Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0657/12
Data do Acordão:11/27/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:ACTO ADMINISTRATIVO
ACTO NORMATIVO
LEI DE EXECUÇÃO ORÇAMENTAL
FUNÇÃO LEGISLATIVA
GOVERNO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Sumário:I - O art. 78º, nº 2 do DL nº 72-A/2010, de 18/6 não contém um acto materialmente administrativo.
II - Tratando-se de uma norma jurídica de execução orçamental, contida num decreto-lei e, portanto, emanada da função política e legislativa do Governo, a jurisdição administrativa é incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido de declaração de nulidade ou anulação de tal acto.
III - No que respeita aos actos do órgão de soberania Governo, órgão de condução da política geral do país (art. 182º da CRP), o ETAF confere a competência ao STA para apreciar os processos relativos a acções ou omissões do Conselho de Ministros (art. 84º da CRP) e do Primeiro-Ministro (art. 187º da CRP), respectivamente nos pontos iii) e iv) da alínea a) do nº 1 do seu art. 24º.
IV - Assim, para efeitos de deferimento da competência do STA, apenas relevam os actos efectivamente praticados ou omitidos pelo órgão colegial Conselho de Ministros ou pelo órgão singular Primeiro-Ministro, pois só esses foram considerados pelo legislador como possuindo relevância bastante para serem apreciados pelo mais alto tribunal da jurisdição administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P18297
Nº do Documento:SA1201411270657
Data de Entrada:06/12/2012
Recorrente:MUNICÍPIO DE BRAGA
Recorrido 1:CM E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

O Município de Braga, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, acção administrativa especial, pretendendo demandar o Conselho de Ministros, a Presidência do Conselho de Ministros e o Ministério das Finanças e da Administração Pública, com o propósito de ver anulado/declarado nulo o art. 78.º do DL n.º 72-A/2010, de 18 de Junho, em virtude do qual se passaram a reter as quantias ai mencionadas dentre as transferências do Orçamento Geral do Estado para as autarquias locais. Ou, se assim não fosse entendido, de declaração de nulidade ou de anulação de cada um dos actos de retenção de verbas do FEF destinadas a transferir do orçamento do Estado para o A. praticados pela DGAL em 15/07, 13/08, 15/09 e 15/10 do ano de 2010.

Os RR, citados para contestar, entre outras excepções, pugnaram pela incompetência, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em razão da hierarquia, uma vez que, para apreciar e decidir a questão em apreço é competente, por determinação legal, art. 24.º do ETAF, a Secção do Contencioso Administrativo, do Supremo Tribunal Administrativo.

Notificado do despacho do Juiz do TAF de Braga, datado de 12.04.2011, veio o Requerente, Município de Braga pronunciar-se quanto à matéria de excepção invocada pelos RR nas respectivas contestações, a fls. 155 a 168 dos autos.
Assim pronunciou-se o Município de Braga sobre:
· Incompetência do Tribunal (anuindo à verificação da excepção da incompetência em razão da hierarquia),
· Alegada intempestividade da acção,
· Pretensa “Inexistência de acto Administrativo”
· Inidoneidade do meio processual,
· Ilegitimidade passiva do Réu, Ministério das Finanças e da Administração Pública
· Falta de indicação de contra-interessados.

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, na sua sentença, julgou-se incompetente em razão da hierarquia e remeteu os autos ao Supremo Tribunal Administrativo, após o trânsito da decisão.

Foi proferido despacho de saneador, relegando-se para final o conhecimento das excepções, sendo as partes notificadas do teor do mesmo e, também, para alegações, nos termos do art. 91.º n.º 4 do CPTA.

O Autor, não apresentou alegações.

Os RR, Conselho de Ministros, Presidência do Conselho de Ministros -Secretaria de Estado da Administração Local/ Direcção Geral das Autarquias Locais, apresentam alegações com conclusões do seguinte teor:
1) Na medida em que o autor considera que o art. 78.º do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18/6, contem um acto administrativo, então a presente ação é intempestiva por ter sido deduzida depois do prazo de três meses estabelecido no art. 58.º, n.º 2, b) do CPTA;
2) E se é certo que o Autor invoca, também, a nulidade do referido “acto”, a verdade é que não fundamenta tal nulidade;
3) O art. 78.º do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18/6, não contém qualquer ato administrativo;
4) Como já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, o referido art. 78.º dirige-se ao universo global das autarquias locais, contendo, assim, as características da generalidade e abstração, pelo que estamos perante um ato normativo;
5) Além de que, como também o assinala o Supremo Tribunal Administrativo, o citado preceito integra-se na função política do governo;
6) Não havendo, pois, ato administrativo, o artº 78.º do Decreto-Lei n.º 72-A/2010 não é sindicável pelos Tribunais Administrativos;
7) Os atos de retenção das verbas do FEF também não são impugnáveis já que não são atos administrativos, mas apenas e só atos de exercício ou de execução.
8) Em qualquer caso, o art. 78.º do Decreto-Lei n.º 72-A/2010 não viola nem o art. 64º da CRP, nem a Lei do Serviço Nacional de Saúde;
9) É que sempre os Municípios suportaram as despesas incorridas pela ADSE e pelo Serviço Nacional de Saúde com as prestações de natureza médica fornecidas aos funcionários dos Municípios;
10) O regime consagrado no art. 154.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28/4 (Orçamento de Estado para 2010), regime esse desenvolvido e executado pelo art. 78.º do Decreto - Lei n.º 72-A/2010, manteve o pagamento, pelos municípios, desses encargos com despesas de saúde dos seus funcionários;
11) O regime consagrado no art. 154.º do Orçamento de Estado para 2010 limitou-se a estabelecer uma nova fórmula de cálculo para esse pagamento, baseado nas despesas incorridas pelos municípios no ano anterior;
12) Sendo evidente que, no final do ano de 2010, se faria o necessário encontro de contas, entre os pagamentos feitos pelos municípios e as efetivas despesas de saúde;
13) Não há, pois, repete-se, qualquer violação quer do art. 64.º da CRP quer da Lei do Serviço Nacional de Saúde;
14) Como, igualmente, não há qualquer violação nem do princípio constitucional da autonomia financeira das autarquias locais, nem da lei das finanças locais;
15) Não é a circunstância de haver um novo método de cálculo das despesas a serem pagas pelo município, nem o facto de tal pagamento ser feito através de retenção sobre as receitas do FEF que são pagas pelo Estado aos municípios, que põe em causa essa autonomia financeira;
16) Sendo certo, além disso, que, como é entendimento doutrinal e jurisprudencial, uma lei do orçamento sempre pode alterar a lei das finanças locais;
17) Por outro lado, o art.º 78.º do Decreto-Lei n.º 72-A/2010 de 28/6 limita-se a executar o estabelecido no art. 154.º da Lei n° 3-B/2010, de 28 de Abril, não havendo, assim, qualquer violação das regras referentes à competência da Assembleia da República.
Colhidos os respectivos vistos, cumpre decidir.

2. Os Factos
Estando em causa um preceito legal – o art. 78º - contido no DL nº 72-A/2010, de 28/6, não existem factos relevantes para a decisão.

3. O Direito
O Autor assenta a presente acção no pressuposto de que o art. 78º, nºs 1 e 2 do DL nº 72-A/2010, de 18/6, conjugado com o disposto no anexo II desse diploma, contém um acto administrativo, cuja declaração de nulidade ou a anulação pede, bem como de todos os actos consequentes e a consequente reconstituição da situação que existiria se tal acto não tivesse sido praticado.
Esta matéria já foi objecto de várias decisões deste STA que tem de uma forma constante, chegado à mesma solução que é a de “o artº 78º nºs 1 e 2 do DL 72-A/2010 não conter um acto materialmente administrativo e tratando-se de uma norma jurídica de execução orçamental, contida num Decreto-Lei e, portanto, emanada da sua função político legislativa a mesma não é impugnável junto dos Tribunais Administrativos” - cfr. Acórdão de 10.07.2013, proc. 077/11.
Assim sendo, limitamo-nos a transcrever o Acórdão de 18.12.2013, proc. 0856/10, por com ele concordarmos integralmente, e no qual se escreveu o seguinte:
«2. É visível que Autor e Réus divergem quanto à qualificação jurídica que se deve atribuir ao objecto desta acção o que obriga a que, antes de tudo o mais, se apure se, de facto, os n.ºs 1 e 2 do art.º 78.º do DL 72-A/2010, de 18/06, contêm o acto administrativo que o Município de Gaia nele vislumbra ou se, pelo contrário, como sustentam os RR, aquela norma é, apenas e tão só, uma norma jurídica de execução do Orçamento de Estado para o ano de 2010 e que, por isso, a mesma não integra nenhum acto administrativo. Questão cuja relevância é indiscutível uma vez que a apreciação da legalidade dos actos praticados pelos órgãos do Estado quando essa prática se insere no exercício da sua função política ou legislativa está excluída do âmbito da jurisdição deste Tribunal (n.º 2, al.a a), do art.º 4.º do art.º do ETAF).
Cumpre, assim, apurar se a apontada norma do DL 72-A/2010 contém algum acto administrativo susceptível de impugnação judicial ou se, ao invés, ela mais não é uma norma jurídica decorrente do exercício da função política/legislativa do Governo e, por isso, insusceptível de ser contenciosamente sindicada. Problemática que já foi objecto de diversas pronúncias deste Tribunal - vd., por ex., Acórdãos de 21/10/2010 (rec. 713/10), de 7/12/2010 (rec. 798/10), de 9/12/2010 (rec. 855/10) e de 12/01/2012 (rec. 714/10) - pelo que nos limitaremos fazer nosso o discurso aí emitido, com relevo para este último Aresto, que acompanharemos de perto, visto o seu Relator ser o mesmo.
3. O diploma onde se encontra o alegado acto administrativo que se quer ver anulado é da autoria do Conselho de Ministros.
A Constituição estabelece que o Governo tem competências políticas (art. 197.º), legislativas (art.º 198.º) e administrativas (art.º 199.º) sem, contudo, definir em que consiste cada uma delas já que se limita, sem preocupações exaustivas, a indicar alguns dos actos ou medidas em que as mesmas se podem traduzir, indicação que não resolvendo todas as dificuldades quando se procura saber, com rigor e exactidão, qual a veste em que o mesmo actua quando publica qualquer acto é, no entanto, útil para, conjuntamente com as leis ordinárias de atribuição de competências, identificar o múnus em que, no caso concreto, exerceu a sua competência. O que é essencial para se decidir a natureza - política, legislativa ou administrativa - do acto impugnado já que a impugnabilidade dos actos administrativos não depende da forma que o mesmo tomou (cf. art.º 268.º, n.º 4, da CRP e art.º 52º, n.º 1 e 2, do CPTA).
De acordo com a doutrina e jurisprudência a função política consiste na definição e prossecução do interesse geral e na correspondente escolha das opções destinadas à melhoria, preservação e desenvolvimento do modelo económico e social, por forma a que os cidadãos se possam sentir seguros e possam alcançar os bens materiais e espirituais que o mesmo é susceptível de lhes proporcionar.
Podendo afirmar-se que a função administrativa se encontra a jusante da função política, revestindo a natureza executiva e complementar da mesma, (Vd. M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., vol. l, pg.s 8 a 10, S. Correia, Noções de Direito Administrativo pg.s 29/30 e F. Amaral Curso de Direito Administrativo, vol. l, pg 45, e Acórdão deste STA de 22/04/93 (rec. n.º 29.790), de 9/06/1994, (rec n.º 33.975), de 5/03/98 (rec. n.º 43.438) e de 9/05/2001 (rec. 28.775), visto se traduzir na materialização da política geral do Governos através da prática de actos administrativos, isto é, de (1) condutas de um seu órgão ou agente, (2) proferidas a coberto de normas de direito público, (3) destinadas a prosseguir os interesses postos na lei a seu cargo e a (4) produzir efeitos jurídicos num caso concreto, afectando os direitos ou interesses legitimamente protegidos do seu destinatário (Vd. art.º 120.º do CPA e M. Caetano "Manual de Direito Administrativo", 10.ª ed., pg. 429 e seg.s.). Podendo, por isso, e a contrario, afirmar-se que não se integram nessa função os actos do Governo que não são fruto da sua actividade administrativa, isto é, que não se destinam a produzir efeitos num caso concreto ou numa situação individualizada (Vd. al. d), do n.º 2, do art.º 134.º do CPA e Acórdão de 26/9/01 (rec. 43.832).) e (Neste sentido vd. Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, vol. II, pp. 170 e segs.) e, entre muitos outros Acórdãos deste STA de 3/11/2004 (rec. n.° 678/04), de 29/03/2006 (rec. 1105/05) e diversa jurisprudência nele citada.).
Por sua vez, a Constituição limita-se a fornecer-nos uma indicação meramente formal da função legislativa dizendo-nos que os actos normativo se desdobram em leis, decretos-lei e decretos regionais, sem, contudo, concretizar qual deve ser o conteúdo material de cada um deles (cf. art.º 112º), dificuldade que não é vencida com o apelo ao que se estatui no art.º 198.º do CRP visto este conter apenas uma indicação do que compete ao Governo em matéria legislativa sem, uma vez mais, esclarecer em que ela substancialmente se traduz. O que quer dizer que não é através do que se disciplina nestes preceitos que se pode alcançar o conteúdo material da actividade legislativa do Governo o que, por vezes, lhe permite verter em diploma legislativo decisões que se integram na sua actividade administrativa e que, por isso, substancialmente, constituem actos administrativos. O que não surpreende uma vez que cabe dentro da função legislativa cabe a matéria respeitante à sua própria organização e funcionamento (art.º 198.º/2).
4. Pode, assim, ter-se por seguro que o Governo tem competência política, legislativa e administrativa o que se compreende já que este, por um lado, tem a legitimidade decorrente do voto popular para definir, em termos gerais, os fins que a sociedade deve almejar, os meios que cabe utilizar para os alcançar e os caminhos que para o efeito será necessário percorrer e, por outro, tem de materializar essas escolhas quer através da prática de actos normativos como também de actos administrativos.
Tudo seria simples se o Governo ou qualquer dos outros órgãos do Estado com, simultaneamente, funções políticas, legislativas e administrativas tivesse essas funções devidamente definidas por forma a não ser possível haver confusão entre elas.
Mas, como vimos, não é isso o que acontece já que, por vezes, a função administrativa toma a forma de acto normativo o que, muitas vezes, dificulta a questão de saber se uma determinada decisão decorre da sua função política/legislativa ou da sua função administrativa, dificuldade essa que se acentua pelo facto de, como a doutrina e a jurisprudência reconhecem, existir a possibilidade “de leis individuais ou singulares, que embora não detenham a característica de generalidade dos seus destinatários, própria dos actos normativos, antes se aplicam a determinado número de pessoas individualizadas, não se esgotam, porém, totalmente, num puro acto administrativo, ou porque não obstante individuais, tem «conteúdo materialmente geral», ou porque não tem eficácia consumptiva, ou ainda porque contêm algum elemento inovador relativamente ao regime legal previamente estabelecido e, portanto, um critério político de decisão, seja ele de natureza económica ou outro e, nessa medida, ainda criam direito, o que é próprio da função legislativa” - vd. o já citado Acórdão de 7/12/2010.
É esta dificuldade em traçar com clareza a fronteira entre a função política/legislativa e a função administrativa que tem potenciado a nefasta tendência, hoje cada vez mais comum, de, na tentativa de se obterem ganhos imediatos, se procurar judicializar a função política/legislativa do Governo e dos restantes órgãos de soberania. Questão essencial visto só as decisões administrativas serem susceptíveis de controlo judicial.
Deste modo, e porque a função administrativa do Governo e dos seus membros se materializa em actos administrativos que podem estar inclusos em diploma regressamos ao ponto de partida que é o de saber se o citado art.° 78.° do DL 72-A/2010, contém um acto administrativo ou se, ao invés, o que dele se retira é uma medida de natureza político/legislativa inserida na prossecução do interesse público, e por isso, judicialmente insindicável.
5. O citado diploma fixou “as disposições necessárias à execução do Orçamento do Estado para 2010, aprovado pela Lei n° 3-B/2010, de 28 de Abril procurando contribuir para a “plena execução do Programa de Estabilidade e Crescimento 2010-2013, antecipando desde já regras em matéria de redução da despesa pública.” (Vd. o seu preâmbulo.)
O que torna claro que o mesmo se destinou não só a providenciar a execução do Orçamento para 2010 como a criar mecanismos necessários à contracção da despesa pública para, dessa forma, se cumprir o objectivo político fixado de redução da despesa e diminuição do défice.
E, nesse desiderato, executando o estatuído no art.º 154.º da Lei 3-B/2010, de 28/04 (que aprovou o Orçamento de Estado para 2010)

(Artigo 154º
Transferências das autarquias locais para o SNS
As autarquias locais transferem directamente para o orçamento do serviço nacional de saúde da Administração Central do Sistema de Saúde, l. P., o valor correspondente aos encargos suportados pelos respectivos orçamentos próprios com despesas pagas à ADSE em 2009 respeitantes a serviços prestados por estabelecimentos do SNS.), a norma em causa estabeleceu o seguinte:
Art.º 78.º
Transferências das entidades municipais para o SNS
1 - No cumprimento do previsto no artigo 154° da Lei n.° 3-B/2010, de 28 de Abril, é publicado no Anexo II ao presente decreto-lei, do qual faz parte integrante, o montante a transferir por cada entidade para o SNS.
2 - O montante referido no número anterior é retido nas transferências do Orçamento do Estado para as entidades previstas na Lei n.°3-B/2010, de 28 de Abril.
3 - Os municípios são a entidade responsável por receber das empresas municipais os montantes que lhes competem e entregá-los ao Serviço Nacional de Saúde.
Identificando-se no Anexo II referido no transcrito n.º 1 as centenas de entidades (freguesias e municípios) que tinham de transferir verbas para o SNS, entre elas o aqui Autor.
Podemos ter, assim, por certo que não só a publicação daquele DL 72-A/2010 se inseriu no conjunto de diplomas publicados com vista a promover a execução da Lei do Orçamento constituindo, por isso, um diploma indispensável e complementar da sua execução, como também que aquele art.º 78.º se dirige ao universo global das autarquias locais, ainda que estas tenham sido especificamente nomeadas. Sendo assim, e sendo que o Orçamento do Estado é muito provavelmente o mais importante e decisivo instrumento do exercício da função política/legislativa do Governo, o Autor só poderia ver sufragada a sua tese se fosse claro que a citada norma continha um verdadeiro acto administrativo traduzido naquela obrigação de retenção. Ora, é manifesto que tal não acontece.
6. E não acontece por duas ordens de razões; em primeiro lugar, porque, atento o fim que ela procurou concretizar e o seu enquadramento geral, não é possível vislumbrar na imposição que aqui se impugna uma conduta decorrente da função administrativa do Governo, depois, porque a mesma não se destinou a afectar os direitos ou interesses legitimamente protegidos de um destinatário individualizado mas o universo das autarquias (M. Caetano “Manual de Direito Administrativo”, 10.° ed., pg. 429 e seg.s.), (Vd. al. d), do n.º 2, do art.º 134.º do CPA e Acórdão de 26/9/01 (rec. 43.832).) e (Neste sentido vd. Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, vol. II, pp. 170 e segs.) e, entre muitos outros Acórdãos deste STA de 3/11/2004 (rec. n.º 678/04), de 29/03/2006 (rec. 1105/05) e diversa jurisprudência nele citada.)). E isto porque, por um lado, não se pode duvidar que, apesar do Anexo ao referido diploma identificar as autarquias que ficam sujeitas ao mecanismo da retenção de créditos e especificar o montante a ser transferido por cada uma delas, certo é que a mencionada norma se dirige ao universo global das autarquias locais e não à situação individual e concreta de cada uma delas e, por outro, aquela determinação visa a implementação da política orçamental do Governo, procurando contribuir para objectivo de política geral da redução da despesa e diminuição do défice.
O que nos permite concluir que aquela imposição tem de ser qualificada como um acto de natureza político/legislativa e não como um acto administrativo. Dito de forma diferente, ainda que se entendesse que aquele art.º 78.º e o Anexo II para que ele remete constituíam uma determinação dirigida a um universo concretizado de entidades certo era que, nem mesmo assim, era possível sufragar a tese sustentada pelo Autor e isto porque o diploma aqui em causa não foi fruto da função administrativa do Governo mas da sua função político/legislativa, visto ter proclamado princípios gerais orientadores da sua política orçamental e, por isso, se inserir no exercício da sua função político/legislativa. Por ser assim, é forçoso concluir que a dita norma não contém nenhum acto materialmente administrativo susceptível de impugnação judicial.
7. E contra o que ficou dito não valerá argumentar-se que a execução orçamental integra a competência administrativa do Governo (art.º 199.º/b) da CRP) e que, por isso, as normas jurídicas destinadas a implementar essa execução têm natureza administrativa, visto tal tese ter sido contrariada no já citado Acórdão de 7/12/2010 em termos que nos parecem correctos pelo que nos limitaremos a aderir ao que ali foi dito. Escreveu-se nesse Aresto: “Tal matéria prende-se com a questão, bastante controversa, de saber se existe uma reserva de regulamento administrativo e a existir quais os seus limites. A jurisprudência e a doutrina têm, em geral, entendido que não existe uma reserva geral de regulamento administrativo, no essencial, porque a lei pode abranger qualquer matéria susceptível de ser objecto de actividade administrativa, o que decorre da interpretação do art.º 161.º, n.º c), conjugada com art.º 198.º, n.º 2, ambos da CRP. - Cf. por todos, os referidos acs. TC nº 461/87, nº 1/97, de 20.09 e nº 24/98, de 18.12 e doutrina neles citada.
No entanto, para efeitos da impugnação contenciosa do acto aqui suspendendo tal questão não assume especial relevância, pois como referem os Profs. Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, in CPTA e ETAF, anotado, volume l, nota XXXVIII ao artº 4º, nº 2, a), pg. 66, a propósito da distinção material entre a função legislativa e a função administrativa, «Sempre que se trate de normas secundárias emanadas do Governo ou da Assembleia Legislativa Regional - órgãos simultaneamente legislativos e administrativos - sob a forma de decreto lei ou de decreto legislativo regional, o problema não se põe, porque mesmo que se lhes reconheça um “conteúdo regulamentar”, serão sempre para efeitos contenciosos, actos praticados no exercício da função legislativa.»
Ora, a norma jurídica aqui em causa está contida num decreto-lei, emanado pelo Governo ao abrigo do art.º 198º, n.º 1 a) da CRP, como dele expressamente consta e segundo a entidade demandada em estrita observância do art.º 27º da Lei do Enquadramento Orçamental (Lei 91/2001, de 20.08 e alterada e republicada pela Lei 48/2004, de 24.08), que dispõe, que «as regras relativas ao modo e à forma de definição concreta dos programas e medidas a inscrever no Orçamento de Estado e das respectivas estruturas, bem como à sua especificação no desenvolvimento orçamental e à respectiva execução, serão estabelecidas por decreto lei». Portanto, foi emitido no exercício da competência legislativa do Governo.
Como tal, não pode ser objecto da requerida suspensão de eficácia, por estar expressamente excluída a competência dos tribunais administrativos para apreciar actos praticados no exercício da função política e legislativa (artº 4, n.º 2, a) do ETAF)».
Nestes termos, o disposto no citado art. 78º do DL nº 72-A/2010, executando o previsto no art. 154º da Lei nº 3-B/2010, de 28/4 (que aprovou o Orçamento de Estado para 2010), insere-se na função político-legislativa, pelo que a acção que tenha por objecto os actos praticados no exercício daquela função está excluída da competência dos tribunais da jurisdição administrativa, nos termos do disposto no art. 4º, nº 2, al. a) do ETAF, pelo que relativamente ao primeiro pedido formulado pelo Autor: “declarar-se a nulidade ou anular-se o acto administrativo contido e exteriorizado no art. 78º do DL. n.º 72-A/2010, de 18 de Junho, conjugado com o disposto no anexo II dessse diploma”, este STA é materialmente incompetente para conhecer de tal pedido.

No entanto, o Autor pede ainda a declaração de nulidade ou a anulação dos actos de retenção praticados pela Direcção-Geral das Autarquias Locais (DGAL) que, mensalmente, entre Julho e Outubro de 2010, deram execução ao previsto naquele art. 78º, retendo a quantia global de € 210.328,00 (prevendo-se que viesse a retenção a ascender a € 315.497,00), pedindo ainda a restituição das quantias do FEF ilegalmente retidas (cfr. alíneas b) a f) do pedido).
Tais actos de retenção mensal são praticados pela DGAL nos duodécimos do FEF transferidos e a transferir mensalmente para o Município, aqui Autor (cfr. arts. 31º a 34º da p.i.).
Ora, o conhecimento destes pedidos (quer o da alínea b), quer os das restantes alíneas), não se incluem na competência material deste STA.
Efectivamente, no contencioso administrativo a competência para apreciar os pedidos formulados em 1º grau de jurisdição é determinado pela autoria das acções ou omissões que constituem o objecto do processo.
O ETAF atribuindo as competências por exclusão, identifica as matérias cuja apreciação cabe aos tribunais superiores, no art. 24º (no que respeita ao STA) e no art. 37º (quanto aos TCA), deixando o restante aos tribunais de primeira instância – os tribunais administrativos de círculo, nos termos do respectivo art. 44º.
Assim, o art. 24º do ETAF fixa, taxativamente, as situações em que a competência está atribuída ao Supremo Tribunal Administrativo, verificando-se que se trata de uma indicação que tem em vista as mais altas entidades do Estado, tanto singulares como colectivas (apenas com exclusão das respeitantes aos tribunais judiciais, por razões da estrutura organizacional do órgão de soberania Tribunais).
No que respeita aos actos do órgão de soberania Governo, órgão de condução da política geral do país (art. 182º da CRP), o ETAF confere a competência ao STA para apreciar os processos relativos a acções ou omissões do Conselho de Ministros (art. 84º da CRP) e do Primeiro-Ministro (art. 187º da CRP), respectivamente nos pontos iii) e iv) da alínea a) do nº 1 do seu art. 24º.
Assim, para efeitos de deferimento da competência do STA, apenas relevam os actos efectivamente praticados ou omitidos pelo órgão colegial Conselho de Ministros ou pelo órgão singular Primeiro-Ministro, pois só esses foram considerados pelo legislador como possuindo relevância bastante para serem apreciados pelo mais alto tribunal da jurisdição administrativa (neste sentido Ac. deste STA de 10.07.2013, acima indicado).
Por outro lado, no que respeita à legitimidade passiva o art. 10º, nº 2 do CPTA estabelece claramente que se o pedido tiver por objecto uma “acção ou omissão de uma entidade pública, parte demandada é a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos”.
Ora, os actos de retenção em causa não foram praticados, nem pelo Conselho de Ministros, nem pelo Primeiro-Ministro, mas antes pela DGAL, integrando a administração directa do Estado, no âmbito da Presidência do Conselho de Ministros (cfr. arts. 2º, nº 2, al. c) e 4, al. g) do DL nº 202/2006, de 27/10), não cabendo tais actos no âmbito de competência deste STA (ou do TCA).
Assim, cabe ao respectivo tribunal administrativo de círculo (arts. 24º, 37º e 44º do ETAF), a competência para conhecer do pedido agora em causa que, nos termos do disposto no art. 16º do CPTA e no Mapa anexo ao DL 325/2003, de 30/12, é o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
No que respeita ao pedido de condenação da DGAL à restituição da quantia retida acrescida de juros, e restantes pedidos, trata-se de pedidos acessórios, pelo que o tribunal competente para deles conhecer será o mesmo que é competente para conhecer do pedido principal, no caso o TAF de Braga.

Pelo exposto, acordam em:
a) - declarar a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido de declaração de nulidade ou anulação do alegado acto administrativo contido no art. 78º, nºs 1 e 2 do DL nº 72-A/2010, de 18/6 e anexo II do mesmo diploma, absolvendo os RR. da instância, quanto a este pedido;
b) – declarar este tribunal incompetente em razão da hierarquia para conhecer dos restantes pedidos;
c) – condenar o Autor nas custas;
d) – ordenar a remessa dos autos ao TAF de Braga, após o trânsito do presente acórdão.

Lisboa, 27 de Novembro de 2014. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – Alberto Acácio de Sá Costa Reis.