Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0506/16.0BELSB-A
Data do Acordão:11/19/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:ATRASO NA JUSTIÇA
ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
PRESCRIÇÃO
Sumário:No âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado por atraso na justiça, o prazo de prescrição previsto no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil apenas começa após a conclusão do processo.
Nº Convencional:JSTA000P26796
Nº do Documento:SA1202011190506/16
Data de Entrada:02/28/2020
Recorrente:A............
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. A………… - identificada nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), de 9 de maio de 2019, que revogou o despacho saneador proferido pelo juiz da causa no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra em 25 de outubro de 2018 e, em consequência, julgou verificada a exceção perentória de prescrição do direito à indemnização por atraso na justiça peticionada pela A. contra o ESTADO PORTUGUÊS, absolvendo-o do pedido.
Nas suas alegações, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:

«1. Para que comece a correr o prazo de prescrição é de exigir o conhecimento pelo lesado de que é juridicamente fundado o direito à indemnização, dado que quem não tem esse conhecimento não sabe se pode exigir a indemnização, não se achando, portanto, nas condições que constituem a razão de ser da prescrição de curto prazo;

2. Todavia, conforme refere Vaz Serra (in RLJ 107 pag. 296 em anotação a um acórdão do STJ de 27.11.1973) “não se afigura suficiente o conhecimento de tais pressupostos, sendo ainda preciso que o lesado tenha conhecimento do direito que lhe compete, como expressamente diz a lei: se ele conhece a verificação dos pressupostos da responsabilidade do lesante, mas não sabe que tem direito de indemnização, não começa a correr o prazo de prescrição de curto prazo;

3. Por outro lado, o conhecimento dos pressupostos que condicionam a responsabilidade tem de se revelar através de factos e elementos objectivos que possam demonstrar, com algum grau de segurança, certeza e razoabilidade, que o lesado podia ou devia ter conhecimento dos mesmos;

4. Conhecimento esse que não se extrai, nem se pode extrair, dos requerimentos apresentados pela ora Recorrente em 08.04.2008 e 17.11.2008;

5. Isto porquanto o que resulta do requerimento de 08.04.2008 é que a Recorrente, face aos factos então alegados nos artºs 5º a 9º, apenas configurou a possibilidade de os mesmos lhe conferirem o direito a um subsídio, a título de alimentos, a suportar pela massa insolvente;

6. Sendo certo que destes factos alegados não é possível extrair a conclusão, com algum grau de certeza e razoabilidade, de que a Recorrente já estava na posse, isto é, já conhecia todos os elementos que integram a responsabilidade por factos ilícitos e que os mesmos poderiam fundamentar uma acção de responsabilidade civil contra o Estado Português;

7. O mesmo se diga relativamente ao requerimento da Recorrente de 17.11.2008, nomeadamente, relativamente à expressão “extravagante demora processual”;

8. Isto porquanto tal expressão apenas revela que a Recorrente tinha somente conhecimento de um dos pressupostos que integram a responsabilidade civil, nomeadamente, a demora excessiva do processo, sem que a mesma se traduzisse ainda ao seu espírito como uma demora ilícita por faute du service, susceptível de lhe conferir o direito a uma qualquer indemnização;

9. Sendo, todavia, certo que a decisão que veio a ser proferida neste incidente em 16.03.2010 (doc. nº 17, junto com a p.i.) ainda afastou mais a Recorrente do conhecimento dos pressupostos que condicionam o direito à indemnização prevista no artº 498º do CC, ao referir, entre outras coisas, que “resulta abundantemente documentado dos autos que o Sr. Liquidatário Judicial poderá não ter sido lesto, no cumprimento das suas funções, mas foi diligente (…)”, ou ainda, que “O Sr. Liquidatário cumpriu a lei e, no âmbito dos poderes que ela lhe conferia agiu em conformidade” (cfr. doc. 14 junto com a p.i., fls. 12, nosso sublinhado).

10. Ou seja, o que resulta desta decisão é que, em 16.03.2010, pese embora a Recorrente pudesse vislumbrar que a demora do processo era já anormal e excessiva, ficou afastada do seu espírito a hipótese de tal demora se dever a uma qualquer ilicitude e, consequentemente, a possibilidade de lhe poder vir a ser conferida uma qualquer indemnização por atraso na justiça, na medida em que foi o próprio Tribunal que veio a julgar a actuação do Sr. Liquidatário como sendo diligente e conforme a lei;

11. Não obstante o que acima se referiu, sempre se dirá ainda que o princípio da segurança jurídica impõe que, para aferir do início do prazo de prescrição, se parta de elementos objectivos e estes elementos apenas se podem encontrar com o trânsito em julgado de uma decisão judicial (cfr. nesse sentido, Acórdão do TCAN, datado de 27/01/2012, Proc. nº 00284/08.6BEPNF-A e Acórdão do STJ de 20/03/2014, cfr. processo nº 420/13.0TBMAI.P1.S1, ambos em www.dgsi.pt);

12. Isto porquanto, só no momento em que se toma conhecimento da decisão do processo é que “fica reconhecida a desnecessidade, inadequação ou desproporcionalidade dos meios utilizados pelo Estado”;

13. Logo, tendo decorrido apenas 12 (doze) dias desde o referido trânsito em julgado (17.02.2016) até à data em que a presente acção foi intentada (01.03.2016), ou 118 (cento e dezoito) dias desde a data desse mesmo trânsito em julgado até à data em que o Réu Estado Português foi efectivamente citado (14.06.2016), não havia ainda decorrido o prazo de prescrição de 3 (três) anos a que se refere o artº 498º do CC;

14. E mesmo que se considere - embora sem conceder - que em 02.07.2014, data em que a Recorrente juntou aos autos um requerimento para a cessação dos efeitos da falência e a sua consequente reabilitação, já tinha conhecimento dos elementos que integram a verificação dos pressuposto onde funda o direito à indemnização que peticiona nestes autos, ainda assim não se teria verificado a prescrição, porquanto o prazo de prescrição só estaria concluído em 02.07.2017, i.e., em data posterior àquela em que foi citado o Réu Estado Português nos presentes autos (14.06.2016);

15. Assim, bem andou o Tribunal de 1ª instância ao entender que, imputando a autora “mau funcionamento e morosidade ao momento em que requereu no processo de falência o levantamento dos efeitos decorrentes da declaração de falência quanto à sua pessoa e a sua consequente reabilitação”, “(…) ao contrário do que perfilha o réu, a contagem do prazo de prescrição tem início desde a data do trânsito em julgado da sentença de reabilitação da falida, ou seja, em 17.02.2016”.

16. Por tudo quanto vai supra exposto, não pode a Recorrente deixar de entender aqui que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do artº 498º, nº 1 do Código Civil, nomeadamente, ao entender que a Recorrente, pelo simples facto de ter dado entrada a um requerimento em que refere “extravagante morosidade processual”, ou ainda, pelo facto de ter peticionado alimentos nos autos de falência em causa, tinha já conhecimento de todos os pressuposto que integram o seu direito à indemnização por uma demora excessiva do processo, na medida em que, nestas datas, ainda não era possível à Recorrente configurar tal demora excessiva do processo como sendo ilícita, por faute du service.»

2. O ESTADO PORTUGUÊS, representado pela Digna Magistrada junto do Tribunal Central Administrativo do Sul, contra-alegou e concluiu nos seguintes termos:

«I. Não se verificando os pressupostos necessários à interposição, admissão e apreciação do Recurso de Revista Excepcional previsto no artº 150º do CPTA, não deve este recurso ser admitido.

II. Caso venha a ser admitido, deve ser apreciada e dada por verificada a nulidade do Acórdão revidendo invocada, por omissão de pronúncia, uma vez que o TCAS não apreciou a questão da excepção de ilegitimidade, omitindo pronúncia sobre questão que tinha o dever de apreciar.

III. Ainda que seja admitido, deve ser-lhe negado provimento, uma vez que o Acórdão recorrido fez correcta análise dos factos e fez correcta aplicação do direito vigente e aplicável.»

3. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 6 de fevereiro de 2020, por entender relevante «(...) que este STA se pronuncie sobre a questão suscitada na revista, a qual consiste em saber em que data é que se deve considerar que a autora teve conhecimento do direito que peticiona na acção, por ser nessa data que o referido prazo de prescrição começa a correr [«dies a quo»], sendo controversa, até face às características específicas da presente acção, fundada em atraso na tramitação de um determinado processo, a solução desta questão.»

4. São dispensados os vistos dos juízes-adjuntos, nos termos do n.º 4 do artigo 657.º do CPC, ex vi do disposto nos artigos 679.º do CPC e 1.º e 140.º do CPTA, dada a natureza prioritária do processo.


II. Matéria de facto

5. As instâncias consideraram como provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

«1. A p.i. desta ação entrou no dia 1-3-2016.

2. A citação efetivou-se em 14-6-2016.

3. O processo cuja demora irrazoável deu origem a esta ação data de 27-11-1999, um processo de falência da ora autora.

4. Tal processo tinha o n° 94-F/99 e passou a ter o n° 1264/14...

5. A falência da autora foi ali decretada em 18-10-2001.

6. Em 8-4-2008, a ora autora, falida, requereu subsídio a título de alimentos, no cit. processo.

7. Em 17-11-2008 e 20-11-2008, a falida, ora autora, deduziu no cit. processo incidentes de irregularidade da liquidação falimentar e de suspeição contra o liquidatário judicial, referindo neste caso, de modo expresso, existir uma "extravagante morosidade processual".

8. A reabilitação da falida, pedida em 2-7-2014, foi decidida em 1-2-2016, com trânsito em julgado em 17-2-2016.»


III. Matéria de direito

A – Questão prévia

6. Alega a digna Magistrada do Ministério Público que, no caso de o presente recurso ser admitido, «deve ser apreciada e dada por verificada a nulidade do Acórdão revidendo invocada, por omissão de pronúncia, uma vez que o TCAS não apreciou a questão da excepção de ilegitimidade, omitindo pronúncia sobre questão que tinha o dever de apreciar.»
Mas não tem razão.
Nos termos do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, aplicável por força do artigo 1.º do CPTA, «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (...)».
Ora, ao julgar procedente a exceção perentória de prescrição do direito à indemnização peticionada, com a consequente absolvição do R. do pedido, ficou necessariamente prejudicado o conhecimento de quaisquer outras exceções meramente dilatórias que tenham sido invocadas pelo R., sendo irrelevante, para esse efeito, que o tribunal a quo tenha ou não expressamente afirmado que o conhecimento daquelas questões ficava prejudicado.
Não se verifica, assim, a alegada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia.

B – Do mérito do recurso

7. A única questão que se discute neste recurso é a de saber, no âmbito de uma ação de responsabilidade por atraso na justiça num processo de falência, em que momento se inicia a contagem do prazo de prescrição estabelecido no número 1 do artigo 498.º do Código Civil para que o lesado possa exercer o seu direito de indeminização.
As partes estão de acordo que esse momento é aquele em que o lesado «teve conhecimento do direito que lhe compete», mas divergem na interpretação desse conceito, e na qualificação jurídica dos factos relevantes para a decisão da causa.
Para a A., aquele momento é o da decisão do processo falimentar, que no caso dos autos identifica como o momento em que foi proferida a sentença de reabilitação da falida, pois «somente desde essa data de 17/02/2016 é que a Recorrente ficou na posse de todos os elementos para desencadear uma acção de indemnização por atraso na justiça (...)».
Porém, na tese da R., que foi sufragada pelo acórdão recorrido, quando em 2008 a A. requereu o subsídio a título de alimentos e deduziu no processo incidentes de irregularidade da liquidação falimentar e de suspeição do liquidatário judicial, «manifestava, a rejeição e o conhecimento da morosidade do processo de falência e invocava os prejuízos que daí emergiam para a sua vida e património, razão por que o aludido prazo de prescrição começou a contar, pelo menos, desde a referida data, isto é, a partir de 08/04/2008, ou, o mais tardar, a 17/11/2008».

8. Sobre a contagem do prazo de prescrição em ações de responsabilidade por atraso na administração da justiça, este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender que o prazo de prescrição previsto no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil apenas começa a correr quando a causa, i.e., o processo, estiver integralmente findo.
Nesse sentido, o Acórdão desta Secção de 7 de novembro de 2019, proferido no Processo n.º 01909/16.5BELSB, entendeu que «só quando termina o processo é que ocorre a determinação dos direitos e obrigações de carácter civil, devendo contar-se, em ação por morosidade na justiça, todos os períodos desde a entrada da ação declarativa em juízo».
Por seu turno, o Acórdão de 6 de fevereiro de 2020, proferido no Processo n.º 03/16.3BEALM, decidiu-se que «em situações de responsabilidade do Estado por atraso na justiça como as dos presentes autos, deve entender-se que o prazo prescricional fixado no artigo 498.º do CC apenas começa a correr com a prolação da decisão de mérito irrecorrível».
Na base da jurisprudência fixada nos arrestos referidos está o entendimento de que o n.º 4 do artigo 20.º da CRP, interpretado de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 6.º da CEDH, consagra o direito de acesso à justiça em prazo razoável como uma garantia inerente ao direito à tutela jurisdicional efetiva, devendo o Estado ser constituído em responsabilidade civil extracontratual por violação daquele direito, em toda a sua extensão.
No citado Acórdão de 7 de novembro de 2019, afirmou-se, a propósito dessa extensão, que o termo «causa» utilizado em ambos os preceitos citados, deve ser tomado no seu sentido material, pelo que o direito a uma decisão em prazo razoável e mediante um processo equitativo abrange todo o processo, em todas as suas fases e incidentes, e não apenas a sua fase declarativa.

9. Transpondo a jurisprudência citada para o caso dos autos, não podemos deixar de entender que apenas com a extinção das obrigações civis do falido e a sua reabilitação o processo de falência e a sua execução se podem dar como integralmente findos.
É certo que, desde, pelo menos, 17 de novembro de 2008, que a A. e ora recorrente se queixa da morosidade da justiça no julgamento da sua causa, mas daí não decorre, por si só, que ela conhecesse em toda a sua extensão os factos constitutivos do seu direito, e que estivesse em condições de formular o juízo de qualificação dos mesmos como geradores de responsabilidade do Estado por atraso na administração da justiça.
Na verdade, a causa de pedir na presente ação é o atraso na justiça, consubstanciado na delonga do processo falimentar da ora recorrente, processo esse que à data da propositura da ação ainda não se mostrava concluído e cujos efeitos decorrentes da decretação da falência só foram definitivamente extintos com o trânsito em julgado da sentença de reabilitação da falida, de 1 de fevereiro de 2016. A sentença de reabilitação da falida ao pôr, assim, termo aos efeitos da decretação da falência, permite-nos no caso fixar o momento do conhecimento do (eventual) direito da mesma a ser ressarcida pela morosidade na sua conclusão.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, podemos concluir que , ao ter julgado procedente a exceção perentória de prescrição do direito à indemnização, e absolvido o R. do pedido, o acórdão recorrido fez errada interpretação do n.º 1 do artigo 498.º do CC, merecendo por isso ser censurado.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, mandando baixar o processo ao TCAS para conhecimento das questões que ficaram prejudicadas pela decisão recorrida.

Custas neste STA e no TCAS pelo Recorrido. Notifique-se



Lisboa, 19 de novembro de 2020. - Cláudio Ramos Monteiro (relator) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano.