Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0950/12
Data do Acordão:01/16/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LINO RIBEIRO
Descritores:MAIS VALIAS
REINVESTIMENTO
EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
Sumário:I - Para efeito de exclusão de tributação das mais-valias, a quantia a reinvestir na nova habitação corresponde ao montante recebido com a venda da habitação antiga e não à diferença entre esse valor e o valor que foi pago com a sua aquisição;
II - Antes da entrada em vigor da Lei nº 109-B/2001 de 27 de Dezembro, não beneficiava da exclusão tributária prevista na aliena c) do nº 5 do artigo 10º do CIRS, o contribuinte que utilizasse o produto da alienação do imóvel na amortização do empréstimo que contraiu para a sua aquisição;
III - Sendo o reinvestimento meramente parcial, a exclusão da tributação cingir-se-á apenas à parte da mais-valia tributável proporcional ao reinvestimento efectuado.
Nº Convencional:JSTA000P15126
Nº do Documento:SA2201301160950
Data de Entrada:09/17/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A... E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1.1. A Fazenda Pública interpõe recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial que A…… e B……, com os sinais dos autos, fizeram da liquidação do IRS do ano de 2000, no montante de €53.049,90.
Nas respectivas alegações, concluem o seguinte:
1. Estabelecia, ao tempo dos factos, o n.º 5 do art. 10º do CIRS que seriam excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, nas seguintes condições: a) Se, no prazo de 24 meses contados da data de realização, o produto da alienação for reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para a construção de imóvel, ou na construção, ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino, e desde que esteja situado em território português.
2. A propósito da exclusão da tributação dos ganhos em causa e no sentido de que a mesma depende do reinvestimento do produto da alienação na aquisição de outro imóvel, foi manifestado nos acórdãos do STA de 14/1/2004, proc. 01357/03, de 12/3/2003, proc. 1721/02, e de 7/12/2004, proc. 0938/04, respectivamente, o seguinte entendimento: “(…), o que o legislador pretende é o reinvestimento do produto da venda numa nova aquisição, (...)”; “(...): o que é reinvestido é o produto da alienação. Costuma dizer-se que a lei não contém palavras inúteis, e, de facto, não é inútil a lei utilizar as palavras produto da alienação” e “como tem vindo a decidir uniformemente este Supremo Tribunal Administrativo, está em causa o reinvestimento do «produto da alienação», a utilização do montante recebido com a alienação na aquisição do novo imóvel.”
3. Ora, no caso vertente, tendo o imóvel descrito no nº 2 dos factos provados sido alienado pelo valor de EUR: 399.038,32 (cf. nº 7 dos mesmos factos), seria esse o montante que, para os efeitos em causa, deveria ter sido objecto de reinvestimento na subsequente aquisição do novo imóvel, por corresponder, precisamente, ao designado produto da alienação.
4. No entanto, tal não se verificou, tendo em vista o valor de aquisição do novo imóvel (EUR: 523.737,79), bem como o valor do empréstimo contraído para o efeito (EUR: 249.398,95) e a alusão, constante da parte final da decisão em apreço, ao facto de apenas ter sido reinvestido o produto da venda no valor de EUR 249.398,95, resultando, assim, evidente a inobservância do preceituado no nº 5 do art. 10º do CIRS, por não ter sido reinvestido, na totalidade, o produto da alienação do imóvel, facto que obsta a que os ora impugnantes beneficiem da exclusão da tributação prevista no normativo em causa, razão pela qual, tendo a sentença recorrida decidido com base em entendimento contrário ao que resulta das presentes conclusões, violando o preceito legal supra transcrito, deverá a mesma ser revogada, com as legais consequências.

1.2. Houve contra-alegações.
1.3. O Ministério Público emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, com a revogação da sentença recorrida e a substituição por acórdão que ordene a reforma da liquidação de IRS em conformidade com o reinvestimento parcial do valor da realização.

2. A sentença deu como assentes os seguintes factos:

1. Até Dezembro 1998 os impugnantes habitaram num imóvel sito na Rua …… lote. …….., …….. em Lisboa (depoimento de C…….).
2. Em 11 de Agosto de 1998, os impugnantes adquiriram pelo preço de PTE 30.000.000 (EUR 149.639,37) um prédio urbano sito na Rua ……, n.º ……, freguesia de S. Jorge, Concelho de Lisboa, inscrito na matriz sob o artigo n.º ……, e, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, destinado a residência permanente (cfr. cópia da escritura fls. 29 a 32 do Processo Administrativo Tributário, de ora em diante designado de PAI - apenso reclamação).
3. Para aquisição do imóvel descrito no ponto anterior, os impugnantes recorreram a empréstimo junto do Banco de Investimento Imobiliário, S.A., pelo montante descrito no ponto anterior (cfr. cópia da escritura a fls. 29 a 32 do PAT — apenso reclamação).
4. Em 24 de Setembro de 1998, o ora impugnante A……. “contratou” com a EPAL Empresa Portuguesa das Aguas Livres S.A. o “contrato de abastecimento” n.º 9814158 para a morada Rua ….., n.º …..., freguesia de S. Jorge, Concelho de Lisboa (cfr. cópia do contrato fls. 48 dos autos).
5. Os ora impugnantes e sua família dormiam, tomavam as refeições e recebiam os amigos no imóvel descrito no ponto n.º 3 (depoimentos convergentes de C……, D…….).
6. Em 1 de Janeiro de 2000 os ora impugnantes mantinham o seu domicílio fiscal na Rua ……. lote. …….., …… em Lisboa (cfr. print de finanças a fls. 86 do PAT).
7. Em 5 de Abril de 2000, por escritura pública outorgada no 21.º Cartório Notarial de Lisboa, os impugnantes venderam por PTE 80.000.000 (EUR 399.038,32), o imóvel descrito no ponto n°3 (cfr. cópia da escritura fls. 25 a 28 do PAT).
8. Na declaração de rendimentos, “modelo 3”, respeitante ao exercício de 2000, os impugnantes declararam no “anexo G, quadro 5, campo 13” o preço da venda com o valor de PTE 80.000.000 (EUR 399.038,32) e a “intenção de reinvestimento” (cf. cópia fls. 75 e 76 do PAT e fls. 4 a 7 do apenso reclamação).
9. Em 21 de Setembro de 2001, por escritura pública outorgada no 22.° Cartório Notarial de Lisboa, os impugnantes adquiriram por PTE 105.000.000 (EUR 523.737,79), um imóvel destinado a habitação própria e permanente, sito na Rua …….., números ….. e ……, freguesia de S. João de Brito, concelho de Lisboa, inscrito na matriz sob o artigo ….. e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa (cfr. cópia da escritura a fls. 9 a 20 do PAT - apenso reclamação).
10. Para aquisição do imóvel descrito no ponto anterior, os impugnantes recorreram a empréstimo junto do Banco Crédito Predial Português, S.A., no valor de PTE 50.000.000 (EUR 249.398,95) (cfr. cópia do contrato de mutuo com hipoteca a fls.12 a 20 do PAT apenso reclamação).
11. Os impugnantes na declaração de rendimentos respeitante ao exercício de 2001, não entregaram o anexo G com a declaração de reinvestimento (facto admitido por acordo, cfr. ponto n.º 8 da reclamação a fls. 33 do PAT - autos de reclamação).
12. Em 7 de Julho de 2004, a administração fiscal, procedeu à liquidação de IRS n.º 2004 5001136131 relativa ao exercício de 2000, referente aos impugnantes, no valor de EUR 56.728,20, com a data limite de pagamento de 27.9.2004 (cf. fls.73 a 74 do PAT e fls. 22 a 24 do apenso reclamação).
13. Em 17 de Dezembro de 2004, a ora impugnante B……. deduziu reclamação da liquidação descrita em 13., cujo conteúdo da reclamação se dá aqui por integralmente reproduzido e na qual consta o seguinte; (cfr. fls. 2 e 3 do PAT- autos de reclamação).
Exmo. Senhor Director de Finanças de Lisboa
B……. (...), vem apresentar RECLAMAÇÃO GRACIOSA contra a liquidação de IRS, nos termos do art. 140.° CIRS e dos art. 68.° e 70.° CPPT, respeitante à declaração Modelo 3, entregue em 4 de Maio de 2001, para que V. Exa,, se digna mandar rever a consequente liquidação, com os fundamentos seguintes:
1.º
A requerente entregou tempestivamente a declaração Modelo 3 — IRS, referente aos rendimentos auferidos durante o ano de 2000 (CFR DOC. 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
2.°
Na sua referida declaração a requerente entregou um anexo G referente às mais-valias ocorridas por força da alienação de um prédio urbano (...)
3.º
O montante das mais-valias obtidas foi de EUR 249.298,95;
4.º
No referido anexo G a requerente indicou que pretendia reinvestir as mais-valias obtidas pela operação descrita no artigo segundo desta reclamação.
5.º
Ora sucede que a requerente em 21 de Setembro de 2001 adquiriu um novo prédio urbano, para fins de habitação própria, pelo montante de EUR 623.497,37 (…);
6.º
Ainda no âmbito da aquisição do prédio urbano sito na Rua …….., n.° ……. e ……. em Lisboa, foi contraído um empréstimo junto da Companhia Geral de Crédito Predial Português, S.A., no montante de EUR 249.398,49
(cfr. doc...)
7.º
Com a operação descrita nos artigos anteriores a requerente, reinvestiu as mais-valias realizadas em 2000, tal como indicou no Anexo G do Modelo -IRS (...).
8.°
Pese embora substancialmente a requerente tenha efectivamente reinvestido as mais-valias, formalmente tal reinvestimento nunca chegou ao conhecimento da administração tributária, pois a requerente, por lapso, omitiu os factos descritos nos artigos 5.° e 6.° da presente reclamação;
9.º
Tal lapso deu origem a uma correcção à liquidação do IRS do ano 2000, no montante de EUR 56.728,20 (...).
PEDIDO:
Nos termos e fundamentos alegados, vem a requerente solicitar a V. Exa. que se digne a anular a nota de liquidação, no que concerne ao valor do IRS, dos juros moratórios e compensatórios, suspendendo, consequentemente, o processo de execução fiscal que corre os seus termos nos Serviços de Finanças de Lisboa - 8.° Bairro, contra a requerente.”
14. Em 7 de Dezembro de 2006 foi proferida decisão no sentido do indeferimento da reclamação descrita no ponto anterior, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido (cfr. fls. 88 a 90 do PAT - autos de reclamação).
15. Em 15 de Dezembro de 2006 foi enviado o projecto decisão descrito no ponto anterior à reclamante por carta postal registada, com a concessão do prazo de 15 dias para o exercício do direito de audiência prévia (cfr. fls. 91 e 92 do PAT - autos de reclamação).
16. Em 2 de Janeiro de 2007 os ora impugnantes exerceram o direito de audiência prévia por escrito (cfr. fls. 93 a 98 do PAT - autos de reclamação).
17. Em 19 de Abril de 2007 foi proferida decisão de indeferimento da reclamação descrita no ponto anterior pelo director de finanças adjunto, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido e na qual consta o seguinte (cfr. a fls. 130 a 131 do PAT- auto de reclamação).
“(...), não poderá haver exclusão da tributação do ganho proveniente da transmissão onerosa do imóvel visto que, apesar de, a reclamante, ter adquirido um outro imóvel no prazo de 24 meses a contar da data da realização (alínea a) do n.°5 do artigo 10.° do CIRS) - o reclamante alienou o 1.° imóvel em 05-04-2000 e adquiriu o 2.° imóvel em 21-09-2001 - e de o ter destinado à sua habitação própria e permanente (arts.° 10°, n°6, alínea a) CIRS), cfr. “print” a fls. 87, este, aquando da venda do 1.º imóvel, tinha a sua residência própria e permanente na Rua ……. Lt. ……., …. ….., Lisboa, e não na morada do imóvel alienado - Rua ……, n° ….., cfr. “print” a fls. 86 e cópia da escritura de fls. 24 a 27. Por isso, a reclamante, está sujeita a tributação pela mais-valia - rendimento da Cat. G - resultante da alienação do imóvel sito na Rua ………, n.º ……., pelo montante de EUR 399.039,3 (alínea a), n°1, art.° 10º do CIRS).”
18. Em 30 de Abril de 2007 os ora impugnantes recepcionaram a carta postal registada com aviso de recepção, com a decisão de indeferimento descrita no ponto anterior (cfr. aviso de recepção assinado a fls. 135 do PAT- autos de reclamação).
19. Em 16 de Maio de 2007, deu entrada no Tribunal Tributário de Lisboa, a petição inicial da presente impugnação judicial (cfr. carimbo aposto a fls. 1 dos autos).

3.1. Sintetizando a matéria de facto, naquilo que é relevante para a questão jurídica colocada pela recorrente, constata-se o seguinte: (i) os recorridos compraram um prédio urbano em 1998, pelo preço de €149.639,37, onde instalaram a sua habitação própria e permanente; (ii) para o efeito, contraíram empréstimo bancário no montante da aquisição; (iii) em 2000 venderam esse prédio, pelo preço de €399,038,32, declarando a intenção de reinvestir tal quantia noutro prédio com o mesmo fim; (iv) em 2001 adquiriram outro imóvel destinado à sua habitação própria e permanente, pelo preço de €523.737,79; (v) para a aquisição deste prédio contraíram novo empréstimo bancário, no valor de €249.398,95; (vi) a administração tributária considerou rendimentos da categoria G os ganhos obtidos com a venda do prédio, liquidando o respectivo imposto no IRS de 2002, pelo facto dos recorridos não terem domicílio fiscal no prédio alienado.
Os recorridos impugnaram a liquidação, com dois fundamentos: (i) que habitaram e residiram permanentemente no prédio vendido, apenas não alteraram o domicílio fiscal pelo facto da sua anterior morada corresponder a uma casa de família onde tinham a acesso à correspondência, (ii) e que reinvestiram o produto da venda na nova habitação.
A sentença deu procedência aos dois argumentos, considerando que se verificaram os requisitos previstos na alínea a) do nº 5 do artigo 10º do CIRS, na versão vigente em 2000, ou seja: (i) que se provou que os recorridos e a sua família habitavam no prédio vendido; (ii) e que “a administração fiscal não pode concluir que não foi realizado o reinvestimento do valor do produto da venda, uma vez que o valor pago pelo imóvel, que os impugnantes alegam que foi objecto do seu investimento é superior à soma do valor do empréstimo contraído para a sua aquisição e o valor do produto da venda”; (iii) e isto porque, o reinvestimento a que se refere a lei “ é o do produto da realização ou valor de realização, ou seja, a diferença entre o valor pago pelo imóvel e o valor pelo qual o imóvel foi vendido, sendo este o montante que terá que ser investido na aquisição da nova habitação”.
A Administração Tributária discorda apenas deste último argumento, uma vez que, “ tendo o imóvel descrito no nº 2 dos factos provados sido alienado pelo valor de EUR: 399.038,32 (cf. n° 7 dos mesmos factos), seria esse o montante que, para os efeitos em causa, deveria ter sido objecto de reinvestimento na subsequente aquisição do novo imóvel, por corresponder, precisamente, ao designado produto da alienação”.
Como se vê, a dissensão está no facto da sentença recorrida julgar que, para efeitos de exclusão da tributação, o valor do reinvestimento corresponde à diferença entre o valor da realização e o valor da aquisição e a recorrente entender que corresponde ao valor da alienação. Ou seja, enquanto naquele entendimento deve ser reinvestido €249.398,95 (399,038,32–149.639,37), para a recorrente deve ser reinvestida a quantia de €399,038,32.
Todavia, os recorridos discordam que essa questão possa sustentar o recurso, uma vez que o acto impugnado teve por «único» fundamento a falta de residência permanente no prédio alienado, o qual foi julgado improcedente pela sentença recorrida, sem que a recorrente tivesse suscitado a reapreciação dessa questão.
Parece que, com esta contra-alegação, os recorridos consideram que a administração tributária veio aduzir um “novo fundamento” ao acto impugnado, sem que estivesse legitimada para o fazer no decurso do processo, dada a contextualidade do dever de fundamentação estabelecida no artigo 77º da LGT.
Mas, ainda que assim fosse, o alcance que a sentença de anulação projecta no ulterior desenvolvimento da relação tributária em que se inscreve o acto anulado, não pode deixar de abrir a porta ao direito da parte vencida impugnar o accertamento realizado pelo tribunal, sob pena de se formar caso julgado.
A verdade é que a posição que a demandada, ora recorrente, tomou na contestação não pode ser vista como alteração dos fundamentos ou como fundamentação posterior da liquidação impugnada. Embora o objecto da impugnação judicial esteja, à partida, delimitado pelos concretos fundamentos de facto e de direito em que se baseou o acto impugnado (cfr. arts. 99º, 108º, e 124º do CPPT), os impugnantes tomaram a iniciativa de ampliar o objecto do processo para além desses limites quando, nos artigos 41º a 44º da petição, alegaram a ilegalidade do acto impugnado com base em razões ou argumentos que não constava da sua fundamentação. Com efeito, para além de contestarem o facto de que não tinham residência permanente no prédio alienado, o contido na fundamentação do acto impugnado, fundaram a pretensão anulatória no facto de terem reinvestido o produto da alienação na aquisição de um novo prédio destinado ao mesmo fim. Com esta causa de pedir, o processo impugnatório não ficou limitado exclusivamente à apreciação dos fundamentos do acto impugnado, estendendo-se também ao quadro da relação material em ele se inscreve. E daí que o seu autor tenha o poder processual de contrariar, negar e repelir a pretensão anulatória dos impugnantes, invocando em juízo defesas que, embora não tendo sido antes invocadas, possam evitar a sua anulação.
Se o não fizesse, poderia correr dois riscos: não haver base para se admitir o aproveitamento do acto impugnado e já não poder utilizar esse fundamento para mais tarde renovar o acto. Como refere Aroso de Almeida, «o caso julgado da sentença de anulação não se limita, assim, a reconhecer a invalidade do acto sobre o qual recai, mas possui ainda o alcance de proceder ao accertamento negativo da posição consubstanciada no acto inválido, definindo se e em que medida o poder exercido com a prática do acto existia e podia ter sido exercido» (cfr. Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, pág. 201).
Ora, se a sentença recorrida anulou a liquidação com base na existência de exclusão tributária fundada no reinvestimento do valor da realização do prédio alienado, tal fundamento fica ao alcance da autoridade do caso julgado, impedindo que a administração tributária venha a reincidir na violação, quando a sentença transitar em julgado. Daí que, contrariamente ao defendido pelos recorridos, a questão possa ser reapreciada em segundo grau de jurisdição.

3.2. A questão fulcral consiste, pois, em determinar se a quantia que os recorridos auferiram com a venda da sua habitação foi “reinvestida” em termos de legitimar a exclusão de tributação dos ganhos que obtiveram com essa venda.
Estando assente que para adquirem o novo prédio também recorreram a um empréstimo bancário, o montante do empréstimo não pode fazer parte do capital reinvestido. É que esse montante não tem qualquer nexo de causalidade com o produto da alienação, sendo uma “nova” quantia investida num outro imóvel. Sobre a repercussão que o empréstimo bancário tem na exclusão da tributação das mais-valias, formou-se jurisprudência consolidada de que «o reinvestimento a que se referia o artigo 10º, nº 5 al. a) do CIRC e que levava à exclusão da tributação, era apenas o reinvestimento do produto da alienação, com exclusão do reinvestimento de um empréstimo bancário» (cfr. acs. do STA de 12/3/2003, rec nº 01721/02, de 28/1/2004, rec. 01359/03, de 3/3/2004, rec. nº 01774/03, de 20/4/2004, rec. nº 01876/03, de 2473/2004, rec nº 02053/03, de 28/9/2006, rec. nº 0125/06, de 24/3/2010, rec nº 01241/09).
Apenas a diferença entre o valor do empréstimo e o valor do prédio adquirido é que constitui reinvestimento para efeitos de integração na delimitação negativa expressa no nºs 5 do artigo 10º do CIRC. Ou seja, tendo o novo prédio sido adquirido por €523.737,79, com recurso a empréstimo bancário de €249.398,95, o reinvestimento corresponde a €274.338,84. Como o prédio antigo foi alienado por €399.038,32, não houve um reinvestimento total dessa quantia, sobrando ainda €124.699,49 do produto da alienação.
A sentença recorrida começa por errar quando considera que o produto da realização corresponde à «diferença entre o valor pago pelo imóvel e o valor pelo qual o imóvel foi vendido, sendo este o montante que terá que ser investido na aquisição da nova habitação». Erra, porque essa diferença não é o «produto da alienação», mas sim o «ganho» sujeito a imposto. Uma coisa são os pressupostos objectivos do imposto, a chamada incidência real, que no caso está definida na alínea a) do nº 4 do art. 10º do CIRS, medindo-se por aquela diferença, outra são os pressupostos da delimitação negativa da incidência ou da exclusão tributária, definidos na aliena a) do nº 5 do mesmo artigo, que tem por referência o «valor da realização» ou, na redacção então vigente, o «produto da alienação».
A norma da alínea a) do nº 5 do art.10º do CIRS, na redacção vigente à data da alienação do prédio, prescrevia que são excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados à habitação do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, «se no prazo de 24 meses contados da data da realização, o produto da alienação for reinvestido na aquisição de outro imóvel, de terreno para a construção de imóvel, ou na construção, ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino, e desde que esteja situado em território português» (redacção dada pela Lei nº 10-B/96 de 23/3).
Ora, o «produto da alienação» é a quantia recebida pelos vendedores a título de preço da venda. A obrigação essencial nessa espécie de contrato, o qual não pode subsistir sem ela, é a obrigação de pagar o preço (cfr. art. 874º do Ccv). Por definição, o preço é a expressão do valor em dinheiro, uma medida de valor expressa exclusivamente em dinheiro.
É essa medida que deve ser reinvestida na compra da nova habitação, para que haja exclusão de tributação nos ganhos obtidos com a venda da habitação antiga. A ratio legis dessa exclusão prende-se com o reconhecimento da protecção devida à aquisição ou melhoramento de imóveis destinados a habitação própria e permanente do contribuinte. Daí que se faça a exigência de que no património do contribuinte haja uma identidade funcional entre o imóvel transmitido e o adquirido com o valor da realização: ambos têm que ser destinados a habitação própria e permanente do contribuinte e respectivo agregado familiar. E se considere também que o incentivo, enquadrado na política de habitação, só assuma relevo fiscal se ocorrer reinvestimento dos valores realizados. Será, assim, necessário que o valor obtido na venda seja utilizado para o mesmo fim. Trata-se, pois, do «valor» realizado na venda e não do «ganho» obtido com ela.
Portanto, no caso dos autos, se a quantia a reinvestir corresponde ao montante recebido com a venda do prédio, logo se vê que tal quantia não foi utilizada na totalidade na compra da nova habitação, pois, ainda sobraram €124.699,49. Não sendo o valor utilizado na totalidade, havendo apenas um reinvestimento parcial, entende a recorrente que a mais-valia deve ser tributada na totalidade.
Mas não é isso o que resulta da lei.
O facto do reinvestimento ser apenas parcial não permite concluir que não se verifica o pressuposto da exclusão tributária. O nº 7 do artigo 10º estabelece que «no caso de reinvestimento parcial do valor de realização e verificadas as condições estabelecidas no número anterior, o benefício a que se refere o nº 5 respeitará apenas à parte proporcional dos ganhos correspondente ao valor reinvestido». Ou seja, sendo o reinvestimento meramente parcial, então a exclusão da tributação cingir-se-á apenas à parte da mais-valia tributável proporcional ao reinvestimento efectuado (cfr. ac. do STA de 7/12/2004, rec. nº 0938/04).
Não sendo o valor da alienação utilizado na totalidade, a mais-valia será tributada proporcionalmente. Isto significa que o acto impugnado, que não admitiu a exclusão tributária da parte do capital reinvestido, é ilegal nessa parte. Dada a natureza divisível do acto tributário, nada obsta a que se reconheça que a liquidação impugnada padece de ilegalidade nessa parte. Os impugnantes apenas são lesados pelo acto impugnado na parte dos ganhos correspondente ao valor reinvestido, os quais deviam estar excluídos de tributação. Estabelecendo uma relação ente o vício e a lesão dos direitos dos impugnantes, verifica-se que apenas uma parte do acto é inválida e geradora de efeitos lesivos, e por isso mesmo, nada impede que a anulação se efectue à medida desses efeitos, independentemente da validade da parte restante.
Os recorridos não aceitam a anulação parcial com um argumento novo: aplicaram o produto da alienação na amortização do empréstimo que contraíram na comprar da habitação alienada.
Apesar de estar demonstrado que compraram o imóvel vendido com o recurso ao crédito bancário (nº 3 do probatório), não está demonstrado que o produto da venda tenha sido aplicado na amortização desse crédito. Mas mesmo que esse facto fosse verdadeiro, na data em que ocorreu a alienação – 5 de Abril de 2000 – o valor a reinvestir não podia ser deduzido da amortização do empréstimo contraído para aquisição do prédio alienado.
A alínea a) do nº 5 do artigo 10º do CIRS, na redacção então vigente, não deixava quaisquer dúvidas que o «produto da alienação» tinha que ser destinado ao reinvestimento da aquisição de nova habitação e não à utilização noutro fim, incluindo a amortização de empréstimo anterior. Como se referiu no acórdão deste STA, de 14/1/2004, rec. nº 01357/03, «se o contribuinte utilizar o produto da alienação para liquidar o empréstimo que contraiu com a aquisição do primeiro imóvel, contraindo empréstimo bancário para adquirir novo imóvel para habitação, não beneficia da exclusão de tributação prevista naquela normativo».
A possibilidade de deduzir a amortização do empréstimo contraído para a aquisição do imóvel alienado ao valor que terá que ser utilizado na aquisição da nova habitação, só surgiu com a Lei nº 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que deu nova redacção à alínea a) do artigo 5º do artigo 10º do CIRS com o propósito expresso de permitir essa dedução. Tratou-se, porém, de uma norma inovadora, já que a interpretação da norma anterior não suscitava qualquer controvérsia. A primitiva redacção daquela alínea não apresentava qualquer «deficiência» que o intérprete devesse superar, tal era o sentido inequívoco da expressão «produto da alienação». Não se podia estender a aplicação dessa norma a casos não previstos pela sua letra, porque nada comprova que a dedução poderia ser compreendida pelo seu espírito; muito menos aplicá-la a situações que nem sequer são abrangíveis pelo seu espírito, porque a isso se opõe o nº 4 do artigo 11º da LGT.
Antes de 2001, a dedução ao valor da realização da amortização do empréstimo contraído para aquisição do imóvel alienado não encontrava cobertura no sistema jurídico, sem que isso frustrasse as intenções ordenadoras deste, uma vez que razões político-jurídicas poderiam estar na base da abstenção do legislador. Ora, como refere Bigotte Chorão, esses “silêncios eloquentes da lei”, não têm de ser supridos pelo juiz, ainda que este, porventura, em seu critério, entenda o contrário.
Como a falta de regulamentação só desapareceu com a Lei 109-B/2001, os recorridos não têm o direito a deduzir ao valor a reinvestir o empréstimo que efectuaram para aquisição do prédio que venderam.

4. Pelo exposto, acordam em conceder provimento parcial ao recurso, revogar a sentença na parte recorrida, e julgar parcialmente procedente a impugnação, anulando a liquidação impugnada na parte em que tributou os ganhos correspondentes ao valor reinvestido.
Custas, nesta e na primeira instância, na proporção do vencido.
Lisboa, 16 de Janeiro de 2013. – Lino Ribeiro (relator) – Dulce Neto – Isabel Marques da Silva.