Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:061/14
Data do Acordão:10/09/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:REGULAMENTO
RESERVA DE REGULAMENTO
Sumário:I - “A CRP não restringe o âmbito da competência legislativa em geral, nem confere ao Governo uma reserva de competência orgânica regulamentar em certas matérias. O poder conferido ao Governo pela al. c) do art. 199º para fazer regulamentos necessários à boa execução das leis, não corresponde a qualquer reserva de regulamento, no sentido da lei não poder ultrapassar um determinado nível de pormenorização de modo a deixar ao Governo, enquanto titular do poder regulamentar, um nível de complementação relativamente a cada das leis” – cfr. acórdão do TC 214/2011.
II - Não havendo reserva de regulamento, ou seja, em matérias onde a AR e Governo tenham ambos competência para legislar, nada obsta a que uma Lei da Assembleia da República determine que determinada matéria até então sujeita a regulamentação (Despacho Conjunto) pelo Governo seja regulada por lei em sentido formal. Nestas condições, a regulamentação a fazer - através de lei em sentido formal, apesar da matéria poder ser administrativa – insere-se no exercício da função legislativa e não no exercício da função administrativa.
III - Nas situações referidas no ponto II não pode o interessado lançar mão da acção prevista no art. 77º do CPTA.
Nº Convencional:JSTA00068936
Nº do Documento:SA120141009061
Data de Entrada:01/21/2014
Recorrente:SIND INDEPENDENTE DOS MÉDICOS
Recorrido 1:CM
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:ACÇÃO ADM ESPECIAL
Objecto:REGULAMENTAÇÃO DA L 12-A/08 DE 2008/02/27.
Decisão:IMPROCEDENTE
Área Temática 1:DIR ADM CONT - IMPUGN NORMAS.
Legislação Nacional:ETAF02 ART24 N1 A III.
CPTA02 ART77 N1.
CONST76 ART161 C ART164 ART165 ART198 A.
DL 28/08 DE 2008/02/22 ART18 ART25 ART29 N4 ART43.
L 12-A/08 DE 2008/02/27 ART73.
CCIV66 ART7 N2.
Jurisprudência Nacional:AC TC 214/2011.; AC TC 1/97.
Referência a Doutrina:CARLOS BLANCO DE MORAIS - CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL TOMOI 2ED PAG92.
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA - CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS ANOTADO PAG66.
VIEIRA DE ANDRADE - AUTONOMIA REGULAMENTAR E RESERVA DE LEI - ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROF DOUTOR RODRIGUES QUEIRÓ PAG13.
Aditamento:
Texto Integral: Acção Administrativa Especial
Acordam no Supremo Tribunal Administrativo

1. Relatório

1.1. O SINDICATO INDEPENDENTE DOS MÉDICOS intenta a presente ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL contra o CONSELHO DE MINISTROS, fundada no art. 77º do CPTA, pedindo a declaração de ilegalidade por omissão de norma legal.

1.2. O autor termina a petição inicial pedindo:

“(…)

Nestes termos e nos demais de Direito deve a presente acção ser julgada por provada, condenando-se o réu na elaboração e aprovação de norma legal, em prazo a fixar por este Tribunal, onde se fixe o suplemento remuneratório para os presidentes e vogais dos Conselhos Clínicos dos Agrupamentos de Centros de Saúde.

(…)”.

1.3. Contestou o réu excepcionando a incompetência absoluta do STA e, por impugnação, pediu a improcedência da pretensão do autor.

1.4. Proferiu-se despacho saneador julgando-se o Tribunal Competente, nos termos seguintes:

“(…)

O autor, Sindicato Independente dos Médicos, pede a condenação do réu – Conselho de Ministros - na elaboração e aprovação de norma legal, em prazo a fixar pelo Tribunal, onde se fixe o suplemento remuneratório para os presidentes e vogais dos Conselhos Clínicos dos Agrupamentos de Centros de Saúde.

O réu invocou a excepção da incompetência material deste STA, por entender em suma que a jurisdição administrativa é absolutamente incompetente para condenar o Governo a emitir acto legislativo.

Respondeu o autor, sustentando que a obrigação de regulamentar o suplemento em causa, nestes autos, se insere no poder administrativo e não no poder legislativo e, portanto, está sujeita ao controlo judicial através da presente acção administrativa especial (declaração de ilegalidade por omissão – art. 77º do CPTA).

Fundamento da pretensão do autor é, segundo a sua alegação, a omissão ilegal de norma regulamentar.

O réu, por seu turno, considera que, após a publicação da Lei 12/A/2008, qualquer suplemento apenas poderá ser fixado através de acto legislativo do Governo.

A nosso ver a questão de saber se o suplemento em causa nestes autos apenas pode ser regulado através de acto legislativo ou acto regulamentar é questão de mérito. O autor entende que tal matéria é matéria administrativa, a exercer através de normas regulamentares e o réu entende que é matéria reservada ao poder legislativo, a exercer através de acto legislativo.

Para a questão da competência devemos atender à pretensão do autor.

Como ele entende que a regulação do suplemento é matéria da função administrativa este Tribunal tem o dever de apreciar essa questão, para a qual é competente.

Saber se o autor tem razão é uma questão de mérito, que se reconduz a saber se existe ou não uma das condições de procedência da presente acção, qual seja, a da natureza administrativa da norma omitida. Dito de outro modo, caso se venha a concluir que a norma omitida é de natureza legislativa, a presente acção deve ser julgada improcedente, sendo certo que para proceder a esse julgamento também é este STA o tribunal competente – cfr. art. 24º, 1, a) iii) do ETAF.

Deste modo e com o âmbito definido este STA é competente.

(…)”.

1.5. No mesmo despacho saneador decidiu-se que não existiam outras excepções ou questões prévias e ainda que não existiam factos controvertidos.

1.6. O autor alegou por escrito, tendo concluído:

“(…)

1ª – O réu não aduziu qualquer argumento que possa conduzir a resultado diverso da procedência da presente acção;

2ª – O complemento em questão foi criado por lei;

3ª – O mesmo devia ter sido regulamentado no prazo de 90 dias contados da publicação da lei;

4ª – Essa regulamentação é uma obrigação do réu, inserida no seu poder administrativo.

(…)”.

1.7 O réu também alegou por escrito, tendo concluído:

“(…)

a) O autor solicita a esse doutro Tribunal que condene o réu Conselho de Ministros a emitir uma norma legal através da qual se fixe o suplemento remuneratório para os presidentes e vogais dos Conselhos Clínicos dos Agrupamentos dos Centros de Saúde;

b) A jurisdição administrativa não é competente para condenar o Conselho de Ministros a emitir um acto legislativo;

c) A incompetência absoluta da jurisdição administrativa em razão da matéria determina a absolvição da instância, nos termos dos artigos 576º, n.º 2 e 577º, al. a), ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1º do CPTA;

d) Mesmo que se tenha diferente entendimento, o que só por mera cautela de patrocínio se admite, a verdade é que não se verificam os pressupostos do artigo 77º do CPTA, máxime porque não se trata da emissão de uma norma regulamentar de uma norma legal e porque não foi fixado qualquer prazo para a respectiva emissão.

(…)”.

1.8. O MP foi notificado nos termos e para efeitos do art. 85º, 1 do CPTA e nada disse.

1.9. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Fundamentação

2.1. Matéria de facto

Os factos relevantes para o julgamento da presente acção são os seguintes:

a) O autor é um Sindicato com sede em Lisboa – acordo das partes e BTE, n.º 9, 1ª Série, de 8/3/2007.

b) O autor intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa acção administrativa especial contra o Ministério das Finanças e o Ministério da Saúde, pedindo a “elaboração e aprovação de despacho conjunto, em prazo a fixar pelo Tribunal, onde se fixe suplemento remuneratório para os presidentes e vogais dos Conselhos Clínicos dos agrupamentos de Centros de Saúde”, que foi decidida no despacho saneador junto a folhas 9 e seguintes e que aqui se dá como reproduzido, e donde conta, além do mais:

“(…)

Por todo o exposto, julga-se este Tribunal absolutamente incompetente em razão da hierarquia para julgar a presente acção (art. 101º do CPC ex vi art. 1º do CPTA), absolvendo-se os RR da instância (art.s 288º, 493º e 494, al. a) todos do CPTA) (…)” – cfr. folhas 9 e seguintes.

2.2. Matéria de Direito

2.2.1. Questões a decidir

A questão a decidir é a de saber se estão ou não verificadas as condições de procedência da acção intentada pelo Sindicato/autor contra o Conselho de Ministros ao abrigo do disposto no art. 77º do CPTA.

É verdade que o réu volta a insistir na questão da competência do STA. Contudo, esta questão foi já decidida no saneador, pelo que não se pode reapreciar – sem prejuízo da questão jurídica ali suscitada ainda estar em aberto, isto é, saber se é ou não possível verificar uma situação de ilegalidade por omissão de norma legal – quando a regulação omitida seja matéria administrativa – e condenar a entidade competente a emitir as normas em falta.

A questão que vamos apreciar é, assim, a de saber se, no caso, se verifica “uma situação de ilegalidade por omissão” nos termos do art. 77º, 1 do CPTA.

2.2.2. Análise do mérito da pretensão do autor.

2.2.2.1. Para se compreender a questão colocada nestes autos importa ter em conta a publicação de dois diplomas legais:

- (i) o Decreto - Lei 28/2008, de 22 de Fevereiro; e

- (ii) a Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro.

O Dec. Lei 28/2008, de 22 de Fevereiro veio criar os agrupamentos de centros de saúde (art.1º). São órgãos de administração e fiscalização de tais agrupamentos:

“a) o director executivo;

b) o conselho consultivo;

c) o conselho clínico;

d) o conselho da comunidade” (art. 18º).

O Conselho Clínico é composto por um presidente e três vogais” (art. 25º).

Nos termos do art. 29º, n.º 4, do referido Dec. Lei 28/2008, de 22 de Fevereiro: “Ao presidente do conselho clínico é atribuído um suplemento remuneratório a fixar por despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde”.

Nos termos do n.º 5 do mesmo art. 29º: “Aos vogais do conselho clínico é atribuído um suplemento remuneratório a fixar por despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde.

Finalmente, o art. 43º do mesmo Dec. Lei 28/2008, de 22 de Fevereiro, diz-nos o seguinte: “A regulamentação prevista no presente decreto-lei é aprovada no prazo de 90 dias após a sua entrada em vigor.”

2.2.2.2. Todavia, foi publicada a Lei 12-A/2008, no dia 27 de Fevereiro. Esta Lei veio definir e regular os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas. Inserido na Secção III (Suplementos remuneratório) o art. 73º tem a seguinte redacção:

SECÇÃO III


Suplementos remuneratórios

Artigo 73.º

Condições de atribuição dos suplementos remuneratórios


1 - São suplementos remuneratórios os acréscimos remuneratórios devidos pelo exercício de funções em postos de trabalho que apresentam condições mais exigentes relativamente a outros postos de trabalho caracterizados por idêntico cargo ou por idênticas carreira e categoria.

2 - Os suplementos remuneratórios estão referenciados ao exercício de funções nos postos de trabalho referidos na primeira parte do número anterior, sendo apenas devidos a quem os ocupe.

3 - São devidos suplementos remuneratórios quando trabalhadores, em postos de trabalho determinados nos termos do n.º 1, sofram, no exercício das suas funções, condições de trabalho mais exigentes:

a) De forma anormal e transitória, designadamente as decorrentes de prestação de trabalho extraordinário, nocturno, em dias de descanso semanal, complementar e feriados e fora do local normal de trabalho; ou

b) De forma permanente, designadamente as decorrentes de prestação de trabalho arriscado, penoso ou insalubre, por turnos, em zonas periféricas e de secretariado de direcção.

4 - Os suplementos remuneratórios são apenas devidos enquanto perdurem as condições de trabalho que determinaram a sua atribuição.

5 - Os suplementos remuneratórios são apenas devidos enquanto haja exercício efectivo de funções.

6 - Em regra, os suplementos remuneratórios são fixados em montantes pecuniários, só excepcionalmente podendo ser fixados em percentagem da remuneração base mensal.

7 - Com observância do disposto nos números anteriores, os suplementos remuneratórios são criados e regulamentados por lei e, ou, no caso das relações jurídicas de emprego público constituídas por contrato, por acordo colectivo de trabalho.

(…)”.

2.2.2.3. A consequência jurídica da publicação da lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro foi a da revogação do Dec. Lei 28/2008 de 22 de Fevereiro, na parte em que as disposições da nova lei sejam incompatíveis com as anteriores (revogação tácita – art. 7º, 2 do CC).

Há evidente incompatibilidade entre a lei antiga e a nova lei, na parte em que determinava que os suplementos eram regulados por despacho conjunto, pois a nova lei diz-nos que os suplementos são criados e “… regulamentados por lei…”.

Assim, ocorreu revogação implícita da parte final dos números 4 e 5 do art. 29º do Dec. Lei 28/2008, de 22 de Fevereiro. Foi revogada a parte onde se dizia que os suplementos remuneratórios ali previstos eram fixados por despacho conjunto dos Ministros da Saúde, das Finanças e da Administração Pública, precisamente porque a partir da Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro (lei posterior), a referida fixação passou a ser “regulamentada por lei”.

2.2.2.4. A alteração da lei e a atribuição da regulamentação dos suplementos remuneratórios à lei tem reflexos óbvios no presente caso, pois o dever legal de “regulamentar” os subsídios deixou de poder ser feito através de normas regulamentares (Despacho Conjunto).

O legislador pré-definiu e reservou essa regulação – que em termos materiais até aí, por força do Dec. Lei 28/2008, de 22 de Fevereiro, era até aí confiada ao poder regulamentar típico – à forma legal.

Esta alteração do quadro legal levanta, essencialmente, duas questões jurídicas: (i) a primeira é saber se a Assembleia da República pode determinar que determinadas matérias tenham a forma de lei); (ii) a segunda é saber se o art. 77º do CPTA permite condenar a Administração a emitir normas formalmente legais (Dec. Lei), mas materialmente passíveis de serem exercidas através da função administrativa;

Vejamos cada uma delas, começando pela primeira.

Não havendo, entre nós, uma reserva de regulamento, ou de função administrativa, a resposta a esta questão é, em princípio afirmativa. Em princípio, porque há, em certos casos, reserva de regulamento conferida a entidades autónomas. Contudo, fora dos casos em que exista competência específica sobre o poder regulamentar, as entidades com poder de legislar, através do exercício desse poder, regular matérias que também poderiam ser reguladas por regulamento.

Neste sentido se pronunciou expressivamente o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 214/2011 (proferido no processo 283/11):

“(…)

Como o Tribunal vem afirmando, a Constituição não restringe o âmbito da competência legislativa em geral, nem confere ao Governo uma reserva de competência orgânica regulamentar em certas matérias. O poder regulamentar conferido ao Governo pela alínea c) do art. 199º para fazer os “regulamentos necessários à boa execução das leis” não corresponde a qualquer reserva de regulamento, no sentido da lei não poder ultrapassar um determinado nível de pormenorização ou particularização de modo a deixar sempre ao Governo, enquanto titular do poder regulamentar, um nível de complementação normativa relativamente a cada uma das leis.

(…)”.

Este entendimento fora, de resto, seguido no acórdão do Tribunal Constitucional 1/97:

“(…)

Daqui decorre que, mesmo havendo sempre que considerar constitucionalmente um espaço próprio e típico de actuação do Governo, como órgão superior da administração pública (art. 182º e cfr. art. 199º) tal não significa que o legislador parlamentar não possa pré-ocupar esse espaço no uso dos seus amplos poderes de conformação aludidos no citado Acórdão n.º 461/87. Ponto é que se contenha no limite funcional que representa a proibição de uma pura substituição funcional do Executivo, no preciso espaço da sua actividade normal.

(…)” - Acórdão do TC n.º 1/97.

Como nos dá conta CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional (As funções do Estado e o Poder Legislativo no Ordenamento Português),Tomo I, 2ª Edição, pág. 92:

“(…)

A concepção de uma reserva geral de regulamento parece ser afastada pela jurisprudência administrativa, a qual considera que, quando o Governo elabora um decreto – lei, independentemente do detalhe do seu conteúdo o mesmo nunca exerceria poderes regulamentares, mas sim legislativos (Ac. do STA de 9-4-81). Tal não excluiria, porém, a existência de domínios específicos de reserva administrativa explicita e implicitamente reconhecida pela constituição, nelas se compreendendo esferas de regulação das regiões autónomas, dos municípios e das universidades já que todos esses entes prosseguem interesses próprios e gozam de autonomia administrativa reconhecida pela Constituição a qual, pela sua natureza envolve o exercício de poderes regulamentares.

(…)”.

Decorre do exposto, como já referimos, que não existe em regra uma reserva de regulamento, nas relações entre a Assembleia da República e o Governo e, que tendo ambos o poder de legislar em determinada matéria, pode qualquer daqueles órgãos através do exercício desse poder legislativo pormenorizar como muito bem entenda a matéria da sua competência. E, pela mesma razão, havendo competências concorrenciais, cada uma das entidades competentes pode revogar os actos normativos praticados pelo outro.

Ora, como também é repetidamente referido nos citados acórdãos, a única verdadeira reserva de executivo é a que se consigna no art. 198º, n.º 2 da CRP (“É da exclusiva competência do Governo a matéria respeitante à sua própria organização e funcionamento”). Portanto, fora desta matéria (nas relações entre a AR e o Governo) não existe matéria que possa considerar-se reservada à actividade administrativa, ou seja, que tenha que ser, sob pena de violação da separação de poderes, exercida através de regulamento.

O que, no caso dos autos, apesar do exposto, torna o caso aparentemente mais problemático é o facto de ter sido a Assembleia da República a revogar um Decreto - Lei do Governo, na parte em que este tinha dito que a matéria em causa (fixação do suplemento) deveria ser feita através de despacho conjunto (regulamento). Portanto, a questão é a de saber se a Assembleia da República poderia revogar um Decreto - Lei na parte em que este mandava – para determinada matéria – seguir a forma de regulamento.

Mas, em boa verdade, só aparentemente o caso tem contornos especiais.

Com efeito, o entendimento acima exposto, leva a afirmar que não existe qualquer obstáculo a que uma Lei reserve para a função legislativa do Governo a regulação que até aí estava expressamente confiada ao poder regulamentar, desde que, bem entendido, a AR e o Governo tenham competência concorrencial para poder legislar sobre a matéria.

No presente caso (regulação do montante de um suplemento remuneratório) estamos perante matéria que não é da exclusiva competência do Governo, nem da exclusiva competência da Assembleia da República (cfr. artigos 164º, 165º e 198º, a) e 161, c) da CRP).

Havendo, então, competência concorrencial entre a AR e o Governo, deve reconhecer-se à AR o poder de alterar o Decreto – Lei, do mesmo modo que se reconhece ao Governo o poder de alterar a Lei.

Ora, as normas em que num Dec. Lei prevêem a regulamentação por regulamento não se podem impor irrevogavelmente à AR, pois a mesma detém competência concorrente também sobre essa matéria (art. 161º, c) da CRP: “fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo”)

Mais: nem se pode dizer que a AR, legislando sobre essa matéria, se intromete na esfera de acção do Governo (ao pré - determinar a forma legal para matérias materialmente administrativas) uma vez que, estando perante competências concorrentes, o Governo pode, quando e se assim o entender, alterar a lei. O que não poderá fazer, sob pena de violação da lei, é emitir regulamentos onde a lei pre-reservou essa matéria à forma legal, enquanto a mesma não for alterada.

Assim, em nosso entender, não existe qualquer obstáculo constitucional à alteração da lei, nos termos em que ocorreu.

Vejamos agora a segunda questão, ou seja, saber se o regime previsto no art. 77º do CPTA permite a condenar O Governo a emitir normas formalmente legais, com conteúdo administrativo.

A resposta a esta questão deve ser negativa.

Os actos normativos inseridos em diplomas legislativos perdem a natureza de normas administrativas e passam a ter a natureza de normas legais. Como referem M. ESTEVES DE OLIVEIRA e R. ESTEVES DE OLIVEIRA, in CPTA, anotado, pág. 66: “Sempre que se trate de normas emanadas do Governo ou da Assembleia Legislativa Regional – órgãos simultaneamente legislativos e administrativos – sob a forma de decreto - lei ou de decreto legislativo regional, o problema não se põe, porque mesmo que se lhes reconheça um “conteúdo regulamentar”, serão sempre, para efeitos contenciosos, actos praticados no exercício da função legislativa”.

Isto é assim, porque, como nos diz VIEIRA DE ANDRADE, Autonomia Regulamentar e Reserva de Lei, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rodrigues Queiró, pág. 13: “(…) Dir-se-à, contudo, que a alínea b) do n.º 1 do art. 168º não faz a este propósito qualquer distinção, e que também não é possível fundar na Constituição um conceito material de lei que permita distingui-la com rigor do regulamento. Pode até acrescentar-se que não é possível ou seria de todo o modo inadequada uma distinção substancial rigorosa entre as funções do Estado, sobretudo neste campo, porque, pelo contrário, se observa na ordem jurídico – constitucional portuguesa a tradição permanentemente acentuada de considerar próprias da lei todas as opções de carácter geral e abstracto, entendendo-se que nada é vedado ao legislador no que toca à criação de normas, desde que respeitados os limites constitucionais (…)”

Se, para efeitos contenciosos os actos normativos inseridos em diplomas legais são actos praticados no exercício da função legislativa, torna-se, claro não caber na previsão do art. 77º do CPTA a possibilidade de impôr à entidade competente a prática de actos formalmente legislativos. O art. 77º do CPTA deve ser interpretado, no âmbito ou domínio de competência da jurisdição administrativa, e portanto só pode estar a referir-se a normas regulamentares, ou seja, normas material e formalmente administrativas, pois só estas, como vimos, se inserem no exercício da função administrativa.

Falta, assim, uma condição de procedência da acção prevista no referido preceito, uma vez que as normas necessárias para “regulamentar” o diploma legislativo são normas formalmente legislativas, o que implica necessariamente a improcedência da presente acção.

3. Decisão

Face ao exposto, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo acordam em julgar a acção improcedente.

Sem custas por isenção do autor.

Lisboa, 9 de Outubro de 2014. – António Bento São Pedro (relator) –Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – José Francisco Fonseca da Paz.

Tem rectificação de custas em 29/10/2015