Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0269/09
Data do Acordão:05/06/2009
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JORGE DE SOUSA
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
NULIDADE INSUPRÍVEL
Sumário:I - A finalidade primacial da exigência de descrição sumária dos factos imputados ao arguido, referida no art. 79.º, n.º 2, alínea b), do RGIT como um dos requisitos da decisão de aplicação de coima, é assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que pressupõe um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, sendo corolário da imposição constitucional de que nos processos contra-ordenacionais seja assegurado o direito de defesa ao arguido (art. 32.º, n.º 10, da CRP).
II - Esta exigência deve considerar-se satisfeita quando as indicações contidas na decisão, embora sumárias, sejam seguramente suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos, devendo ser aferida à face do direito constitucional a uma fundamentação expressa e acessível dos actos da Administração que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 268.º, n.º 3, da CRP), o que se reconduz a que a referida descrição deverá conter os elementos necessários para afastar quaisquer dúvidas fundadas do arguido sobre todos os pontos do acto que o afecta.
III - Enferma de nulidade insuprível, à face da alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT, o despacho de aplicação de coima por infracção fiscal em que não é claro a que obrigação se referem duas datas indicadas como de «cumprimento da obrigação».
Nº Convencional:JSTA00065708
Nº do Documento:SA2200905060269
Data de Entrada:03/10/2009
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A...
Recorrido 2:FAZENDA PÚBLICA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:DESP TAF LISBOA PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - CONTRA ORDENAÇÃO.
Legislação Nacional:RGIT01 ART79 N1 B ART114 ART63 N1 D.
CONST76 ART32 N10 ART268 N3.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público no Tribunal Tributário de Lisboa interpôs o presente recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal Administrativo do despacho que anulou a decisão administrativa de aplicação de coima e subsequentes termos do processo de contra-ordenação em que é arguida A…, LDA.
O Recorrente apresentou alegações com as seguintes conclusões:
1.ª A decisão da autoridade tributária de 16 de Janeiro de 2008, exarada a fls. 37/42, indica o valor da prestação tributária exigível (€12.748,29); o montante entregue (€748,29); o valor da prestação tributária em falta (12.000,00); a data do termo do prazo para cumprimento da obrigação (2005/05/31); o período a que respeita a infracção (2005/03T) e a data em que foi cumprida a obrigação declarativa (09/05/05).
2.ª Esta descrição é complementada pela indicação da norma infringida, que especifica do que se trata – artigos 26.º/1 e 40.º/1/ b) do CIVA — apresentação dentro do prazo declaração periódicas sem meio de pagamento ou com meio insuficiente.
3.ª A decisão que aplicou a coima faz, assim, expressa referência à obrigação tributária cujo incumprimento determinou o procedimento contra-ordenacional.
4.ª A mesma decisão não sofre de qualquer contradição, na sua fundamentação, que a invalide.
5.ª Efectivamente, quando ali se refere “Data de cumprimento da obrigação: 09/05/05”, visa-se o cumprimento da obrigação de apresentação da declaração periódica.
6.ª Como resulta da interpretação do texto integral da decisão que aplica a coima e, bem assim, da conjugação da decisão recorrida com o auto de notícia e o próprio recurso judicial.
7.ª Aliás, a própria arguida confessa e demonstra documentalmente que cumpriu a obrigação declarativa em 09/05/05 e que pagou €748,29 em 2005.05.16 e €12.323,11 em 2005.07.20.
8.ª Os requisitos previstos no artigo 97.º do RGIT visam assegurar ao arguido a possibilidade do exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.
9.ª Por isso tais requisitos deverão considerar-se preenchidos quando as indicações constantes da decisão que aplica a coima sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.
10.ª Ora, da descrição dos factos constante da decisão da coima é, claramente, possível à arguida perceber que não entregou uma prestação tributária devida, qual o seu valor, qual o período a que respeita, qual o prazo de cumprimento da obrigação, sendo certo que a mesma se encontra devidamente identificada.
11.ª Pela leitura do requerimento de recurso judicial interposto pela arguida, facilmente, se constata que percebeu, cabalmente, os factos que determinaram a aplicação da coima, facto que lhe permitiu o exercício efectivo do seu direito de defesa.
12.ª A contra-ordenação em causa corresponde o mínimo de € 2.400 e o máximo de € 12.000,00, sendo certo que foi aplicada a coima quase pelo mínimo (€ 2438,40).
13.ª Portanto, a decisão que aplicou a coima contém a descrição sumária dos factos, nos termos impostos pela norma constante do artigo 79.º/1/b) do RGIT.
14.ª A douta decisão sob censura violou, por errada interpretação, o estatuído nos artigos 63º al. b), 1.ª parte, do RGIT.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
1. Em 19 de Junho de 2005 foi levantado auto de notícia contra a ora Recorrente, por violação do disposto no artigo 26º, nº 1 e 40-.º, nº 1, b) do Código do IVA (cfr. fls. 1 B);
2 Com base no auto de noticia referido em 1. foi instaurado contra a ora Recorrente, no Serviço de Finanças de Lisboa-5, o processo de contra-ordenação n.º 3298200506005292, em consequência do qual, pelo despacho de 19.11.2005. objecto deste recurso, foi aplicada coima no montante de € 2.438,40 (cfr. fls. 1 A a5);
SimSim3 Em tal despacho, na parte relevante para a decisão do Recurso, lê-se:
«Descrição Sumária dos Factos
Ao (À) arguido(a), foi levantado Auto de Notícia pelos seguintes factos: 1. Montante de imposto exigível: 12.748,29 Eur. 2. Valor da prestação tributária entregue: 748,29 Eur. 3. Valor da prestação tributária em falta: 12.000 Eur. 4. Data de cumprimento da obrigação. 9/05/05; 5. Período a que respeita a infracção: 2005/03T, 6. Termo do prazo para cumprimento da obrigação: 31/5/2005, os quais se dão como provados.
Normas Infringidas e Punitivas
Os factos relatados constituem violação do(s) artigo 4v) abaixo indicado 4v,), punidos pelo(s) artigo(s) do RGIT referidos no quadro aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/07, constituindo contra-ordenação(ões).
Normas Infringidas
Código IVA – Artigo Art. 26 nº 1 e 40º, nº 1 b) CIVA - Apresentação dentro do prazo D.P., s/ meio pagamento ou com meio de pagamento insuficiente (T)
Normas Punitivas
Código RGIT Art. 114 nº 2 e 26 nº 4 do RGIT — Falta entrega prest. tributária dentro prazo (T)
Responsabilidade contra-ordenacional
A responsabilidade própria do(s) arguido(s) deriva do Art. 7.º do Dec-Lei Nº 433/82, de 27/10, aplicável por força do Art. 3 º do RGIT, concluindo-se dos autos a prática, pelo(s) arguido(s) e como autor(es) material(ais) da(s) contra-ordenação(ões) identificada(s) supra.
(cfr. fls. 4 e 5).
3 – No despacho recorrido entendeu-se a decisão de aplicação de coima enferma de nulidade insuprível por não identificar a prestação tributária que apenas quantifica e ser contraditória ao estabelecer que não foi entregue o montante de € 12000 e que a obrigação foi cumprida em 9-5-2005, dentro do prazo indicado como limite para cumprimento da obrigação (31-5-2005), o que impede que se perceba em que consiste a infracção.
O Ministério Público defende em suma que não existe a referida contradição, por a data de cumprimento da obrigação (9-5-2005) se reportar ao cumprimento da obrigação de apresentação da declaração periódica.
Assim, a questão que é objecto do presente recurso jurisdicional é a de saber se a decisão de aplicação de coima satisfaz os requisitos previstos na alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT, em que se estabelece que
1 – A decisão que aplica a coima contém:
(...)
b) A descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas;
(...)
4 – Na decisão de aplicação de coima indicam-se as normas violadas e as normas punitivas, pelo que o que está em causa é saber se contém a «descrição sumária dos factos».
A finalidade desta exigência de descrição sumária dos factos imputados ao arguido visa assegurar-lhe a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que pressupõe um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, sendo corolário da imposição constitucional de que nos processos contra-ordenacionais seja assegurado o direito de defesa ao arguido (art. 32.º, n.º 10, da CRP).
Por isso, esta exigência deve considerar-se satisfeita quando as indicações contidas na decisão, embora sumárias, sejam seguramente suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.
Neste contexto, há que ter presente que a Constituição consagra o direito dos destinatários das decisões administrativas a uma fundamentação expressa e acessível, quando elas afectem direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 268.º, n.º 3, da CRP), o que se reconduz a que a referida descrição sumária deverá conter os elementos necessários para afastar quaisquer dúvidas fundadas do arguido sobre todos os pontos do acto que o afecta.
No caso em apreço, constata-se que não é clara a descrição dos factos imputados à arguida.
Embora seja correcta a interpretação efectuada pelo Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público sobre o alcance da referência à data de 9-5-2005, como aquela em que foi cumprida a obrigação de apresentação da declaração, o próprio facto de no despacho recorrido se colocarem dúvidas sobre o seu alcance evidencia que não se está perante uma fundamentação da decisão de aplicação de clima que satisfaça a exigência constitucional de clareza, ínsita no referido art. 268.º, n.º 3.
Por outro lado, havendo duas obrigações, de apresentação da declaração e de entrega de meios de pagamento, não satisfaz a exigência de fundamentação as simples referências ao «cumprimento da obrigação» que se fazem da decisão administrativa de aplicação de coima, pois não é claro a qual dessas obrigações se faz referência, sendo precisamente essa omissão que está subjacente à conclusão retirada no despacho recorrido sobre a existência de contradição.
Para além disso, nem se pode afirmar que a falta de indicação explícita da data limite em que deveria ser cumprida a obrigação não tenha prejudicado a defesa da arguida,
Na verdade, como se constata pelo recurso que interpôs da decisão administrativa, a arguida assenta a sua defesa essencialmente na afirmação de que efectuou o pagamento da prestação em falta antes de se completar o prazo de 90 dias a contar da entrega da declaração, posição esta assumida que assenta numa interpretação do art. 114.º do RGIT no sentido de não ser sancionada a falta de entrega da prestação antes de se completar aquele prazo.
Como se infere da decisão de aplicação de coima, será diferente a interpretação que a autoridade administrativa fez deste art. 114.º, tendo o entendimento de que a data limite a partir da qual a omissão de pagamento é sancionada como contra-ordenação era, no caso, a data limite de indica de 31-5-2005, em que terminaria o prazo de cumprimento da obrigação não identificada.
Mas, o facto de não existir na decisão uma referência explícita a que esta obrigação que, no entender da autoridade que aplicou a coima, deveria ser cumprida até 31-5-2005 era a de efectuar o pagamento, poderá ter obstado (e presumivelmente obstou) a que a arguida omitisse no seu recurso judicial a fundamentação da sua posição, confrontando-a com a da administração tributária, sobre a questão que, afinal, é a que mais lhe interessa, de saber qual é a data a partir da qual a falta de entrega da prestação tributária constitui contra-ordenação para efeitos do art. 114.º do RGIT.
Pelo exposto, tem de se concluir que é correcta a posição assumida no despacho recorrido sobre a existência da nulidade insuprível, prevista nos arts. 63.º, n.º 1, alínea d), e 79.º, n.º 1, alínea b), do RGIT.
Termos em que acordam em negar provimento ao recurso e em confirmar a decisão recorrida.
Sem custas, por o Ministério Público estar isento.
Lisboa, 6 de Maio de 2009. – Jorge de Sousa (relator) – Lúcio BarbosaAntónio Calhau (vencido, por entender que a decisão de aplicação de coima satisfaz os requisitos previstos na alínea b) do nº 1 do art.º 79.º RGIT e não contém a apontada contradição, pelo que daria provimento ao recurso).