Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0414/18.0BALSB
Data do Acordão:11/22/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
DESPACHO
Sumário:A conduta objectiva de inserção no CITIUS de meras assinaturas electrónicas ou de despachos fantasma é demonstrativa, em si mesma, da intenção do seu autor ludibriar a hierarquia quanto a pendências e atrasos.
Nº Convencional:JSTA000P23866
Nº do Documento:SA1201811220414/18
Data de Entrada:04/20/2018
Recorrente:A.......
Recorrido 1:CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. A………… - Magistrado do Ministério Público, com a categoria de Procurador-Adjunto, residente na rua ……….., ……….., ………. - demanda nesta «acção administrativa» > [AA] o CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO [CSMP] pedindo a este Supremo Tribunal [STA] o seguinte:

- Que anule a deliberação do Plenário do réu, de 16.01.2018, que o puniu disciplinarmente com a sanção de 19 meses de inactividade;

- Que condene o réu a substituir a mesma por outra «que subsuma a sua conduta na previsão do artigo 181º, ou do 183º, nº1, do Estatuto do Ministério Público [EMP]», e a proceder, depois, à atenuação extraordinária da sanção, aplicando-lhe multa ou suspensão de exercício abstracta;

- Que imponha ao réu a reavaliação da conduta do autor para efeitos disciplinares, suprindo os vícios apontados, adequando a sanção, e sua medida concreta, aos ocorridos, e considerando todas as circunstâncias favoráveis atendíveis [artigo 95º, nº5, do CPTA];

- Que ordene a notificação do réu para apresentar proposta fundamentada sobre a matéria, e a realização das diligências complementares tidas por necessárias.

Para tanto, articula um manancial de «factos» a partir dos quais pretende fazer vingar a sua tese jurídica segundo a qual a referida decisão punitiva padece de «erros manifestos» nos seus pressupostos «de facto» e «de direito», bem como viola os princípios da justiça e da proporcionalidade.

O réu CSMP deduziu contestação, aceitando boa parte dos factos alegados pelo autor, invocando desconhecimento de outros, e impugnando as «consequências jurídicas que dos mesmos ele pretende extrair».

2. Por despacho do Relator foi dispensada a realização da audiência prévia, e as partes foram convidadas para, querendo, apresentarem alegações de direito - artigo 91º, nº5, do CPTA.

3. O autor juntou alegações de direito, e delas extraiu as seguintes conclusões:

1ª- O aqui autor apresentou uma versão alternativa dos factos que forçosamente tem de preencher o conceito de «dúvida razoável» quanto à razão pela qual apôs, em processos da sua competência, assinaturas electrónicas que não foram acompanhadas do correspondente despacho, sendo que essa sua versão é coerente e razoável, pelo que infirma a motivação que foi pressuposta na decisão punitiva;

2ª- O aqui autor apresentou uma versão alternativa dos factos que forçosamente tem de preencher o conceito de «dúvida razoável», seja quanto ao modo como o jornalista B……. teve conhecimento de que tinha sido deduzida acusação no inquérito nº……………, seja acerca do que levou o autor a aceder, através do CITIUS, a esse processo, e a versão por ele apresentada é coerente e razoável, pelo que infirma o que a esse respeito foi dado como provado, e pressuposto, na decisão punitiva;

3ª- Nos autos existem indícios que apontam em sentidos opostos e da análise de cada um dos dois conjuntos de indícios não é possível afirmar, com segurança e consciência, que os indícios que apontam no sentido de o autor poder ter praticado os factos que lhe são imputados tenham maior valor probatório e, por isso, devem prevalecer sobre os indícios que apontam em sentido diverso;

4ª- Por haver uma situação de «dúvida razoável» sobre os segmentos sindicados dos pontos 1, 75 e 77 da fundamentação de facto da decisão punitiva - não só porque a prova coligida no processo disciplinar não permite fundar ou formular uma convicção segura, de certeza apodíctica da prática dos factos aí imputados ao arguido, como também pela existente de versões alternativas, coerentes e razoáveis, por este apresentadas - é inequívoco existir erro nos pressupostos de facto da decisão punitiva, o qual inquinou a subsunção que nela foi efectuada ao direito aplicável, pois não revelando a conduta do aqui autor «falta de honestidade, grave insubordinação ou […] conduta imoral ou desonrosa» jamais poderia ter sido subsumida, como indevidamente foi, na alínea b) do nº1 do artigo 184º do EMP a que corresponde pena de aposentação compulsiva ou demissão, o que se traduz num erro grosseiro, no sentido de palmar, ostensivo ou manifesto, nos pressupostos de direito dessa mesma decisão;

5ª- Porque a prova documental e testemunhal produzida no processo disciplinar, e na qual se funda a decisão punitiva, não se mostra dotada do grau de certeza e de segurança exigidos nesta matéria, para além de toda a dúvida razoável, não permitindo formar uma convicção segura para a sustentação da imputação de responsabilidade disciplinar ao ora autor, para além de existir erro sobre os pressupostos de facto, foram feridos os princípios da «presunção de inocência» do arguido e do «in dubio pro reo», o que também se reconduz à assacada violação do princípio da justiça;

6ª- Porque todos estes vícios da decisão punitiva são cominados com a anulação peticionada pelo autor, fica demonstrada a procedência da presente acção, devendo decidir-se em conformidade.

4. Também o CSMP juntou alegações que culminou deste modo:

A- Os factos considerados provados no acórdão impugnado assentam todos em prova sólida recolhida no processo disciplinar;

B- É o que sucede desde logo no que respeita aos factos vertidos nos itens 1 e 77, que o autor questiona, mas sem que lhe assista qualquer razão;

C- O facto descrito no ponto 1 reporta-se ao controlo estatístico mensal que o magistrado coordenador do …………… fazia relativamente ao desempenho dos magistrados responsáveis pelos inquéritos, nomeadamente ao desempenho do autor, e está por demais provado no processo disciplinar;

D- O autor não apresenta qualquer argumento no sentido de que tal controlo não fosse feito, mas, pelo contrário, várias vezes na petição inicial lhe faz referência para o criticar, sendo impossível de perceber que venha dizer que não existem elementos no processo disciplinar para que seja considerado provado;

E- Quanto aos factos descritos no ponto 77, é certo que têm uma boa margem de subjectividade, mas sempre se inferem dos factos objectivos;

F- E no caso do autor infere-se com toda a segurança da sua conduta que ao praticar os factos objectivos que assume, simulando despachos nos processos para ocultar os atrasos que tinha, agiu voluntária e conscientemente, com propósitos que sabia desadequados ao seu estatuto de magistrado do Ministério Público, conforme se considerou provado;

G- E nem isso fica posto em causa pelo facto de o autor invocar que só queria evitar que o número de baixas mensal no ………. não contrariasse o elevado número de entradas, e assim evitar também problemas com os seus superiores hierárquicos;

H- Nem tão pouco vem ao caso chamar à colação o princípio “in dubio pro reo”, pois não ocorreu qualquer situação de non liquet, ou seja, de dúvida razoável e inultrapassável sobre a factualidade em questão;

I- Pelo contrário, perante a prova produzida no inquérito, com observância do princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, apreciada e valorada de forma crítica, racional, lógica, objectiva, e de harmonia com as regras da experiência comum, concluiu-se com toda a segurança que o autor praticou todos os factos vertidos na decisão punitiva;

J- E nenhuma dúvida se suscitou na formação da convicção sobre os factos, muito menos qualquer dúvida inultrapassável, perante a qual houvesse de ser observado o indicado princípio in dubio pro reo;

K- Pelo que o acórdão impugnado não pode merecer qualquer censura por ter considerado assentes os factos descritos nos pontos 1 e 77 da matéria de facto;

L- E o mesmo se diga no que respeita ao facto vertido no ponto 75, que o autor também questiona, mas, igualmente sem que lhe assista qualquer razão;

M- Com efeito, logo no que respeita à segunda parte desse item - inexistência de qualquer razão funcional para acesso ao processo - está comprovado por meios técnicos, sendo inquestionável, e nem o ora autor isso questiona, antes dizendo que o fez apenas por mera curiosidade;

N- E relativamente à primeira parte, também é o que resulta da prova produzida, e apreciada de forma conjugada, apenas não se tendo provado que tenha transmitido o teor da acusação;

O- Designadamente, as declarações do jornalista B………. não se mostram determinantes, por si só, para colocar em causa esses factos, como pretende o autor, no sentido de afastar a sua responsabilidade;

P- Antes a sua credibilidade cede por serem contrariadas por outros meios de prova, como, por exemplo, pelas declarações da colega do autor, Procuradora Adjunta ………., que assistira ao telefonema entre o autor e o jornalista;

Q- E também não colhe a tentativa que o autor faz para iludir esse facto quando alega que através da sua conversa o jornalista só obteve confirmação de que o inquérito já tinha despacho final, porque, mesmo a ser assim, se obteve a confirmação era porque precisava dela para se considerar conhecedor do facto;

R- Conforme vem alegado nos números 75 a 78 da petição inicial, os factos da acusação relativos a este aspecto cuja prova não se mostrava sólida foram excluídos na decisão impugnada;

S- Mas, tudo o que permaneceu considerado provado, está suportado em prova bastante para gerar a convicção segura de que os factos se passaram conforme se encontra descrito;

T- Por isso, todos os factos assentes constantes do acórdão impugnado, incluindo os dos pontos 1, 75 e 77, que o autor questiona, devem considerar-se devidamente provados em face da prova recolhida no processo disciplinar, e mantidos nos exactos termos em que se encontram descritos;

U- O autor não tem razão ao dizer que o acórdão impugnado enferma de erro nos pressupostos de facto, gerador de anulabilidade, por terem sido considerados assentes os factos descritos nos pontos 1 e 77 e no ponto 75 dos factos provados, desde logo porque essa decisão de facto está devidamente sustentada na prova recolhida no processo disciplinar, conforme já se sabe;

V- Logo, não existe qualquer desconformidade entre os pressupostos de que o CSMP partiu para proferir a decisão punitiva final e a sua efectiva verificação na situação concreta, pelo que improcede tudo o que alega para, a este propósito, dizer que a decisão impugnada enferma de erro nos pressupostos de facto;

W- Por outro lado, quanto aos factos descritos nos pontos 1 e 77, são distintos dos factos que constavam dos artigos 78 e 83 da acusação e que no acto impugnado não foram considerados provados, pelo que estes não constituem fundamento de facto da decisão punitiva, nem assumido nem pressuposto, como entende o autor;

X- O acórdão impugnado também não enferma do vício de «erro nos pressupostos de direito» que o autor lhe atribui a propósito desses mesmos factos descritos nos pontos 1 e 77 e 75 da matéria de facto;

Y- Aliás, o autor só pode estar equivocado ao fazer derivar do pretenso erro nos pressupostos de facto também um pretenso erro nos pressupostos de direito, pois o erro na decisão de direito só se verifica quando há uma errada subsunção ao direito dos factos em presença, e não é uma situação que o autor configure;

Z- E sobre o enquadramento jurídico-disciplinar dos factos apurados, é por demais evidente que a conduta do autor integra as infracções disciplinares por que foi punido, e que até se enquadravam, em abstracto, no âmbito do artigo 148º, nº1 alínea b), do EMP, a que corresponde pena de aposentação compulsiva ou demissão;

AA- Só que na decisão impugnada teve-se em atenção o reconhecimento dos factos pelo autor e o período de 29 anos em que exerce funções para se proceder à atenuação extraordinária de uma pena expulsiva, nos termos do artigo 186º, e a sua substituição por uma pena de inactividade prevista no artigo 170º, ambos do EMP;

BB- Mas não existe qualquer possibilidade de censura disciplinar menos grave para os factos praticados pelo autor;

CC- Na decisão impugnada fez-se um correcto enquadramento jurídico da conduta do autor, e correcta escolha e quantificação da pena disciplinar aplicada, ponderando em benefício do autor todos os aspectos que assim deviam ser ponderados, pelo que a pena disciplinar de 19 meses de inactividade se mostra adequada, necessária e proporcional;

DD- Também improcedem as demais ilegalidades que o autor atribui à decisão punitiva impugnada;

EE- Com efeito, desde logo a pena disciplinar aplicada respeita o critério de censura de condutas idênticas para assegurar um poder disciplinar justo e equitativo;

FF- Por outro lado a sanção disciplinar de 19 meses de inactividade aplicada ao autor pela decisão punitiva impugnada também não constitui qualquer violação do princípio da proporcionalidade, antes se tratando de uma pena disciplinar manifestamente necessária, adequada e proporcional à gravidade da conduta do autor;

GG- E também não é pelo facto de o Senhor instrutor ter proposto a aplicação de uma pena disciplinar de 18 meses de inactividade que o CSMP está impedido de, em conformidade com a própria violação do desvalor das condutas a sancionar, aplicar uma pena disciplinar de 19 meses de inactividade;

HH- De igual modo não colhe a alegação do ora autor no sentido de que a procedência parcial da sua reclamação na parte em que a decisão punitiva da Secção Disciplinar do CSMP tinha sido considerada nos antecedentes disciplinares uma pena anterior de 150 dias de suspensão de exercício de funções devia corresponder a uma redução maior do que aquela que foi feita no acórdão impugnado;

II- Pelo contrário, em face de todo o contexto dos factos que fundamentam a punição disciplinar e dos antecedentes disciplinares do autor, a redução de 1 mês de inactividade mostra-se perfeitamente ajustada à redução de duas para uma sanção disciplinar anterior a ser tida em consideração;

JJ- Em suma, o acto impugnado não enferma de nenhum dos vícios que o ora autor lhe atribui, nem de quaisquer outros que afectem a sua validade, pelo que nenhum fundamento existe para que seja anulado, devendo antes ser mantido na ordem jurídica, na total improcedência da alegação e dos pedidos feitos pelo autor.

5. O tribunal é o competente, e as partes dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, e são legítimas. Inexistem quaisquer nulidades a conhecer.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir a acção administrativa.

II. De Facto

São os seguintes os factos articulados, pertinentes e provados:

1- O autor ingressou na Magistratura do Ministério Público no ano de 1989, e exerceu funções nas comarcas de ………., ………., …….., …….. e ………. - pacífico nos autos;

2- Foi colocado na comarca de ………… em 24.06.98, como Procurador-Adjunto, onde se mantém até à presente data - pacífico nos autos;

3- No início do ano de 2000, foi afecto ao departamento especializado crime, então designado GAP II, e entretanto extinto - pacífico nos autos;

4- Aí se manteve até 24.04.2008, data em que transitou para o GAP I, mantendo, no entanto, a direcção de cerca de 130 inquéritos que por si vinham sendo anteriormente conduzidos - pacífico nos autos;

5- No triénio de 2007 a 2009, por razões da sua vida particular, sofreu de profunda depressão que lhe diminuiu acentuadamente a capacidade de trabalho - pacífico nos autos;

6- Apesar disso, e nesse período, o requerente ainda teve uma média de acusações superior à nacional - pacífico nos autos;

7- Contudo, não conseguiu findar mais inquéritos do que os «entrados», tendo inclusivamente subido as pendências em 2007, com objectiva quebra de produtividade - pacífico nos autos;

8- Assim, em 2008 foi alvo de processo disciplinar [nº................], no qual foi condenado pela prática de uma infracção, na forma continuada, consubstanciada em «violação dos deveres de zelo e de lealdade» - pacífico nos autos;

9- Neste processo, por acórdão de 12.05.2009, a Secção Disciplinar do CSMP aplicou-lhe a pena disciplinar de suspensão do exercício de funções por 60 dias, que foi alterada, por acórdão de 22.06.2009 do Plenário do mesmo Conselho para uma pena disciplinar de 60 dias de multa, que cumpriu - pacífico nos autos;

10- O requerente não findou as pendências do GAP II com a brevidade desejável, tendo ainda acumulado novos atrasos nos inquéritos que lhe foram distribuídos - pacífico nos autos;

11- Dos 110 inquéritos que tinha pendentes em 30.05.2008, somente conseguiu dar despacho final em 20, até 30.09.2008, ficando com 90 inquéritos, pendentes nesta última data, 46 dos quais provindos do extinto GAP II e já com os atrasos censurados no processo disciplinar dito em 8 supra - pacífico nos autos;

12- A hierarquia, através de provimento de 12.09.2008 [nº90], colocou-o no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ……….., o que implicou a sua ocupação permanente em sala de audiências nos dias úteis, o tratamento e impulso de todos os processos classificados em curso, bem como a interposição e resposta a recursos, mantendo a direcção dos processos pendentes do extinto GAP II, com a incumbência de os tramitar e dar despacho final - pacífico nos autos;

13- Em face disto, o requerente apenas concluiu 18 inquéritos até 31.10.2008, 12 outros até 30.11.2008, e mais 19 até 04.02.2009, pelo que, em 26.03.2009 tinha 30 inquéritos pendentes - pacífico nos autos;

14- A partir de 01.07.2010, e por provimento de 23.06.2010 [nº96], o requerente passou a receber, conjuntamente com os restantes 5 Procuradores-Adjuntos dos Juízos Cíveis e Criminais do Tribunal Judicial de ……….., 20% dos inquéritos pela prática de crimes puníveis com pena de prisão até 5 anos, exceptuados os com arguidos detidos, percentagem que foi reduzida para 15% a partir de 01.10.2012 através de provimento de 28.09.2012 [nº106] - pacífico nos autos;

15- Dada a extinção do 4º Juízo Criminal, a partir de Setembro de 2011 houve um acréscimo de trabalho para os outros Juízos do Tribunal Judicial de ………… - pacífico nos autos;

16- Mediante provimento de 12.09.2011 [nº99], o requerente mais recebeu, conjuntamente com os demais magistrados ao serviço, 88 inquéritos anteriormente dirigidos por outra Procuradora- Adjunta, os quais foram repartidos equitativamente entre todos eles - pacífico nos autos;

17- Por despacho da Senhora Procuradora-Geral Distrital do Porto, foram também distribuídos aos magistrados do Ministério Público de ……….cerca de 360 inquéritos antigos e parados nos serviços do Ministério Público de ………, tendo cabido ao ora requerente cerca de 33 desses inquéritos - pacífico nos autos;

18- Na sequência do dito em 10 supra, e de inspecção iniciada em 10.10.2012 a que foi sujeito, foi instaurado ao requerente novo processo disciplinar [nº................], aberto por despacho do Vice Procurador-Geral da República [despacho de 14.02.2013], e onde lhe foi imputada a prática do total de 33 infracções disciplinares e proposta a aplicação da pena de 150 dias de suspensão do exercício das funções de Procurador-Adjunto - pacífico nos autos;

19- Por acórdão de 12.07.2013, da Secção Disciplinar do CSMP, foi sancionado na pena que foi proposta, acrescida de transferência para a comarca de ………, sendo que esta decisão punitiva foi confirmada pelo Plenário do CSMP em acórdão de 03.12.2013 - documentos de folhas 37 a 82 dos autos;

20- Em 15.04.2013, o ora requerente tinha apenas um inquérito do extinto GAP II dos serviços do Ministério Público de ………. por finalizar, que integrava um total de 49 processos pendentes, em termos estatísticos, 2 dos quais provisoriamente suspensos e 8 deles há mais de 8 meses - pacífico nos autos;

21- Em Maio de 2013 o requerente deixou o 1º Juízo Criminal, e passou a assegurar o serviço junto do Juiz de Instrução do Tribunal Judicial de ………., mantendo-se, todavia, a contínua distribuição dos inquéritos «entrados» por ele e pelos restantes 9 Procuradores-Adjuntos dos Juízos Criminais da comarca - pacífico nos autos;

22- Desde 01.06.2013 e pelo menos até 05.02.2014, foi ele o magistrado dos serviços do Ministério Público de ……… com menos inquéritos pendentes há mais de 8 meses, e o segundo melhor classificado nas pendências com menos de 8 meses, excluídos os colegas afectos aos Juízos Cíveis - documentos de folhas 83 e 84 dos autos cautelares em apenso;

23- Na sequência de processo cautelar instaurado pelo ora requerente no STA [nº148/14], e por acórdão proferido em 20.03.2014, foi suspensa a eficácia da decisão punitiva dita em 19 supra, e declarada indevida a execução entretanto havida - documento de folhas 85 a 113 dos autos cautelares em apenso;

24- Pela Ordem de Serviço de 27.03.2014 [nº8/2014], a Procuradora-Geral Distrital determinou que o requerente «assegurará 50% do serviço atribuído ao 1º Juízo do Tribunal de Trabalho [de……….], bem como 50% do atendimento ao público deste Juízo e ser-lhe-ão distribuídos os inquéritos contra desconhecidos da comarca de ………» - documento de folha 114 dos autos cautelares em apenso;

25- O requerente reagiu a esta instrução, mas a mesma foi mantida por decisão de 01.07.2014 do CSMP - documentos de folhas 115 a 121 dos autos cautelares em apenso;

26- O ora requerente prestou serviço durante cerca de dois meses no Tribunal de Trabalho de …………, partilhado com o despacho de inquéritos da 1ª Secção do Ministério Público de ……… - pacífico nos autos;

27- Em 01.09.2014 foi superiormente determinado que o requerente passasse para a 3ª Secção do então criado ………………., com competência genérica e número de inquéritos averbados muito significativo - pacífico nos autos;

28- Através de acórdão de 10.02.2015 da 1ª Secção «Para Apreciação do Mérito Profissional, do CSMP», foi deliberado atribuir ao requerente a classificação de «Medíocre» em relação ao seu desempenho na comarca de ………. entre 10.10.2008 e 10.10.2012, bem como proceder «à instauração de inquérito por inaptidão para o exercício de funções, ficando o magistrado suspenso desse exercício, nos termos do nº2 do artigo 110º do EMP» - documento de folhas 122 a 127 dos autos cautelares em apenso;

29- O que foi confirmado pelo acórdão do Plenário do CSMP em 28.04.2015 [processo nº............], e cuja notificação implicou o afastamento completo do ora requerente do serviço a partir de 04.05.2015 - documento de folhas 128 a 135 dos autos;

30- Por acórdão de 26.05.2015 o CSMP indeferiu a reclamação apresentada pelo ora requerente e só em 24.11.2015 acabou por considerá-lo «Apto para o exercício das funções de magistrado do Ministério Público», com o consequente arquivamento, embora determinando que «seja objecto de inspecção extraordinária dentro de 2 anos, devendo, entretanto, o seu desempenho ser monotorizado por parte da respectiva hierarquia até que tal inspecção se realize» - documentos de folhas 136 a 153 dos autos cautelares em apenso;

31- Quando o requerente regressou ao serviço, em Dezembro de 2015, tinha a seu cargo cerca de 600 inquéritos - pacífico nos autos;

32- E tinha, tal como os demais magistrados da Secção, de assegurar os turnos semanais do serviço do Ministério Público - pacífico nos autos;

33- E um acréscimo de serviço, a partir de Setembro de 2015, advindo da falta de um dos 4 magistrados do Ministério Público que integravam aquela Secção - pacífico nos autos;

34- Durante o ano de 2016, o ora requerente padeceu de problemas de saúde, bem como teve de acompanhar os sogros, de idade avançada, com problemas de saúde, e necessitados desse acompanhamento - pacífico nos autos;

35- Por acórdão de 13.07.2016, proferido no processo principal [do cautelar referido a 23 supra], este STA decidiu «anular o acto administrativo impugnado, com todas as consequências legais», e aguarda-se, ainda, a decisão final do recurso interposto para o Pleno pelo CSMP - documento de folhas 154 a 205 dos autos cautelares em apenso;

36- Em 01.09.2017, a hierarquia determinou a colocação do aqui requerente no 3º Juízo Local Criminal da Comarca de ………., mantendo-o com o encargo de tramitar e despachar o número que lhe coube dos inquéritos de que até então tinha sido titular, após a ocorrida repartição dos mesmos entre ele e os magistrados da 3ª Secção do ………….- pacífico nos autos;

37- A hierarquia de proximidade do ora requerente sempre insistiu para que ele mantivesse um número de baixas mensal que contrariasse o elevado número de entradas - cerca de 160, em média, para cada magistrado da 3ª Secção do ……….., dado que um deles esteve de baixa médica por gravidez, desde Setembro de 2016 até Dezembro de 2017 - pacífico nos autos;

38- O requerente, por vezes, apôs assinaturas electrónicas, em alguns inquéritos, enquanto procurava ir fazendo os respectivos despachos finais no seu arquivo de documentos - pacífico nos autos;

39- E retinha os inquéritos em questão, não os entregando na secretaria - pacífico nos autos;

40- O aqui requerente inseriu no Citius sete despachos em 17.02.2017, doze em 05.05.2017, nove em 06.05.2017 e dezassete em 08.05.2017, sendo que muitos deles não eram de simples expediente - pacífico nos autos;

41- Este comportamento do requerente acabou por ser reportado superiormente - pacífico nos autos;

42- Na sequência disso foi instaurado ao requerente novo processo disciplinar [nº665/2017], que culminou com o acórdão de 07.11.2017, da Secção Disciplinar do CSMP, que o condenou na pena de «inactividade pelo período de 20 meses» - documento de folhas 205 a 233 dos autos cautelares em apenso;

43- Por acórdão de 16.01.2018, o Plenário do CSMP, decidindo reclamação do ora requerente, reduziu tal pena disciplinar para «19 meses de inactividade» - documento de folhas 234 a 269 dos autos cautelares em apenso;

44- O agora requerente conta, à data, 64 anos de idade, e já perfez 29 anos de serviço na magistratura do Ministério Público - pacífico nos autos;

45- Durante os primeiros 19 anos da sua carreira, 10 dos quais na comarca de …….., nunca lhe foi instaurado qualquer processo disciplinar, e obteve 4 classificações de serviço com a notação de «Bom» - pacífico nos autos;

46- Até aos dias de hoje o requerente sempre foi considerado pelos seus pares como excelente colega, solidário, com grande disponibilidade, respeitador da hierarquia, tendo granjeado por isso algum prestígio junto deles - pacífico nos autos;

47- É magistrado assíduo e dedicado ao serviço, que sempre permaneceu no Tribunal Judicial de ………… para além do horário normal, trabalha, por vezes, em tempo de férias, e leva trabalho para casa - pacífico nos autos;

48- No âmbito da Inspecção Ordinária nº8/2012, o Procurador da República do Círculo Judicial de ………., coordenador dos magistrados do Ministério Público na comarca de ……….., realçou «o seu empenho, a sua dedicação ao serviço, a sua postura social e funcional, o excelente relacionamento com a hierarquia, demais gentes do foro e instâncias policiais e administrativas com quem o Ministério Público se articula e com os cidadãos em geral» - documento de folha 270 dos autos cautelares em apenso;

49- A acusação proferida contra o ora requerente no âmbito do processo disciplinar em cujo seio foi praticado o acto suspendendo continha duas imputações distintas, a saber:

a) A primeira, de ter procedido à assinatura electrónica, com ou sem despacho fictício, mas na realidade sempre inexistente, em 68 inquéritos de que era titular e com conclusões abertas, com o propósito de ludibriar a sua hierarquia, fazendo crer a esta que se encontravam despachados, quando não o estavam - artigos 1º a 72º da acusação, junta a folhas 439 a 463 do II volume do PA anexo aos autos cautelares em apenso;

b) A segunda, de em 06.01.2017 ter dado conhecimento ao jornalista B………… do teor da acusação pública proferida em inquérito do qual era titular a Procuradora Adjunta Dra. ………….., com nº……………, tendo para tanto acedido previamente ao mesmo através do sistema informático Citius, ciente de que com essa sua conduta poderia vir a frustrar o sucesso de arresto promovido - artigos 73º a 76º da acusação, junta a folhas 464 a 466 do II volume do PA anexo aos autos cautelares em apenso.

Nenhum outro facto articulado se mostra pertinente para a decisão da causa, e isto tendo em conta as várias soluções plausíveis de direito.

III. De Direito

1. Como deixamos dito no relatório, o autor pretende ver anulada a deliberação punitiva, de 16.01.2018, que lhe aplicou a sanção disciplinar de «19 meses de inactividade», e a sua substituição por pena de multa [artigo 181º do EMP] ou pena de suspensão de exercício e inactividade [artigo 183º, nº1, EMP], submetida a atenuação extraordinária. Em ordem a tal, quer que o CSMP seja «condenado a reavaliar a sua conduta para efeitos disciplinares suprindo os vícios que aponta à deliberação impugnada.

Esses alegados vícios consubstanciam-se no «erro sobre os pressupostos de facto» e no consequente «erro sobre os pressupostos de direito» da deliberação punitiva.

E explica-os assim: - relativamente à 1ª infracção, que lhe é imputada [alínea a) do ponto 49º do provado], alega o autor que refutou, na sua defesa, que tenha sido seu propósito «ludibriar a hierarquia», pois que o seu verdadeiro propósito, com tal conduta, foi antes evitar que o número mensal de baixas, no ……….., contrariasse o elevado número de entradas, evitando desta forma, também, problemas para os seus superiores hierárquicos, bem como contrariar a ideia de que não estava a recuperar os seus atrasos, o que não era verdade. Ora, quanto ao propósito «provado», nada se provou, e quanto aos propósitos por ele alegados, nenhuma prova foi feita, sendo completamente ignorados; - relativamente à 2ª infracção, que lhe é imputada [ver alínea b) do ponto 49º do provado], defende o autor que não existe qualquer prova de que ele acedeu ao inquérito nº……………. para apurar se já havia acusação a fim de comunicar esse facto ao identificado jornalista, mas antes acedeu ao Citius por mera «curiosidade», para «ver transversalmente, de que tratava o despacho», tendo o jornalista tido conhecimento da dedução da acusação «através do jornal …………..». Foi isto que «alegou» aquando da sua defesa, sendo que, sobre o conteúdo desta alegação nenhuma prova foi feita.

Nesta base, entende o autor ocorrer «erro sobre os pressupostos de facto» da deliberação punitiva, uma vez que a base factual desta diverge, segundo diz, da realidade do que aconteceu. Aliás, face ao que alegou, na sua defesa, sempre restaria um «estado de dúvida» sobre as reais intenções que presidiram às suas condutas, e este «estado de dúvida» deveria ter-lhe sido favorável - «in dubio pro reo» [artigo 216º do EMP].

A apreciação jurídica realizada na deliberação punitiva partiu, portanto, de uma situação factual errada, pelo que não pode deixar de estar eivada de «erro de direito». Na verdade, diz, não ocorreu qualquer violação do dever de lealdade, do dever de prossecução do interesse público e do dever de zelo [ver artigos 73º, nº2, alíneas a), e) e g), e nºs 3, 7 e 9, da LGTFP (Lei 35/2014, de 20.06), aplicável ex vi 108º do EMP], uma vez que não houve «logro» nem «intenção de prejudicar o interesse público».

De todo o modo, a escolha da pena de «inactividade» [ver artigo 183º do EMP] e a sua determinação em «19 meses» [nº3 do artigo 170º EMP] está errada. Em seu entender, as suas condutas não poderiam ser sancionadas com essa pena por «atenuação especial» [artigo 186º do EMP] da pena de aposentação compulsiva ou demissão [artigo 184º, nº1, alínea b), do EMP], mas, antes deveriam ter sido sancionadas com a «pena de advertência» [artigo 180º do EMP] por «atenuação especial» da pena de «multa» [artigo 181º - EMP]. Quando muito, aduz, com esta última pena, por «atenuação especial» da pena de «suspensão de exercício» [artigo 183º, nº1, do EMP], nunca graduada acima do seu limite médio [ver artigo 185º do EMP]. E, daí, que tenha sido violado, também, o «princípio da proporcionalidade» [artigo 266º da CRP, e 7º do CPA].

2. Compulsado o processo disciplinar nº665/2017, precedido de inquérito com o mesmo número, constata-se que o teor da acusação deduzida contra o autor - em 07.07.2017, e alicerçada na prova documental e testemunhal produzida no inquérito - foi posteriormente amenizado em face da instrução complementar subsequente à defesa [referência aos pontos 38 a 43 do provado]. Na verdade, há factos da acusação que desapareceram do acervo factual do acórdão punitivo aqui impugnado, e, muito embora a conduta apurada continue, neste, a revelar «falta de honestidade» justificadora da «pena de aposentação compulsiva ou demissão» [artigo 184º, nº1 alínea b), do EMP], certo é que esta pena veio a ser, a final, «especialmente atenuada», aplicando-se antes «a pena de inactividade» fixada não em 20 meses, como decidira o anterior acórdão da Secção Disciplinar, nem em 18 meses como havia proposto a «Relatora», mas em 19 meses.

A este propósito, diz o seguinte o acórdão do Plenário do CSMP:

[…]

«No caso concreto, não estando este Conselho vinculado à pena proposta pelo instrutor, é de concluir à luz destes critérios, considerando a grave violação de deveres funcionais [prossecução do interesse público, zelo e lealdade], que a infracção imputada ao reclamante é passível de aplicação da sanção prevista no artigo 184º nº1 alínea b) do EMP - pena de aposentação compulsiva ou demissão.

No entanto, o artigo 186º do mesmo Estatuto estabelece que «a pena pode ser especialmente atenuada, aplicando-se a pena de escalão inferior, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores à infracção ou contemporâneas dela que diminuam acentuadamente a gravidade do facto ou a culpa do agente».

Tendo em atenção a forma como o reclamante reconheceu a prática dos factos e o período de 29 anos em que exerce funções, justifica-se a atenuação extraordinária de uma pena expulsiva e a sua substituição por uma pena de inactividade, prevista no artigo 170º do referido EMP.

Pelo exposto, atendendo aos aspectos em que se reconheceu razão ao reclamante - quanto ao referido segmento de inquérito em segredo de justiça [ponto 72 da matéria de facto provada] e à referência à sanção disciplinar de 150 dias de suspensão de exercício aplicada pelo Conselho [ponto 83], que se suprimiram do acórdão reclamado, e quanto à menção das classificações de «Bom», que se acrescentou [ponto 83] - reduz-se a medida concreta pena de 20 para 19 meses de inactividade.»

[…]

Tendo isto presente, e não obstante o autor dirigir os referidos «erros» de facto e de direito, frequentemente, a segmentos factuais e jurídicos da «acusação», apreciá-los-emos por referência ao pertinente conteúdo do «acórdão punitivo» impugnado.

3. Do «erro sobre os pressupostos de facto».

O primeiro alegado erro nos pressupostos de facto tem a ver com a intenção, ou com o propósito que levou o requerente a ter procedido à assinatura electrónica, com ou sem despacho fictício, em 68 inquéritos seus e com conclusões abertas.

Este invocado erro reporta-se aos pontos 1 e 77 da matéria de facto dada como provada no acórdão punitivo. Aí se diz o seguinte:

[…]

«1. O Senhor Procurador da República, Dr. ………….., na qualidade de Coordenador do ……….. de ………, de acordo com prévias ordens de serviços subscritas em 16 de Setembro de 2015 e 14 de Outubro de 2016 pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto Dr. ………………, procedia a um controlo estatístico mensal do desempenho dos magistrados responsáveis pelos inquéritos, nomeadamente do desempenho do Dr. A………… que na última avaliação do seu desempenho tinha merecido classificação negativa.

Tal controlo era exercido, para além do mais, pela análise das listas mensais de inquéritos da responsabilidade dos magistrados com conclusões por despachar com mais de trinta dias, permitindo à hierarquia verificar se ocorriam ou não atrasos na prolação dos despachos.

Conhecedor desse facto, o Dr. A…………, responsável por inquéritos respeitantes à 3ª Secção do ……………., engendrou um procedimento com o propósito de ludibriar a hierarquia, fazendo crer a esta que se encontravam despachados inquéritos que o não estavam, de modo a que não aparecessem nessas listas mensais inquéritos da sua responsabilidade que estivessem por despachar há mais de trinta dias.

Tal actuação traduziu-se na criação de despachos fantasmas, ou seja, inexistentes, mas que da análise das listas parecia resultar que os despachos teriam sido proferidos, não se encontrando, por isso, conclusos os inquéritos.

Assim, procedia à assinatura electrónica nos processos que lhe estavam conclusos, umas vezes nada mais escrevendo, outras escrevendo textos que nada tinham a ver com a matéria do inquérito.

Logo que apunha a assinatura electrónica, o inquérito não apareceria no sistema CITIUS como pendente no gabinete do magistrado, considerando-se que fora proferido despacho em versão final.

Para que o seu procedimento não fosse descoberto, retinha consigo esses inquéritos, não os entregando na Secretaria.

Não os entregando na Secretaria, em qualquer momento podia dar sem efeito esses despachos fantasmas e proceder à prolação dos despachos que fossem adequados quando o entendesse.

Com este procedimento conseguiu, até que a situação foi detectada, enganar a hierarquia».

De seguida, passa-se a enumerar e a descrever, sinteticamente, o ocorrido em cada um dos referidos 68 inquéritos [páginas 5 a 26 do acórdão punitivo, junto no volume II do PA anexo aos autos].

[…]

«77. O Dr. A………….. agiu sempre voluntária e conscientemente, com propósitos que sabia serem desadequados ao seu estatuto de magistrado do Ministério Público.»

[…]

Segundo o requerente, não há prova de que tivesse sido sua intenção «ludibriar os seus superiores hierárquicos», e que não foi tido em devida conta o que ele alegou em sede de defesa, isto é, que fez o que fez «para evitar que o número mensal de baixas no ………….. contrariasse o número de entradas, e assim evitar problemas para o seus superiores hierárquicos», e ainda para «contrariar a ideia de que não estava a recuperar os seus atrasos». Ora, do confronto da intenção não provada com esta intenção alegada terá, entende ele, de resultar um estado de dúvida razoável que deverá reverter em seu favor.

O alegado erro incide, pois, e exclusivamente, sobre a «intenção» que presidiu à conduta objectiva assumida pelo autor. Mas deveria ter sido feita prova sobre a «intenção» invocada em sede de defesa, como ele parece defender? E, a não ter sido feita, resulta a dúvida razoável que o deva beneficiar, de acordo com o princípio do «in dubio pro reo»?

Ambas as perguntas deverão obter resposta negativa.

Na verdade, a referida conduta objectiva apontada ao ora autor é, em si mesma, manifestadora de uma determinada intenção, que não poderá deixar de ser a de enganar - ludibriar - os «destinatários» da mesma, sendo que estes não eram, no caso, as partes, pois apenas havia «despachos fantasma», mas a hierarquia que controlava as entradas e saídas de processos e a produtividade dos magistrados do Ministério Público.

Efectivamente, tal intenção deverá buscar-se, no caso, tendo em conta o destino ou finalidade do «portal» Citius e o uso que dele fez o magistrado em causa. É que esse portal, e respectiva plataforma, não existem para solucionar questões relacionadas com atrasos processuais, ou para equilibrar ficticiamente entradas e saídas de processos, mas antes para tramitar processos de forma electrónica, recebendo peças processuais e documentos instrutórios, inserindo despachos e decisões «destinadas às partes», que vão sendo elaborados pelos respectivos magistrados. As conclusões a nível estatístico e de pendências processuais são, ou podem ser, retiradas a partir destes dados reais, e não o contrário.

O sistema informático e operativo Citius destina-se a servir o «processo real», potenciando a sua eficácia e agilizando a sua tramitação. Mas «não se destina», com toda a certeza, a ser instrumento de distorção de estatísticas e pendências processuais. E isto, obviamente que o sabia e sabe o autor, como magistrado experiente e devedor de obediência à lei, de tal forma que resulta inconsistente a explicação que dá para ter agido como agiu.

A intenção que alega para usar o Citius como usou, introduzindo nos respectivos processos despachos fantasma - porque fictícios ou reduzidos a meras assinaturas electrónicas - não colhe razão na inteligência do homem médio, porque desvirtuadora da finalidade do sistema operativo e porque, obviamente, «enganadora da hierarquia». A ser possível utilizar o Citius com a finalidade invocada pelo autor como justificadora da sua conduta, seria o descalabro, teríamos um sistema operativo que em vez de introduzir eficácia e verdade na administração da justiça a conspurcaria com distorções inaceitáveis.

Assim, «conjugando» a concreta actuação do magistrado autor com a finalidade do Citius, emerge como explicação subjectiva daquela a «intenção» de enganar, criando nos destinatários, a hierarquia, uma ideia errada do número e situação dos processos de que o magistrado era titular. A intenção por ele apresentada, e com a qual pretende colher dividendos de «dúvida razoável e intransponível», mostra-se quase pueril, de tal forma arrepia à «finalidade» da plataforma Citius, bem conhecida do magistrado autor.

E de tal forma assim é, ou seja, de tal forma é eloquente o «lastro objectivo de actuação» do magistrado, que nem se impunha, no caso, produzir prova sobre a «intenção» por si alegada, já que o acesso ao seu foro subjectivo só poderia ser feito «através dele próprio», da sua «confissão», e sendo esta benéfica ao confitente veria truncada a sua força probatória [artigos 352º e 358º do Código Civil], nem restou a intenção real do autor num estado de «dúvida razoável» que impusesse ao julgador a conclusão da sua falta de prova.

4. O segundo alegado erro nos pressupostos de facto tem a ver com a intenção com que o agora autor acedeu ao inquérito nº………….., na titularidade de uma sua colega, e em fase de segredo externo, pois que, para salvaguarda da boa execução das medidas de garantia patrimonial requeridas no «despacho de acusação», este «não deveria ser notificado a qualquer sujeito processual» nem comunicado a quem quer que fosse.

Este invocado erro reporta-se aos pontos 73 e 76 da matéria de facto provada no acórdão punitivo. Aí se diz o seguinte [acrescentaremos o teor dos pontos 72 e 75 do provado que serviu de base à decisão punitiva para uma melhor compreensão do teor dos pontos em causa]:

[…]

«72. Em 31 de Dezembro de 2016, no inquérito nº………………, a Senhora Procuradora-Adjunta Dr. ……………, deduziu acusação e requereu o arresto preventivo dos bens dos arguidos.

Para obviar ao conhecimento público do arresto, determinou que não se procedesse à notificação da acusação ou se realizasse qualquer outra diligência antes de concluso à Senhora Juiz de Instrução Criminal e que se procedesse a essa notificação apenas após a execução dos arrestos.

73. Posteriormente a esta data, mas em data anterior a 6 de Janeiro de 2017, o jornal …………. noticiou que tinha sido deduzida aquela acusação.

74. Em 7 de Janeiro de 2017, em notícia assinada pelo jornalista B…………. e publicada no ………….., dava-se conta de que aquela acusação tinha sido deduzida.

Dela constava um número aproximado de páginas da acusação, dando como acusados aqueles que efectivamente o foram e um outro cidadão que não o fora, e que o teor da acusação ainda não é conhecido pelos arguidos, dado que a necessária notificação ainda não lhes foi enviada.

75. O jornalista teve conhecimento de que a acusação tinha sido deduzida através do Dr. A…………., em conversa telefónica que mantiveram na tarde do dia anterior ao da publicação referida.

Para tanto, este não se coibiu de, em 6 de Janeiro, pelas 17 horas e 31 minutos, aceder, via CITIUS, ao inquérito nº……….., sem que tivesse qualquer razão funcional para o fazer, assim colhendo a informação que iria comunicar ao referido jornalista.

76. Nem a notícia publicada no ………….nem a notícia publicada no ………….. impossibilitaram ou prejudicaram as diligências de arresto que o Ministério Público tinha requerido.»

[…]

Insiste o magistrado autor que não acedeu ao referido inquérito para informar o identificado jornalista do …………. mas por mera curiosidade, para ver de que tratava o despacho de acusação. Tanto mais, aduz, que a notícia de que tinha sido proferida acusação já tinha sido publicada no jornal ………….

Mas a verdadeira questão não está, aqui, na «intenção» da consulta efectuada ao inquérito na titularidade da colega, e em segredo externo - situação de que o autor tomou conhecimento, obviamente, pela da consulta realizada e assumida -, mas antes na «informação» prestada, e assumida, ao referido jornalista. Se bem que a cronologia dos factos, associada à ausência de razão funcional para aceder ao «inquérito», legitimem o elemento subjectivo presente no texto do parágrafo 2º do ponto 75 da matéria dada como provada no acórdão punitivo impugnado.

Também quanto a esta intenção, impulsionadora da consulta, nem se impunha a produção de qualquer outra prova, para além da efectivamente feita aquando do inquérito que foi convertido em fase instrutória do processo disciplinar, nem subsiste qualquer dúvida razoável relativamente à informação, ou confirmação, se quisermos, feita pelo magistrado autor ao jornalista do …………...

A aparente desvalorização desta confirmação, que baila na alegação do autor, pelo facto de a dedução da acusação já ter sido noticiada pelo …………, «não colhe», e pelo simples facto, que já tivemos oportunidade de assinalar em sede cautelar, de que o conhecimento da dedução da acusação através do jornal …………… ou pelo Procurador a exercer funções nos serviços do Ministério Público onde pendia o inquérito, tem, obviamente, uma dimensão diferente. E, tanto assim, que o jornalista do …………., apesar da notícia do …………, sentiu necessidade de uma outra fonte, mais credível, já que «integrada no sistema judiciário».

Deve, portanto, ser julgado improcedente, nos seus dois segmentos, o invocado «erro sobre os pressupostos de facto».

5. Do «erro sobre os pressupostos de direito».

Como já dissemos, o erro sobre os pressupostos de direito é invocado, pelo ora autor, como consequência do erro sobre os pressupostos de facto. O que desde logo pressupõe o julgamento de procedência deste último. E assim sendo, face ao acabado de decidir, bem poderíamos ficar por aqui.

Na verdade, alega o autor que não podendo extrair-se da factualidade provada a intenção de «ludibriar a hierarquia», nem o intenção de «consultar o inquérito da colega para informar o jornalista», não poderá a sua conduta ser integrada na alínea b) do nº1 do artigo 184º do EMP - segundo o qual as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis quando, nomeadamente, o magistrado revele falta de honestidade - e, portanto, não lhe poderá ser aplicada a pena de inactividade a título de redução especial da pena expulsiva. Somente deveria ser considerada a «simples» violação dos deveres em causa, sancionada, ou com pena de advertência - por «atenuação especial da pena de multa» - ou, quando muito, com pena de multa - «por atenuação especial» da pena de «suspensão de exercício». A não ser assim, a pena resultará, também, «desproporcional».

Como é sabido, o exercício da acção disciplinar respeitante aos magistrados do Ministério Público cabe ao respectivo «Conselho Superior» [artigo 27º alínea a) do EMP].

Face a litígio relativo à aplicação de uma determinada pena disciplinar, o poder judicial deverá ser contido, para não invadir ilegalmente [separação de poderes] aquele poder. No caso em análise, apenas se constatássemos a ocorrência de um «erro manifesto ou grosseiro» na aplicação do direito, mormente por errada subsunção dos factos às normas legais, ou por manifesta desproporção da pena disciplinar aplicada, se imporia ao poder judicial assumir a sua correcção ou determiná-la à entidade demandada, conforme os casos.

O erro manifesto ou grosseiro é aquele «que se mete pelos olhos dentro», por claro e ostensivo, por arrepiar à sensibilidade jurídica do julgador. E este tipo de situação não ocorre no presente caso.

Assim, acresce ao julgamento de improcedência dos erros sobre os pressupostos de facto, a constatação de que não se verifica qualquer erro manifesto sobre os pressupostos de direito, quer seja na vertente da subsunção normativa, quer na da proporcionalidade da pena concretamente aplicada.

IV. Decisão

Nestes termos, decidimos julgar improcedentes os pedidos do autor, e, em conformidade, deles absolver a entidade demandada.

Custas pelo autor.

Lisboa, 22 de Novembro de 2018. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Maria do Céu Dias Rosa da Neves (em substituição) – Jorge Artur Madeira dos Santos.