Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0210/10
Data do Acordão:11/10/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:MIRANDA DE PACHECO
Descritores:ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
REPARAÇÃO
AGRAVO
PRIVILÉGIO MOBILIÁRIO GERAL
PENHORA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
EXECUÇÃO FISCAL
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
VERIFICAÇÃO
Sumário: I- Uma vez proferida a sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria da causa (artigo 666.º n.º 1 do CPC), com ressalva, no caso de interposição de recurso jurisdicional, da possibilidade do Juiz “a quo” reparar o agravo ao abrigo do disposto no n. º 3 do artigo 744.º do CPC ou suprir nulidades que aí tenham sido arguidas, de harmonia com o disposto no n.º4 do artigo 668.º do CPC.
II- Assim, uma posterior decisão do Juiz “a quo” no sentido de reparação do agravo, o que anteriormente não fizera, alterando a sentença recorrida, é juridicamente inexistente.
III-O crédito exequendo de IVA, embora não precise de ser reclamado (n.º 2 do artigo 240.º do CPPT), perde a preferência decorrente do privilégio mobiliário geral que, em princípio, lhe assistiria (artigo 736.º n.º 1 do CC), no caso do bem penhorado na execução fiscal ser um veículo automóvel (artigo 865.º, n.º 4, alínea a) do CPC).
Nº Convencional:JSTA00066673
Nº do Documento:SA2201011100210
Data de Entrada:03/18/2010
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF COIMBRA PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Área Temática 2:DIR PROC CIV.
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART240 N2 ART246.
CPC96 ART865 N1 N4 A.
CCIV66 ART736 ART822.
CRP84 ART6.
CPC96 ART666 N1 ART668 N4 ART744 N3.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A Fazenda Publica, não se conformando com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que, julgando inadmissível a verificação e graduação de créditos, determinou, por consequência, a extinção do respectivo incidente e o seu subsequente arquivamento, o qual fora instaurado por apenso ao processo de execução fiscal nº 074419990101133.2, dela vem interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1— A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo julgou legalmente inadmissível a presente verificação e graduação de créditos, tendo determinado a extinção e arquivamento do incidente da reclamação de créditos, fazendo, com o devido respeito, errada apreciação e aplicação do direito;
2— Não se concorda com o que ficou consignado no ponto III da douta sentença sobre a aplicabilidade do n.º 1 do artigo 865.° do CPC, “ex vi n.º 2 do artº. 246.° do CPPT”, nem com a afirmação de que o mesmo consagra «uma das causas legais para dispensa da citação de credores”;
3— Com efeito, existindo o artigo 240º do CPPT, que regula de forma completa a matéria em causa, nomeadamente as condições que têm que estar reunidas para que um credor possa reclamar os seus créditos (n. 1, 2 e 4), bem como as que têm que estar reunidas para a própria convocação de credores (n.º 3), não é aplicável, porque desnecessário, o n.º 1 do art. 865.° do CPC;
4 — Por outro lado, tal normativo (tanto no seu n.º 1, como no seu n.º 4), não consagra qualquer dispensa de citação de credores (a qual, no caso concreto, tinha sempre de ser feita), referindo-se, ao invés, a quem pode reclamar créditos (somente quem goze de garantia real), sendo que, no seu n.º 4, exclui a possibilidade de reclamar a quem goze apenas de privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário (considerado garantia real), caso sejam penhorados bens dos referidos nas várias alíneas;
5 — Por isso, um credor que goze de garantia real, por exemplo, por possuir penhora do bem, pode reclamar os seus créditos, não estando abrangido pela proibição do nº4 do art. 865.° do CPC;
6 — No caso concreto, quanto à credora reclamante, apesar da douta sentença confirmar que o seu crédito está garantido por penhora registada sob o nº 126, de 16-06-2004 (cfr. último § de fls. 3), é completamente omissa nos motivos pelos quais não admite a respectiva reclamação;
7 — Quanto ao crédito exequendo (cfr. § 2° de fls. 4 da sentença), o Tribunal recorrido erra ao afirmar que a desnecessidade de reclamação tem como consequência a “inadmissibilidade da graduação” do respectivo crédito, bem como que essa desnecessidade “decorre da acima mencionada dispensa de citação de credores”: no caso concreto, não houve qualquer dispensa de citação de credores (em virtude de constar dos autos um direito real de garantia — penhora — da credora A… — n.º 3 do art. 240.° do CPPT) e a desnecessidade de reclamação da quantia exequenda decorre apenas da lei n.º 2 do art. 240.° do CPPT;
8 — Por outro lado, e foi o que a Representante da Fazenda Pública disse no seu requerimento de 21-02-2008, apesar do crédito exequendo não carecer de ser reclamado, nos termos do n.º 2 do artº. 240.° do CPPT, por gozar de “garantia real proveniente da penhora, deve ser graduado na ordem que por lei lhe competir”;
9 — A alínea a) do n.º 4 do artigo 865º do CPC só proíbe a reclamação de créditos que gozem apenas de privilégio creditório geral e como o crédito exequendo goza da garantia da penhora, deve ser admitido à graduação (o mesmo acontecendo com o crédito da reclamante), perdendo apenas a preferência que lhe daria a existência do privilégio;
10 — Concluindo, havendo dois credores em concurso cujos créditos gozam de garantia real, a douta sentença deveria ter procedido à respectiva graduação nos termos legais;
11 — A manter-se a decisão, com todo o respeito, ilegal, de julgar inadmissível a presente verificação e graduação de créditos, a Fazenda Nacional corre o risco de, prosseguindo a execução comum interposta pela reclamante (a qual se encontra suspensa), e independentemente da graduação que ai vier a ser feita, ver o produto da venda que fez do veículo ser aplicado, primeiro, nas custas dessa execução comum e não nas custas da sua execução (como aconteceria se aqui tivesse havido graduação).
2 – Não foram apresentadas contra-alegações.
3- Por despacho de fls, 126, a M.ma Juiz “a quo” manteve os fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida, ordenando a subida dos autos a este Supremo Tribunal.
4– Com base no entendimento que vinha arguida nas conclusões do recurso a nulidade da sentença por falta de fundamentação, a fls. 134 foi ordenado a baixa dos autos à 1ª Instância, atento o disposto nos artigos 668.º, n.º 4 e 774.º n.º 5 do CPC.
5- Por despacho de fls. 139, no que apelidou de aclaração do despacho de sustentação de fls. 126, a M.ma Juiz decidiu reparar a decisão proferida, tendo, em consequência, tomando uma nova decisão verificando, reconhecendo e graduando os créditos reclamados.
6- Notificadas do teor deste despacho, “ nos termos do previsto n.º 3 do art. 744.º do CPCIVIL, na versão revogada e aplicável”, as partes nada requereram.
7- O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
8- Importa começar por enfrentar a questão jurídico/processual decorrente do facto da M.ma Juiz, após ter mantido a decisão recorrida por despacho de fls. 126 e ordenado a subida do recurso a este STA, mais tarde, após terem os autos baixado ao tribunal “a quo” para efeito de eventual suprimento da nulidade da sentença que se entendera arguida, ter aproveitado tal ensejo para reparar a decisão proferida e que fora objecto de recurso e, em consequência, julgar verificados e reconhecidos os créditos reclamados, procedendo á respectiva graduação.
Como superar tal anomalia processual, sendo certo que nos autos conflituam dois despachos da M.ma Juiz, num mantendo a decisão proferida e num outro, posterior, reparando tal decisão, sendo inquestionável que este de modo algum pode ser apelidado de aclaração do primeiro, o que, aliás, tão pouco fora requerido pelas partes?
Vejamos.
Estabelece o n.º 1 do artigo 666.º do CPC o seguinte: “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”.
Este normativo consagra um verdadeiro princípio basilar e estruturante do nosso ordenamento processual, o qual apenas conhece duas excepções, a saber: 1)- suprimento das nulidades arguidas no recurso- artigo 668.º n.º 4 do CPC; 2)- reparação do agravo- artigo 744.º n.º 3 do CPC.
No entanto, como se torna patente, uma vez proferido despacho mantendo a decisão recorrida, não mais se torna admissível que novo despacho seja proferido em sentido contrário, desta feita reparando o agravo.
E isto porque, em tal contexto, após a prolação do primeiro despacho se esgota definitivamente o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ressalvada que seja o caso específico do M.mo Juiz “ a quo” vir a ser instado pelo Tribunal “ ad quem” a pronunciar-se a respeito do eventual suprimento das nulidades arguidas no recurso.
Foi o que sucedeu no caso “sub judicio” em que os autos baixaram à instância para efeito do disposto no n.º 4 do artigo 668.º do CPC.
Como assim, esgotado que se encontrava o seu poder jurisdicional quanto à matéria da causa, a não ser para o suprimento de nulidades, finalidade específica para o qual os autos baixaram, a M.ma Juiz não poderia ter, como o fez, reparado o agravo e, alterando a sentença sob recurso, verificado e graduado os créditos reclamados.
A questão que agora se coloca de saber o vício de que padece a decisão que reparou o agravo, uma vez que se esgotara para o efeito o poder jurisdicional da M.ma Juiz “ a quo”, tem gerado alguma controvérsia doutrinária e jurisprudencial, como disso dá conta Jorge Lopes de Sousa in CPPT, anotado e comentado, 5. ª edição, anotação 16 ao artigo 125.º, a fls. 917.
Acompanhando aquele ilustre autor, também entendemos que a tese da inexistência jurídica é a que melhor se adequa ao regime legal previsto no nosso ordenamento processual civil.
Daí que se imponha concluir pela inexistência jurídica da decisão judicial de fls. 139, enquanto definidora do direito no caso concreto, permanecendo erecta na ordem jurídica a sentença recorrida de fls. 85 e seguintes, a qual foi objecto do presente recurso jurisdicional e, como tal, se conhecerá em seguida.
9- Processualmente adquirida para o recurso encontra-se a seguinte matéria de facto:
1- Na Repartição de Finanças da Figueira da Foz foi instaurado o processo de execução fiscal n.º 074419991011332 contra a executada “ B…” para cobrança coerciva de IVA e respectivos juros compensatórios, referentes ao período compreendido entre Dezembro de 1997 e Julho de 1998;
2- Nesse processo de execução fiscal foi penhorado um veículo ligeiro misto, marca Toyota , modelo Hiace, do ano de 1992, com a matrícula …;
3 – A penhora foi registada a título definitivo em 27/09/2005 (registo de fls. 47 dos autos);
4- “A…”, em 30/01/2010”, reclamou no processo de execução fiscal identificado em 1- créditos no montante de € 360,25, alegando gozar o mesmo de garantia real, em virtude penhora realizada em 21/05/2005 no processo de execução comum instaurado no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, como n.º 674/043T JCBR;
5- Penhora esta registada a favor do exequente sob o n.º 126, em 16/06/2004(cfr. fls. 11).
10- A sentença sob recurso julgou legalmente inadmissível a reclamação de créditos deduzida, tendo determinado, em consequência, a extinção do incidente de reclamação de créditos e subsequente arquivamento.
Para tanto, ponderou-se na sentença que no caso se encontrariam afastadas “quaisquer causas legítimas de preferência decorrentes da existência de privilégio creditício”, dado o carácter taxativo do previsto na alínea a), n.º 4 do artigo 865.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 246.º do CPPT ao estabelecer que “ não é admitida a reclamação do credor com privilégio creditório geral mobiliário ou imobiliário quando: a)a penhora tenha incidido sobre bem só parcialmente penhorável, nos termos do artigo 824.º, renda outro rendimento periódico ou veículo automóvel ou…”, e daí que ocorra causa legal para dispensa de citação dos credores.
Como primeira nota importa referir que, ao invés do que defende a recorrente na conclusão 6. da sua alegação, do relato que antecede se pode concluir que a sentença sob recurso fundamenta os motivos pelos quais não é admitida a reclamação.
Ponto é saber se tal decisão se encontra ferida de erro de julgamento, o que constitui o objecto do presente recurso e do que em seguida se tratará.
É por demais evidente a sem razão do decidido.
De facto, como bem assinala a recorrente Fazenda Pública, a previsão normativa constante do artigo 240.º do CPPT regula de forma completa a matéria relativa à convocação de credores em processo de execução fiscal e daí que nada legitime, como se fez na sentença recorrida, o apelo ao estatuído nos n.ºs 1 e 4, alínea a) do artigo 865.º do CPC para se concluir que não deveria ter tido lugar a citação dos credores.
Ora, certo é que no n.º 2 do citado artigo 240.ºse impõe a convocação dos credores quando dos autos conste a existência de direitos reais de garantia, como sucede no caso “ sub judicio”.
Sendo assim, em face da citação que legitimamente lhe foi feita, competia ao reclamante efectivar a reclamação do seu crédito, como o veio a fazer.
Importa, pois, dar por verificado e reconhecido o crédito reclamado, mais se procedendo à respectiva graduação, tendo em conta que goza de prioridade decorrente do registo da penhora que lhe respeita ser anterior ao da penhora efectuada no processo de execução fiscal (cfr. 3. e 5. do probatório, bem como artigos 6.º n.º 1 do Código de Registo Predial e 822.º n.º 1 do CC), sendo ainda certo que o crédito exequendo de IVA, embora não precise de ser reclamado (n.º 2 do artigo 240.º), perde a preferência decorrente do privilégio mobiliário geral que, em princípio lhe assistiria nos termos do n.º 1 do artigo 736.º do CC, em resultado do bem penhorado ser um veículo automóvel (artigo 865.º n.º 4, alínea a) do CPC).
Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e, consequência, graduar os créditos pela
forma seguinte, saindo as custas da execução precípuas do produto dos bens penhorados:
1.º-Crédito reclamado por “A….;
2- Crédito exequendo de IVA.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010. - Miranda de Pacheco (relator) – Dulce Neto – Jorge Lino.