Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01233/16.3BEPRT 0708/18
Data do Acordão:02/06/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:NULIDADE DE SENTENÇA
CONTRADIÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I - Se a fundamentação de facto da sentença não se refere, manifesta e patentemente, à situação sub judice nem tem apoio algum nos elementos probatórios constantes dos autos, a situação não é de erro de julgamento, mas de nulidade da sentença, equivalente à falta de julgamento da matéria de facto.
II - Essa nulidade, de conhecimento oficioso, determina a anulação da sentença e a devolução do processo ao tribunal a quo, a fim de aí ser proferida nova sentença, após o julgamento da matéria de facto.
Nº Convencional:JSTA00070869
Nº do Documento:SA22019020601233/16
Data de Entrada:07/11/2018
Recorrente:A....., S.A.
Recorrido 1:TURISMO DE PORTUGAL, I.P.
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:SENTENÇA DO TAF DO PORTO
Decisão:CONCEDE PROVIMENTO
Área Temática 1:PROCESSO TRIBUTÁRIO
Legislação Nacional:ARTIGO 682º, N.º 3 DO CPC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1 – A…………, SA, melhor identificada nos autos, vem interpor recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou improcedente a ação intentada contra a liquidação da contrapartida anual, relativa ao ano de 2015 no montante de 3.826.746,59 €, referente à concessão de jogo da zona de Póvoa de Varzim.

Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1ª) Na presente impugnação judicial, a ora recorrente contestou a liquidação efectuada pelo Turismo de Portugal, IP, referente à chamada “contrapartida anual” exigida às empresas concessionárias da actividade do jogo;
2ª) A referida contrapartida anual está prevista e regulada no Decreto-Lei n° 275/2001, de 17/10 e é constituída por 50% das receitas brutas dos jogos explorados nos Casinos;
3ª) O referido Decreto-Lei n° 275/2001, de 17/10, estabelece, também, que a referida contrapartida anual não pode ser inferior a um determinado montante, mesmo que o valor dos 50% das receitas brutas dos jogos não atinja esse mínimo;
4ª) Essa contrapartida anual tem a natureza de um imposto, desde logo porque, ao menos em parte, é pago através das liquidações de imposto do jogo e, fundamentalmente, porque se trata de uma prestação definitiva, pecuniária, unilateralmente determinada coerciva e que não corresponde a uma contraprestação específica.
5ª) Ao invés do defendido na douta sentença recorrida, não obstante exista um contrato de concessão celebrado entre o Estado e a recorrente para a exploração de jogos de sorte e azar, essa contrapartida anual não tem matriz contratual;
6ª) O contrato de concessão limita-se a reproduzir o conteúdo de actos legislativos anteriores — o Decreto-Regulamentar n° 29/88, de 3/8 e o Decreto-Lei n° 275/2001, de 17/10;
7ª) A exigência do pagamento da contrapartida anual e a sua fórmula de cálculo estão estabelecidos nos referidos instrumentos legais;
8ª) Além de que, recorde-se, o pagamento, ao menos em parte, dessa contrapartida é feita com os pagamentos do Imposto de Jogo, imposto esse previsto em acto legislativo - DL n° 422/89, de 2/12;
9ª) A circunstância de haver um contrato de concessão e de o recorrente ter “aceite” o pagamento de tributos, não sana as inconstitucionalidades e/ou ilegalidades dos tributos (Imposto do Jogo e contrapartida anual) já que o Estado e os particulares apenas podem validamente obrigar-se dentro dos limites que a Constituição lhes permite;
10ª) Aliás, o STA, a propósito da questão da competência da jurisdição fiscal, já se pronunciou no sentido de que a contrapartida é um tributo;
11ª) Não há, assim, ao invés do decidido na douta sentença recorrida, qualquer impossibilidade de se apreciar as ilegalidades que a recorrente considera existirem na impugnada liquidação da contrapartida;
12ª) É que a referida liquidação é ilegal porque o diploma, com base na qual foi emitida tal liquidação (Decreto-Lei n° 275/2001, de 17/10) é organicamente inconstitucional por violação dos artºs 103°, n° 2 e 165°, n° 1, i), da Constituição da República Portuguesa;
13ª) É que o Decreto-Lei n° 275/2001, foi aprovado sem ser com base em qualquer autorização legislativa concedida pela Assembleia da República ao Governo;
14ª) Acresce que, conforme referido, uma parte da contrapartida anual é paga através de pagamentos do Imposto do Jogo;
15ª) Ora, o Imposto do Jogo está previsto no Decreto-Lei n° 422/89, de 2/12, diploma esse aprovado com base na autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei n° 14/89, de 30/6;
16ª) Porém, essa autorização legislativa é amplamente genérica, não cumprindo o requisito constitucionalmente expresso de definir com rigor e precisão, “o objecto, o sentido, a extensão e a duração da mesma” (cf., à época, o art° 168°, n° 11 e, hoje, o artº 165°, da Constituição).
17ª) Na medida em que está em causa matéria fiscal, que é da competência da Assembleia da República, o referido Decreto-Lei n° 422/89, é organicamente inconstitucional e, portanto, ilegais as liquidações de Imposto do Jogo e, deste modo, ilegal a contrapartida, na parte em que ela é constituída por tal imposto;
18ª) Por outro lado, sendo, como é, a “contrapartida anual” um imposto, a sua, exigência/liquidação é inconstitucional por violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real;
19ª Na verdade, a “contrapartida anual” incide sobre as receitas brutas obtidas pela recorrente e o valor de tal contrapartida nunca pode ser inferior a um mínimo estabelecido na lei;
20ª) O que quer dizer, portanto, que a recorrente é tributada de forma completamente desligada do seu rendimento real/efectivo, podendo ocorrer, até, uma relação inversamente proporcional entre as receitas que obtém e o tributo que é forçado a suportar;
21ª) No limite, com a consagração de uma “contrapartida mínima” poderia a recorrente não ter qualquer receitas e, não obstante, está obrigada a pagar a contrapartida;
22ª) Aliás, o próprio imposto de jogo que, conforme referido, “integra” a contrapartida anual, é também inconstitucional por violação desses princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real;
23ª) É que, como decorre do art° 85° da Lei do Jogo (Decreto-Lei n° 422/89), a tributação sobre os chamados “jogos bancados” incide sobre a receita bruta, afastando-se, assim, do lucro real e efectivo;
24ª) E, quanto à tributação sobre as máquinas automáticas, ela incide sobre um “capital” fixado administrativamente pelo Turismo de Portugal, IP, havendo, deste modo, uma tributação sobre meras presunções de rendimento;
25ª) Deste modo, a impugnada liquidação é ilegal, pelo que não pode manter-se a douta sentença recorrida.»

2 – Foram apresentadas contra- alegações com as seguintes conclusões:
«1. A natureza da contrapartida contratual tem de ser aferida considerando a sua génese e a sua integração no contrato administrativo de concessão para a exploração de jogos de fortuna no casino existente na zona de jogo da Póvoa de Varzim.
2. A contrapartida anual, incluindo a contrapartida mínima, é exigível à recorrente por força do disposto na cláusula 4.ª, n.º 2, do contrato de concessão.
3. O contrato de concessão, celebrado em 1988, foi adjudicado à recorrente na sequência de concurso público, constando as condições desse concurso do Decreto Regulamentar n.º 29/88.
4. A recorrente adquiriu o direito exclusivo de explorar a zona de jogo da Póvoa de Varzim por ter, no âmbito do concurso, apresentado a melhor proposta, isto é, apresentado a mais alta contrapartida inicial, obrigando-se ainda a prestar, em cada ano, uma contrapartida anual no valor de 50% das receitas brutas, que, em caso algum, poderia ser inferior aos valores indicados no anexo ao Decreto Regulamentar n.º 29/88.
5. A contrapartida anual, incluindo a contrapartida mínima, constitui a remuneração que o Estado entendeu dever ser-lhe atribuída (o preço), por ter atribuído à recorrente, em regime de exclusivo territorial e temporal, a exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de jogo da Póvoa de Varzim.
6. O Decreto-Lei n.º 275/2001 estabeleceu as condições acordadas entre as concessionárias, recorrente incluída, e o Estado para a prorrogação dos contratos, prevendo expressamente que as condições da prorrogação se aplicariam se e quando as concessionárias outorgassem os aditamentos aos respetivos contratos.
7. Em 14 de dezembro de 2001 a recorrente outorgou o aditamento ao seu contrato de concessão, assumindo voluntariamente todas as obrigações previamente negociadas com o Estado, incluindo a atualização dos valores constantes da tabela anexa ao Decreto-Lei n.º 275/2001, beneficiando, assim, da prorrogação do prazo da sua concessão por mais 15 anos.
8. O artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 275/2001 e a formalização, através da assinatura do aditamento, tinham ainda a virtualidade de clarificar que se estava perante uma modificação contratual consensual e não perante um ato modificativo unilateral.
9. O Decreto-Lei n.º 422/89 não regula a contrapartida anual e o Decreto-Lei n.º 275/2001 não constitui a base que fundamenta a obrigação de pagamento dessa contrapartida.
10. A relação que se estabelece entre o imposto de jogo e a contrapartida anual, em termos de aquele poder realizar esta, decorre do específico contrato em que é prevista essa possibilidade. Que assim é o comprovam as diferentes configurações dos contratos de concessão em vigor, em que há casos em que o imposto cumula com a contrapartida, há casos em o imposto deduz à contrapartida e há casos em que não há contrapartida, mas em todos os casos é sempre aplicado imposto especial de jogo.
11. A diferença entre a contrapartida anual, incluindo a contrapartida mínima, e um tributo resulta no facto de a primeira ser assumida voluntariamente num contrato e o segundo ser coativamente imposto por lei.
12. A obrigação legal que é imposta sobre todos os contratos é o imposto especial de jogo, não decorrendo da lei a obrigatoriedade de existência de contrapartida anual, razão pela qual há contratos de concessão que não preveem esta última.
13. Inexiste qualquer obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares que possa ser removido através do pagamento da contrapartida anual.
14. O Supremo Tribunal Administrativo até à presente data pronunciou-se apenas sobre a competência material dos tribunais tributários para decidirem as ações propostas pela recorrente, atentos os termos em que esta configura a relação material controvertida, invocando a violação de normas de direito fiscal.
15. O Decreto-Lei n.º 275/2001 não é organicamente inconstitucional, nem a matéria no mesmo estabelecida carece de autorização legislativa.
Ainda que seja irrelevante para a discussão da matéria em causa nos presentes autos, à cautela, sempre se dirá:
16. Que o Decreto-Lei n.º 422/89 não é organicamente inconstitucional, contendo a Lei n.º 14/89, de 30 de junho, todos os elementos e a densidade necessária exigida pela Constituição da República Portuguesa para uma lei de autorização legislativa.
17. Não sendo a contrapartida anual um tributo e estando enquadrada num contrato de concessão de jogo, não lhe são aplicáveis os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real.
18. A tributação dos jogos bancados não incide sobre a receita bruta, mas outrossim sobre o capital em giro inicial fixado pela recorrente, conforme resulta do disposto nos artigos 53.º e 85.º do Decreto-Lei n.º 422/89.
19. A alínea C) do n.º 1 do artigo 87.º do Decreto-Lei n.º 422/89 não é inconstitucional, porquanto a norma impõe à Administração o dever de respeitar princípios e regras suficientemente claros e densos na determinação da matéria coletável.»

3 – O Ministério Público emitiu parecer a fls. 372 e seguintes com o seguinte conteúdo:

«I. Objecto do recurso.
1. O presente recurso vem interposto da sentença do TAF do Porto, com data de 13/04/2018, que julgou improcedente a ação intentada contra o ato de liquidação da contrapartida anual, relativa ao ano de 2015, no valor € 3.826.746,59 euros, respeitante à concessão na zona permanente de jogo de Póvoa do Varzim.
2. Considera a Recorrente que a sentença recorrida fez uma errada interpretação das normas legais e nessa medida impõe-se a sua revogação.
Para o efeito alega que a liquidação padece dos seguintes vícios de ilegalidade: (i) da inconstitucionalidade orgânica dos diplomas - dec.-leis nºs 422/89 e 275/2001 – que regulam a actividade do jogo; (ii) da inconstitucionalidade por violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real; (iii) e da violação do princípio da legalidade.
Considera a Recorrente, apoiando-se no parecer junto aos autos subscrito pelo prof. Sérgio Vasques, que a leis de autorização legislativa devem conter a fixação do objecto, sentido e alcance dessa autorização, o que se reflete, no caso dos impostos, na delimitação dos elementos essenciais da incidência, da taxa, dos benefícios e das garantias a que se refere o artigo 103º, nº 2, da Constituição. E no caso da autorização legislativa estabelecida na lei n º14/89, que o Dec.-Lei nº 422/89 executa, a mesma é “amplamente genérica”, o que no seu entendimento configura vício de inconstitucionalidade orgânica.
Considera, a Recorrida que a liquidação da contrapartida, por ter na sua base o imposto de jogo, é ilegal, por a norma que respalda essa determinação de imposto ser inconstitucional, por o Dec.-Lei nº 275/2001, de 17/10, ter sido aprovado pelo Governo sem ter, na sua base, qualquer autorização legislativa da Assembleia da República.
Mais considera que a contrapartida exigida pelo Estado assenta numa presunção da matéria tributável e nessa medida mostra-se violado o princípio da capacidade contributiva, que no caso das empresas assenta no seu rendimento real, o qual, no caso concreto, não é considerado.
Considera ainda que no caso da exploração das máquinas de jogo a tributação assenta no capital em giro que é definido pela entidade administrativa (inspeção geral do jogo), o que consubstancia violação do princípio da legalidade tributária, uma vez que tal princípio não admite uma delegação naquela entidade, em afronta ao disposto nos artigos 103º, nº 2, e 165º, nº 1, alínea i), da Constituição.
E termina pedindo a revogação da sentença e em sua substituição a anulação das liquidações impugnadas.
II. Fundamentação de facto e de direito da sentença.
1. Na sentença deu-se como assente que a impugnante é concessionária da exploração de jogos de fortuna e azar na zona de jogo permanente da Póvoa do Varzim, por força de contrato de concessão celebrado em 29/12/1988, que foi objecto de revisão e prorrogação em 14/12/2001, tendo sido notificada para efetuar a contrapartida anual, referente ao ano de 2015, no valor global de € 3.826.746,59 euros, calculada nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 3º (Art. 3.º - 1 - Sem prejuízo do disposto na demais legislação aplicável, as concessionárias ficam obrigadas ao cumprimento das seguintes contrapartidas mínimas: a) Prestação de contrapartida a pagar em quatro prestações semestrais e iguais, no valor de 1100000 contos cada uma, na zona de jogo de Espinho, e no valor de 750000 contos cada uma, na zona de jogo da Póvoa de Varzim, ambas a preços de 1987, as primeiras das quais terão de ser pagas antes da data da assinatura dos respectivos contratos de concessão, devendo os valores indicados ser previamente convertidos em escudos correntes dos anos em que forem pagas as prestações pelo processo indicado no artigo 4.º;
b) Contrapartidas anuais no valor de 50% das receitas brutas dos jogos, não podendo, em caso algum, as contrapartidas prestadas nos termos desta alínea ser inferiores aos valores indicados no quadro anexo, depois de serem previamente convertidos em escudos correntes do ano a que respeitam pelo processo indicado no artigo 4.º) do Decreto Regulamentar nº 29/88, e do nº 1 do artigo 5º (Artigo 5.º Regime de deduções dos encargos com animação e promoção turística 1 - Nas contrapartidas anuais de exploração a que se encontram obrigadas as empresas concessionárias referidas no artigo 1.º, será feita a dedução até 1% das receitas brutas dos jogos, dos encargos relativos ao cumprimento das obrigações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, encargos que não poderão ser inferiores a 3% das receitas brutas dos jogos.) do Dec.-Lei nº 275/2001.
Mais se deu como assente que por conta da liquidação foi efetuado o pagamento da quantia de € 2.098.101,86 euros (ponto 6 do probatório).
2. Para se decidir pela improcedência da ação considerou o tribunal “a quo” que «… o legislador quis especificamente excluir da tributação em IRC e tributar através de um imposto especial de jogo os rendimentos ligados à actividade de exploração do jogo», motivo pelo qual excluiu a violação dos princípios da capacidade contributiva, proporcionalidade ou igualdade.
Mais se considerou que o imposto especial sobre o jogo tem um caráter extrafiscal e possui como principal fim promover uma alteração económica e/ou social, representando uma importante contribuição para o desenvolvimento das áreas de implantação dos casinos.
O tribunal “a quo” realça igualmente a natureza contratual das cláusulas do contrato de concessão, para afastar a violação do princípio da capacidade contributiva. Considera igualmente que o imposto especial de jogo não visa tributar o rendimento da impugnante, pelo que não se encontra sujeito ao princípio da capacidade contributiva; e que a diferenciação da tributação decorrente da diferente localização geográfica dos Casinos, que decorre igualmente do contrato celebrado entre as partes, não viola o princípio da igualdade.
III. Delimitação do âmbito do recurso.
1. Previamente à apreciação das questões suscitadas pelo Recorrente importa referir que, como vem sendo entendido, os recursos destinam-se a apreciar a bondade das decisões proferidas pelo tribunal “a quo” à luz da lei aplicável. Sucede que no presente caso e quiçá pela existência de vários processos pendentes envolvendo as mesmas partes e tendo por objecto as contrapartidas da exploração do jogo de fortuna e azar, tanto o tribunal “a quo”, como a Recorrente, se alhearam em parte do objecto da impugnação judicial, no primeiro caso, e do objeto da decisão judicial, no segundo caso.
Na verdade, por um lado o tribunal “a quo” passou ao lado da questão relativa ao vício de inconstitucionalidade orgânica e à violação do princípio da legalidade (que não foi sequer enunciado como questão decidenda), suscitadas pela impugnante, e por outro esta, na qualidade de recorrente, suscita a apreciação de tais questões que não foram apreciadas na sentença recorrida.
Sucede que a Recorrente não invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, pelo que não sendo esta questão de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que a questão da violação do princípio da legalidade não é passível de conhecimento por este tribunal em sede de recurso.
Já no que respeita ao vício de inconstitucionalidade orgânica, dado o mesmo ser de conhecimento oficioso, impõe-se a sua apreciação.
2. Por outro lado, pese embora o recorrido Turismo de Portugal tenha questionado a qualificação e os valores pecuniários das prestações a que a impugnante se referiu na sua petição inicial (Na sua petição inicial (artigos 18º e 19ª) a impugnante e aqui Recorrente insurgiu-se contra o facto de o Turismo de Portugal ter exigido o pagamento da quantia de € 7.206.491,74 euros, correspondente à contrapartida mínima estabelecida no anexo ao Decreto-Lei nº 275/2001, quando o valor da contrapartida correspondente a 50% das receitas brutas corresponde a € 20.981.018,63 euros, que deduzido do valor do imposto pago e das deduções a que contratualmente tem direito, só tinha que pagar a quantia de € 3.379.745,16 euros), certo é que o tribunal “a quo” nada apreciou nessa parte, tendo apenas levado ao probatório – ponto 6 – o valor pecuniário de € 2.098.101,86 euros, correspondente ao montante pago pela Recorrente.
E na discussão da matéria de direito a Mma. Juiz “a quo” aparentemente faz referência a objeto doutro processo quando afirma que: «em causa está a liquidação da contrapartida anual mínima ao ano de 2016 de “imposto especial sobre o jogo”, referente …., no montante global de € 3.241.292,11, contra a qual a impugnante se insurge» (uma vez que o ano e montante referido não têm correspondência com os demais elementos do processo - Sendo certo que não parece tratar-se de lapso, pois a forma como é desenvolvida toda a discussão da matéria de direito induz a que a Mma. Juiz “a quo” se esteja a referir a questões postas noutro processo que envolve as mesmas partes, o que configura incongruência dessa discussão.)
Verifica-se, assim, uma nítida confusão e imprecisão na sentença quanto aos valores pecuniários exigidos à impugnante e aqui Recorrente a título de contrapartida mínima (Confusão que já deriva da petição inicial oferecida pela impugnante e aqui recorrente), mas como não foi questionada qualquer matéria de facto a este respeito e as questões colocadas no recurso são de índole geral, afigura-se-nos que nada obstará ao seu conhecimento.
IV. Análise das questões suscitadas no Recurso.
1. Quanto ao vício de inconstitucionalidade orgânica dos diplomas legais que aprovaram o regime jurídico do jogo.
A Recorrente começa por referir que as liquidações de imposto de jogo aqui impugnadas são ilegais por terem como fundamento legal o Decreto-Lei nº 422/89, de 2/12, sendo que tal diploma, na parte fiscal, é organicamente inconstitucional, por dizer respeito a matéria da competência da Assembleia da República e a lei de autorização legislativa não indicar os critérios mínimos orientadores da autorização.
Como decorre da sentença recorrida, o tribunal “a quo” não se pronunciou sobre essa matéria, pois nem sequer chegou a enunciar a questão. Todavia nada obsta ao conhecimento de tal vício.
Decorria do artigo 168º, nº 1, alínea i), da CRP [atual 165º, nº 1, alínea i)], que compete à Assembleia da República «a criação de impostos e sistema fiscal». Atento que tal competência se insere na reserva relativa da Assembleia da República, este órgão constitucional pode delegar no Governo a competência para legislar em tal matéria, devendo neste caso definir “o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização” – nº 2 do citado preceito legal.
Por seu lado do artigo 106º, nº 2, da CRP, na versão então vigente (que corresponde ao actual 103º, nº 2), resulta que «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».
Sobre esta matéria pronunciou-se o Tribunal Constitucional no sentido de que «A lei de autorização legislativa deverá, pois, conter em si a orientação que deverá presidir à elaboração da legislação respectiva, definindo, assim, o sentido da lei de autorização legislativa. Se este sentido não há-de corresponder a uma enunciação minuciosa de todos os aspectos a regulamentar, sob pena de conter em si próprio o texto legislativo em questão, não poderá, todavia, deixar de conter de forma clara uma enunciação que possa servir de parâmetro e medida aos actos delegados» - acórdão nº 414/96.
Na lei nº 14/89, de 30 de Junho, que concedeu autorização ao Governo para legislar em matéria de jogos de fortuna ou azar em casinos e proceder à revisão da respetiva legislação, consta do nº5 do artigo 2º autorização para fixar «a base da incidência do imposto especial de jogo, bem como todas as taxas aplicáveis quanto aos jogos bancados e não bancados, matéria em que não se pode inovar em resultado de compromissos contratuais existentes» (al.a), a consignação das receitas para determinados organismos (al.b)), a isenção da atividade do jogo de qualquer outra tributação (al. d)), e determinadas isenções das concessionárias (al.e) ).
Ora, pese embora a sucinta definição do objeto e extensão da autorização no que respeita à definição do sistema fiscal aplicável ao exercício da actividade do jogo, afigura-se-nos que a mesma é bastante no que respeita à delimitação do objeto e extensão da autorização.
Por outro lado a imposição constitucional consagrada no nº3 do atual artigo 103º da CRP é dirigida ao legislador, seja essa função exercida pela Assembleia da República, seja pelo Governo no uso de poderes delegados por aquele órgão.
De todas as formas e dadas as particularidades da situação, uma vez que já se encontrava delimitada a incidência objetiva e subjetiva do imposto, ou seja, que o mesmo recaía sobre a atividade do jogo e sobre as entidades concessionárias, tendo como pano de fundo o clausulado nos contratos de concessão, e uma vez que não se tratava de criar um regime novo, mas a proceder apenas a uma revisão do mesmo, deixando incólume a sua estrutura básica, afigura-se-nos que os termos em que foi concedida a autorização legislativa para definição do regime fiscal cumpre os ditames constitucionais.
Entendemos, assim, que não se verifica o apontado vício de inconstitucionalidade orgânica, na sua vertente de reserva de lei formal.
2. Quanto ao vício de inconstitucionalidade por violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real.
Não oferece dúvidas que o imposto do jogo tal como ele está configurado no Dec.-Lei nº 422/89 procura atingir não o rendimento real da entidade concessionária, mas sim o rendimento normal que se espera obter da atividade de exploração do jogo. E tal como entendeu o tribunal “a quo” o regime fiscal assim configurado assenta no carácter especialíssimo do imposto do jogo, atentas as suas características de extra-fiscalidade, o qual visa combater os malefícios do jogo e controlar a sua prática dentro de limites apertados e circunscritos territorialmente, ao mesmo tempo que visa arrecadar receitas destinadas ao desenvolvimento turístico dessas áreas. Daí que a sua apreciação à luz dos cânones estabelecidos no artigo 104º da CRP deva ser feito com as devidas adaptações. Com efeito o imposto especial de jogo não pode ser visto como um imposto que visa a tributação do rendimento, pelo que a sua compatibilidade com a Constituição não deve ser feita à luz do princípio da capacidade contributiva ou do conceito de “rendimento real”. Como refere a doutrina, o imposto do jogo visa essencialmente tributar uma determinada atividade – o jogo -, a qual é exercida no âmbito de uma concessão efetuada pelo Estado e nessa medida em exclusivo monopólio, pelo que o imposto é alheio ao rendimento obtido pela concessionária.
A proteção do equilíbrio financeiro da entidade concessionária é prosseguido através da isenção de qualquer outro tipo de tributação decorrente do exercício dessa atividade (art.s 84º, nº 2, e 92º da Lei do Jogo), designadamente o IRC, a dedução de determinadas despesas estipuladas no contrato de concessão, a atribuição de utilidade pública e turística aos empreendimentos (art.18º da LJ), e a utilização de bens do Estado. E obviamente as vantagens de exercer tal atividade em exclusivo e sem concorrência na zona delimitada e autorizada.
Estamos, como refere alguma doutrina, perante uma tributação de substituição, relativamente à qual não opera o princípio da tributação sobre o rendimento real da empresa consignado no nº 2 do artigo 104º da CRP.
Entendemos, assim, que nesta parte a sentença recorrida fez um correto enquadramento legal do imposto, motivo pelo qual se impõe a sua confirmação.
V. Em conclusão:
a) Entendemos que a Lei do Jogo, aprovada pelo Dec.-Lei nº 422/89, não padece do vício de inconstitucionalidade orgânica, por a lei de autorização nº 14/89 da Assembleia da República ser suficientemente explícita sobre os termos e âmbito da revisão da lei que aquele diploma veio concretizar em decorrência dessa autorização, mostrando-se, assim, respeitado o disposto no nº 2 do artigo 168º da CRP (na numeração então vigente);
b) Entendemos igualmente que o regime fiscal previsto na Lei do Jogo não viola os princípios constitucionais da capacidade contributiva e do rendimento real consagrado no nº 2 do artigo 104º da Constituição, uma vez que estamos perante um regime fiscal especial, com caraterísticas de extra-fiscalidade, que não visa a tributação do rendimento da entidade concessionária, mas sim a tributação de uma determinada atividade que aquela desenvolve no âmbito de um contrato de concessão, mostrando-se inadequado a utilização do critério da capacidade contributiva para avaliar da sua conformidade com a Constituição;
c) E assim sendo, afigura-se-nos que se impõe a confirmação da sentença, ainda que com outra fundamentação, julgando-se improcedente o recurso.»

4. Por despacho do relator a fls. 378 (numeração SITAF) foram as partes notificadas do parecer do Ministério Público e sobre o mesmo veio a recorrida, Turismo de Portugal, I.P., responder nos seguintes termos:

«1. No douto parecer sob análise, o Dig.mo procurador-geral-adjunto vem dar razão ao recorrido quanto à improcedência das alegadas inconstitucionalidades de que padeceria o Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, invocadas pela recorrente.

2. Assim, depois de delimitar o objeto do recurso aos vícios de inconstitucionalidade orgânica e inconstitucionalidade por violação dos princípios da capacidade contributiva e de tributação pelo rendimento real, o Dig.mo Magistrado concluiu que: "não se verifica o apontado vício de inconstitucionalidade orgânica, na sua vertente de reserva de lei formal" e que "o regime fiscal previsto na Lei do Jogo não viola os princípios constitucionais da capacidade contributiva e do rendimento real consagrado no n.º 2 do artigo 104. º da Constituição, uma vez que estamos perante um regime fiscal especial, com características de extra-fiscalidade, que não visa a tributação do rendimento da entidade concessionária, mas sim a tributação de uma determinada atividade que aquela desenvolve no âmbito de um contrato de concessão, mostrando-se inadequado a utilização do critério da capacidade contributiva para avaliar da sua conformidade com a Constituição. ".

3. Salvo melhor opinião, está-se em crer, que tais afirmações são corretas quando relativas às liquidações de imposto especial de jogo, imposto este que, no entanto, não é o objeto da impugnação apresentada pela recorrente.

4. Com efeito, no caso sub judice, está em causa a impugnação da liquidação da contrapartida anual mínima relativa ao ano de 2015, referente à concessão da exploração da zona de jogo da Póvoa de Varzim, e não do imposto especial de jogo.

Explicando melhor,

5. Nos termos da cláusula 4.ª, n.º 2, do contrato de concessão, a recorrente obrigou-se a prestar, em cada ano de vigência do contrato, uma contrapartida no valor de 50% das receitas brutas dos jogos, não podendo, em caso algum, essa contrapartida ser de montante inferior ao indicado, para cada ano, no anexo ao Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de outubro (denominada de contrapartida mínima), atualizado para o respetivo ano.

6. No ano de 2015, conforme consta do doc. n.º 1 junto com a petição inicial, a recorrente obteve € 41.962.037,25 de receita bruta.

7. O valor corresponde a 50% das receitas de jogo nesse ano foi, assim, de € 20.981.018,63.

8. No decurso do ano de 2015 a recorrente deduziu, nos termos das alíneas a) a h) do n.º 2 da cláusula 4.ª do contrato de concessão, o montante de € 17.601.273,47.

9. Assim, e conforme consta do doc. n.º 1 junto com a petição inicial, a recorrente para cumprir com a obrigação de entrega de 50% das receitas do jogo tinha de entregar ao recorrido o montante de € 3.379.745,16.

10. Porém, como se referiu em 5. antecedente, no contrato de concessão as partes acordaram expressamente que o montante correspondente a 50% das receitas brutas não seria inferior, em cada ano, ao valor constante do quadro anexo ao Decreto-Lei n.º 275/2001.

11. 0ra, em 2015 o valor constante do referido quadro é de € 18.305.882,82, que, atualizado nos termos previstos no n.º 2 da cláusula 4.ª do contrato de concessão, resulta no montante de € 24.807.765,21.

12. Assim, a diferença entre este montante e o valor correspondente a 50% das receitas brutas ( € 20.981.018,63) corresponde à denominada contrapartida anual mínima neste ano de 2015, no valor de € 3.826.746,58).

13. Se se somar o montante de € 3.379.745,16 (referido em 9. antecedente e correspondente ao remanescente da contrapartida por referência aos 50% da receita bruta) ao montante de € 3.826.746,58 (referido em 12. antecedente e correspondente à contrapartida anual mínima), encontra-se o valor do remanescente que, nos termos do contrato, era devido pela recorrente ao recorrido em 31 de janeiro de 2016, ou seja, € 7.206.491,74.

14. Dos € 7.206.491,74 devidos, a recorrente pagou € 5.477.847,02, dos quais:
i) € 3.379.745,16 são correspondentes ao remanescente da contrapartida anual por referência a 50% das receitas brutas dos jogos; e
ii) € 2.098.101,86 são correspondentes a 10% dos 50%, montante que, por força do disposto no Decreto Regulamentar n.º 1/2015, de 21 de janeiro, tinham de ser pagos para que a recorrente pudesse beneficiar do regime de pagamento em prestações ali previsto para a contrapartida anual mínima (facto provado sob o n.º 6).

15. Como em causa na presente impugnação está a contrapartida mínima, o valor da ação foi fixado em € 3.826.746,59, que é o valor da contrapartida mínima.
16. Não obstante a contrapartida anual (incluindo a contrapartida mínima) ter sido estabelecida por acordo entre as partes e não configurar um qualquer tributo, razão pela qual (i) a recorrente moveu uma ação administrativa comum contra o Estado Português e o recorrido, que corre termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, sob o n.º 192/13.9BEPRT, na qual pediu a condenação do concedente à reposição do equilíbrio financeiro do contrato de concessão, celebrado no dia 29.12.1988 e revisto em 14.12.2001, através da modificação do contrato e, em consequência, a modificação da obrigação de pagamento de 50% das receitas brutas do jogo a título de contrapartida e a sua substituição por cláusula que altera o modelo de cálculo da contrapartida anual, passando esta a ser apurada com base no EBITDA e (ii) o Governo ter publicado o Decreto Regulamentar n.º 1/2015 e a recorrente ter aderido ao mesmo para pagamento em prestações da contrapartida anual mínima, a recorrente não se inibiu de, simultaneamente, recorrer às secções de contencioso tributário dos tribunais administrativos e fiscais, qualificando-a como um tributo.
17. Na presente impugnação, como nas demais que correm nos tribunais tributários, o recorrido tem vindo a repudiar a qualificação da contrapartida anual como tributo, por esta ter uma natureza manifestamente contratual, estando prevista nos contratos de concessão como o preço, e tendo sido, inclusivamente, em alguns desses contratos, fator de adjudicação da concessão.
18. Assim, no Decreto Regulamentar nº 29/88, de agosto, previa-se que a concessionária, para além da obrigação legal de pagamento do imposto especial de jogo, se devia obrigar a pagar uma contrapartida ao Estado.
19. Esta contrapartida (inicial e anual) constituiu a remuneração que o Estado entendeu dever ser-lhe atribuída (o preço) por ter adjudicado o exclusivo da exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de jogo da Póvoa de Varzim à ora recorrente, assumindo esta a atividade do jogo e sendo remunerada através das receitas do jogo.
20. A contrapartida (anual e inicial) corresponde a uma contra prestação contratual típica dos contratos administrativos em que o risco da atividade é transferido para o contraente privado.
21. Como decorre do acima exposto, a obrigação de pagar a contrapartida anual encontra-se prevista no contrato de concessão, tendo por referência o Decreto Regulamentar n.º 29/88, que constituiu o caderno de encargos do concurso público, erigindo-a como uma obrigação do concessionário, o que revela a sua natureza contratual.
22.A referida obrigação foi aceite pela recorrente quando apresentou a sua proposta e, por esta ter proposto a contrapartida inicial mais elevada no concurso público aberto para a concessão da exploração da zona de jogo da Póvoa de Varzim, viu ser-lhe adjudicada a concessão, materializada com a assinatura do contrato de concessão celebrado em 29 de dezembro de 1988.
23. O facto de a contrapartida anual se poder realizar, em parte, através do imposto especial de jogo em nada contende com o carácter contratual da mesma, mormente das suas restantes componentes.
24. Isto porque uma coisa é a tributação da atividade de exploração dos jogos de fortuna ou azar, que é efetuada através do imposto especial do jogo; coisa diversa é a remuneração que cabe à concessionária pagar pela atribuição do exclusivo territorial e temporal de tal exploração.
25. Sendo que, como o recorrido refere na sua contestação, uma análise a todos os contratos de concessão em vigor, revela que há contratos que contém a obrigação contratual de pagamento da contrapartida inicial e anual (Estoril, Póvoa de Varzim, Espinho, Algarve e Figueira da Foz), há contratos que apenas têm a obrigação de pagamento da contrapartida anual (Vidago-Pedras Salgadas e Troia) e há contratos que não têm qualquer contrapartida, seja a inicial ou a anual (Funchal e Açores) e há ainda contratos que, tendo contrapartida anual, podem, ou não, ter contrapartida mínima.
26. O que é comum a todas as concessões, desde logo porque não decorre do teor dos contratos de concessão, é a obrigação de pagar o imposto especial de jogo, que decorre da lei.
27. Aliás, por assim ser, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República emitiu recentemente um Parecer, onde se pronuncia sobre a validade das contrapartidas anuais mínimas, admitindo que, dado o seu carácter contratual, podem as mesmas, se reunidos determinados circunstancialismos, ser objeto de modificação por acordo entre as partes (cfr. Parecer 3/2018, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 199, de 16 de outubro de 2018, já junto aos autos).
28. Como se comprova do que antecede, falta à contrapartida anual, desde logo, o elemento objetivo assacado aos tributos, dado que a obrigação de pagamento da mesma tem fonte contratual - o contrato de concessão - e não é uma obrigação ex lege (cfr. artigo 8.° do Decreto-Lei n.º 275/2001), pelo que não lhe são aplicáveis os princípios da constituição fiscal.

29. Sem prejuízo do que antecede, não pode o recorrido deixar de aderir às conclusões do parecer do Dig.mo procurador-geral-adjunto, na medida em que, efetivamente, as normas que preveem o imposto especial de jogo não são inconstitucionais, por não existir qualquer inconstitucionalidade orgânica dos diplomas que aprovaram o regime jurídico do jogo e por não existir violação dos princípios da capacidade contributiva e do rendimento real.»


5 – Com dispensa de vistos, por se ter entendido tratar-se de questão já apreciada pela jurisprudência da Secção, cumpre apreciar e decidir.

6 – O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto considerou como provado os seguintes factos com interesse para a decisão:
1. A impugnante é concessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar, na zona de jogo permanente da Póvoa de Varzim, conforme resulta do contrato de concessão que foi celebrado em 29/12/1988 e publicado no Diário da República, III Série, nº 37 de 14/02/1989.
2. O contrato referido em a) foi objecto de revisão e prorrogação em 14/12/2001, o qual foi publicado por Aviso no Diário da República nº 27, de 01/02/2002, III Série, com o título “Contrato de concessão da exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de jogo permanente da Póvoa de Varzim à A……….., SA” (cfr. fls. 158 a 211 dos autos).
3. Resulta da cláusula 3ª do contrato referido em 2) que “A concessionária aceita todas as obrigações impostas pela legislação em vigor, designadamente, as estabelecidas nos Decretos-Leis nºs 422/89, de 2 de Dezembro e 184/88 de 25 de Maio, e legislação complementar, bem como pelos Decretos-Leis nºs 274/88 de 3 de Agosto e 275/2001 de 17 de Outubro, e pelo Decreto Regulamentar n º 29/88 de 3 de Agosto” (cfr. fls. 164 verso dos autos).
4. Resulta da cláusula 4ª contrato que a concessionária obriga-se, designadamente, a “1) Prestar uma contrapartida inicial (…). 2) para além da contrapartida referida no número anterior, prestar, em cada ano, contrapartida no valor de 50% das receitas brutas declaradas dos jogos explorados no casino, todavia, em caso algum a contrapartida prestada nos termos deste número poderá ser inferior aos valores indicados no anexo…; A contrapartida referida neste número realiza-se pelas seguintes formas: a) através do pagamento do imposto especial sobre o jogo nos termos da legislação em vigor; (…)” (cfr. fls. 164 verso dos autos).
5. Foi liquidado, pelo Serviço de Inspeção de jogos do turismo de Portugal, em relação à impugnante, a contrapartida anual relativamente ao ano de 2015, nos seguintes termos:


6. Por conta da liquidação referida no n.º anterior, a Impugnante pagou o montante de € 2.098 101,86 (cfr. fls. 41 e 42 dos autos).
7. A presente impugnação foi intentada em 28/04/2017 (cfr. fls. 3 dos autos).


7. Do objecto do recurso

Da análise dos fundamentos invocados pela Recorrente para pedir a sua alteração, podemos concluir que a questão objecto do presente recurso é a de saber se incorre em erro de julgamento a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a fls. 445/459 do SITAF que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela recorrente contra a liquidação da contrapartida anual, no montante de € 3.826.746,59, relativa ao ano de 2015, calculada nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 3º do Decreto regulamentar nº 29/88 e do nº 1 do artigo 5º do decreto lei nº 275/2001.

Porém, em face do teor do parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto e da posição sustentada pela entidade recorrida na sequência da notificação que lhe foi feita de tal parecer, impõe-se apreciar previamente a questão da contradição e insuficiência na decisão sobre a matéria de facto, por implicar, eventualmente, nulidade da sentença recorrida de conhecimento oficioso.

8. Da questão prévia da nulidade da sentença recorrida por contradições e insuficiência na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito e da necessidade de ampliação da matéria de facto.

Como bem nota o Ministério Público no seu parecer verifica-se uma nítida confusão e imprecisão na sentença quanto aos valores pecuniários exigidos à impugnante e aqui Recorrente a título de contrapartida mínima.
Com efeito, na fundamentação de facto e de direito da sentença a Mma. Juiz “a quo” aparentemente faz referência ao objecto doutro processo quando afirma que: «em causa está a liquidação da contrapartida anual mínima ao ano de 2016 de “imposto especial sobre o jogo”, referente …., no montante global de € 3.241.292,11, contra a qual a impugnante se insurge».
Esta divergência factual decorre do facto de a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto se ter pronunciado sobre acto tributário completamente ausente do processo, identificando erroneamente o acto impugnado como sendo «a liquidação da contrapartida anual mínima ao ano de 2016 de “imposto especial sobre o jogo”, referente …., no montante global de € 3.241.292,11», quando na verdade resulta da petição inicial da impugnação que a recorrente vinha sindicar a liquidação da contrapartida anual, relativa ao ano de 2015 no montante de 3.826.746,59 €, referente à concessão de jogo da zona de Póvoa de Varzim.
Tudo leva a crer, pois, que a fundamentação de facto e de direito da sentença não corresponde à matéria dos presentes autos mas sim a outro processo relativo à mesma impugnante e com factualidade semelhante, o que patenteia, para além do mais, manifesta desatenção quanto ao objecto do processo e quanto à pretensão deduzida na impugnação.
Não estamos perante um mero lapso de escrita ou perante um erro material, pois a forma como é desenvolvida toda a discussão da matéria de direito induz a que a Mma. Juiz “a quo” se esteja a referir a questões postas noutro processo que envolve as mesmas partes, o que, como bem assinala o Ministério Público, configura incongruência dessa discussão.

Por outro lado, pese embora o recorrido Turismo de Portugal tenha questionado a qualificação e os valores pecuniários das prestações a que a impugnante se referiu na sua petição inicial (Na sua petição inicial - artigos 18º e 19ª - a impugnante e aqui Recorrente insurgiu-se contra o facto de o Turismo de Portugal ter exigido o pagamento da quantia de € 7.206.491,74 euros, correspondente à contrapartida mínima estabelecida no anexo ao Decreto-Lei nº 275/2001, quando o valor da contrapartida correspondente a 50% das receitas brutas corresponde a € 20.981.018,63 euros, que deduzido do valor do imposto pago e das deduções a que contratualmente tem direito, só tinha que pagar a quantia de € 3.379.745,16 euros), certo é que o tribunal “a quo” nada apreciou nessa parte, tendo apenas levado ao probatório – ponto 6 – o valor pecuniário de € 2.098.101,86 euros, correspondente ao montante pago pela Recorrente.

Numa situação destas a contradição da matéria de facto fixada com a fundamentação de facto e de direito, que, ao fim e ao cabo, se traduz na sua insuficiência, é fundamento de ampliação da matéria de facto, pois não se podem ter como assentes os factos em que se concretiza essa contradição, (Cf., neste sentido Jorge Lopes de Sousa, no seu Código de Procedimento e Processo Tributário, Áreas Edit., 6ª edição, Volume II, pag. 359 e Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 03.07.2013, recurso 1331/12 e de 18.12.2013, recurso 351/13.) .
Com efeito, para além dos poderes referidos no art. 674. ° do Código de Processo Civil, que se traduzem na intervenção do Supremo na fixação da matéria de facto quando está em causa apenas a aplicação de regras de direito, a actividade do Supremo Tribunal Administrativo, em processos julgados inicialmente pelos tribunais tributários, deve limitar-se à aplicação do direito aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (art. 682º.°, n.°s 1 e 2, do CPC).
Por isso, como esclarece a doutrina (Jorge Lopes de Sousa, ob. citada, pag. 359) nestes recursos para o Supremo Tribunal Administrativo, se se verifica contradição da matéria de facto fixada, que se traduz na sua insuficiência, não existem condições para o STA levar a cabo a sua actividade, impondo-se ordenar a ampliação da matéria de facto nos termos do artº 682º, nº 3 do Código de Processo Civil (729º, nº 3 na redacção anterior).
Sendo que, como acentua aquele autor e vem também afirmando a jurisprudência desta Secção – cf. o citado Acórdão 1331/12 e ainda o Acórdão 351/13 de 18.12.2013 - estes casos de ampliação da matéria de facto envolvem também a anulação da decisão recorrida, à semelhança do que expressamente se preceitua no art. 662, nº 2, al. c), do Código de Processo Civil, sendo também casos de conhecimento oficioso da nulidade referida.

Em face do exposto, e porque se entende que as apontadas contradições na decisão e ainda a insuficiência da matéria de facto inviabilizam a decisão jurídica do pleito, impõe-se, a anulação da decisão recorrida, e a consequente remessa dos autos ao tribunal “a quo”, nos termos do artº 682º, nº 3 do Código de Processo Civil, a fim de que este proceda ao necessário julgamento da matéria de facto, de acordo com o que acima se deixa explicitado.

9. Decisão:
Nestes termos acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em anular a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos à primeira instância a fim de que ali se proceda ao necessário julgamento da matéria de facto, de acordo com o que acima se deixa explicitado.
Sem custas.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2019. – Pedro Delgado (relator) – Isabel Marques da Silva – Ascensão Lopes.