Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02509/20.0BEPRT
Data do Acordão:11/04/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:REGIME JURÍDICO DA URBANIZAÇÃO E DA EDIFICAÇÃO
INTIMAÇÃO PARA PRÁTICA DE ACTO DEVIDO
SILÊNCIO
PARECERES
Sumário:I - Na intimação para a prática de ato legalmente devido prevista no 112.º do RJUE, não está em causa, diretamente, o reconhecimento do direito de o particular realizar uma concreta operação urbanística, mas apenas o reconhecimento do seu direito de obter da Administração uma decisão sobre aquela pretensão dentro dos prazos legalmente estabelecidos.
II – Nesse âmbito, o Tribunal tem os poderes necessários para verificar se o órgão municipal competente para praticar o ato devido no âmbito do procedimento de licenciamento cumpriu o seu dever de decisão, ainda que isso envolva a apreciação da legalidade de um ato de recusa expressa de a proferir, ou de qualquer outro ato que prejudique o cumprimento daquele dever, nos termos e nos prazos legalmente estabelecidos.
III - Entre os elementos instrutórios que, nos termos do n.º 1 do artigo 72.º do RJUE, são aproveitados num procedimento de renovação de uma licença caducada, incluem-se os pareceres, aprovações ou autorizações que tenham sido emitidos por entidades estranhas ao município em razão da localização da operação urbanística, nos termos do artigo 13.º-A do mesmo diploma legal, que não carecem de ser renovados dentro do prazo ou das condições estabelecidas naquele artigo.
Nº Convencional:JSTA000P28441
Nº do Documento:SA12021110402509/20
Data de Entrada:09/29/2021
Recorrente:MUNICÍPIO DE VILA DO CONDE
Recorrido 1:A…………., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

I. Relatório

1. MUNICÍPIO DE VILA DO CONDE - identificado nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN), de 18 de junho de 2021, que revogou a Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, de 2 de março de 2021, julgando parcialmente procedente o pedido formulado e intimando o «Presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde, a cumprir o dever de decisão que sob si impende, fixando … para o efeito o prazo de 30 dias seguidos, e em 10 % do salário mínimo nacional mais elevado em vigor no momento, a sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento do dever legal de emanar o ato legalmente devido».

Nas suas alegações, o Recorrente formulou, com relevo para esta decisão, as seguintes conclusões:

«(...) 7.ª Conforme bem se sustenta em tal acórdão [Acórdão do TCA Sul de 4 de julho de 2019, proferido no Processo n.º 400/07.5BEBJA],

“a urgência que justifica a previsão do meio processual regulado no artigo 112.º do RJUE está na prática do acto e não na prática do acto com um determinado conteúdo. Ora, na intimação judicial para a prática de acto legalmente devido o tribunal não conhece da pretensão (material) urbanística do interessado nem pode condenar a entidade competente à prática do acto administrativo ilegalmente omitido (não determina o conteúdo do acto a praticar nem explicita as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido); Verifica apenas se se encontram reunidas as condições necessárias para que a autoridade competente tome uma decisão sobre o objeto da pretensão urbanística (se não há fundamento de rejeição) e se se encontrarem reunidas essas condições defere o requerimento, intimando a autoridade competente para proceder à pratica do acto (para decidir sobre o mérito da pretensão urbanística do interessado)”.

8.ª Ora, o aqui Recorrente pronunciou-se, como lhe era exigível, acerca da falta de condições para poder emitir o acto final, ao afirmar que, face ao princípio tempus regit actum, o pedido deveria ser instruído pela Recorrida, no prazo de quinze dias, com determinados elementos (que enunciou), assim como era exigível, além do mais, a renovação das consultas às entidades externas competentes.

9.ª Trata-se, portanto, de uma notificação para a Recorrida proceder ao aperfeiçoamento do requerimento, que o próprio Tribunal a quo declarou ser uma das hipóteses admissíveis, ao abrigo do disposto no art. 11-2/a do RJUE.

10.ª Dado que estava em causa um acto procedimental lesivo dos interesses da requerente, deveria esta ter lançado mãos do meio processual impugnatório e de condenação à prática do acto devido, por via da acção administrativa, não lhe sendo lícito lançar mão do processo de intimação previsto no art. 112-1 do RJUE.

11.ª Por outro lado, o Tribunal a quo excedeu o âmbito de conhecimento que o concreto meio processual lhe permite, quando se pronunciou sobre o mérito do acto praticado.

12.ª Conforme se afirma no citado douto acórdão do TCA Sul,

“a intimação regulada neste preceito [do art. 112-1 do RJUE] apresenta, por conseguinte, um regime especial e é aplicável apenas aos casos de omissão ou inércia administrativa, como vimos. Tratando-se de indeferimento expresso, de recusa expressa da prática do acto devido ou de reacção contra um acto positivo, o interessado terá de socorrer-se da acção de condenação à prática de ato devido, regulada no artigo 67.º, n.º 1, alíneas b) a c), do CPTA”.

13.ª Só numa acção com tais características – e não no âmbito de um processo urgente – é possível analisar, com suficiente profundidade, as múltiplas questões que a aplicação da norma do art. 72-2 do RJUE suscita, incluindo a da validade dos elementos instrutórios apresentados pelo requerente do processo caducado e a dos pareceres entretanto emitidos pelas entidades externas.

14.ª Mutatis mutandis, o mesmo se diga quanto à sindicabilidade da fundamentação da decisão tomada.

15.ª Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por erradas interpretação e aplicação do estatuído nos arts. 112-1, 72-2 e 11-2/a do RJUE.»

2. A Recorrida contra-alegou o seguinte:

« (...) V – Ao avaliar a legalidade do ato interlocutório de promoção de consulta junto das entidades externas ao Município, o Tribunal recorrido não determinou o conteúdo material do ato final, mas limitou-se a verificar se encontravam reunidas as condições necessárias para que a autoridade competente se pronunciasse sobre a pretensão que lhe foi dirigida, intimando-a para emitir o ato final do procedimento, ou seja, para decidir sobre o mérito da pretensão urbanística da Recorrida, formulada ao abrigo do art. 72º do RJUE.

VI - A Recorrida não recorreu ao meio processual errado, visto que o dever de decisão visado no pedido reporta-se ao ato final do procedimento e não a atos interlocutórios, permanecendo intacto o direito de reagir contra o ato final, quer pelos meios graciosos, quer pelos meios contenciosos.

VII – É lícito ao Tribunal pronunciar-se sobre a alegada falta de condições para a prolação do ato final, sob pena de a entidade administrativa requerida poder assumir uma sucessão infindável de atos interlocutórios, indevidos, dilatórios ou impertinentes, deixando as instâncias manietadas para intimar à prolação do ato final, frustrando a tutela jurisdicional visada pelo art. 112º do RJUE.

VIII – A apreciação da exigibilidade da prolação do ato final implica, necessária e inelutavelmente, a apreciação da legalidade de ato interlocutório de promoção de novas consultas a entidades externas, o qual foi invocado pelo Recorrente como causa impeditiva daquela prolação, estando compreendido no objeto do processo avaliar a aptidão deste ato para suspender o prazo de prolação daquele ato final.

IX - Segundo o que resulta dos factos provados e do P.A., é manifesto que o Recorrente excedeu todos os prazos a que estava vinculado, mesmo num cenário – que não se concede – de exigibilidade de promoção de consulta às entidades externas, estando demonstrados os factos constitutivos do direito peticionado pela Recorrida (cfr. pedidos I e III da p.i.).

X - O douto Acórdão de 04/07/2019 do TCAS, invocado pelo Recorrente, em nada contraria o sentido do douto Acórdão recorrido. Por um lado, este não fixou o conteúdo material do ato que o intimou a praticar. Por outro, embora se possa considerar que o meio processual do art. 112º do RJUE pode ter por objeto “outros atos que devessem ser praticados no âmbito do procedimento”, o pedido formulado dirigiu-se ao ato final do procedimento e não a qualquer outro.

XI - Para avaliar a idoneidade do ato de promoção de consulta às entidades externas e a sua aptidão a obstar à prática do ato final peticionado, o Tribunal a quo considerou que inexistiu qualquer alteração dos pressupostos de facto e de direito que conduziram aos licenciamentos caducados: não sobreveio qualquer alteração legal ou regulamentar relativa à pretensão em causa desde 27/05/2019 (e, mesmo, desde 27/09/2013) que tivesse alterado os pressupostos formais e substantivos do deferimento inicial da pretensão e de todos os demais atos subsequentes praticados pelo Recorrido, mormente ao nível dos instrumentos de gestão territorial (v.g. Plano Diretor Municipal e planos especiais de ordenamento), não tendo, também, sobrevindo novas entidades com competência para emitir pareceres ou autorizações, vinculativos ou não vinculativos conforme a Recorrida alegou nos arts. 36º, 37º, 38º e 41º da p.i. não impugnados pelo Recorrente, direta ou indiretamente, na sua contestação.

XII - Assim, nestas situações, entende-se que o douto Acórdão recorrido atuou corretamente ao sindicar o ato interlocutório, considerando que para efeitos do art. 72º do RJUE não há lugar à promoção de novas consultas às entidades que já se haviam pronunciado sobre o mesmo objeto, segundo os mesmos pressupostos de facto e de direito, numa elementar lógica de economia processual e em concretização dos princípios jurídico-administrativos supra mencionados pelas Insignes Autores mencionadas no corpo das presentes alegações.

XIII - Naturalmente que a reapreciação do pedido prevista naquele art. 72º do RJUE tem em vista, dentro do horizonte temporal que o Legislador reputou adequado, aferir a imutabilidade dos pressupostos de facto e de direito, cingindo-se a exigência de novas condições ou elementos instrutórios a matérias que sejam ditadas por razões atendíveis emergentes de alterações legais ou regulamentares supervenientes.

XIV - Pelo que o disposto no art. 72º do RJUE não determina a promoção de novos pareceres, autorizações ou aprovações de entidades estranhas ao Município, visto que os pressupostos de facto e de direito, que mereceram as anteriores pronúncias, são coincidentes.

XV - Desta forma, a Recorrida alegou e provou, como era de seu ónus, o preenchimento dos requisitos legais de que depende o efeito jurídico que pretende obter por via dos pedidos I e III formulados na petição inicial, incluindo os pressupostos relativos aos demais elementos instrutórios, gozando da presunção de regular e completa instrução – não infirmada pelo Recorrente – constante do art. 11º n.º 5 do RJUE, já que não foi assinalado qualquer documento ou elemento em falta ou desconforme através de despacho de apreciação liminar, nos termos do art. 11º n.º 2 do RJUE,

XVI – Em suma, sempre que o pedido de intimação previsto no art. 112º do RJUE se dirige à prática do ato final do procedimento, compete ao Tribunal avaliar o relevo de atos interlocutórios e a sua legalidade sempre que os mesmos sejam suscetíveis de se projetar na exigibilidade da prolação, em determinado prazo, daquele ato final.»

3. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 9 de setembro de 2021, por se entender que «a questão decidenda, em torno da definição e delimitação do âmbito do meio processual contencioso em presença e daquilo que no mesmo são os efetivos poderes de controlo e de pronúncia do tribunal quanto aos atos emitidos em sede de procedimento de licenciamento de operações urbanísticas, em especial a articulação dos arts. 11.º, 72.º e 112.º do RJUE no quadro dos princípios enformadores do nosso ordenamento jurídico no plano constitucional e do contencioso administrativo urbanístico, goza de relevância jurídica fundamental, porquanto a mesma envolve complexidade jurídica, indiciada, desde logo, pelos juízos diametralmente divergentes das instâncias, assumindo carácter paradigmático e exemplar, dado que dotada de capacidade de expansão da controvérsia, de se projetar ou de ser transponível para fora do âmbito dos autos e para outras situações futuras indeterminadas, com incidência direta em inúmeras atividades económicas e evidentes repercussões no domínio urbanístico, nos direitos e garantias dos particulares e dos poderes do órgão municipal no âmbito do procedimento de licenciamento.»

4. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos do n.º 2 do artigo 36.º do CPTA, e do n.º 7 do artigo 112.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE).

II. Matéria de facto

5. As instâncias consideraram como provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

«1. Através do ofício n.º 3774/19, de 30.07.2019 a Requerente foi notificada da declaração de caducidade do licenciamento da construção de edifício destinado a estabelecimento hoteleiro e respetivas obras de urbanização.

1A – Para aqui se extrai o referido ofício n.º 3774/19 – Cfr. doc. n.º 3 junto com o Requerimento inicial, do qual consta que a caducidade da licença de que a Requerente era titular caducou no dia 30 de julho de 2019 -, como segue:



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1B – O referido ofício n.º 3774/19, foi antecedido de um outro, datado de 27 de maio de 2019, n.º 2623/189, emitido em sede de audiência previa da Requerida – Cfr. doc. n.º 1 junto com o Requerimento inicial -, que para aqui se extrai como segue:»


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1C – O licenciamento relativo à operação urbanística requerida pela Requerente, atinente à construção de uma unidade hoteleira [cuja caducidade veio a ser declarada em 30 de julho de 2019], foi aprovado pelo Requerido em 09 de junho de 2014 – facto admitido por acordo; Cfr. ofício 3774/19.

2. Em 28.10.2020 a Requerente dirigiu ao Requerido, por via postal registada, um requerimento com o seguinte teor parcial:

“A……………, LDA, Requerente no processo supra mencionado e melhor identificada no mesmo vem, nos termos e para os efeitos previstos no art. 72º n.º 1 e 2 do RJUE, requerer nova licença de construção e de obras de urbanização, com aproveitamento de todos os elementos que instruíram o processo anterior, a qual deverá ser emitida no mesmo sentido e condições, por se manterem inalterados os fundamentos de facto e de direito.

No pressuposto da citada aprovação, renova, desde já, o pedido de emissão do alvará de licença de construção e de licença de obras de urbanização, nos exatos termos do ponto II do seu requerimento com registo de entrada de 19/08/2020 que dá por integralmente reproduzido nessa parte, incluindo os elementos instrutórios que o acompanharam.

Consigna-se, expressamente, que a Requerente não renuncia aos eventuais meios processuais, graciosos e contenciosos relativamente aos atos administrativos já praticados no processo – mormente a declaração de caducidade que lhe foi notificada através do Vosso ofício n.º 3774/19, de 30/07/2019 – nem ao correspectivo exercício de direitos, por qualquer meio legalmente admissível. Meios esses nos quais mantém interesse na medida em que deles se possa prevalecer, a reavaliar em função da decisão que venha a recair sobre o ora requerido e que pode ditar a inutilidade superveniente daqueles. (…)”



3. O Requerido dirigiu à Requerente uma notificação correspondente ao ofício n.º 5481/2020, de 11.11.2020, com o seguinte teor parcial:

“No uso de competências delegadas, fica V. Exª. notificada que o requerimento mencionado em epígrafe, conforme despacho de 06/11/2020, mereceu a seguinte decisão:

1. Verifica-se que V. Exª. se propôs, nos termos legais, mais concretamente em face do previsto no art. 72º do RJUE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 136/14, de 9/9, proceder à renovação da operação urbanística, conexa com a pretensão de edificação de uma unidade hoteleira, entretanto, por falta de impulso na obtenção da correspondente licença, objeto de declaração de caducidade expressa.

2. O pedido tem enquadramento legal e implica, nos termos do enunciado no referido artigo, o aproveitamento dos elementos que instruíram o pedido anterior, dado que não decorreram ainda 18 meses a contar da data da caducidade (30/07/2019, ofício n.º 3774/19), mas não dispensa a promoção da consulta às entidades externas que, obrigatoriamente, em razão da localização, têm de prestar parecer, sob pena da nulidade a que alude o artigo 68º, alínea c) do citado regime jurídico.

3. Mais se informa V. Exª. de que os elementos necessários para instruir o pedido de renovação do presente processo, encontram-se elencados na Portaria 113/2015, de 22 de abril, nos pontos I e III, anexos I e II, dos quais se destacam os seguintes: (…)

4. No que se refere à taxa de apreciação/reapreciação do pedido de renovação, o valor correspondente é de 79,10 €.”

4. Discordando da necessidade de nova consulta às entidades exteriores ao Réu Município, em 27.11.2020, a Requerente dirigiu ao Requerido um requerimento com o seguinte teor parcial:

“(…)

A………………., LDA, Requerente no processo supra mencionados e melhor identificada no mesmo, notificada nos termos que antecedem (v/ ofício 5481/2020, de 11-11- 2020), vem DIZER e REQUERER o seguinte:

1 – Não existiram quaisquer alterações de facto ou de direito relativamente às pretensões formuladas, 2 – permanecendo inalteradas as regras legais e regulamentares que presidiram à aprovação das pretensões, 3 – mormente ao nível dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis.

4 – Em face disso, o disposto no art. 72º do RJUE não determina a promoção de novos pareceres, autorizações ou aprovações de entidades estranhas ao Município, visto que os pressupostos de facto e de direito, que mereceram as anteriores pronúncias, são coincidentes.

5 – Conforme a propósito deste normativo escreveu Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves e Dulce Lopes (in “Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – Comentado”, Almedina, Coimbra, 2016, 4ª Edição, pág. 553, “naturalmente que a entrega destes novos elementos apenas se justificará se tiverem sido alterados os requisitos que conformam substancialmente o objeto 14/22 do pedido, como sucede com a modificação dos instrumentos de gestão territorial. Já se em causa estiverem exigências formais (o exemplo que dávamos na edição anterior deste comentário era o resultante da Lei n.º 31/2009, de 3 de julho, de existência de um coordenador de projeto), não se deve exigir a apresentação de um processo atualizado, uma vez que este substancialmente se mantém inalterado. Este entendimento baseia-se no princípio da boa administração (que integra os princípios da eficiência, da economicidade e da celeridade) consagrado no artigo 5º do CPA. Chegaríamos, aliás, à mesma solução por via da aplicação do princípio da proporcionalidade, do artigo 7º do CPA”).

6 – Pelo que a ora Requerente consigna que irá considerar a premissa de que tais pareceres, autorizações ou aprovações de entidades estranhas ao Município não são devidos, para o exercício dos seus direitos e do regime legal aplicável.

Quanto aos demais aspetos da notificação:

7 – A ora Requerente já entregou toda a documentação a que se refere o ponto 3 da notificação em referência, que consta dos autos.

8 – Caso o Município entenda que algum específico documento carece de revalidação o que não se concede - deverá notificar a Requerente em conformidade.

9 – A taxa indicada (79,10 €) foi paga na data de entrega do presente requerimento.

TERMOS EM QUE requer o deferimento do seu requerimento n.º 5089/2020, de 28/10/2020, considerando-se não necessárias as consultas, pareceres ou autorização das entidades externas já anteriormente consultadas.”

5. Em 30.12.2020, o Requerido emitiu o ofício n.º 6378/2020, com o seguinte teor parcial:




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(cfr. ofício a fls. 691 e ss do p.a.).



6. Em 22.01.2021, a Requerente dirigiu ao Requerido um requerimento com o seguinte teor parcial:

“(…)

1 – O ofício n.º 5481/2020, de 11/11/2020 não contém a relação dos documentos em concreto exigíveis no caso vertente, mas uma mera remissão para a relação genérica de elementos instrutórios constantes da Portaria 113/2015, de 22/04, pontos I e III e anexos I e II (cfr. ponto 4 do ofício).

2 – A Interessada já tomou posição sobre a questão da consulta às entidades externas, através do seu requerimento de 27/11/2020, o qual se dá por integralmente reproduzido.

3 – Assinala-se, quanto ao n.º 1 do ponto 2.4 do ofício 6378/2020, que a Interessada identificou com clareza e precisão a sua pretensão “nos termos do procedimento administrativo”, o que referiu expressamente no introito do requerimento de 28/10/2020 [“(…) vem, nos termos e para os efeitos previstos no art. 72º n.º 1 e 2 do RJUE, requerer nova licença de construção e de obras de urbanização”], que se refere inequivocamente ao pedido de renovação das licenças em causa e respetivo enquadramento legal,

4 - o que o Município bem interpretou, de acordo com as informações subsequentes.

5 – Pese embora se entenda que o processo já se apresentava corretamente instruído e sem prescindir - procede-se à junção dos documentos relativamente aos quais se poderia equacionar a questão da caducidade da respetiva validade, a saber:

(i) certidão do registo predial atualizada do prédio em causa;

(ii) certidão comercial permanente da sociedade ora Interessada;

(iii) plantas de localização atualizadas;

(iv) declarações comprovativas da manutenção das inscrições válidas nas respetivas associações públicas de natureza profissional, relativamente aos subscritores dos termos de responsabilidade (os quais são, de per se, insuscetíveis de desatualização).

TERMOS EM QUE requer o deferimento do seu requerimento n.º 5089/2020, de 28/10/2020, considerando-se o processo corretamente instruído face aos termos e regime legal da pretensão deduzida.”

(cfr. doc. a fls. 1186 e ss e doc. a fls. 1238 dos autos).

6A - A Requerente pagou a taxa de €79,10 [do que informou o Requerido pelo seu

requerimento datado de 27 de novembro de 2020], para o que assim havia sido notificada pelo Requerido pelo seu ofício n.º 5481/2020, de 11 de novembro de 2020 – Cfr. doc. n.º 11 junto com o Requerimento inicial;

7 - O Regulamento Municipal da Urbanização e da Edificação do Município de Vila do Conde foi publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 211, de 29 de outubro de 2020, pelo Aviso n.º 17533/2020;

8 - O Requerimento inicial que motivou os presentes autos foi remetido ao TAF do Porto em 30 de dezembro de 2020 – Cfr. fls. dos autos;

9 - A Contestação apresentada nos presentes autos foi remetida ao TAF do Porto pelo Requerido ora Recorrido, em 19 de janeiro de 2021 – Cfr. fls. dos autos.»


III. Matéria de direito

6. A questão que se discute neste recurso é a de saber se, como alega o Recorrente, o tribunal a quo excedeu o âmbito dos poderes de conhecimento de que dispõe no âmbito de um processo de intimação para a prática de ato legalmente devido previsto e regulado no artigo 112.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação que lhe é dada atualmente pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.
Em causa, concretamente, está a alegação de que, ao intimar a Presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde a cumprir o seu dever de decisão, o acórdão recorrido se terá indevidamente pronunciado sobre o mérito do despacho de 6 de novembro de 2020, extravasando assim o âmbito dos poderes conferidos pelo n.º 1 daquela disposição legal, que apenas permite que o juiz interpele o órgão competente «para o cumprimento do dever de decisão».
A Recorrida contrapõe que o acórdão recorrido não fixou o conteúdo material do ato que intimou a Recorrente a praticar, defendendo que «sempre que o pedido de intimação previsto no art. 112º do RJUE se dirige à prática do ato final do procedimento, compete ao Tribunal avaliar o relevo de atos interlocutórios e a sua legalidade sempre que os mesmos sejam suscetíveis de se projetar na exigibilidade da prolação, em determinado prazo, daquele ato final.»

7. As partes não divergem sobre a questão de saber se, no âmbito de um processo de intimação para a prática de ato legalmente devido previsto no artigo 112.º do RJUE, o Tribunal pode conhecer do mérito da pretensão material submetida pelo Requerente à apreciação da Câmara Municipal, ou do seu Presidente, deferindo ou indeferindo o pedido de licenciamento da operação urbanística cujo procedimento administrativo carece de decisão.
O consenso das partes quanto a essa questão merece o total acordo deste Tribunal, sendo inequívoco que, quando o legislador prevê no artigo 112.º do RJUE que os tribunais administrativos possam intimar o órgão competente para cumprir o seu dever decisão (n.º 1), verificando, se necessário, o preenchimento dos pressupostos para a sua constituição (n.º 4), não está em causa, diretamente, o reconhecimento do direito de o particular realizar uma concreta operação urbanística, mas apenas o reconhecimento do seu direito de obter da Administração uma decisão sobre aquela pretensão dentro dos prazos legalmente estabelecidos.
Na verdade, o processo de intimação previsto naquele artigo surge como uma reação do administrado ao silêncio da Administração, por remissão da alínea a) do artigo 111.º do mesmo diploma legal, pelo que nele não se discute nada mais para além da questão de saber se o órgão a quem foi dirigido um pedido para praticar um ato no âmbito de um procedimento de licenciamento de uma operação urbanística está ou não constituído no dever de proferir uma decisão sobre o mesmo.

8. A questão verdadeiramente controvertida nos autos é a de saber se o despacho da Presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde, de 6 de novembro de 2020, que considerou não estarem ainda preenchidos todos os pressupostos para a concessão da licença de obras de construção e de obras de urbanização requerida, por entender ser legalmente exigível a realização de novas consultas às entidades externas ao município, satisfaz ou não o dever de decisão cujo incumprimento constitui um pressuposto processual específico do presente processo.
A questão de direito é, portanto, a de saber se por silêncio da Administração se devem entender apenas as situações de inércia absoluta, em que a Administração nada diz sobre a pretensão apresentada, ou se nela também cabem aquelas em que ela se recusa expressamente a decidir, apesar de estar constituída no dever de o fazer.
O Recorrente sugere, invocando jurisprudência do Tribunal Central Administrativo do Sul - v. Acórdão de 4 de julho de 2019, proferido no Processo n.º 400/07.5BEBJA -, que havendo uma recusa expressa da prática do ato devido o interessado terá de se socorrer da ação de condenação à prática de ato devido, prevista e regulada nos artigos 66.º e seguintes do CPTA.
Nessa linha de argumentação, o processo de intimação para a prática de ato legalmente devido, por ser um processo especial, de carácter urgente, estaria reservado para situações de especial simplicidade, em que o tribunal se limitasse a verificar a ausência de uma qualquer decisão. Sempre que a decisão implicasse mais do que um raciocínio meramente silogístico, de subsunção de um comportamento omissivo da Administração à previsão normativa do dever de decisão, a matéria teria de ser apreciada numa ação de carácter geral.
Vejamos então se essa linha de argumentação tem base legal, e se procede.

9. A intimação para a prática de ato legalmente devido está prevista no RJUE desde a sua versão inicial, pelo que a sua previsão legal é anterior à aprovação do CPTA e à consagração da ação de condenação à prática de ato devido.
Aquela intimação constituiu, na verdade, o primeiro meio processual a dar concretização à nova garantia jurisdicional que a revisão constitucional de 1997 estabeleceu em favor dos administrados, assegurando a possibilidade, no âmbito específico dos procedimentos de controlo prévio de operações urbanísticas, de condenação da Administração à adoção dos comportamentos necessários à satisfação dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.
Daí que, embora tenha natureza especial em relação ao regime da ação de condenação à prática de ato devido, não se pode dizer que o legislador tenha, deliberadamente, querido estabelecer um regime mais restritivo do que o daquela ação, porque o único parâmetro existente à data da sua consagração legal era o parâmetro constitucional. O legislador limitou-se, então, a concretizar o conteúdo daquela garantia tal como ela foi estabelecida no número 4 do artigo 268.º da Constituição, e como decorre dos trabalhos preparatórios da Comissão Eventual de Revisão Constitucional (CERC), aquela disposição constitucional visou essencialmente garantir a existência de meios processuais que permitam aos tribunais «determinar» a prática de atos legalmente devidos quando a Administração incumpra o seu dever de decisão.
Ou seja, o CPTA é que foi para além da garantia constitucional, ao permitir que a Administração possa determinar o conteúdo material do ato devido, quando isso não envolva a realização de juízos discricionários, pelo que não é o RJUE que restringe o âmbito dos poderes de cognição do tribunal, é aquele código que os amplia.

10. O que ficou dito sobre a génese dos processos de intimação para a prática de ato legalmente devido no âmbito do controlo prévio das operações urbanísticas é importante para se compreender que aquele meio processual não foi concebido para oferecer uma tutela diminuída em relação à tutela conferida pela ação de condenação de ato devido, mas para concretizar plenamente a garantia constitucional dos administrados no âmbito daqueles procedimentos especiais.
A intimação para a prática de ato legalmente devido também não foi prevista no RJUE para constituir uma «alternativa» à ação de condenação à prática de ato devido em situações de especial simplicidade e celeridade – nem o recurso à mesma é optativo quando estejam em causa procedimentos de licenciamento urbanístico - mas para constituir uma «alternativa» à garantia procedimental clássica do deferimento tácito.
A natureza urgente do processo responde, por isso, à natureza dos interesses envolvidos, atendendo, além do mais, à circunstância de a decisão final do processo não conferir tutela plena à pretensão material do Requerente, dado que devolve a definição da sua situação jurídica à própria Administração, através da prática do ato devido.

11. No quadro descrito, é evidente que o Tribunal tem os poderes necessários para verificar se o órgão municipal competente para praticar o ato devido no âmbito do procedimento de licenciamento cumpriu o seu dever de decisão, ainda que isso envolva a apreciação da legalidade de um ato de recusa expressa de a proferir, ou de qualquer outro ato que prejudique o cumprimento daquele dever, nos termos e nos prazos legalmente estabelecidos.
Para configurar uma situação de inércia, é indiferente que a ausência de uma decisão devida resulte de uma decisão de recusa explícita ou apenas implícita. O silêncio não cessa quando a Administração se pronuncia sobre o pedido, mas apenas quando o decide.
Sendo o objeto do processo determinar se o órgão competente cumpriu o seu dever de decisão, interpelando-o a agir em conformidade, o Tribunal tem, obviamente, todos os poderes necessários para verificar se se encontram preenchidos os pressupostos daquele dever.
É, aliás, por essa razão que no n.º 4 do artigo 112.º do RJUE se dispõe que, se não se verificarem os respetivos pressupostos, não há dever de decisão, e o pedido de intimação improcede.
Os poderes de conhecimento do Tribunal não têm, nem podem ter, um âmbito e uma natureza distinta conforme a decisão seja de deferimento ou de indeferimento do pedido de intimação, pelo que em ambos os casos ele verifica se aqueles pressupostos estão preenchidos, quer a Administração já se tenha pronunciado sobre o pedido, quer ainda não o tenho feito.

12. Regressando ao caso dos autos, verifica-se que a Presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde não se recusou, de forma explicita, a decidir o pedido de licenciamento de obras de construção e de urbanização requerido no prazo legalmente estabelecido, ma fê-lo de forma implícita, ao decidir promover novas consultas às entidades externas ao município.
Ora, sendo aplicável o regime do artigo 72.º do RJUE, por se tratar de um pedido de renovação de uma licença caducada há menos de 18 meses, sem que tenha havido qualquer alteração da situação de facto e de direito, a questão de saber se aquelas consultas são ou não exigíveis, nos termos estabelecidos no n.º 2 do mesmo artigo, é claramente uma questão de verificação dos pressupostos do dever de decisão.
Com efeito, se as consultas forem exigíveis, o prazo para a decisão conta-se nos termos das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 23.º do RJUE, pelo que não existe, ainda, dever de decisão; se as consultas não forem exigíveis, o prazo para a decisão conta-se da data da apresentação do pedido de renovação da licença e, consequentemente, o Recorrente incumpriu o seu dever de decisão no prazo legalmente estabelecido.
Ao decidir que, nos termos do regime estabelecido naquele artigo, as consultas não são exigíveis, o acórdão recorrido não extravasou o âmbito dos poderes de conhecimento que lhe são conferidos pelo n.º 1 do artigo 112.º, não se imiscuindo, nomeadamente, na fixação do conteúdo material do ato que intimou o Recorrente a praticar.

13. Acresce que o tribunal a quo fez uma correta interpretação do regime estabelecido no n.º 2 do artigo 72.º do RJUE.
Quando ali se diz que «serão utilizados no novo processo os elementos que instruíram o processo anterior desde que o novo requerimento seja apresentado no prazo de 18 meses a contar da data da caducidade ou, se este prazo estiver esgotado, não existirem alterações de facto e de direito que justifiquem nova apresentação», isso abrange todos os elementos instrutórios do procedimento anterior, incluindo os pareceres, aprovações ou autorizações que tenham sido emitidos por entidades estranhas ao município em razão da localização da operação urbanística, nos termos do artigo 13.º-A do mesmo diploma legal.
Nem se compreenderia que não fosse assim, à luz do princípio do aproveitamento dos atos administrativos, e das mais elementares regras de boa administração, e de economia e eficiência procedimental.
Pese embora o ato de licenciamento anterior tenha caducado, os pareceres, aprovações ou autorizações emitidos por entidades estranhas ao município em razão da localização da operação urbanística, que constituem atos administrativos autónomos, embora instrumentais em relação àquele, mantém-se em vigor até ao termo do prazo de 18 meses previsto no n.º 2 do artigo 72.º, ou até que se altere a situação de facto e de direito sobre os quais os mesmos recaíram.

14. Assim, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que o acórdão recorrido não incorreu em erro de julgamento por errada interpretação dos artigos 11.º, n.º 2, 72.º, n.º 2 e 112.º, n.º 1 do RJUE, não merecendo por isso qualquer censura.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente. Notifique-se



Lisboa, 4 de novembro de 2021. - Cláudio Ramos Monteiro (relator) - José Francisco Fonseca da Paz - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva.