Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0185/19.2BEPDL
Data do Acordão:11/19/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
MANDATO
PODERES
REPRESENTANTE
Sumário:Havendo procuração devidamente outorgada pelo sócio gerente único ao representante da sociedade para que este, em nome daquela, negoceie contratos, apresente propostas contratuais e outorgue os mesmos, deve considerar-se, ex vi do disposto nos artigos 236.º a 239.º do C. Civ., que a mesma constitui documento bastante para o cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 57.º do CCP, tendo em conta que apenas se discute in casu o âmbito dos poderes conferidos pela sociedade ao representante, ao abrigo daquele negócio jurídico privado (o mandato).
Nº Convencional:JSTA000P26795
Nº do Documento:SA1202011190185/19
Data de Entrada:10/06/2020
Recorrente:A............, LDA.
Recorrido 1:GOVERNO REGIONAL DOS AÇORES E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


I – Relatório

1 – Em 19 de Dezembro de 2019, a B……….. Portugal, Unipessoal, Lda, com os sinais dos autos, propôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada (TAF de Ponta Delgada), contra a Região Autónoma dos Açores, igualmente com os sinais dos autos, acção de contencioso pré-contratual, nos termos do artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), pedindo: i) a anulação do acto de adjudicação à contra-interessada A………; ii) a condenação da Ré à adjudicação do procedimento à proposta apresentada pela Autora por ser a economicamente mais vantajosa; e, subsidiariamente, iii) a anulação do procedimento com fundamento nos vícios constantes do Modelo de Avaliação; bem como iv) a condenação da Ré em custas.

2 – Por sentença de 29 de Fevereiro de 2020, o TAF de Ponta Delgada julgou a acção improcedente e absolveu a Ré dos pedidos.

3 – Inconformada, a B……….. recorreu dessa decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), que, por acórdão de 28 de Maio de 2020, concedeu provimento ao recurso e revogou a sentença do TAF de Ponta Delgada, por considerar que a proposta graduada em primeiro lugar havia sido apresentada em violação do disposto no n.º 4 do artigo 57.º do CCP e, como tal, deveria ter sido excluída nos termos do disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 146.º do CCP.

4 – Inconformada com o acórdão do TCA Sul, a contra-interessada e aqui Recorrente, A……….., Lda., com os sinais dos autos, interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, o qual foi admitido por acórdão de 10 de Setembro de 2020, com o seguinte fundamento «[O]ra, enquanto o TAF considerou que tais poderes para negociar, enviar propostas e outorgar contratos incluíam o poder para assinar as propostas, o TCA encarou aquele envio de propostas como a mera submissão delas às plataformas electrónicas, sem a concomitante conferência de poderes para as assinar. E assim se vê que, no fundo, o TAF e o TCA dissentiram porque respectivamente fizeram uma interpretação sintética e uma analítica dos poderes conferidos através da procuração.
O problema em aberto há-de certamente resolver-se à luz das normas de interpretação dos actos e negócios jurídicos, constantes dos arts. 236.° e ss. do Código Civil. Mas, ao menos «prima facie», o resultado hermenêutico a que chegou o aresto recorrido é suficientemente controverso para induzir ao recebimento do recurso – a fim de se garantir uma exacta aplicação do direito».

5 – A Recorrente, apresentou alegações nos seguintes termos:
«[…]

1 - Assume enorme relevância, jurídica e social, sobretudo nos dias que correm e mais anda, nos que se avizinham, face à expectável e desejável iminente afluência de fundos para investimento e desenvolvimento da economia, com a concomitante celebração de contratos públicos, a definição, que resultará do acórdão a recair sobre o presente recurso, sobre se o n.º 4, do art. 57.º, do Código dos Contratos Públicos impõe a total falta de senso comum, quiçá mesmo a acefalia como forma de interpretação e a redundância como forma de expressão escrita, frontalmente contra o que dispõe o n.º 3, do art. 9.º, do Código Civil, ou se, ao invés, se exige apenas rigor, sim, mas dentro das regras da hermenêutica e das normas de bom senso, sobretudo quando, como é o caso, o resultado que a norma pretende evitar há muito se encontra esconjurado.

1.1 – A sentença de primeira instância fundou-se, expressamente, nas normas constantes dos artigos 236.º a 239.º do Código Civil, por via das quais concluiu, “Atentas as normas legais sobre interpretação da declaração negocial, entende o tribunal que a procuração que titula o mandato em análise, continha os poderes necessários e suficientes para que o procurador pudesse assinar e apresentar a proposta e os seus documentos, em nome da A……….., assim vinculando esta entidade.”, bem como “Da mesma forma, o mandato para “envio de propostas contratuais” abrange a apresentação da proposta ao outro contraente e não à sua mera submissão eletrónica, a qual não tem qualquer suporte no texto da procuração, ou o seu envio postal, para o qual era absolutamente irrelevante.”, enquanto a decisão de que se pretende recorrer em parte alguma refere tais normas ou admite a possibilidade de a elas recorrer, limitando-se a uma inexpugnável interpretação literal, separando o que é suposto ser um percurso negocial – negociação das condições, envio das propostas e subsequente assinatura dos contratos delas resultantes - numa dita cisão entre “a fase pré- contratual” e a sua “fase posterior”, para afirmar expressamente que “a expressão “outorga de contratos de prestação de serviços” não se refere já à fase pré- contratual, mas à sua fase posterior.” , motivo porque “Não releva, pois, para a fase do procedimento aqui em apreciação.”, e, salvo o muito respeito devido, numa ainda mais impertinente destrinça entre o expressamente permitido “envio de propostas contratuais” e “a sua submissão eletrónica”, como consabido, a obrigatória e única forma legal de envio das ditas propostas. Afigura-se-nos imprescindível, para uma melhor aplicação do direito, dilucidar se o Código dos Contratos Públicos se integra numa ordem jurídica diversa, ou se, pelo contrário, as regras jurídicas e os princípios de direito que fundam e devem tutelar a confiança, quer dos diversos actores judiciários, quer de quem recorre aos tribunais e ao sistema em geral se mantêm, aplicando-se-lhe in totum, sem, naturalmente, perverter a respectiva ratio legis, dilucidação que só o acórdão aqui tirado poderá produzir.

1.2. - A decisão vigente opera, como procuramos demonstrar, uma cisão absolutamente artificial sobre a dinâmica do contrato, traindo, aliás de forma perversa, as expectativas dos concorrentes e logo o princípio da confiança, acarretando o total desprestígio das Instituições, quer das entidades contratantes, obrigando-as a minudências pleonásticas, inadmissíveis em pessoas de meridiana cultura, autênticas redundâncias, por mera cautela, quer mesmo do Tribunal, que, a manter-se a decisão vigente, mais do que sancionar tal desfaçatez, acaba por exigi-la! Entendemos demandar, mesmo exigir, a melhor aplicação do direito – como também ensina Menezes Cordeiro, ibidem, a pgs. 236, “A decisão colhe a sua justeza na conformidade integral com o sistema jurídico que a propicia.” - a admissão e apreciação do recurso, mais quando, como é o caso, a contundência da divergência é tanta: a recorrente tem defronte uma decisão, muito bem fundamentada, em que é afirmada uma conclusão apodítica, no sentido da plena validade da procuração para o efeito a que se destinava e uma outra, em que se determina precisamente o contrário, pondo em causa até os poderes para o mero envio da proposta, nos termos determinados na lei, através da sua submissão electrónica.

1.3 – V. Exas., Exmos. Senhores Conselheiros, em outra Formação, mas também ela seguramente mui erudita, admitiram o recurso no douto acórdão desse Alto Tribunal, de 08.03.2012, tirado no proc. n.º 01056/11, extensivamente seguido pela decisão invocada na vigente, por “ter sido entendido que se justificava a intervenção deste Supremo visto estar em causa o regime de contratação pública consagrado no CCP e a relevância que nele assume a exclusão das propostas em resultado da falta de apresentação (ou apresentação defeituosa passível de rectificação) dos documentos exigidos no programa do procedimento, à luz da regulamentação da submissão das candidaturas através de plataformas electrónicas de contratação pública.”; Hoje, a apreciação que se roga é sobre a possibilidade, não de junção posterior de documentos em falta, o que inexiste, nem de rectificação de documentos apresentados, mas de haver ou não lugar à intervenção das regras da hermenêutica na apreciação do mandato conferido para a apresentação de propostas no âmbito da mesma contratação, e ou, das expressas regras jurídicas concernentes à interpretação da declaração negocial para este mesmo efeito.

2 - O gerente da recorrente concedeu ao mandatário, em conjunto, num todo coerente em que as diversas fases se integram e se complementam, poderes para negociar e enviar propostas contratuais, o que naturalmente inclui, além de os de enviar expressos, os de receber e responder às propostas que resultem dessas negociações e para outorgar o contrato que materialize o resultado das mesmas, devendo, pois e por isso, tais poderes serem interpretados conjuntamente, e, sobretudo, logica e sequencialmente, de acordo com os poderes precedentes e subsequentes, em ordem ao fim visado que é, afigura-se-nos indiscutível, a concretização do contrato a celebrar entre a mandante e a entidade que recebe os serviços por aquela prestados, nas condições acertadas.

2.1 – Mostram-se violadas as regras da hermenêutica negocial que decorrem dos art./s 236.º a 238.º do C.Civil, as quais impunham a interpretação da procuração como feita na decisão de primeira instância, decorrendo de tal interpretação, de acordo com o princípio da eficácia da declaração negocial, emergente do disposto no art. 224.º, do C.Civil, em conjugação com os “efeitos da representação”, consignados no art. 258.º, do mesmo diploma legal, ser a procuração emitida pela recorrente plenamente válida e eficaz, não só para praticar todos os actos aqui postos em causa, como para neles obrigar plena e inquestionavelmente a mandante, produzindo, pois e por isso, todos os efeitos a que se destinava.

3 - A decisão vigente assenta em argumentos de mera forma, pretendendo fazer da forma, nos dias de hoje, um fim em si, repudiando a ordem jurídica no seu todo, mormente as pertinentes regras da hermenêutica da declaração negocial, onde indiscutivelmente se integra o mandato, as quais haviam sido e bem, observadas na decisão por ela revogada.

3.1 – A interpretação do n.º 4 do art. 57.º, com as consequências prescritas nas al./s d) e), do n.º 2, do art. 146.º do Código dos Contratos Públicos, levada a cabo na decisão vigente, é inconstitucional, por trair o princípio da confiança dos cidadãos no funcionamento das instituições e das regras estabelecidas na ordem jurídica, transformando o processo, obrigatoriamente equitativo, em iníquo, violando, por isso, os artigos 1.º, 2.º, 20.º, n.º 4, 202.º, n.º 1, 204.º - que impede o tribunal de sancionar tal interpretação – da Constituição da República Portuguesa e n.º 1, do art. 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ex vi do art. 8.º daquele diploma fundamental.

Termos em que admitindo essa Erudita Formação o presente recurso e no seu conhecimento, determinando-se a revogação da decisão recorrida, com a consequente reposição da decisão da primeira instância, por esta revogada,

V. Exas. estarão a realizar e a ensinar o DIREITO e a JUSTIÇA

que ao caso cabe.

[…]».


4 – A Recorrida B………. apresentou contra-alegações que concluiu da seguinte forma:
«[…]

i) Quanto à (in)admissibilidade dos recursos

A) O facto de estarmos perante uma concreta questão Jurídica já discutida e apreciada por duas instâncias distintas não é fundamento válido para a admissibilidade de Recurso de Revista para o Supremo Tribunal Administrativo, uma vez se enquadra em nenhum dos requisitos de admissibilidade previstos no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA.

B) A Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou quanto a esta matéria, tendo entendido que a divergência de decisões de tribunais de primeira e segunda instância não são um fundamento para a admissibilidade do recurso de revista.

C) A questão sub judice não goza de capacidade de expansão da controvérsia não sendo conhecidos ouros casos em que tenha sido apresentada com um instrumento de mandato com um teor semelhante ao junto pela Recorrente na sua proposta e não há, por isso, qualquer necessidade de garantir a uniformização do direito na matéria tratada pelas instâncias.

D) Não ficou minimamente demonstrado por parte da Recorrente que a questão sub judice demonstra uma relevância Jurídica e social de importância fundamental que justifique a admissão da revista, mas apenas o inconformismo com a decisão tomada pelo Tribunal Central Administrativo Sul.

E) Vão ficou minimamente demonstrado por parte da Recorrente que o direito foi mal aplicado pelo Tribunal Central Administrativo Sul ao argumentar que o CCP faz parte de uma ordem jurídica diversa, quando, na verdade, o regime aplicável à contratação pública possui regras próprias no que tange à assinatura de documentos das propostas e demonstração respectivos [sic] poderes de vinculação dos concorrentes;

F) No mais, ainda que não tenha havido dupla conforme, até porque a matéria foi amplamente desenvolvida e tratada de forma particularmente consistente, quer em primeira, quer em segunda instância, não podendo a Revista ser admitida apenas porque há uma divergência de interpretações entre a 1.ª e a 2.ª instância.

G) Estamos na presença de um recurso excecional que o legislador consagrou, não para criar um 3.º grau de jurisdição.

H) Improcedem as conclusões do recurso nesta matéria não devendo ser admitida a Revista.

ii) Quanto ao fundamento do recurso

I) Na posição de um declaratário normal, não era possível apreender do texto da procuração que foram conferidos poderes para assinar propostas de contratos e vincular a sociedade mandante;

J) Mesmo através de uma interpretação extensiva através das regras previstas no Código Civil não é possível depreender que o mandatário detinha poderes para vincular a sociedade mandante.

K) Caso fosse essa a vontade da Recorrida A……….. constaria essa mesma menção expressa na procuração.

L) A procuração outorgada pela contra-interessada A……….. não confere poderes ao Sr. C………… para vincular a sociedade, nomeadamente, assinar propostas em procedimentos de contratação pública;

M) Não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade na conjugação do n.º 4 do artigo 57.º com a cominação prevista nas alíneas d) e) do n.º 2 do artigo 146.º do CCP, mas sim a proteção da ordem jurídica e comprometimento dos concorrentes com o conteúdo das suas propostas.

N) Não existe qualquer violação do princípio da confiança na decisão tomada pelo Tribunal Central Administrativo Sul, mas sim uma decisão tomada com base na legislação concretamente aplicável que a Recorrente conhece ou não pode desconhecer.

Termos em que, com o mui Doutor e Venerando suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser rejeitado, por não estarem reunidos os pressupostos da respetiva admissibilidade, ou, ainda que assim não se entenda, deve ser-lhe negado provimento, por não provado e mantida a decisão tomada pelo Tribunal Central Administrativo Sul.

Com o que se fará a costumada JUSTIÇA!

[…]».



5 - O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.


6 - Com dispensa de vistos, cumpre decidir.


II – Fundamentação

1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

2. De direito
2.1. A questão que vem suscitada no presente recurso é a de saber se existe erro de julgamento quando o TCA Sul considera que a procuração apresentada pela Recorrente “viola o disposto no artigo 57.º, n.º 4 do CCP, o que acarreta a exclusão da mesma [da Recorrente] nos termos do disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 146.º do CCP”.

2.2. Está em causa o Concurso Público Internacional n.º 2/2019, aberto pela Região Autónoma dos Açores, tendente à “Aquisição de Serviços de acesso a bases de dados de legislação e conteúdos jurídicos”, publicado no R.R., 2.ª Série, de 23 de Agosto de 2019.

Em 14.11.2019, os candidatos foram notificados do Relatório Preliminar, do qual constava a seguinte ordenação: 1.º lugar A………; 2.º lugar B……….; 3.º lugar D……….

Logo nesse momento a B………. suscitou o problema de a procuração conferida ao Sr. C………… pelo sócio gerente único da A……… não incluir os poderes suficientes para ele vincular a sociedade mandante.

Uma objecção que foi rejeitada pelo júri do concurso, o qual considerou que, não obstante a procuração não referir expressamente a atribuição ao apresentante da proposta de poderes específicos para vincular a sociedade e apresentar propostas no âmbito da contratação pública, a formulação utilizada na procuração era suficiente, atentando no teor dos artigos 391.º, n.º 7 e 409.º, n.º 4 do Código das Sociedades Comerciais, bem como nas normas da Lei n.º 96/2015, de 17 de Agosto, para se considerar observada a exigência do n.º 4 do artigo 57.º do CCP.

Em causa está a interpretação do trecho da procuração no qual se dispõe o seguinte:

«[…] E……….., que usa E………. (…), o qual neste acto intervém na qualidade de único gerente da empresa A………. (…), constitui, nos termos e para os efeitos do n.º 6 do artigo 252.º, do Código das Sociedades Comerciais, bastante procurador o Ex.mo Senhor Dr. C…………. (…), a quem concede os poderes bastantes para representar a sociedade mandante, nos seguintes actos e contratos:

- na negociação e correspondente envio de propostas de contratos, bem como na outorga de contratos de prestação de serviços na área da informática jurídica, ou da radiodifusão de conteúdos do mesmo jaez, nomeadamente, no primeiro caso, no acesso às bases de dados, e, no segundo, a divulgação de informação jurídica, contratos estes que poderá outorgar, sejam a celebrar por instrumento público ou não e quer se tratem de entidades públicas, quer privadas, independentemente do valor do contrato e do seu tempo de duração; […]»

2.2.1. Na sentença de 29.02.2020, o TAF de Ponta Delgada considerou que esta era uma questão de interpretação de uma declaração negocial, pelo que seriam aplicáveis as regras dos artigos 236.º a 239.º do C.Civ., e, de acordo com as mesmas, concluiu o tribunal que “[…] foram atribuídos poderes ao Sr. C……………para vincular a sociedade, para assinar os documentos da proposta, nomeadamente a declaração que corresponde ao Anexo I do CCP e documentos relativos aos atributos e termos e condições da proposta.

Assim, ao admitir a proposta da A………….., a Ré não praticou ato passível de qualquer censura, designadamente por violação de lei, por contrariar o disposto no n.º 4 do artigo 57.º e na alínea e) do n.º 2 do artigo 146.º do CCP”.

2.2.2. O acórdão do TCA Sul, aqui Recorrido, acolheu a “tese” do A. e considerou que a procuração outorgada pela A…………. não confere poderes ao Sr. C…………. para vincular a sociedade, nomeadamente, para assinar propostas em procedimentos de contratação pública. O Tribunal a quo sustenta a sua posição por remissão para os seus acórdãos de 28 de Julho de 2017 (proc. n.º 10568/13) e de 26 de Maio de 017 (proc. n.º 440/16.3BEVIS) e ainda para os acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo de 8 de Março de 2012 (proc. n.º 01056/11) e de 9 de Abril de 2014 (proc. n.º 40/14).

No essencial, a argumentação do TCA Sul assenta no pressuposto de que nos casos em que a proposta é subscrita por um representante do concorrente, os poderes concedidos através de procuração para assinar as propostas de contratos e vincular a sociedade têm de estar devidamente discriminados e concretizados na procuração (tem de ser expressos segundo o artigo 260.º, n.º 4 do Código das Sociedades Comerciais), para que se possa considerar cumprido o requisito do n.º 4 do artigo 57.º do CCP. Esta exigência, no entender daquele Tribunal, visa garantir a vinculação jurídica do proponente à mesma, impedindo que uma empresa ganhe o concurso e depois desista, sem que lhe possa ser assacada qualquer responsabilidade. Foi com este fundamento que revogou a decisão do TAF de Ponta Delgada e anulou a decisão de adjudicação impugnada.

2.3. Como se afirma expressamente no acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo que admitiu a revista, a única questão que aqui se analisa e discute é a de saber se a procuração outorgada pelo sócio gerente único da aqui Recorrente, pelo seu teor, confere ou não poderes para enviar propostas e outorgar contratos no âmbito da contratação pública, ou seja, se é suficiente ou não para se considerar preenchido o requisito do n.º 4 do artigo 57.º do CCP. E, para tal, cumpre no âmbito da presente revista verificar se são ou não aplicáveis in casu as normas dos artigos 236.º e ss. do C. Civ. e se estas podem ou não conduzir ao resultado interpretativo a que chegou o TAF de Ponta Delgada.

2.3.1. A primeira asserção é pois a de que a jurisprudência deste STA referida no acórdão recorrido como fundamentação da decisão por via remissiva é inadequada, na medida em que respeita a questões diferentes daquela que está subjacente ao presente litígio. Com efeito, no acórdão de 8 de Março de 2012 (proc. 01056/11), o que se analisou e decidiu foi a questão de saber se se poderia considerar validamente subscrita a proposta apresentada ao concurso por um agrupamento de três empresas e em que apenas uma delas havia assinado electronicamente a proposta e não havia submetido documento que confirmasse mandato para representação em plataforma electrónica de uma proposta que vinculasse as restantes empresas; e no acórdão de 9 de Abril de 2014 (proc. 40/14), o que se analisou e discutiu foi a questão de saber se a assinatura electrónica da declaração de aceitação do conteúdo do caderno de encargos, por um representante que apenas dispunha de procuração para representar a sociedade na contratação eléctrica ― leia-se apresentar a documentação em nome daquela na plataforma electrónica e assinar aí a documentação necessária –, se poderia considerar suficiente para cumprir o requisito do n.º 4 do artigo 57.º do CCP.

Ou seja, no primeiro aresto discute-se, na ausência de procuração que confira os poderes de representação e vinculação, o poder de representação de um membro de um agrupamento para vincular as restantes empresas no procedimento de contratação pública e, nessa medida, para validamente submeter a proposta do agrupamento, concluindo-se que a desmaterialização e a assinatura digital não eram suficientes para suprir a falta daquele requisito; e, no segundo aresto, discute-se a questão de saber se um representante de uma sociedade, mandatado pela mesma para submeter em nome da mandante, na plataforma electrónica, os documentos de uma proposta em procedimento de contratação pública, é suficiente para cumprir o requisito legal de vinculação da mandante à proposta, tendo sido considerado que tal não era suficiente e que, uma vez mais, a assinatura electrónica do representante, que atesta a sua vinculação aos documentos submetidos, é uma questão diversa da vinculação do concorrente ao conteúdo desses documentos.

Ora, neste caso discute-se uma questão diferente, não se trata de saber se a submissão da proposta e a assinatura dos documentos pelo representante da sociedade concorrente é condição suficiente e adequada para vincular aquela, mas sim de analisar o teor da procuração para saber se dela resulta a outorga de poderes ao mandatário para submeter a proposta desmaterializada e para vincular a sociedade. E a resposta a esta questão não se encontra nem se pode retirar dos arestos antes mencionados. Como, de resto, a Recorrente sublinhou no requerimento resposta que enviou após ter sido notificada do parecer do Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal (p. 762 do SITAF).

2.3.2. Quanto à questão central subjacente ao litígio em apreço – interpretação do teor da procuração – o TCA Sul limita-se, basicamente, a afirmar o seguinte: i) que no termo “negociação” não pode considerar-se incluído o poder para a “formulação de propostas negociais” nem o de “elaboração dos atributos de uma proposta” no domínio da contratação pública; ii) que o mandato para “envio de propostas contratuais” não abrange em si o “poder para a sua submissão electrónica”; e que, de qualquer modo, da expressão “outorga de contratos de prestação de serviços” não pode retirar-se o poder de o mandatário vincular a sociedade.

Afigura-se-nos que estes argumentos e solução a que eles conduzem não podem proceder.

2.3.2.1. Em primeiro lugar, importa saber se é ou não correcta a mobilização das regras dos artigos 236.º e seguintes do C. Civ. para apurar, in casu, o teor da procuração, designadamente, para saber se dela resulta que o mandatário dispunha de poderes para submeter a proposta naquele concurso público, por via electrónica (i. e. para proceder à assinatura digital), e para vincular o mandante aos termos dessa proposta, requisitos necessários para o cumprimento das exigências legais do n.º 4 do artigo 57.º do CCP.

Sobre a concreta questão da possibilidade de aplicação no caso das regras dos artigos 236.º e ss do C. Civ., o TCA Sul, como antes dissemos, não se pronunciou, limitou-se a remeter para o n.º 4 do artigo 260.º do CSC, no qual apenas se discutem os poderes do gerente na vinculação da sociedade, em actos escritos, mediante a aposição de assinatura. Ora, o que se discute aqui não é saber se o gerente único da Recorrente dispunha de poderes para mandatar o representante e se o mandatou de forma válida, no sentido de vincular a sociedade ao conteúdo dos actos que viessem a ser praticados pelo mandatário, mas sim o de saber se o conteúdo desse mandato incluía ou não – repita-se – o poder para o mandatário submeter a proposta no concurso público aqui em apreço, e, bem assim, o de vincular a sociedade ao teor da mesma.

Já o TAF de Ponta de Delgada, convocando o disposto nos artigos 236.º (interpretação do declaratário normal) e 238.º do C. Civ. (nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento), conclui que do teor da procuração se retira que o representante no procedimento de contratação pública dispunha de todos os poderes legalmente exigidos.

A respeito da verificação dos poderes para representar a sociedade no procedimento desmaterializado: i) do termo “negociação” conclui o TAF de Ponta Delgada que, ainda que imperfeitamente expresso, é possível retirar, enquanto declaratário normal, o sentido de que ao mandatário foram conferidos os “poderes necessários à realização de todos os atos preparatórios necessários à celebração dum [sic] determinado negócio jurídico, como sejam, a formulação de propostas contratuais, ou, no caso da contratação pública, a elaboração dos atributos da proposta”; ii) do termo “correspondente envio de propostas de contratos”, infere aquele tribunal que o mesmo “abrange a apresentação da proposta ao outro contraente e não à sua mera submissão eletrónica, a qual não tem qualquer suporte no texto da procuração, ou o seu envio postal, para o qual era absolutamente irrelevante”; e daí conclui que “[S]endo conferidos poderes de elaboração da proposta e poderes de apresentação da mesma, neles têm que se entender incluídos os poderes de assinatura da proposta”.

E este juízo não nos merece censura, seja na mobilização dos artigos 236.º e 238.º do C. Civ., uma vez que, estando em causa a interpretação de um documento que consubstancia um negócio jurídico privado, são aquelas as regras jurídicas que podem e devem ser utilizadas para a respectiva interpretação; seja no resultado da interpretação a que se chega e que é o adequado segundo as regras mobilizadas.

Acrescentamos ainda, segundo as mesmas regras (artigos 236.º e 238.º do C. Civ.), que também um declaratário normal terá de concluir das expressões [poder para] “outorga de contratos de prestação de serviços na área da informática jurídica” e “contratos estes que poderá outorgar, sejam a celebrar por instrumento público ou não e quer se tratem de entidades públicas, quer privadas, independentemente do valor do contrato e do seu tempo de duração”, que o gerente único mandatou o representante de poderes para vincular a sociedade ao teor da proposta submetida e à futura celebração do contrato.

O procedimento de contratação pública, sendo formal e as suas regras de teor vinculado para as entidades adjudicantes, ainda assim impõe que a interpretação das mesmas (das regras da contratação pública) se tenha de fazer em consonância com os princípios enunciados no artigo 1.º-A do CCP, pelo que a interpretação do teor da procuração nos termos do disposto nos artigos 236.º e 238.º do C. Civ – como resultou da decisão do TAF de Ponta Delgada, que aqui se reitera – é também a solução que se alcança de uma interpretação do artigo 57.º, n.º 4 do CCP em conformidade com os princípios da boa-fé e da concorrência. Com efeito, importa ser rigoroso na verificação dos poderes do representante para submeter a proposta, mas essa verificação tem de obedecer a critérios de materialidade e de razoabilidade.

Assim, conclui-se que a decisão do TAF de Ponta Delgada não merece a censura que lhe foi assacada pelo acórdão do TCA Sul.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso de revista, revogar o acórdão do TCA Sul e manter a sentença do TAF de Ponta Delgada.
Custas pelo Recorrido em ambas as instâncias.


*

Lisboa, 19 de Novembro de 2020Suzana Tavares da Silva (relatora) – Cristina Santos – José Veloso

A Relatora atesta, nos termos do art.º 15-A do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de Março, o voto de conformidade dos Ex.mos Senhores Conselheiros Adjuntos Cristina Santos e José Veloso.

Suzana Tavares da Silva