Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0158/16
Data do Acordão:06/16/2016
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
AFASTAMENTO AO LIMITE DO PRÉDIO VIZINHO
RGEU
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DIREITO DE EDIFICAÇÃO
Sumário:As exigências previstas no art. 73.º do RGEU apenas incidem sobre o projeto submetido à apreciação camarária.
Nº Convencional:JSTA00069766
Nº do Documento:SAP201606160158
Data de Entrada:02/17/2016
Recorrente:MUNICÍPIO DE COIMBRA
Recorrido 1:A... E OUTRA
Votação:MAIORIA COM 2 VOT VENC
Meio Processual:REC UNIFORM JURISPRUDÊNCIA
Objecto:AC TCAN DE 2015/07/15 - AC STA PROC0707/09 DE 2009/09/24
Decisão:PROVIMENTO PARCIAL
Área Temática 1:DIR ADM CONT.
DIR URB - LICENCIAMENTO CONSTRUÇÃO.
Legislação Nacional:ETAF02 ART17.
CPTA02 ART152 N1 B N3.
CPC ART713 N6.
CCIV66 ART9 ART1362.
RGEU ART58 ART59 ART62 ART73.
RJUE ART24 N1.
DL 177/01 DE 2001/06/04 ART24 N1.
DL 555/99 DE 1999/12/16.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC01011/15 DE 2015/12/16.; AC STAPLENO PROC0240/14 DE 2014/10/15.; AC STAPLENO PROC062/14 DE 2014/03/27.; AC STAPLENO PROC01183/13 DE 2013/10/30.; AC STAPLENO PROC098/13 DE 2013/04/18.; AC STA PLENO PROC0542/12 DE 2010/11/15.; AC STAPLENO PROC0610/09 DE 2010/01/14.; AC STAPLENO PROC0212/08 DE 2008/09/18.; AC STAPLENO PROC046946 DE 2007/05/29.; AC STA PROC0134/15 DE 2015/05/14.; AC STA PROC0927/09 DE 2011/03/01.; AC STA PROC0707/09 DE 2009/09/24.; AC STA PROC0901/07 DE 2008/05/07.; AC STA PROC0663/07 DE 2007/11/28.; AC STA PROC0208/07 DE 2007/06/12.; AC STA PROC0939/03 DE 2005/11/03.; AC STA PROC01854 DE 2003/06/17.; AC STA PROC033836 DE 1994/06/07.; AC STA PROC047882 DE 2004/02/17.; AC STA PROC046996 DE 2003/02/24.; AC STA PROC045026 DE 1999/10/20. ; AC TCAN PROC00614/06.5BECBR DE 2015/01/16.
Referência a Doutrina:AROSO DE ALMEIDA E CARLOS CADILHA - COMENTÁRIO AO CPTA 3ED PAG1010.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção do Contencioso Administrativo:
I- RELATÓRIO

O Município de Coimbra vem interpor recurso para uniformização de jurisprudência para o Pleno desta secção invocando a contradição do acórdão recorrido_ proferido pelo TCAN, em 15-7-2015, a fls. 823/833, que concedeu provimento ao recurso interposto da decisão do TAF de Coimbra e julgou procedente a ação administrativa especial interposta por A………………, de impugnação do despacho de 9.12.2004, no uso de poderes delegados, do Vereador da Câmara Municipal de Coimbra, que deferiu o licenciamento nº 1619/99_ e o acórdão proferido por este STA em 24.09.2009, no Proc. 707/09.

Para tanto apresenta as seguintes conclusões das alegações:

“1. Ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º do CPTA, as partes podem interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição entre Acórdão do Tribunal Central Administrativo e Acórdão anteriormente proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo.

2. O Acórdão recorrido (proferido em 15 de Julho de 2015) e o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de Setembro de 2009 (proferido no Processo n. 0707/09 — 1. Subsecção do CA), ambos transitados em julgado, perfilham soluções opostas quanto à questão fundamental de direito, que é a de saber se as exigências construtivas constantes dos artigos 58.º e 73.º do RGEU devem ser interpretadas no sentido de que as mesmas visam, unicamente, assegurar a qualidade da construção a licenciar ou se, também, se destinam a preservar a qualidade das edificações pré- existentes nos terrenos vizinhos.

3. No nosso entendimento incorre o Acórdão recorrido em erro de julgamento, violando o disposto nos artigos 58.º e 73.º do RGEU, ao considerar que as exigências construtivas constantes nos referidos normativos não se destinam apenas a assegurar a qualidade da construção licenciada, mas também a assegurar a qualidade dos edifícios vizinhos (ou, pelo menos, o não agravamento da situação pré-existente).

4. Perfilhando o entendimento defendido no Acórdão fundamento, a dúvida que a norma do artigo 73º do RGEU tem suscitado é a de saber se as janelas a que se refere são tão só as previstas no edifício a construir ou também as já existentes, questão que, em nosso entendimento, deve ser resolvida através da primazia que deve ser atribuída ao sentido directo do texto normativo (cf. n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil).

5. Conforme resulta da sua letra, o artigo 73.º do RGEU ocupa-se apenas da disposição das janelas — e não da disposição do muro ou fachada que lhes sejam fronteiros — edifício a construir ou a legalizar — as janelas futuras — e não as existentes num prédio vizinho sendo que, atento o tempo verbal adoptado pelo legislador, em nosso entendimento o preceito trata apenas da maneira como as janelas dos compartimentos das habitações deverão ser dispostas, ou seja como deverão ser projectadas, sendo totalmente alheio às janelas pré-existentes num prédio vizinho, janelas essas que foram dispostas no passado e que se mantêm no presente.

6. Acresce que não é, nem pode ser, desígnio do RGEU conformar tudo o que foi construído até à sua entrada em vigor e suas consequências naturais sob pena de uma tão injustificada quão obstinada e irrealista retroactividade da lei, nem as normas do RGEU têm por objectivo reconhecer aos proprietários de prédios vizinhos quaisquer direitos subjectivos nem conceder-lhes protecção aos seus interesses pois nesse caso estar-se-ia a titular o acaso ou até o oportunismo do facto consumado e a preterir a segurança jurídica e o princípio constitucional da confiança jurídica, estruturante do Estado de Direito.

7. Ademais, constitui entendimento pacífico do STA que quem constrói primeiro deve acautelar os eventuais danos que tenha que suportar, face à construção que pretenda efectivar, danos esses emergentes do exercício do direito de propriedade dos vizinhos a não se entender assim, a edificação de um prédio, por si só, determinaria a imediata constituição de uma servidão sobre os prédios vizinhos, a qual seria constituída por meios não previstos no artigo 1547.º do Código Civil, sendo certo que só através destes meios se pode constituir legalmente um ónus dessa natureza.

8. Por força do entendimento defendido no Acórdão fundamento, a norma do artigo 58.º do RGEU tem de ser interpretado no sentido de que o mesmo visa garantir unicamente a qualidade da construção do novo edifício ou da reconstrução de um edifício já existente impondo que os mesmos cumpram os parâmetros ali previstos, não visando a salvaguarda de qualquer desses parâmetros nos edifícios pré- existentes.

9. Defendemos que a interpretação a empreender da norma constante no artigo 58.º do RJUE deve ser efectuada, igualmente, através da primazia que deve ser atribuída ao sentido directo do texto normativo, por ser essa interpretação, a literal, a que melhor se adequa ao disposto no seu normativo.

10. A não se empreender uma interpretação literal, não seria possível defender que a norma do artigo 58.º do RGEU se destina a preservar as condições de arejamento, iluminação e exposição solar das edificações pré-existentes quando está em causa a reconstrução de um edifício, uma vez que estamos perante uma reedificação de um prédio parcial ou totalmente arruinado, procurando-se revertê-lo à situação que o mesmo tinha quando novo; de igual modo, considerando que o artigo 58.º do RGEU obriga a que se assegure o abastecimento de água potável e a evacuação inofensiva dos esgotos, tal não quererá significar que o construtor de um novo edifício se tem que preocupar com o abastecimento de água potável e com a evacuação inofensiva dos esgotos do prédio vizinho já existente.

11. A resposta a estas questões só pode ser negativa, uma vez que as preocupações do legislador, evidenciadas no preâmbulo do Decreto-Lei n. 38 382, de 07 de Agosto de 1951, ativeram-se tão só aos parâmetros de qualidade da construção ou reconstrução licenciandas (e apenas estas), olvidando por completo as construções vizinhas já existentes.

12. Perfilhando o entendimento de que o licenciamento de qualquer construção ou reconstrução teria que implicar necessariamente a situação dos prédios vizinhos quanto às exigências construtivas previstas no artigo 58.º do RGEU, teríamos como consequência que seria quase impraticável a construção de novas habitações nos aglomerados já existentes na medida em que, na maior parte dos casos, essas irão afectar inevitavelmente os prédios já implantados, quer ao nível do seu arejamento quer da sua exposição solar.

Nestes termos, e com o douto suprimento de V. Exas., dando-se provimento ao presente recurso e revogando-se a decisão recorrida, deverá uniformizar-se jurisprudência com a seguinte orientação:

As exigências construtivas constantes dos artigos 58.º e 73.º do RGEU devem ser interpretadas no sentido de que as mesmas visam, unicamente, assegurar a qualidade da construção a licenciar, sem atender às edificações pré-existentes nos terrenos vizinhos.”

A……………, deduz as suas contra-alegações, a fls 858/933, concluindo:

1) O presente recurso para uniformização de jurisprudência não deve ser admitido, porque a questão da interpretação a conferir aos artigos 58º e 73º do RGE já foi determinada pelo Pleno, deste Alto STA, que continua válida e operante, verificando-se apenas a existência de um acórdão isolado, proferido em sentido oposto pela Subsecção do Contencioso Administrativo e que não foi objecto de recurso como poderia, mas que, como é evidente, não coloca em crise aquela decisão do Pleno — cfr doutrina supra citada no corpo das alegações e cfr. Acórdão deste STA, de 25/06/2015, no proc. n.° 614/06.5BECBR, que decidiu não se vislumbrarem “novos factos, argumentos ou razões ou circunstâncias que não tenham sido anteriormente submetidos ao confronto, alterações do regime legal com repercussão na análise da questão ou evolução jurisprudencial ou doutrinária”.

2) O recurso não deve também ser admitido, porque não foi cumprido o duplo ónus previsto no art. 152°, n.° 2 do CPTA, desde logo porque não foi alegada nem provada, pelo recorrente, a identidade dos pressupostos de facto (e de direito) entre o Aresto fundamento e o Aresto recorrido, que se afigura não existir.

3) Na verdade, embora se desconheça a factualidade ou “situações da vida” discutida no Acórdão fundamento, porquanto este apenas e tão-somente deu “por integralmente reproduzida” a matéria de facto “dada como provada no acórdão «sub censura” tudo parece apontar para que a situação da vida seja totalmente díspar e diversa do caso sub judice, pois no acórdão fundamento o recorrente refere-se à “existência de um janela aberta já em fase de licenciamento, mesmo que aberta contrariamente aos comandos legais aplicáveis, nunca poderá ser considerada como de boa fé” — ao contrário do que se passa na situação dos presentes autos em que as janelas da edificação da A. existem há décadas.

4) E, note-se bem, talvez precisamente por esse especial motivo é que este STA entendeu que se justificava, nesse específico caso concreto, a introdução de desvios à interpretação perfilhada por aquela jurisprudência superior e uniformizada.

5) Em terceiro lugar, o recurso não deve ser admitido porque a orientação perfilhada no acórdão impugnado está de acordo com a jurisprudência abundante, estabilizada e até mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo (...)- art. 152.°, nº 3 do CPTA), pois, e isto apenas a título exemplificativo, além dos Acórdãos deste Supremo Tribunal datados de 07.06.94, no rec. 33 836, de 17.06.2003, proc. n° 01854/02, de 07/02/2004, no rec. 47.882 ou de 03/11/2005, no proc. 0939/03, já depois da prolação do Acórdão do Pleno da Secção do STA (de 29/05/2007, no proc. n.° 046946), este Alto Tribunal já pronunciou acerca da interpretação dos arts. 58° e 73º do RGEU sempre no mesmo sentido (com excepção do isolado acórdão fundamento) e por diversas vezes — referimo-nos aos Acórdãos de 12/06/2007, proferido no proc. 0208/07, de 28/11/2007, no proc. n.° 0663/07, e mesmo depois da prolação do Acórdão fundamento no Aresto de 01/03/2011, no proc. nº 0927/09.

6) Sem prescindir do que se vem de alegar e apenas para o caso de ... se entender admitir o presente recurso, importa então alegar o seguinte:

7) O entendimento defendido pelo Recorrente é diametralmente avesso ao sentido da jurisprudência, é contrário ao disposto no RGEU, é sobretudo antagónico aos interesses de direito público que estão subjacentes a estes normativos e, em última linha, é desconforme com a Constituição da República Portuguesa, a vários passos.

8) Para alguém que, como nós, lida com esta matéria há várias décadas, é fácil perceber que o legislador pretendeu com estas regras que as habitações sejam dotadas de condições que impeçam o aparecimento de doenças, que podem ser não só danosas para a vida humana individualmente considerada, como para toda a colectividade.

9) O raciocínio sustentado pelo Recorrente radica precisamente no entendimento rejeitado pelo sobredito Aresto do Pleno deste STA, assentando, pura e simplesmente, em argumentos que nada de inovador incorporam face ao que foi uniformemente decidido, antes repetindo razões que entreteciam a corrente jurisprudencial adversa, que foi debatida e afastada neste mesmo aresto uniformizador.

10) Quanto ao argumento literal, o Pleno deste STA já teve oportunidade de assentar que “É evidente que o argumento literal vale o que vale, porque desde que a interpretação encontre um mínimo de assento na letra o que é determinante é a orientação que resultar do conjunto dos diversos elementos interpretativos” e que o artigo 58.º se encontra inserido «num capítulo com a epígrafe «Da edificação em conjunto” que, ao contrário do que se entendeu no acórdão fundamento, revela que se teve em vista regulamentar a edificação atendendo ao enquadramento circundante, à integração da construção no conjunto edificado em que se vai inserir”.

11) Mais assentando o Pleno que “A defesa de um tal entendimento, ainda que potencialmente suportada por argumentos literais retirados de modo isolado do contexto global do RGEU, contraria frontalmente o espírito não apenas da norma em si (art. 58º), mas também de todo o diploma, bem como, numa perspectiva mais geral, toda a orientação para que propende a própria actividade administrativa de polícia ..., assim como estaria em frontal oposição com a garantia de tratamento igual dos cidadãos que é exigência que se prima sobre a própria da lei.”

12) Por outro lado, nem se diga que o tempo verbal adoptado pelo legislador no artigo 73º apontaria para que o normativo fosse totalmente alheio às janelas pré-existentes num prédio vizinho, pois este argumento é perfeitamente inane, por um lado, porque este artigo não pode ser lido isoladamente, mas sim em articulação sistemática e teleológica com as restantes normas do RGEU e, por outro lado e decisivamente, porque o art. 73º do RGEU é mesmo uma concretização do princípio geral do artigo 58° que é uma norma relacional.

13) Quanto a suposta retroactividade que se refletiria no desígnio do RGEU de conformar tudo o que foi construído até à sua entrada em vigor e suas consequências naturais, é evidente que não existe qualquer aplicação retroactiva da lei, posto que a protecção dos interesses públicos subjacentes à norma só se iniciou com a entrada em vigor daqueles normativos e é apenas isto que está em causa.

14) Depois o recorrente tenta imprimir a estas normas de direito público uma visão marcadamente civilística, trazendo à colação ideações já conhecidas de direitos subjectivos dos proprietários de prédios vizinhos, de normas do Código Civil e ainda de constituição de uma suposta servidão sobre os prédios vizinhos, e que seria constituída por meios não previstos no art. 1547.° do CC.

15) Este raciocínio é ostensivamente errado e uma vez mais demonstra a incompreensão dos interesses subjacentes ao RGEU e, concretamente, a estes normativos.

16) Em causa não está qualquer direito subjectivo dos proprietários de um determinado edifício, mas sim os interesses públicos da saúde e da higiene de todas as pessoas que ocupam os edifícios existentes (sejam proprietários, sejam inquilinos, sejam meros ocupantes, não interessa aqui a sua qualidade ou natureza civilística), bem como todas as pessoas que utilizam os edifícios cuja licença é pedida.

17) Em causa não está a protecção da propriedade, através de qualquer suposta servidão, mas antes a imposição de condicionamentos ao direito de propriedade, pois que “o art. 58º do RGEU é uma norma relacional que se sobrepõe transversalmente aos planos, destinada a proteger a higiene e saúde das pessoas que utilizem os edifícios existentes e aqueles cuja licença é pedida, independentemente de preocupações quanto a conceder igual aproveitamento da faculdade de construir maior ou menor volume nos prédios contíguos - não se destina a proteger a propriedade, mas a impor-lhe condicionamentos — cfr. Ac. do Pleno deste STA, de 29/05/2007, no âmbito do proc. nº 046946.

18) Como também já disse este Alto STA, “O artº 73º situa-se no domínio das restrições impostas pelo direito público ao direito de propriedade, com base no interesse público da salubridade e estética das edificações, a par das restrições impostas pelo direito privado, designadamente o art° 1360º do CC, com base em interesses meramente particulares, dos proprietários dos prédios vizinhos.” — cfr. Ac. STA, de 17/06/2003, no proc. 01834/02.

19) Materialmente, os interesses que estão subjacentes à norma são, naturalmente, públicos e relativos à higiene e à saúde pública e visam impedir que, por exemplo, se criem os “negros”, que se vêem em algumas casas nas paredes, a disseminação de fungos, bolores e outros agentes que são perniciosos à saúde humana (gerando nomeadamente, aquelas doenças do foro respiratório, que têm o seu expoente máximo na tuberculose) – é, por isso, que estas normas são relacionais.

20) Não interessa só ao legislador que uma casa em concreto seja salubre, interessa-lhe que todas as edificações, quando em conjunto, garantam reciprocamente essas condições de salubridade. Com efeito, algumas destas doenças respiratórias (como a tuberculose) são altamente contagiosas, não fazendo qualquer sentido, à luz da lei e dos interesses públicos de primeira linha que a mesma visa salvaguardar, que se permitam edificações, a edificar ou a já edificada, onde se verifiquem essas condições de insalubridade e estejam, assim, criadas as condições de potencial contágio entre os ocupantes de uma casa (sejam proprietários, arrendatários, ocupantes) e ao(s)...vizinho(s).

21) E, como é pacificamente aceite, o direito de propriedade não é um direito absoluto, tendo como limite imanente a função social (a respeito da função social do direito de propriedade, v.g., a título de exemplo, o Ac. do STJ, de 05/02/2015, tirado no proc. 742/10.2TBSJM.P1S1), pelo que os interesses privados ou civilísticos estão assim, limitados ou comprimidos por este interesse público de primeira grandeza (mormente o da saúde e higiene públicas de todas as pessoas que utilizam ou possam vir a utilizar quer os edifícios existentes quer a construir), valendo este naturalmente mais do que aqueles, que, inclusivamente e em bom rigor, não estão a ser, até de acordo com a ordem de valores e direitos pessoais, correctamente defendidos, posto que criam condições para que surjam doenças que afectam a saúde de quem, contra si próprio, os sustenta.

22) Esta é, assim, a resposta àqueles que sustentam, com fundamento na sacralização do direito de propriedade, forjado em tempos de ignorância (quase romana) das repercussões sociais e colectivas da existência de habitações insalubres, uma compressão pretensamente inadmissível dos direitos de quem constrói. Na realidade, é a função social dos direitos a impor-se a direitos meramente individuais — tudo terrivelmente singelo e verdadeiro.

23) Aliás, em Itália, é um acquis já há muito consolidado que estas disposições são mesmo integrativas da lei civil, ou seja, os interesses públicos são assim interesses privados, sendo esta uma doutrina contra a qual ninguém se rebelou e que é uniformemente aceite pelos Tribunais Superiores Italianos — ... Doutrina citada no corpo das contra-alegações..

24) Mas, na verdade, neste caso nem existe verdadeira compressão de direitos individuais, dado que o que a lei pretende e visa é proteger os interesses individuais, inclusivamente os do requerente do licenciamento — são normas da mesma natureza da que que impõem aos utilizadores de veículos automóveis o uso de cinto de segurança.

25) A evolução da própria sociedade humana e do conhecimento vai justamente no sentido perfilhado pelo acórdão recorrido, e não no vetusto sentido civilístico e preocupado somente com a propriedade que o Município sustenta

26) Não se trata de constituir qualquer tipo de servidão, trata-se apenas de normas de direito público que estabelecem, no universo de interesses que lhe cabem salvaguardar, uma determinada obrigação de recuo.

27) Quanto ao oportunismo ou ao acaso também se não percebe o alcance útil de tais dizeres, não se vendo, em princípio (ou seja, salvo situações de abuso, que no caso se não verificam), qualquer dificuldade em aceitar que quem constrói primeiro deve prevalecer — aliás; a regra prior in tempo petior in iure é, de todos nós sobejamente conhecida até no direito civil, sem que nunca se tenha visto qualquer diatribe argumentativa contra a mesma.

28) Quanto à confiança e à segurança, trata-se de uma argumentação que gera perplexidade, pois, até no caso vertente, houve demolição total da obra existente e uma subida e prolongamento acentuado do muro fronteiro às janelas, que piora significativamente as condições de existência na habitação da Recorrente, não se percebendo ainda, de que confiança juridicamente tutelada pode beneficiar alguém que viola a lei - no caso, omitiu-se mesmo a existência dos vãos de janelas em causas nos elementos juntos ao procedimento administrativo.

29) Depois e relativamente ao argumento de que o artigo 58.º do RGEU não se aplicaria aos casos de reconstrução de um edifício, em que se procura reverte-lo à situação que o mesmo tinha quando novo, temos, em primeiro lugar, que esse nem sequer é o caso dos autos, pois que não se reconstruiu a pequenina casa que existia no prédio da Contra- Interessada, mas na verdade legalizou-se (depois das obras ilegais) uma empena titânica, com mais de 5 m de altura e que foi acrescentada até ao fundo do prédio (ocupando o anterior logradouro térreo), distando da parede da casa da A, apenas a uma distância de 1,24m (e até 1,18m).

30) Em segundo lugar e decisivamente como é uniformemente aceite pela jurisprudência e doutrina, e segundo o exemplo, se o prédio está em ruína total e se se trata de reconstruir um novo no seu lugar, então, não se tratará de uma reconstrução mas sim de um puro licenciamento de uma nova edificação, devendo este, como é sabido, cumprir as novas regras entradas em vigor em data posterior à edificação originária — nomeadamente as regras que impõem afastamentos, que o legislador consagrou para tutela dos próprios interesses do requerente do licenciamento e da comunidade, como vimos supra. Porém, se fosse realmente uma pura reconstrução em si mesma, beneficiaria, como é sabido, do princípio da protecção do existente, previsto no artigo 60º do RJUE — cfr. Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira. Neves, Dulce Lopes, Fernanda Maçãs, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado, Almedina, pág. 397.

31) E nem se diga, para confundir, que o art. 58º imporia que o novo construtor se preocupasse com o abastecimento de água potável e com a evacuação inofensiva dos esgotos do prévio vizinho já existente, pois a jurisprudência superiormente fixada e consolidada, é sobejamente clara ao afirmar que o art 58.° é uma norma de natureza relacional na sua 1ª parte, mas não na parte final.

32) Atento o exposto e sobretudo de uma perspectiva teleológica (que implode assim a interpretação puramente literal reiterada ao longo das alegações), o recurso deve improceder e ser fixada jurisprudência no sentido daquele Acórdão do Pleno.

33) Aqui chegados, é necessário empreender, aliás como sempre, uma interpretação teleológica e sistemática das normas que a compreendam não só nos valores e interesses que visam salvaguardar (sobre isto já nos pronunciámos), mas também no plano de interesses que as mesmas visam acautelar, sendo que não existe norma, isso sim, que proíba a aplicação destas normas relacionando-as com as construções já existentes.

34) Estas normas que estabelecem no RGEU afastamentos, têm todas elas, uma visão comum e essa visão é criar uma espécie de caixa de protecção ambiental ou de segurança de salubridade (nos prismas luz, ar e sol) das edificações erigidas ou a erigir. E, precisamente, tal assim para que quem usa as habitações (todos nós) tenhamos níveis de existência não só agradáveis, como, sobretudo, tenhamos uma existência que diminua os riscos de contrair e, depois, propagar, doenças contagiosas, por falta de luz, arejamento e insolação suficientes — cfr. o nosso RGEU Afastamentos entre edificações – Jurisprudência e anotações, pp. 36 e 37.

35) Depois, em primeiro, se virmos os interesses subjacentes às normas e os perigos que as mesmas visam diminuir ou afastar, não tem sentido que as mesmas sejam vistas apenas como uma imposição relativa às edificações licenciandas.

36) Com efeito, e apelando ao elemento sistemático, temos que este Capítulo II determina o alcance regulador da normação: «Da edificação em conjunto”, ou seja, o que o legislador está a tratar neste capítulo não é de exigências relativas a uma edificação isolada, mas de exigências que estatui relativamente a edificações vizinhas…umas em relação às outras..., sendo que naturalmente, o legislador não podia ignorar que Portugal já estava em grande parte construído…!

37) Em segundo lugar, não tem qualquer sentido — qualquer moral, qualquer boa fé, qualquer razão técnica, qualquer justificação do ponto de vista dos interesses já evidenciados, qualquer justiça —, interpretar as normas em causa como preocupando-se apenas com os ocupantes das habitações licenciandas, deixando desprotegidos os interesses das pessoas que habitam em edificações vizinhas anteriores no tempo.

38) É quase inacreditável que se possa pensar o oposto!

39) A interpretação que o recurso leva a efeito não é só desprovida de razoabilidade como é também inconstitucional, entre o mais, por atentar contra as sobreditas garantias (direito fundamental dos cidadãos a usufruir de um ambiente de vida salubre, sadio e ecologicamente equilibrado - art. 66.° da CRP) e por criar uma flagrante e injustificada discriminação no tratamento de situações que merecem a mesma tutela, de modo que a interpretação conforme à Constituição, garantias dos particulares e igualdade de tratamento imporiam também a solução que vimos de referir — cfr. art. 13º da CRP.

40) É, pois, inequívoco que a argumentação do recorrente provoca a violação dos normativos vertidos aos arts. 58º e 73.° do RGEU, bem como do art. 66º da CRP (direito fundamental a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado) e do princípio estruturante da igualdade (art. 13º da CRP), e é inequívoca a interpretação que se deve seguir das normas em causa, sendo que, efectivamente, deve presumir-se que o legislador sabe a realidade, sabe o que faz e que consagrou as melhores soluções, não devendo interpretar-se, isso sim, restritivamente, as normas de que cuidamos (cfr. art. 9.º do CC)

Termos em que, não deve o recurso ser admitido ou, quando ... assim se não entenda, esperançados que este Alto Tribunal não vai optar por uma argumentação que estreita e medianiza a edificação em conjunto no nosso País ao contrário do que sucede em direito comparado, não deve o mesmo proceder, apenas assim se fazendo JUSTIÇA

7. Notificado o EMMP, junto deste STA, não foi emitido parecer.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

O acórdão recorrido manteve os factos provados em 1ª Instância, nos seguintes termos:

1. A Autora é dona do prédio sito no Largo…, correspondente aos nºs de polícia..., composto de casa de habitação e farmácia, rés-do-chão e primeiro andar com 4 portas e 5 janelas, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de T... sob o artigo 115.º

2. B……………, contrainteressada nos presentes autos, é proprietária do prédio correspondente aos n.ºs de polícia..., em T..., C..., outrora composto de casa de habitação com uma porta e duas janelas, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de T... sob o artigo 114, que confronta com aquele outro a Poente.

3 (“4” na decisão recorrida). Em tempos os prédios da autora e da contrainteressada pertenceram ao mesmo dono.

5. Na zona limítrofe entre ambos existia e existe uma passagem comum com porta comum para a rua.

6.O “leito” da passagem comum acima referida, pertence às Autora e CI, tem apenas 1,24m de largura numa parte e 1,18 noutra e é delimitado do lado poente por um alçado lateral do prédio da Autora.

7. Neste alçado existem e sempre existiram duas janelas e uma porta.

8.O prédio da CI era constituído, outrora, por um edifício destinado a estabelecimento de talho e habitação. Doc. 2 da PI.

9. Mas este foi demolido em parte e acabou por ruir completamente, dando lugar à construção, de raiz, de cujo licenciamento aqui se trata.

10 (“9” na decisão recorrida)

Uma empena desta antiga construção delimitava a sobredita passagem do lado oposto ao da Autora, até uma hoje indeterminada distância relativamente à via pública, de modo que a porta e uma janela do prédio da Autora, acima referidos, tinham em frente, a escassos 1,24 m, esta empena.

11 (“9” na decisão recorrida). Contudo, esta empena terminava aquém da janela mais posterior, relativamente à via pública, daquelas duas, de modo que pelo menos esta beneficiava de luz solar direta e tinha vistas para o logradouro atrás do prédio da CI.

12 (“9” na decisão recorrida). Pelo despacho impugnado, datado de 9/11/2004, exarado sobre a informação técnica nº 0997 de 18/10/2004 cuja cópia a fs. 70 e ss. do PA aqui se dá como reproduzida, o Vereador Engº ……………., com competência delegada pelo Presidente da Câmara Municipal, deferiu o pedido de licenciamento, para o prédio da CI, da construção de um edifício destinado a estabelecimento comercial de talho de carnes.

13 (“11” na decisão recorrida). O alçado lateral deste edifício cuja obra de construção foi assim licenciada, do lado confinante com o prédio da Autora é implantado sobre o traçado da empena anteriormente aí existente conforme supra, tendo desta feita a altura 3,50m; e excede-a no comprimento, prolongando-se para lá da sobredita janela mais interior, até ao limite externo dos logradouros atrás de ambos os prédios, com o que perfaz mais de 6 metros de comprimento ou profundidade relativamente à via pública.

14 (“12” na decisão recorrida). Por causa da existência deste alçado o ou os compartimentos do prédio da Autora servido ou servidos pelas duas janelas supra referidas, embora disponham de iluminação natural e arejamento, estes não são assegurados de forma prolongada pela ação direta dos raios solares.

15 (“13” na decisão recorrida). A Janela do prédio da Autora, menos recuada relativamente à via pública, mede 1,18m de altura por 0,98 de largura e situa-se a uma altura de 1,31 m relativamente à cota da passagem comum.

16 (“14” na decisão recorrida). A janela mais recuada relativamente à via pública mede 1,03 de altura por 0,98 de largura e fica a 1,38m de altura relativamente à cota da passagem comum.

17 (“15” na decisão recorrida). Em 27/11/2006 foi emitido o alvará nº 716/06, titulando o sobredito licenciamento.”

*

O DIREITO

Vem o aqui recorrente Município de Coimbra interpor recurso para uniformização da jurisprudência com vista a obter decisão que fixe a orientação jurisprudencial relativamente à interpretação a dar aos artigos 58º e 73.º do RGEU por existir contradição entre o acórdão recorrido (proferido em 15 de Julho de 2015) e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de Setembro de 2009 (proferido no Processo n. 0707/09 - 1ª Subsecção do CA), ambos transitados em julgado.

Para tanto refere que ambos os acórdãos perfilham soluções opostas quanto à questão fundamental de direito, que é a de saber se as exigências construtivas constantes dos artigos 58.º e 73.º do RGEU devem ser interpretadas no sentido de que as mesmas visam, unicamente, assegurar a qualidade da construção a licenciar ou se, também, se destinam a preservar a qualidade das edificações pré- existentes nos terrenos vizinhos.

O recurso de uniformização de jurisprudência tem de obedecer aos requisitos cumulativos de admissão previstos no art. 152º, nº 1, al. b) e 3 do CPTA como sejam:

i) que exista contradição entre acórdãos dos TCA’s ou entre acórdão daqueles Tribunais e acórdão anteriormente proferido pelo STA;
ii) que ocorra contradição sobre a mesma questão fundamental de direito;
iii) que se verifique o trânsito em julgado de ambos os acórdãos, recorrido e fundamento;
iv) que não haja conformidade entre a orientação perfilhada no acórdão impugnado e jurisprudência mais recentemente consolidada no STA.
No âmbito da jurisprudência deste STA mantém-se válido o entendimento fixado no domínio da LPTA, extraindo-se do Ac. deste STA de 07.05.2008, proc. 0901/07 que:” I) para cada questão relativamente à qual se pretenda ocorrer oposição deve o recorrente eleger um e só um acórdão fundamento; (II) só é figurável a oposição em relação a decisões expressas e não a julgamentos implícitos, (III) é pressuposto da oposição de julgados que as soluções jurídicas perfilhadas em ambos os acórdãos - recorrido e fundamento - respeitem à mesma questão fundamental de direito, devendo igualmente pressupor a mesma situação fáctica; (IV) só releva a oposição entre decisões e não entre a decisão de um e os fundamentos ou argumentos de outro.”

1. Atenhamo-nos então ao supra referidos requisitos legais de admissão deste recurso.

Alega a recorrida que o presente recurso para uniformização de jurisprudência não deve ser admitido pelos seguintes fundamentos:

_porque não foi alegada nem provada, pelo recorrente, a identidade dos pressupostos de facto (e de direito) sendo que o acórdão fundamento apenas deu “por integralmente reproduzida” a matéria de facto “dada como provada no acórdão «sub censura” parecendo resultar do mesmo que aí estaria em causa a “existência de uma janela aberta já em fase de licenciamento, mesmo que aberta contrariamente aos comandos legais aplicáveis, nunca poderá ser considerada como de boa fé” - ao contrário do que se passa na situação dos presentes autos em que as janelas da edificação da A. existem há décadas.

Conclui que, talvez precisamente por esse especial motivo é que este STA entendeu que se justificava, nesse específico caso concreto, a introdução de desvios à interpretação perfilhada por aquela jurisprudência superior e uniformizada.

_ Alega também que o recurso não deve ser admitido porque a orientação perfilhada no acórdão impugnado de interpretação dos artigos 58º e 73º do RGE está de acordo com a jurisprudência abundante, estabilizada e até mais recentemente consolidada no Supremo Tribunal Administrativo (cfr- art. 152.°, nº 3 do CPTA), como resulta dos Acórdãos deste Supremo Tribunal datados de 07.06.94, no rec. 33 836, de 17.06.2003, proc. n° 01854/02, de 07/02/2004, no rec. 47.882 ou de 03/11/2005, no proc. 0939/03, e Acórdãos de 12/06/2007, proferido no proc. 0208/07, de 28/11/2007, no proc. n.° 0663/07, e mesmo depois da prolação do Acórdão fundamento no Aresto de 01/03/2011, no proc. nº 0927/09, e já depois da prolação do Acórdão do Pleno da Secção do STA (de 29/05/2007, no proc. n.° 046946), com exceção do isolado acórdão fundamento.

1.1. Cumpre, começar por analisar se ocorre identidade da questão fundamental de direito resolvida, em sentidos opostos, nos dois acórdãos em confronto.

Para tal há que interpretar o que seja a questão fundamental de direito” sobre a qual deverá existir contradição.

Como se extrai de recente de recente acórdão deste STA – Acórdão do Pleno de 16.12.2015, Proc. n.º 1011/15 “

“XI. Este requisito implica que o conflito jurisprudencial expresso na contradição das soluções firmadas nos arestos terá de (i) corresponder a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo; (ii) ter na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo, sejam análogas ou equiparáveis; (iii) a alegada divergência assumir um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, haja integrado a verdadeira ratio essendi. (…)

XIII. Para além disso, o requisito em análise exige que subjacente a ambas as decisões estejamos perante realidades factuais relativamente às quais possamos considerar ocorrer uma identidade fundamental da matéria de facto ou das situações de facto, já que o conflito pressupõe uma verdadeira identidade substancial quanto àquilo que é o núcleo essencial da situação litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto e sem o qual não poderemos afirmar que a contradição derivou tão-só duma divergente interpretação jurídica daquele mesmo quadro normativo [cfr. Acs. do STA/Pleno de 15.10.1999 - Proc. n.º 042436, de 22.10.2009 - Proc. n.º 0557/08, de 16.11.2011 - Proc. n.º 0415/11, de 15.10.2014 – Proc. n.º 01150/12 (…)].

XIV. Do acabado de afirmar não deriva, assim, que para o preenchimento do segmento deste requisito se exija que as situações de facto sejam absolutamente iguais dado ser bastante a constatação de que o núcleo essencial dos comportamentos ou condutas concretas apresente a mesma identidade, que o mesmo, à luz da norma aplicável, se revele ou se apresente como substancialmente idêntico”.

Vejamos, agora, se efetivamente as decisões estão expressamente em oposição e se as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico são em ambas as decisões idênticos.

Nos autos em que foi proferido o acórdão recorrido está em causa a legalidade do despacho do Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Coimbra, de 09.11.2004, que deferiu o pedido de licenciamento de obras de reconstrução e ampliação do prédio urbano confinante com o prédio urbano da Autora, obras essas integradas pelo levantamento de uma parede com 3,50 m de altura e mais de seis metros de comprimento no limite entre o primeiro e uma passagem comum aos dois prédios com 1,24m de largura.

Para tanto invocou-se que “a distância média entre os dois prédios é, até ao perfil metálico existente no alçado lateral direito do edifício da contra-interessada, 1,24 m. Para lá do perfil metálico essa distância é de 1,18 m”, não tendo, pois, havido qualquer aumento de 12 cm (1,36 m) – cfr. relatório pericial constante a fls. 315 e ss.

E, como se diz no acórdão recorrido “O que a Recorrente questiona é a interpretação que o tribunal recorrido fez do disposto nos artigos 58.º e 73.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) e a conclusão a que chegou de que o ato impugnado (despacho que deferiu o pedido de licenciamento de obras de reconstrução e ampliação no prédio urbano da contrainteressada) não violou tais normativos.

4.2. A questão objeto do presente recurso é, assim, a de saber se o ato de licenciamento que autoriza uma construção em termos que privam uma outra, já existente no terreno contíguo, da exposição solar e iluminação de que anteriormente beneficiava, infringe o disposto nos artigos 58.º e 73.º do RGEU.

Sendo inequívoco que estas normas se destinam a proteger a salubridade dos edifícios, garantindo níveis mínimos de arejamento, iluminação natural e exposição solar, a questão que permanece em aberto é a de saber se as mesmas devem ser interpretadas como incidindo apenas sobre os próprios edifícios objeto de construção ou reconstrução ou se também se destinam a preservar as mesmas condições nos edifícios pré-existentes nos terrenos vizinhos.

A questão decidida no acórdão recorrido teve, assim, a ver com a interpretação dos normativos contidos no artigo 73.º do RGEU e art. 58.º do RGEU e tendo-se nomeadamente concluído que o referido “artigo 73.º se situa no domínio das restrições impostas pelo direito público ao direito de propriedade dos proprietários de prédios vizinhos, com base no interesse público – salubridade e estética das edificações –, impondo o respeito pela vida e haveres da população e pelas condições estéticas do ambiente local, de modo a tornar a vida das populações mais sadia e agradável. Trata-se, pois, do interesse público na existência de um ambiente urbano, sadio e equilibrado, que se reconduz em boa medida à salubridade das habitações, designadamente no que respeita à iluminação, ao arejamento, à exposição solar e aos espaços livres entre as edificações – cfr. Acórdãos do STA de 7/6/1994 no processo 33836; de 17/06/2003, tirado no processo 01854/02; de 12.06.2007, no proc. nº 0208/07 e do Pleno da Secção de 29/05/2007, no recurso n.º 046946.

Já no acórdão fundamento a propósito do indeferimento de um pedido de licenciamento de uma construção a implantar a menos de metro e meio de uma janela existente num prédio contíguo, o que ofenderia o disposto nos arts. 1362º do Código Civil e 73º do RGEU e impediria o licenciamento nos termos do art. 24º, n.º 1, al. a), do DL n.º 555/99, de 16/12, entendeu-se que o referido no artigo 73º se refere literalmente ao edifício a construir e não ao edifício já existente.

Como se extrai do mesmo:

“Resta ver se a solução do despacho pode autónoma e eficazmente estribar-se no outro motivo ali indicado, ou seja, na suposta violação, pelo projecto, do art. 73º do RGEU – como o acórdão recorrido disse também ocorrer. Esta norma dispõe o seguinte:

«As janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do compartimento, com o mínimo de 3 metros. Além disso não deverá haver a um e outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 metros, devendo garantir-se, em toda esta largura, o afastamento mínimo de 3 metros acima fixado.»

Este art. 73º tem suscitado a dúvida de saber se «as janelas» a que se refere são só as previstas no edifício a construir ou também as já existentes num prédio vizinho. Ora, essa dúvida tem de resolver-se no primeiro sentido, afinal o único que minimamente se harmoniza com a letra do preceito (art. 9º, n.º 2, do Código Civil). Desde logo, e porque a norma trata da maneira como as janelas «deverão» ser dispostas, tempo verbal que se refere ao processo e ao resultado ulteriores do traçado delas numa fachada, logo se vê que o preceito alude a janelas futuras e, entretanto, apenas projectadas – e não a janelas preexistentes noutro edifício, cuja disposição se fez no passado e subsiste no presente. Depois, há que notar também que o artigo se ocupa da disposição de janelas, e não da disposição do «muro ou fachada» que lhes sejam fronteiros; e, negá-lo, é ler o preceito ao invés.

Portanto, as «janelas» mencionadas no art. 73º são as previstas no projecto a licenciar. Consequentemente, o acto impugnado errou ao supor que a janela do prédio vizinho se incluía na hipótese do art. 73º do RGEU e ao fundar o indeferimento na violação desse preceito. E o acórdão recorrido merece censura na medida em que não detectou o aludido erro.”

Embora o acórdão fundamento dê por integralmente reproduzida a matéria de facto fixada em 1ª instância no TAF de Sintra nos termos do então 713º nº 6 do CPC, extrai-se do mesmo o seguinte quadro factual:

“A acção dos autos acometeu o acto de indeferimento do pedido de licenciamento de uma construção, acto esse motivado por a projectada implantação da obra a localizar a menos de metro e meio de uma janela existente num prédio contíguo...”

Pelo que, carece de qualquer razão a recorrida quando alude a que no acórdão fundamento o recorrente refere-se à “existência de um janela aberta já em fase de licenciamento, mesmo que aberta contrariamente aos comandos legais aplicáveis, nunca poderá ser considerada como de boa fé".

O acórdão fundamento alude, sim, a janela pré-existente em prédio confinante, em parte alguma se referindo a quaisquer questões de boa ou má-fé.

Assim, independentemente da concreta situação específica de cada licenciamento existe oposição de entendimento entre os dois acórdãos, acórdão recorrido e acórdão fundamento quanto à interpretação a dar ao art. 73º do RGEU.

E isto, independentemente de na decisão recorrida se entender que o art. 73º do RGEU é uma concretização do princípio geral do artigo 58° que é uma norma relacional.

Na verdade, o acórdão aqui recorrido entendeu que “os artigos 58.º e 73.º do RGEU são normas “relacionais”, que impõem restrições ao direito de propriedade, fundadas em interesse público, designadamente de salubridade e qualidade ambiental, destinadas a proteger, quer o edifício objeto de licença de construção, quer os edifícios com este confinantes” enquanto o acórdão fundamento entende que “as «janelas» mencionadas no art. 73º são as previstas no projecto a licenciar.”

É que, a decisão recorrida considerou que o referido art. 73º visava precisamente evitar qualquer obstáculo à iluminação, arejamento e insolação, dado se tratar de uma norma relacional, daí que a janela a que o mesmo se refere não seja a do prédio a licenciar, devendo antes ser assegurada uma distância mínima entre construções confinantes, aplicável tanto às novas construções como às já existentes, e por isso anulou o referido ato de licenciamento por ilegal.

Mas, o acórdão fundamento não teve por base da sua interpretação qualquer referência ao art. 58º do RGE pelo que não nos parece que este preceito possa ser incluído no âmbito das questões de direito em litígio a não ser como argumentação a considerar na posição defendida no acórdão recorrido.

Há, pois, entendimentos opostos quanto à questão fundamental de direito entre os acórdãos recorrido e fundamento na parte que diz respeito à interpretação do art. 73º do RGEU.

A questão em causa nos presentes autos é, assim, a de saber se o artigo 73.º do RGEU obriga a que se guarde uma distância mínima de 3 metros entre construções com janelas que sirvam compartimentos de habitação, mesmo que as janelas não sejam as do prédio a licenciar, mas as existentes em prédios confinantes.

1.2 A segunda questão que se coloca é a de saber se a interpretação a conferir ao referido artigo 73º do RGEU já se encontra consolidada face ao acórdão do Pleno do STA e jurisprudência abundante e estabilizada no mesmo sentido.

A propósito do que se deve entender por jurisprudência consolidada e, por total aderência ao mesmo, extrai-se do acórdão deste STA 134/015 de 14/05/015:

“...Já disse, este Supremo Tribunal, que «a diferença entre haver uma jurisprudência “tout court” e uma “jurisprudência consolidada” há-de necessariamente advir de um “plus” desta última, que cause ou revele uma estabilidade de julgamento; e esse acréscimo detectar-se-á por um critério quantitativo, significador de uma constância decisória - seja esse critério o do número dos Juízes subscritores da solução, seja o do número das decisões do STA que a acolheram. Assim, a consolidação jurisprudencial transparecerá, ou do facto de a pronúncia respectiva constar de um acórdão do Pleno assumido pela generalidade dos Conselheiros em exercício na Secção [consoante prevê o artigo 17º, nº2, do actual ETAF], ou do facto de existir uma sequência ininterrupta de várias decisões no mesmo sentido e obtidas por unanimidade ou por maiorias inquebráveis, exigindo-se um maior número delas se os acórdãos provierem das Subsecções e um seu menor número se forem do Pleno [na formação de nove Juízes, referida no artigo 25º, nº1, do anterior ETAF]» - ver AC STA/Pleno de 18.09.2008, Rº0212/08.

E em sentido semelhante se tem pronunciado, também, reputada doutrina: «Se o acórdão impugnado seguir o entendimento expresso pelo Pleno no âmbito de um julgamento ampliado de revista, ou em anterior acórdão uniformizador, não tem, na verdade, justificação submeter a questão de novo à apreciação do Pleno». Mas, «Face à literalidade do preceito, a possibilidade de não admissão do recurso também existe quando o acórdão impugnado se conforme com a jurisprudência pacífica e uniforme do STA, mesmo quando tirada pelas secções ou, pelo menos, com a jurisprudência firme que se tenha consolidado mais recentemente» - Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, Almedina, 3ª edição revista, 2010, in comentário ao artigo 152º, a folha 1010.

Nesta linha, este Supremo Tribunal já considerou não constituir «jurisprudência consolidada» a existência de um único acórdão do Pleno, assinado por 8 Juízes, e, constituí-la, um acórdão do Pleno, «tirado por unanimidade», um acórdão do Pleno «tirado por maioria», mas sem que entretanto tenha havido alterações na composição da Secção, e um acórdão emitido em «julgamento alargado» - ver AC STA/Pleno de 18.09.2008, Rº0212/08; AC STA/Pleno 14.01.2010, Rº0610/09; AC STA/Pleno 15.11.2010, Rº0542/12; AC STA/Pleno 18.04.2013, Rº098/13; AC STA/Pleno de 30.10.2013, Rº01183/13; AC STA/Pleno 27.03.2014, Rº062/14; e AC STA/Pleno de 15.10.2014, Rº0240/14.

Não faz sentido, na verdade, admitir um recurso para uniformizar jurisprudência a respeito da qual não há, actualmente, discrepância que o justifique, por já se encontrar consolidada no sentido adoptado pelo acórdão impugnado.”

Como resulta dos autos e nomeadamente da extensa análise da jurisprudência feita na decisão recorrida a questão tem merecido diferentes entendimentos na jurisprudência e nomeadamente a jurisprudência deste Supremo sobre esta matéria não tem sido uniforme.

Desde logo os Acórdãos de 20/10/99 (rec. 45026), de 24/02/2003 (rec. 46996), de 17/02/2004 (rec. 47882) vão no sentido do acórdão fundamento (rec 707/09) de 24/09/2009.

No sentido do acórdão recorrido veja-se o Acórdão do Pleno de 29/05/2007 (rec. 46946) e os Acórdãos da Secção de 16/07/2007 (rec. 208/07) e de 28/11/2007 (rec. 663/07), entre outros.

Acresce que o acórdão do Pleno supra referido mereceu quatro votos de vencido contra cinco votos favoráveis, sendo que um dos Conselheiros que votou o acórdão do Pleno veio a mudar o seu entendimento ao, posteriormente, votar o acórdão fundamento.

Não estamos, pois, perante jurisprudência consolidada.

1.3. Vejamos então qual a interpretação a dar aos referidos preceitos.

Alega a recorrente que o acórdão recorrido erra na interpretação que faz das normas aplicadas, imputando-lhes uma dimensão relacional quando se impõe uma interpretação literal das mesmas conforme acórdão fundamento.

O que está aqui em causa é saber se o art. 73º do RGEU é de aplicação exclusiva aos prédios novos objeto de licenciamento ou se a exigência do referido afastamento é também aplicável aos prédios pré-existentes já que, como vimos, não está aqui em causa a decisão recorrida quanto à interpretação que fez do art. 58º do RGEU.

Vejamos então as posições contrapostas.

Por um lado, na decisão recorrida entendeu-se ser necessário empreender uma interpretação teleológica e sistemática das normas, que as compreenda não só nos valores e interesses que visam salvaguardar, mas também no plano de interesses que as mesmas visam acautelar concluindo-se da mesma que o referido preceito deve ser entendido como contendo uma dimensão relacional, pelo que as exigências de distanciamento a que o mesmo alude tanto se aplicam às janelas no prédio a licenciar como às já existentes nos prédios confinantes.

Por outro lado, no acórdão fundamento entendeu-se que, e como supra citamos, o artigo 73º do RGEU, se refere apenas às janelas do edifício do prédio a licenciar de acordo com as regras de interpretação do preceito e respetivo preâmbulo.

Ora, a questão não obstante tão grande divergência na jurisprudência, resume-se a uma questão de interpretação da lei.

Comecemos por chamar à colação as regras a ter em consideração na interpretação das normas a que alude o Código Civil.

Resulta do art. 9º nº1 do CC que a interpretação a fazer dos preceitos legais há-de ser encontrada na sua expressão linguística, na razão de ser da mesma, nos elementos que a antecederam nomeadamente os trabalhos preparatórios ou discussão sobre a matéria para além da inserção sistemática no espírito lógico/axiológico que resulta do contexto global da mesma.

Mas, sempre sem esquecer o que diz o nº2 do referido preceito de que não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, terminando o nº3 que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Ou seja, a interpretação não deve cingir-se à sua letra, mas reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Na interpretação da lei há, assim, que atender:

- Ao elemento literal [sentido dos termos e sua correlação];

- Lógico [a lei que permite o mais, permite o menos; a que proíbe o menos proíbe o mais; a que permite o fim permite os meios que necessariamente a ele conduzem; a que proíbe os meios, proíbe o fim a que eles necessariamente conduzem];

- Sistemático [as leis interpretam-se umas às outras];

- Histórico [trabalhos preparatórios].

Por outro lado também não podemos confundir o que resulta da lei com o que entendemos que deveria resultar.

Então vejamos.

O acórdão fundamento ateve-se a uma interpretação literal do preceito e respetivo preâmbulo.

Por sua vez, o acórdão recorrido começa por referir “Sendo inequívoco que estas normas se destinam a proteger a salubridade dos edifícios, garantindo níveis mínimos de arejamento, iluminação natural e exposição solar, a questão que permanece em aberto é a de saber se as mesmas devem ser interpretadas como incidindo apenas sobre os próprios edifícios objeto de construção ou reconstrução ou se também se destinam a preservar as mesmas condições nos edifícios pré-existentes nos terrenos vizinhos. (...)

Contudo, a questão em apreço, sobre a qual já se debruçaram inúmeras vezes os tribunais administrativos e também os tribunais judiciais, não pode ser devidamente encarada sem antes se analisarem as referidas divergências jurisprudenciais.(...)

Mais recentemente, esta temática foi abordada no Acórdão deste TCAN, de 16.01.2015, P. 00614/06.5BECBR, que conclui, subscrevendo a jurisprudência citada: “A execução das construções com observância daqueles normativos [artigos 58.º, 59.º e 62.º do RGEU] garante aos utilizadores um padrão mínimo de qualidade ambiental e urbanística e aplica-se, após 1951, aos pedidos de licenciamento de toda e qualquer edificação, que passou a ter de observar o afastamento em relação à construção existente na proximidade antes do pedido de licença” (Deste acórdão foi interposto recurso de revista para o STA que não foi admitido por Acórdão STA, de 25.06.2015, P. 0640/15).

4.4. Não vislumbramos razão suficiente para nos afastarmos deste entendimento, hoje maioritário, segundo o qual os artigos 58.º e 73.º do RGEU são normas “relacionais”, que impõem restrições ao direito de propriedade, fundadas em interesse público, designadamente de salubridade e qualidade ambiental, destinadas a proteger, quer o edifício objeto de licença de construção, quer os edifícios com este confinantes. Pelo contrário, afigura-se que esta interpretação das referidas normas do RGEU é a mais correta, pelas razões que desenvolvidamente constam dos arestos citados e que nos prescindimos de repetir.

Salientamos apenas que se afiguram improcedentes os dois principais obstáculos avançados contra esta solução: por um lado, porque são diferenciados e harmonizáveis os campos de aplicação, respetivamente, das normas do RGEU e das normas do Código Civil, pelas razões citadas; por outro lado, não consideramos que esta interpretação das normas do RGEU seja equivalente a “constituir uma servidão por meios não previstos no Código Civil” a favor do proprietário de prédio vizinho do prédio objeto de licenciamento, pois o que está em causa não são os direitos subjetivos privados de um ou de outro proprietário, mas antes o interesse público na salubridade e qualidade ambiental das edificações. Ora esse interesse manifesta-se de igual forma quer relativamente ao prédio objeto de licenciamento, quer relativamente aos prédios confinantes com os quais aquela construção interfira.

No caso em apreço, ficou provado que:

- Entre os prédios da autora e da contrainteressada existe uma passagem com apenas 1,24m de largura numa parte e 1,18m noutra parte,

- Uma empena da antiga construção da contrainteressada delimitava a passagem existente entre os prédios da autora e da contrainteressada, de modo que a porta e uma janela do prédio da Autora tinham em frente, a escassos 1,24 m, esta empena.

- Contudo, esta empena terminava aquém da janela mais posterior, relativamente à via pública, daquelas duas, de modo que pelo menos esta beneficiava de luz solar direta e tinha vistas para o logradouro a tardoz do prédio da contrainteressada.

- O alçado lateral deste edifício cuja obra de construção foi licenciada pelo despacho impugnado, do lado confinante com o prédio da Autora é implantado sobre o traçado da empena anteriormente aí existente, tendo desta feita a altura 3,50m; e excede-a no comprimento, prolongando-se para lá da sobredita janela mais interior, até ao limite externo dos logradouros a tardoz de ambos os prédios, com o que perfaz mais de 6 metros de comprimento ou profundidade relativamente à via pública.

- Por causa da existência deste novo alçado o ou os compartimentos do prédio da Autora servido ou servidos pelas duas janelas supra referidas, embora disponham de iluminação natural e arejamento, estes não são assegurados de forma prolongada pela ação direta dos raios solares.

Ou seja, ficou provado que entre os prédios da autora e da contrainteressada existe uma passagem com apenas 1,24m de largura numa parte e 1,18m noutra parte, que já era (e continua a ser) delimitada pelos alçados laterais dos respetivos prédios; e que o despacho impugnado autorizou a construção de uma nova empena do prédio da contrainteressada no limite dessa passagem, a qual, por ter dimensões superiores à da parede anteriormente aí existente levou a que uma ou duas janelas do edifício da autora deixassem de ter assegurado, de forma prolongada, a ação direta dos raios solares.

Assim, embora o afastamento entre estes dois prédios nunca tenha cumprido as distâncias mínimas previstas no artigo 73.º do RGEU (possivelmente por se tratar de prédios anteriores a 1951), o que não se pode admitir é que o ato de licenciamento venha agravar essas condições, já de si deficientes, sacrificando a salubridade do edifício da Autora/Recorrente em favor do edifício da contrainteressada através da construção ex novo de uma parede com dimensões superiores à que aí existia previamente. Pois tal ato de licenciamento desconsiderou totalmente a necessidade de assegurar ao prédio da autora uma “exposição prolongada a ação direta dos raios solares”, nos termos do artigo 58.º do RGEU que, no caso, significava manter o status quo ante, uma vez que a situação existente já não atingia os patamares mínimos vigentes desde a aprovação do RGEU.

Da mesma forma que o ato licenciador não podia autorizar a construção ou reconstrução do edifício licenciado, caso este não assegurasse uma “exposição prolongada à ação direta dos raios solares”, também o mesmo ato licenciador não pode autorizar uma construção ou reconstrução desse edifício, quando esta cause em edifício vizinho idêntica perda de “exposição prolongada à ação direta dos raios solares”.

Note-se que o que está aqui em causa não é um qualquer direito real da Autora/Recorrente, mas sim a vinculação da administração autárquica a satisfazer, na medida do possível, os interesses públicos de salubridade e qualidade ambiental, subjacentes às exigências construtivas constantes, designadamente, dos artigos 58.º e 73.º do RGEU, que não se destinam apenas a assegurar a qualidade da construção licenciada, mas também a assegurar a qualidade dos edifícios vizinhos (ou, pelo menos, o não agravamento da situação pré-existente). O que, como vimos, no caso em apreço foi totalmente desconsiderado pelo ato impugnado.”

A decisão recorrida, depois de fazer uma profícua resenha jurisprudencial, e rebater os grandes argumentos da posição contrária, termina pela adesão à posição sindicada neste recurso.

A que posição aderir tendo em conta os referidos elementos de interpretação da lei?

Resulta do art. 24º nº1 al. a) do RJUE, aprovado pelo DL 555/99, de 16/12 (na redação dada pelo DL 177/01 de 4/06), que o pedido de licenciamento de obras de construção (ou reconstrução) é indeferido quando elas violarem “plano municipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território, medidas preventivas, área de desenvolvimento urbano prioritário, área de construção prioritária, servidão administrativa, restrição de utilidade pública ou quaisquer outras normas legais ou regulamentares aplicáveis.”

Entre estas normas legais encontra-se o RGEU, Decreto-Lei nº 38 382 de 07-08-195, foi publicado num tempo em que os PDMs eram inexistentes revelando uma manifesta modernidade para o tempo.

Começando por analisar o seu preâmbulo extrai-se do mesmo: “(...) Desde há muito que se tem por necessário que aquela intervenção se exerça não apenas no sentido de tornar as edificações urbanas salubres, mas também no de as construir com os exigidos requisitos de solidez e defesa contra o risco de incêndio e ainda de lhes garantir condições mínimas de natureza estética, objectivos estes estranhos ao âmbito do regulamento de 1903. “

Ou seja, há que ter presente este objetivo do diploma aqui em causa de tornar as edificações urbanas salubres.

Assim como de “se conciliarem ao máximo as condições de salubridade, estética e segurança das edificações com a imperiosidade de as construir...”

Por outro lado, o diploma “...interessa, em primeiro lugar, aos serviços, do Estado e dos corpos administrativos - a estes em especial, pela função directiva e disciplinadora que, através daquele instrumento legal, lhes cabe exercer sobre as actividades relacionadas com as diferentes espécies de edificações, salvaguardando os interesses da colectividade, impondo respeito pela vida e haveres da população e pelas condições estéticas do ambiente local, criando novos motivos de beleza e preservando ou aperfeiçoando os já existentes, tudo de modo a tomar a vida da população mais sadia e agradável e a dar aos núcleos urbanos e rurais um desenvolvimento correcto, harmonioso e progressivo.

Convém salientar que muitas das disposições constantes do regulamento, fixando áreas, espessuras, secções, distâncias, pés-direitos, números de pavimentos, etc., constituem limites mínimos ou máximos, conforme os casos, que não deverão ser ultrapassados. Deixa-se aos corpos administrativos a faculdade de, nos Regulamentos especiais que promulgarem, poderem, conforme as circunstâncias, afastar-se mais ou menos no sentido correcto dos valores prescritos, de modo a terem, em atenção os casos para que não se justifique, sobretudo por motivos de estrita economia do custo da construção, a adopção exacta dos limites, consignados no regulamento. A mesma regulamentação especial permitirá ainda aos corpos administrativos completar, sem lhes fazer perder o sentido, certas disposições do regulamento geral à luz dos frutos da sua própria experiência e do conhecimento pormenorizado de condições locais a que convenha atender. É de notar que não se julga, conveniente que os municípios, quando não existam planos de urbanização regulando os casos sobre que haja de tomar resolução, se arreiguem à ideia de dispor as construções sempre alinhadas ao longo das ruas, porquanto é indiscutível a vantagem de as orientar convenientemente em relação ao Sol e nos ventos dominantes. O regulamento que se promulga abstém-se propositadamente de prescrever quaisquer disposições taxativas, neste assunto, sobre o qual as câmaras terão a liberdade de decidir, com subordinação apenas a condicionamentos de outra índole.”

Assim, resulta do exposto que o diploma visa salvaguardar os interesses da colectividade, as condições estéticas do ambiente local, a criação de novos motivos de beleza assim como a preservação ou aperfeiçoamento dos já existentes, tudo de modo a tomar a vida da população mais sadia e agradável e a dar aos núcleos urbanos e rurais um desenvolvimento correto, harmonioso e progressivo.

Mas, também resulta do mesmo preâmbulo que as disposições constantes do regulamento constituem limites mínimos ou máximos, conforme os casos, que não deverão ser ultrapassados deixando-se aos corpos administrativos a faculdade de poderem conformar as circunstâncias, afastando-se mais ou menos no sentido correto dos valores prescritos completando certas disposições do regulamento geral à luz dos frutos da sua própria experiência e do conhecimento pormenorizado de condições locais a que convenha atender.

Depois, refere-se que o “(...) regulamento interessa também muito aos «técnicos» a quem caiba conceber e projectar uma edificação, por quanto, pela respectiva consulta para aplicação dos preceitos que estatui, os habilita a dotar a construção projectada com os requisitos necessários ao fim em vista: (....)

Assim procedendo, dificilmente a edificação projectada poderá, quando vista no seu conjunto, considerar-se como satisfazendo correctamente aos requisitos gerais exigidos pelo regulamento e proporcionar na justa medida a comodidade inerente à função a que se destina.

Finalmente, o regulamento interessa sobremaneira ao «público», visto que, como fruidor permanente ou temporário das habitações, o referido diploma lhe dá garantia, pela sua aplicação, de que os locais de moradias terão sido erigidos e se manterão de modo a proporcionar-lhe condições vantajosas para a sua saúde e bem-estar; e, como habitante do aglomerado, poderá desfrutar com segurança o ambiente sadio e esteticamente agradável que a aplicação do regulamento terá progressivamente criado e ver respeitados os direitos e regalias que a lei lhe confira em matéria de edificações.

Não se ocupa, o regulamento discriminadamente das edificações com finalidades especiais; insere apenas as de ordem geral que lhes são aplicáveis.(...).

Por fim, termina-se referindo que: “ Não houve certamente a pretensão, por parte da comissão preparadora do projecto de regulamento, nem a tem o Governo, em matéria tão vasta e complexa, cuja evolução nos últimos anos foi bastante grande, de se haver conseguido fazer obra definitiva. Não se lhe oferece, porém, dúvida de que o regulamento vai constituir uma base excelente de partida para um progresso maior neste ramo de técnica e de referência para possíveis ajustamentos de doutrina e supressões de lacunas verificadas durante um período experimental de alguns anos. (...)“

É claro que a única norma que está aqui em análise por ter merecido diverso entendimento entre os dois acórdãos é o art. 73º do RGEU mas nem por isso podemos ignorar que a interpretação que está na base do acórdão recorrido pressupõe uma perspetiva de análise que se adequa também ao art. 58º do RGEU.

Isto é, é a mesma perspetiva de análise relacional de um conjunto de preceitos que leva a que na decisão recorrida se conclua também que o artigo 58.º do RGEU não visa garantir unicamente a qualidade da construção do novo edifício ou da reconstrução de edifício já existente, mas também a salvaguarda de qualquer desses parâmetros nos edifícios pré-existentes.

Mas, atenhamo-nos ao art.73º do RGEU, norma que aqui está sendo objeto de análise.

O Título III relativo às “CONDIÇÕES ESPECIAIS RELATIVAS À SALUBRIDADE DAS EDIFICAÇÕES E DOS TERRENOS DE CONSTRUÇÃO” tem um capítulo I relativo à salubridade dos terrenos, um capítulo II relativo à edificação em conjunto e um capítulo III relativo às disposições interiores das edificações e espaços livres onde se insere o art. 73º aqui e causa.

Antes de entrarmos propriamente no conteúdo deste preceito importa concretizar que qualquer um dos preceitos relativos a qualquer dos capítulos deste título III sempre se referem às edificações a construir.

E, dispõe o art. 73º que:

“As janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75.º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do compartimento, com o mínimo de 3 metros. Além disso não deverá haver a um e outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 metros, devendo garantir-se, em toda esta largura, o afastamento mínimo de 3 metros acima fixado. “

Desde logo, e em sintonia com os preceitos que o antecedem não é despiciendo o tempo verbal utilizado na redação do artigo 73º do RGEU “As janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas…” que indicia que a previsão normativa tem por objeto o próprio edifício a construir e não também os edifícios vizinhos.

O que, aliás, está em sintonia com os preceitos que o antecedem e que sempre se referem à obra a construir assim como ao que se referiu na análise do preâmbulo.

A norma aqui em causa deste RGEU apenas se refere às obras a realizar visando garantir “... que os locais de moradias terão sido erigidos e se manterão de modo a proporcionar-lhe condições vantajosas para a sua saúde e bem-estar; e, como habitante do aglomerado, poderá desfrutar com segurança o ambiente sadio e esteticamente agradável que a aplicação do regulamento terá progressivamente criado e ver respeitados os direitos e regalias que a lei lhe confira em matéria de edificações.”

Não obstante, sempre se alude à possibilidade de através de regulamentação especial os corpos administrativos completarem, sem lhes fazer perder o sentido, certas disposições do regulamento geral à luz dos frutos da sua própria experiência e do conhecimento pormenorizado de condições locais a que convenha atender.

O diploma visa, sim, objetivos de salubridade e qualidade ambiental mas estabelece formas concretas de os perseguir e não é por ter estes objetivos que podemos, sem mais, concluir que, porque também podem existir este tipo de problemas nos edifícios confinantes, que as normas desenvolvidas no diploma também se referem a eles e não apenas ao edifício objeto de licença de construção.

Ou seja, uma coisa é a interpretação da lei e outra serão as concretas medidas existentes por parte das autarquias ou fornecidas por outros mecanismos para proteção de determinados valores, como sejam regulamentos especiais autárquicos, PDMs ou a aquisição de direitos reais.

Não podemos é fazer o raciocínio inverso e interpretar a lei com um sentido que a mesma não comporta apenas porque os referidos valores da salubridade, arejamento e iluminação não estão plenamente protegidos na forma que a RGEU escolheu fazê-lo.

Ora, de acordo com as regras de interpretação da lei exigir-se-ia, por parte do legislador, se a sua intenção fosse aquela a que alude a decisão recorrida, e dadas as grandes consequências que tal implicaria em todo o panorama construtivo, que fosse mais claro nesse sentido.

O que manifestamente não acontece.

Nem quaisquer argumentos de maioria de razão o impõem face à clareza do preceito.

De forma alguma podemos dizer que argumentos de lógica impõem que já que se exigem determinados condicionalismos na obra a construir ou reconstruir se imponham também os mesmos condicionalismos relativamente a todas as construções confinantes existentes.

Aliás, bem pelo contrário.

Este diploma visa implementar a salubridade, garantindo níveis mínimos de arejamento, iluminação natural e exposição solar através dos novos licenciamentos (construção e reconstrução).

Ora, o referido entendimento, que a nosso ver não tem qualquer expressão na letra da lei nem no seu preâmbulo, conduziria em muitas situações a um manifesto desinteresse na renovação do parque habitacional e, portanto, poria em causa o objetivo do diploma de implementação de salubridade através dos novos licenciamentos.

Senão vejamos.

Existindo uma distância de apenas 1 metro entre dois prédios e estando o primeiro proprietário a reconstruir o seu prédio obrigado a cumprir as distâncias relativamente a janelas existentes nos prédios confinantes, mesmo que não faça nenhuma abertura, tal constitui uma falta de estímulo à renovação do parque habitacional e antes um incentivo a aguardar que seja o vizinho a fazê-lo e, portanto, estimular-se-ia a manutenção do status quo, o que contraria a intencionalidade do diploma.

Não cremos que possa resultar, de acordo com os referidos elementos de interpretação, literal, lógico e sistemático, a pretensão do referido diploma de conformação de tudo o que foi construído até à sua entrada em vigor de forma a que se possa concluir, como na decisão recorrida, a vinculação pela administração autárquica à exigência de cumprimento do 73.º do RGEU relativamente às particularidades dos prédios confinantes com o prédio a licenciar.

O RGEU apenas visou impor obrigações a quem, após a sua entrada em vigor, proceda à construção ou reconstrução de edifícios sem que, com isso, indiretamente não ocorra a maioria das vezes repercussão na salubridade, arejamento, iluminação e estética das construções anteriores à sua entrada em vigor.

É o que ocorre se, como no exemplo supra referido, o prédio a licenciar tem uma abertura, uma janela, assim como o confinante, aqui o confinante vai beneficiar da distância que é imposta ao prédio a licenciar, e vai beneficiar em termos de iluminação, arejamento, salubridade e estética.

Mas, não são estas construções as diretamente visadas pelo diploma.

O que não significa que não existam outros mecanismos que possam acautelar esta situação como as normas civilísticas.

Nada impede, por exemplo, que, no caso concreto, se possa ter constituído servidão de vistas ou outra no prédio da aqui autora nos termos do direito civil nomeadamente por usucapião já que esta é uma forma de aquisição originária do direito real.

O que até será a situação dos presentes autos em que, como alega a própria autora, as janelas da sua edificação existem há décadas, e resulta de 7 da matéria de facto que “7. Neste alçado existem e sempre existiram duas janelas e uma porta.”

Mas, tal será outra questão que não a que aqui se nos coloca, que é tão só a da interpretação do referido preceito do RGEU.

Em suma, estamos em 1951 e as preocupações trazidas por este diploma não existiam até à altura.

E, a nossa preocupação é encontrar o pensamento do legislador e os elementos sistemático, teleológico lógico e literal conduzem-nos à interpretação supra veiculada.

Por outro lado, uma coisa é o que resulta da lei, outra questão seria a de saber se o legislador poderia criar a norma com a interpretação dada pela decisão recorrida por tal poder contender com a forma de aquisição de direitos reais.

E, tal colocar-nos-ia a questão da bondade da alusão na decisão recorrida a que “o que está aqui em causa não é um qualquer direito real da Autora/Recorrente, mas sim a vinculação da administração autárquica a satisfazer, na medida do possível, os interesses públicos de salubridade e qualidade ambiental, subjacentes às exigências construtivas constantes, designadamente, dos artigos 58.º e 73.º do RGEU.”

É evidente que são diferenciados e harmonizáveis os campos de aplicação, respetivamente, das normas do RGEU e das normas do Código Civil.

Mas, nem por isso, não deixa de ser questionável se as referidas normas públicas, mesmo tendo em vista o referido interesse público, não estão a permitir a constituição de uma servidão por meios não previstos no Código Civil, não estão a atribuir direitos subjetivos privados e se tal será admissível.

Contudo, esta questão apenas se nos colocaria se a interpretação dada ao preceito fosse a da decisão recorrida, que não é.

Assim, a interpretação a fazer do artigo 73.º do RGEU é a de que a mesma se refere ao edifício a construir e não ao edifício já existente e que do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 38382 resulta que o legislador se preocupou apenas com os parâmetros de qualidade da construção ou reconstrução licenciados, e não com as construções vizinhas já existentes, a não ser indiretamente, por via daquelas.

Pelo que, e contrariamente ao que se decidiu no acórdão recorrido o referido artigo 73º não se aplica ao edifício da autora.

Daí que não possamos concluir de outra maneira que não a do acórdão fundamento.

Pelo que, é de proceder o recurso para uniformização de jurisprudência nos termos e limitações supra referidos.

*

Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em:
a) conceder parcial provimento do recurso;
b) revogar a decisão recorrida apenas na parte em que julgou que o ato impugnado violou o art. 73.º do RGEU, mantendo-se a mesma no restante.
c) fixar a seguinte jurisprudência:
“As exigências previstas no art. 73.º do RGEU apenas incidem sobre o projeto submetido à apreciação camarária.”
Custas por ambas as partes em igual proporção.

Lisboa, 16 de Junho de 2016. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis - Jorge Artur Madeira dos Santos – António Bento São Pedro – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (vencido no essencial pelas razões do Acórdão Pleno deste Supremo de 29.05.2007. Proc. 046946) – José Augusto Araújo Veloso – José Francisco Fonseca da Paz – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Vítor Manuel Gonçalves Gomes (vencido, pelo essencial das razões do acórdão do Pleno de 29/05/2007, P: 46946).