Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0223/08
Data do Acordão:01/07/2009
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:JOÃO BELCHIOR
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
PROCESSO PENAL
AUTONOMIA
USURPAÇÃO DE PODER
Sumário:I - O processo disciplinar é distinto e autónomo do processo penal, assentando essa autonomia, fundamentalmente, na diversidade de pressupostos da responsabilidade criminal e disciplinar, bem como na diferente natureza e finalidade das penas nesses processos aplicáveis.
II - A lei da amnistia, que decrete a amnistia das infracções disciplinares salvo quando os factos imputados integrem ilícito criminal, considera esses factos em abstracto como integradores de uma moldura penal, independentemente da apreciação que em concreto mereceram (ou vierem a merecer) em sede penal.
III - Não se verifica vício de usurpação de poder pelo facto de a Administração apreciar certas condutas na vertente disciplinar, muito embora as mesmas também possam configurar ilícito criminal.
Nº Convencional:JSTA0009907
Nº do Documento:SA1200901070223
Recorrente:A...
Recorrido 1:PLENÁRIO DO CONSELHO SUPERIOR DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (STA):
I.RELATÓRIO
A…, com os restantes sinais dos autos, recorre da sentença proferida nos autos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa (TAF) que negou provimento ao recurso contencioso ali interposto contra o Acórdão do Plenário do Conselho Superior da Ordem dos Advogados (ER), de 14.12.2001, que o condenou na pena de oito anos de suspensão.
Rematou a sua alegação de recurso jurisdicional com as seguintes CONCLUSÕES:
“1. A Douta Sentença recorrida, faz má aplicação do direito ao caso concreto.
2. De facto, não pode a Douta Sentença ignorar que quando foi produzido o Acórdão no processo disciplinar, a Autoridade Recorrida, já sabia que, pelos mesmos factos que justificaram e motivaram este processo, o Recorrente já tinha sido absolvido nos processos penais correspondentes.
3. Provado estava que os actos e comportamentos tidos pelo Recorrente, no exercício da sua profissão, que fundamentaram o processo disciplinar, não eram passíveis de ser qualificados como ilícitos criminais.
4. Logo, não podia o Conselho Superior da Ordem dos Advogados, qualificá-los “em abstracto”, como ilícitos criminais e, consequentemente, não aplicar a Lei da Amnistia acima identificada, pois já sabia que, “em concreto”, não eram ilícitos criminais.
5. E, ao fazê-lo, o Conselho Superior da Ordem dos Advogados produziu um Acórdão que padece dos vícios de usurpação de poder, ao substituir-se ao Tribunal na qualificação penal dos actos e comportamentos do Arguido, agora Recorrente, que motivaram o processo disciplinar, e de violação de lei, ao não aplicar ao caso concreto, o artº1° alínea mm) da Lei 15/94, de 11 de Maio e o art° 7° alínea c) da Lei n°29/99, de 12 de Maio.
6. E ao não conhecer esta realidade, a Douta Sentença recorrida, faz má aplicação do direito, pelo que deve ser revogada e por Douto Acórdão ser declarado nulo ou anulado o acto recorrido”.
O Conselho Superior da Ordem dos Advogados contra-alegou, pugnando pela improcedência do presente recurso, afirmando em síntese conclusiva:
“Verifica-se que a sentença Recorrida fez a correcta interpretação da lei, pelo que deverá ser julgado improcedente o Recurso Jurisdicional interposto e ser mantida na íntegra a Sentença Recorrida, com todas as legais consequências”.
Neste Supremo Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, louvando-se em jurisprudência deste STA, emitiu parecer no sentido da improcedência do presente recurso jurisdicional.
Foram colhidos os vistos da lei.
II.FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Ao abrigo do disposto no artº 713º, nº 6, do CPC, e por não virem questionados, dão-se por reproduzidos os FACTOS apurados na sentença.
II.2. DO DIREITO
O Recorrente, através do acto contenciosamente impugnado, foi condenado pela ER na pena disciplinar de suspensão por 8 anos.
Como de mais relevante importa registar que a sentença recorrida desatendeu a invocação do recorrente no sentido de que a Ordem dos Advogados (OA) deveria ter mandado arquivar o processo disciplinar em virtude de se encontrarem amnistiadas as infracções cometidas face à publicação da Lei 15/94, de 11 de Maio, a qual, através da alínea mm) do seu artº 1º amnistiou a infracção disciplinar em causa, ou/e, mesmo que aquela Lei se não aplicasse, perante o artº 7.º, alínea c), da Lei 29/99, de 12 de Maio.
Ora, não o fazendo no entendimento de que os factos (cuja materialidade e verificação não são discutidos) integravam ilícito penal terá então sido foi invadida a área de competência dos tribunais e, por isso, o acto incorrido em vício de usurpação de poder.
A sentença desatendeu ainda a invocação de que, tendo o arguido sido absolvido nos respectivos processos penais, a actuação da Administração terá ofendido o caso julgado formado.
O recorrente, no essencial, mantém nesta sede as invocações deduzidas no recurso contencioso.
Assim, e como se alcança das conclusões da respectiva alegação, afirma em síntese:
- quando foi produzido o Acórdão no processo disciplinar, a Autoridade Recorrida, já sabia que, pelos mesmos factos que justificaram e motivaram este processo, o Recorrente já tinha sido absolvido nos processos penais correspondentes;
- assim, os actos e comportamentos que fundamentaram o processo disciplinar, não eram passíveis de ser qualificados como ilícitos criminais, pelo que não podia «a Ordem dos Advogados, qualificá-los “em abstracto”, como ilícitos criminais e, consequentemente, não aplicar a Lei da Amnistia acima identificada, pois já sabia que, “em concreto”, não eram ilícitos criminais»;
- ao fazê-lo, incorreu nos vícios de (i) usurpação de poder, ao substituir-se ao Tribunal na qualificação penal dos actos e comportamentos do Arguido que motivaram o processo disciplinar, e (ii) de violação de lei, ao não aplicar ao caso concreto, o artº1° alínea mm) da Lei 15/94, de 11 de Maio e o art° 7° alínea c) da Lei n°29/99, de 12 de Maio.
II.2.1. Atentemos, antes do mais, nos citados normativos.
Prescreve o artº 1º, alínea mm), da Lei 15/94 que são “amnistiadas as infracções disciplinares cometidas, no exercício da sua actividade, por profissionais liberais sujeitos a poder disciplinar das respectivas associações públicas de carácter profissional, salvo quando os factos imputados integrem ilícito criminal ou quando o infractor já tiver anteriormente sido punido com censura ou pena mais grave”.
Por seu lado reza o artº 7.º, alínea c), da Lei 29/99:
Desde que praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, e não constituam ilícito antieconómico, fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral são amnistiadas as seguintes infracções:
c) As infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior à suspensão ou prisão disciplinar”.
O recorrente coloca, assim, as questões que a seguir se irão equacionar e decidir.
II.2.2. AUTOMOMIA DO PROCESSO DISCIPLINAR
A primeira das enunciadas invocações do recorrente suscita a questão da autonomia do processo disciplinar, ou antes, apenas se compreende numa subalternização de tal princípio relativamente ao processo penal.
Ora, como vem sendo assinalado pela doutrina e jurisprudência, o processo disciplinar é independente e autónomo do processo criminal, pois que, não obstante a aplicação ao processo disciplinar (como, de resto, a todos os processos de natureza sancionatória), a título subsidiário, de normas ou princípios do direito criminal, são diversos os fundamentos e os fins das duas jurisdições, bem como os pressupostos da respectiva responsabilidade, em atenção fundamentalmente, à diferente natureza e finalidade das penas nesses processos aplicáveis.
Na verdade, o ilícito disciplinar visa preservar a capacidade funcional do serviço e o ilícito criminal tem em vista a defesa dos bens jurídicos essenciais à vida em sociedade, daí que, sendo autónomos os respectivos processos, o facto de o arguido ser absolvido em processo crime, não obsta, em princípio, à sua punição em processo disciplinar instaurado com base nos mesmos factos Na doutrina vejam-se, v.g., os Profs. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, p. 35/39, Marcelo Caetano, Manual, 9ª ed., p. 777 e seguintes, e Pareceres da PGR publicado no DR, II Série, de 29.04.84. e nº 241/95, de 7-12-95, in na base de dados da P.G.R. (cfr., por todos, os Acs. deste STA de de 16.05.2000 - Rec. 037326, de 24.01.2002 – Rec. 48.147, do Pleno de 03.04.2001 – Rec. 29.8640, de 12-12-2002 – Rec. 0326/02, de 21.09.2003 – Rec. 856/03, de 21-09-2004 – Rec. 47146 (mantido em Pleno por acórdão de 04-05-2006), de 06-03-2007-Rec. 0219/05 do Pleno e de 21-05-2008-Rec. 0989/07).
Deste modo, dada a apontada autonomia, a invocada absolvição da recorrente em processo criminal em nada contende, com a aplicação, em sede disciplinar, da referida pena disciplinar.
II.2.3. DA AMNISTIA.
Pelo que se deixa exposto, isto é, face à falada autonomia, a Administração, no exercício do poder disciplinar, não está impedida de proceder à qualificação dos factos imputados ao arguido, como integrando também um ilícito criminal não só para efeitos de aplicação de leis de amnistia, como, p.ex., para fazer aplicação do disposto no nº 3 do artº 4º do ED, o que de resto decorre ainda do princípio da legalidade.
Na verdade, como se afirma no citado acórdão do STA de 12-12-2002, em que a sentença se apoia, e cuja doutrina se reitera,
«(...)
A ressalva feita na Lei da Amnistia aos factos que possam integrar ilícitos criminais, só pode ter o sentido de não pretender amnistiar todos os ilícitos disciplinares, mas apenas aqueles que não eram concomitantemente ilícitos disciplinares e criminais. Portanto, pode concluir-se que a amnistia da infracção penal não acarreta a amnistia da infracção disciplinar. A ser assim, estando amnistiada a infracção penal e, portanto, deixando de ser possível obter uma sentença condenatória penal a qualificação da infracção disciplinar como integrando um ilícito criminal só pode ser feita pela entidade titular do poder disciplinar.
....
O mesmo entendimento foi seguido neste Tribunal, num caso paralelo, perante a interpretação do art. 4º, n.º 3 do Estatuto Disciplinar que para efeitos de prescrição do procedimento disciplinar distingue os casos em que “concomitantemente o ilícito disciplinar seja considerado infracção penal”.
Como se refere no recente Acórdão desta Secção (Ac. de 19-2-2002, rec. 42461), e com o qual se concorda inteiramente:
“ (...) A interpretação de que tem sido objecto esta norma (art. 4º, 3 do E.D.) é no sentido de conferir competência à Administração para avaliar se determinados factos podem integrar crime, e decidir, em conformidade, se aplica ao procedimento disciplinar o prazo de prescrição mais longo, correspondente ao prazo de prescrição do procedimento criminal – sempre sujeita, evidentemente, ao controlo jurisdicional. Nesta orientação se move o Parecer da Procuradoria Geral da República de 7.12.1995, no Proc. 24/1995 ao considerar "que a entidade titular da competência disciplinar pode na prossecução normal dos poderes deveres em que a mesma se analisa pronunciar-se sobre a relevância criminal dos factos integradores de faltas disciplinares, para os estritos efeitos de aplicação ou desaplicação da amnistia/(prescrição) a estas infracções". (...) A Administração deve, portanto tomar posição sobre a qualificação dos factos como ilícitos criminais, para os estritos efeitos da aplicação da regra da prescrição do procedimento disciplinar do n.º 3 do art.º 4.º do E.D. logo que a questão se suscite (...)”.
Daí que a lei da amnistia, que considera amnistiadas as infracções disciplinares salvo quando os factos imputados integrem ilícito criminal, considere esses factos em abstracto como integradores de uma moldura penal, independentemente da apreciação que em concreto mereceram (ou vierem a merecer) em sede penal.
II.2.4. DA USURPAÇÃO DE PODER
Resulta também do já exposto, tal como se decidiu na sentença, que se não verifica vício de usurpação de poder pelo facto de a Administração apreciar certas condutas na vertente disciplinar, muito embora as mesmas também possam configurar ilícito criminal C.f . entre muitos outros, o Ac. de 28/10/1997 (Rec. nº 40769) e de 27-11-2002 – Rec. nº 0125/02..
Na verdade, a Administração ao qualificar determinados factos como ilícito criminal para o efeito de recusar a aplicação de leis de amnistia situa-se no âmbito dos seus poderes administrativos.
Como se disse no acórdão do STA de 27-11-2002 – rec. nº 125/02, e se reitera:
[a Administração]“Limita-se a qualificar, a título incidental e no âmbito do procedimento disciplinar, certo comportamento como integrando ilícito criminal, com o objectivo da possível aplicação de amnistia a certa infracção disciplinar.
Aliás o mesmo acontece, em matéria da prescrição da obrigação de indemnizar resultante da responsabilidade civil com base em ilícito civil que também constitua crime: aí o tribunal comum não está inibido, para esse restrito fim, de conhecer da qualificação de certo facto como criminoso, sem que com isso invada a competência dos tribunais criminais, se estes na matéria nada houveram decidido (ac. da 1ª Secção do S.T.A. de 27-5-97, rec. 40 969; ac. do Pleno da 1ª Secção de 21-3-00, no mesmo processo; ver ainda ac. de 3-7-01, rec. 47.258 que aplica os mesmos princípios e o Parecer da Procuradoria-Geral da República nº 241/95, de 7-12-95, na base de dados da P.G.R.)”.
No já citado Parecer da Procuradoria-Geral da República nº 241/95, de 7-12-95, transcrito no referido acórdão de 27-11-2002, escreveu-se a este propósito que “ . . . a entidade detentora do poder disciplinar ao examinar a relevância criminal dos factos para efeitos de amnistia não tem, desde logo, por fim a resolução imparcial de qualquer conflito de interesses visando especificamente a realização do direito e da justiça, mas a prossecução do interesse público implicado no exercício do ius puniendi disciplinar, nos limites negativos a este introduzidos por uma lei da amnistia.
Não vai a Administração, nomeadamente, ao ponto de aplicar ou desaplicar esta aos próprios crimes, mas tão só às infracções disciplinares submetidas aos poderes de cognição e repressão que a lei lhe confere.

Precisando, não cremos que possa a desaplicação da amnistia com fundamento na relevância criminal dos factos, qualificar-se como acto materialmente jurisdicional.
Na mesma ordem de ideias também a sua aplicação constituiria acto materialmente jurisdicional, atento o elemento negativo do tipo de amnistia, que a entidade dotada de competência disciplinar necessariamente tem que dar como não verificado para a aplicar.
De modo que essa entidade, em corolário lógico, nem poderia desaplicar a amnistia nem aplicá-la, uma vez que qualquer das atitudes tem na sua base um juízo positivo ou negativo sobre o relevo criminal dos factos
Tendo em conta as considerações expostas, que inteiramente se perfilham, impõe-se concluir que à entidade recorrida não estava vedado analisar a relevância penal dos comportamentos imputados ao arguido, para o efeito de aplicação ou desaplicação da lei da amnistia, nem, consequentemente, ao tribunal administrativo para o efeito de averiguar da legalidade da actuação dos órgãos administrativos nesse domínio.
Ao assim proceder, não está a Administração a invadir a reserva de jurisdição dos tribunais criminais para a qualificação e punição de tais condutas como crimes, nem está a afirmar que a conduta do arguido cai no âmbito do direito penal ou, sequer, que deve ser punida como crime, razão por que é de todo indiferente, para os efeitos que vimos tratando, que tais factos tenham ou não sido objecto de decisão, condenatória ou absolutória, de um tribunal criminal transitada em julgado, como pretende o recorrente.
A existência de ilícito disciplinar não está pois prejudicada ou condicionada pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a ser, tomada em processo penal.
Por tudo o exposto, deve concluir-se que não só não incorreu o acto em usurpação de poder como ainda em violação de lei, ao não terem sido aplicados ao caso concreto, o artº1° alínea mm) da Lei 15/94, de 11 de Maio e o art° 7° alínea c) da Lei n°29/99, de 12 de Maio.
Improcedem, pois, todos os fundamentos do recurso.
III.DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 450€ e a procuradoria em 50%.
Lx. aos 7 de Janeiro de 2009. - João Manuel Belchior (relator) - Edmundo António Vasco Moscoso – António Bento São Pedro.