante recebido a título de bolsa deformação.
28. Na verdade, cabia à administração de saúde determinar os rendimentos sujeitos à tributação, devendo a falta de retenção durante três anos fundar uma legítima expectativa de que tais montantes não eram sujeitos a retenção e a imposto.
29. Agora, ignorando tal actuação, vem a A.T. reclamar imposto, impondo um sacrifício inesperado e contrário à actuação pretérita da administração.
30. Há assim por parte da AT a prática de actos anteriores ao acto agora impugnado geradores de confiança no Recorrente de que tais montantes não estavam sujeitos a retenção na fonte.
31. Entende o Recorrente que esta actuação é violadora da confiança depositada pelos médicos na administração, pelo que é ilegal e injusta, sacrificando desadequada e desproporcionalmente as legítimas expectativas dos médicos internos em prol de uma eficácia a l 'outrance na cobrança de imposto.
32. Assim, face ao exposto, forçoso será concluir que a liquidação de IRS ora impugnada, na parte em que tributou o valor correspondente à bolsa de formação, é ilegal, por erro nos pressupostos de direito, impondo-se a sua anulação parcial.
PELO EXPOSTO,
Deverá ser dado provimento ao recurso e proferido acórdão que revogue a sentença recorrida e que determine que, atento o carácter compensatório, e não remuneratório, da bolsa de formação em análise, não se encontrando os valores recebidos a esse título sujeitos a tributação para efeitos de IRS.
Para além de que, a actuação da administração tributária é atentatória do princípio da confiança, plasmado nos artigos 2º e 266º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 6º A do Código de Procedimento Administrativo (CPA), pelo que, sem embargo do que supra se expendeu sobre a não sujeição a imposto das bolsas de formação, deve ser o acto de liquidação das mesmas declarado nulo, Assim se fazendo a costumada justiça!»

1.3. O representante da Fazenda Pública não contra-alegou.


1.4. O excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto do Supremo Tribunal Administrativo emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

2. Fundamentação de facto
O Tribunal a quo fez o seguinte julgamento da matéria de facto:
«1. O Impugnante exerceu funções como médico de internato no Hospital da Horta, E.P.E., durante os anos de 2011 e 2012, ocupando uma vaga preferencial na especialidade de cirurgia geral – cfr. docs. 1, 2 e 7 juntos com a p.i.;
2. Nos anos em causa o Impugnante recebeu, a título de bolsa, o valor de 9.000,00€ anuais, que não inscreveu nas declarações modelo 3 de IRS – cfr. doc. 2 junto com a p.i. e confissão;
3. Em 20-12-2013 o Impugnante entregou declaração de substituição referente ao ano de 2011, da qual fez constar, como rendimento de trabalho dependente, o valor de 34.313,50€, englobando o valor da bolsa mencionada em 2 – cfr. declaração de rendimentos junta como doc. n.º 3 com a p.i.;
4. Na mesma data o Impugnante entregou declaração de substituição referente ao ano de 2012, da qual fez constar, como rendimento de trabalho dependente, o valor de 31.159,64€, englobando o valor da bolsa mencionada em 2 – cfr. declaração de rendimentos junta como doc. n.º 8 com a p.i.;
5. Em 04-01-2014, no nome do Impugnante, foi emitida a liquidação de IRS e juros compensatórios n.º 2014 4000001519, no valor de €3.778,16 – cfr. liquidação junta como doc. n.º 6 com a p.i.;
6. Em 18-01-2014 foi emitida a nota de compensação de IRS n.º 2014 00000233564, relativa ao exercício de 2011, no valor a pagar de €3.748,46 cujo prazo de pagamento terminava a 19-02-2014 – cfr. nota de compensação junta como doc. n.º 5 com a p.i.;
7. Em 04-01-2014, no nome do Impugnante, foi emitida a liquidação de IRS e juros compensatórios n.º 2014 4000004127, no valor de €2.955,58 – cfr. liquidação junta como doc. n.º 11 com a p.i.;
8. Em 18-01-2014 foi emitida a nota de compensação de IRS n.º 2014 00000234268, relativa ao exercício de 2012, no valor a pagar de €3.221,30 cujo prazo de pagamento terminava a 19-02-2014 – cfr. nota de compensação junta como doc. n.º 10 com a p.i.;
9. A p.i. da presente Impugnação foi remetida ao serviço de finanças de Coimbra-1, por correio eletrónico, em 19-05-2014 – cf. doc. 1 junto com as alegações do Impugnante;
*
Inexistem factos que importe dar como não provados.»

3. Fundamentação de Direito
3.1. A questão que se coloca no presente recurso é saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter julgado que o valor pago ao Recorrente foi recebido no âmbito da ação de formação de médico interno, não estando sujeito a tributação por constituir uma bolsa de formação, excecionada pelo artigo 2.º, n.º 8, alínea d), do Código do IRS, na redação aplicável à altura.

Esta questão, como dá nota o excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, tem vindo recorrentemente a ser apreciada por esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, recebendo resposta sempre coincidente no sentido de que constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal, consequentemente fora da incidência objetiva da norma de exclusão da tributação. É o caso dos acórdãos 31/01/2018, proc. 01331/16, 08/05/2019, proc. nº 02553/14.7BELRS, 22/05/2019, proc. nº 15/15.4BEPDL, 25/09/2019, proc. nº 0401/15.0BEAVR, 29/05/2019, proc. nº 017/15.0BEPDL, 21/11/2019, proc. nº 016/15.2BEPDL, 17/02/2021, proc. nº 0577/13.0BEAVR e de 13/07/2021, proc. nº 01044/15.3BESNT, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Acompanha-se este entendimento, por inexistirem motivos para do mesmo discordar, assumindo a fundamentação exarada no primeiro dos acórdãos indicados, e no qual consta:
«Dispunha a alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos – que a sentença recorrida julgou aplicável ao caso dos autos -, que estavam excluídas de tributação “as prestações relacionadas exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores, quer estas sejam ministradas pela entidade patronal, quer por organismos de direito público ou entidade reconhecida como tendo competência nos domínios da formação e reabilitação profissionais pelos ministérios competentes”.

No caso dos autos, o ora recorrido exerceu funções na Unidade de Saúde Familiar do Centro de Saúde de …… durante o exercício de 2011, ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto, na qualidade de médico interno em regime de vaga preferencial e entre Janeiro e Dezembro de 2011, a Administração Regional de Saúde do Algarve, I. P. emitiu recibos de vencimento ao Recorrido, onde consta o pagamento de uma bolsa de formação com uma periodicidade mensal e no valor de € 750.

Ora, nos termos do artigo 2.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto (diploma que estabelece o regime jurídico do internato médico), na redação em vigor à data dos factos, “após a licenciatura em Medicina, inicia-se o internato médico, que corresponde a um processo único de formação médica especializada, teórica e prática, tendo como objectivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na respectiva área profissional de especialização”.

Ou seja, o internato médico corresponde ao período de exercício da Medicina que se segue, imediatamente, à conclusão da respetiva licenciatura. Neste período de internato, e ao abrigo de um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, os médicos internos exercem a sua profissão e recebem, simultaneamente, formação especializada de cariz teórico e prático (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).

Por força da aprovação do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, foi aditado ao Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto o artigo 12.º-A, com a epígrafe “vagas preferenciais”, através do qual foi criada uma distinção ao nível das vagas do internato médico, a saber: as vagas comuns e as vagas preferenciais. Nos termos do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, a introdução desta distinção foi motivada pela revogação do contrato administrativo de provimento (operada no âmbito das alterações introduzidas ao regime legal da função pública pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro e pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro), o que obrigou à criação de uma nova forma de vinculação dos médicos internos através da qual pudesse ser assegurado o exercício de funções próprias do serviço público que não revestissem carácter de permanência.

Pela sua importância para a decisão do caso sub judice, transcreve-se o artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto, com a epígrafe “Vagas Preferenciais” (aditado pelo Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro):

1 - No mapa de vagas previsto no n.º 6 do artigo 12.º, podem ser identificadas vagas preferenciais, destinadas a suprir necessidades de médicos de determinadas especialidades, as quais não podem exceder 30% do total de vagas estabelecidas anualmente.

(…)

3 - As vagas preferenciais são fixadas independentemente da existência de capacidade formativa no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que a elas deu lugar, podendo a formação decorrer em estabelecimento ou serviço diferente daquele, no caso de não existir idoneidade ou capacidade formativa.

4 - Os médicos internos colocados em vagas preferenciais assumem, no respectivo contrato, a obrigação de, após o internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições.

5 - O exercício de funções nos termos do número anterior efectiva-se mediante celebração do contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, o qual é precedido de um processo de recrutamento em que são considerados e ponderados o resultado da prova de avaliação final do internato médico e a classificação obtida em entrevista de selecção a realizar para o efeito.

(…)

8 - O preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação, que acresce à remuneração do interno, de valor e condições a fixar por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde, sem prejuízo do recurso a outros regimes de incentivos legalmente previstos.

(…)

10 - O incumprimento da obrigação de permanência prevista no n.º 4, bem como a não conclusão do respectivo internato médico por motivo imputável ao médico interno, salvo não aproveitamento em avaliação final de internato, implica a devolução do montante percebido, a título de bolsa de formação, sendo descontados, proporcionalmente, os montantes correspondentes ao tempo prestado no estabelecimento ou serviço de saúde onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, a contar da data de conclusão do respectivo internato médico.

(…)

Importa, pois, compreender o “estatuto especial” conferido aos médicos em regime de vaga preferencial nos termos do artigo 12º-A transcrito, por oposição ao estatuto dos médicos internos em regime de vaga normal. Assim:

1. À semelhança dos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial celebram um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, ao abrigo do qual exercem a profissão de Medicina de forma remunerada e recebem formação especializada de cariz teórico e prático (artigos 2.º e 20.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).

2. Contrariamente aos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial:

a. Assumem a obrigação de, após internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto); e

b. Gozam do direito ao recebimento de uma bolsa de formação, que acresce à respetiva remuneração de médico interno (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).

Em face do exposto, parece evidente que aquilo que distingue uma vaga normal de uma vaga preferencial não é a existência de uma oferta formativa diferenciada ou alargada para os médicos internos que ocupam as vagas preferenciais, antes o facto de os médicos internos em regime de vaga preferencial assumirem a obrigação de, após o internato, exercerem funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial.

Afigura-se-nos, pois, duvidoso que, apesar da designação que o legislador lhe atribui, a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial deva ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores e como tal excluída de tributação em IRS, como julgado pela sentença recorrida, pois sendo embora verdade a conexão desta com a formação especializada dos médicos que a recebem, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de Medicina em regime de internato, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico, como, aliás, é reconhecido pelo recorrido nas suas contra-alegações de recurso.

Não pode, pois, manter-se o decidido, que julgou procedente a impugnação em razão da aplicação do disposto na alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.”.

Como refere o MP o regime jurídico da formação médica não integra um conceito normativo de bolsa de formação, designadamente definindo-a como uma comparticipação compensatória nas despesas inerentes à formação do médico interno no decurso do internato e nos termos daquele regime jurídico a bolsa de formação é considerada um incentivo pecuniário que acresce à remuneração do interno.

Acrescenta, ainda, que o auferimento da quantia a título de bolsa de formação em função da prestação de trabalho ou em conexão com a prestação de trabalho resulta claramente da circunstância de o incumprimento da obrigação de permanência do médico interno no estabelecimento onde se verificou a necessidade de provimento de vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, implicar a devolução do montante percebido a título de bolsa de formação, na proporção do período do incumprimento, pelo que a quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo a título de bolsa de formação, assumindo a natureza de incentivo pecuniário associado ao exercício da actividade profissional do médico interno provido em vaga preferencial, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal, consequentemente fora da incidência objectiva da norma de exclusão da tributação (art. 2º n.ºs 3 al. b) e 8 al. c) CIRS em vigor à data dos factos)”.

No contexto que descrevemos e atento o disposto no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil que determina que nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, assumimos como nossa a fundamentação e decisão do acórdão reproduzido, o que conduz à improcedência do presente recurso com este fundamento.

3.1. Acontece que o Recorrente alegou, ainda, que a atuação da administração tributária viola o princípio da confiança. Refere, para tanto, que os montantes colocados à disposição dos médicos internos são processados por estabelecimentos e serviços de saúde públicos, que integram a administração direta ou indireta do Estado, que não retiveram ou declararam como tributáveis tais bolsas. E que a administração tributária, por seu turno, teve acesso às declarações enviadas por tais estabelecimentos e serviços e validou a sua não tributação nos anos de 2010 a 2012, que passou pelo pré-preenchimento das declarações anuais de IRS, as quais não incluíam as bolsas de formação. Os médicos internos, confiando na atuação da administração de saúde e da administração tributária, conformaram os seus comportamentos, assumindo como disponível todo o montante recebido a título de bolsa deformação, pois, diz, cabia à administração de saúde determinar os rendimentos sujeitos à tributação, devendo a falta de retenção durante três anos fundar uma legítima expectativa de que tais montantes não eram sujeitos a retenção e a imposto. A administração tributária, ignorando tal atuação, vem reclamar imposto, impondo um sacrifício inesperado e contrário à atuação pretérita da administração. Concluiu que há assim por parte da administração tributária a prática de atos anteriores ao ato agora impugnado geradores de confiança no Recorrente de que tais montantes não estavam sujeitos a retenção na fonte. Atuação que no seu entendimento é violadora da confiança depositada pelos médicos na administração, pelo que é ilegal e injusta, sacrificando desadequada e desproporcionalmente as legítimas expectativas dos médicos internos em prol de uma eficácia a l 'outrance na cobrança de imposto.
A Administração Tributária, como se referiu, não contra-alegou.
Vejamos.
A atividade da administração tributária visa a prossecução do interesse público que, relativamente ao sistema fiscal, se traduz, em primeira linha, na obtenção de receitas para satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé – artigos 103.º, n.º 1, e 266.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. Muito embora o artigo 55.º da Lei Geral Tributária (LGT), que enumera os princípios do procedimento tributário, não faça referência a este princípio da boa-fé, a sua aplicação é imposta pela Constituição, e está ínsito no princípio da colaboração entre a administração tributária e os contribuintes (artigo 59.º da LGT). Ao princípio da boa-fé refere-se hoje o artigo 10.º do Novo Código de Procedimento Administrativo (NCPA) (que corresponde ao artigo 6.º-A do CPA anterior ao Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07 de janeiro), que estabelece que no exercício da atividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé (n.º 1) e que, no seu cumprimento, devem ponderar-se os valores fundamentais de Direito relevantes em face das situações consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa e o objetivo a alcançar com a atuação empreendida (n.º 2).
Por seu turno, o artigo 48.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), concretizando os deveres de colaboração da administração tributária com os contribuintes, estabelece que “A administração tributária esclarecerá os contribuintes e outros obrigados tributários sobre a necessidade de apresentação de declarações, reclamações e petições e a prática de quaisquer outros actos necessários ao exercício dos seus direitos, incluindo a correcção dos erros ou omissões manifestas que se observem” (n.º 1) e que “O contribuinte cooperará de boa-fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso” (n.º 2).
A jurisprudência tem entendido que a violação por parte da Administração Tributária das regras da boa-fé, constituiu um vício autónomo de violação de lei, admitindo que a relevância do princípio não se esgota nos atos praticados no exercício de poderes discricionários, mas tem aplicação também quando em causa está o exercício vinculado dos poderes – cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06/07/2011, processo n.º 0589/11.

Violou a atuação da Administração Tributária, no caso concreto, o princípio da boa-fé. como defende o Recorrente?
Entendemos que não. A convicção do Recorrente de que as verbas em causa não estavam sujeitas a imposto foi criada por entidades diferentes da Administração Tributária, designadamente pelos estabelecimentos e serviços de saúde públicos que processaram os vencimentos e que não retiveram ou declararam como tributáveis tais bolsas. A Administração Tributária nos anos em causa, como refere na sua contestação, limitou-se a proceder ao pré-preenchimento da declaração de IRS, de acordo com a Declaração Modelo 10 remetida pela entidade processadora dos rendimentos (entidade terceira) - cf. artigo 119.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS. Ora, esta atuação da Administração Tributária, como que automática, que se limita a receber os dados remetidos por terceiros e a processá-los, não revela um qualquer entendimento seu sobre a questão que aqui tratamos e, por isso, é incapaz de, por si, criar qualquer expetativa no contribuinte. Ou seja, se foi criada uma expectativa no contribuinte de que as verbas não seriam tributadas, tal não se deveu a qualquer comportamento da Administração Tributária. E, por assim ser, ao liquidar o imposto dentro do prazo de caducidade previsto na lei (artigo 45.º da LGT), a Administração Tributária atuou em conformidade com a lei sem pôr em causa o princípio da boa-fé. A entender-se o contrário, no limite, a Administração Fiscal ficaria impedida de corrigir uma qualquer ilegalidade de que padecesse a liquidação porque, uma vez feita, revelaria uma aceitação implícita dos seus elementos, e essa correção iria contrariar o que antes tinha sido por si aceite, violando desse modo o princípio da confiança e da boa-fé, o que não é aceitável.
Improcede também este fundamento de recurso, não merecendo censura a sentença recorrida que assim entendeu.

4- Decisão
Pelo exposto, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 08 de setembro de 2021
Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro (Relatora, que consigna e atesta, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que têm voto de conformidade com o presente acórdão os Senhores Juízes Conselheiros que integram a presente formação de julgamento, Francisco António Pedrosa de Areal Rothes e Joaquim Manuel Charneca Condesso).